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LEI DO CIBERCRIME
CORREIO ELECTRÓNICO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário
Sumário: I. A remissão feita no art. 17.º da Lei do Cibercrime para o regime previsto no Código de Processo Penal carece de uma interpretação teleológica, que compatibilize as funções do juiz de instrução – juiz das liberdades e não o investigador – com as do Ministério Público, o titular da acção penal. II. Depois de ter sido o juiz de instrução o primeiro a tomar contacto com o correio electrónico apreendido e de ter tido a possibilidade de excluir as mensagens de natureza estritamente privada, cabe ao titular da acção penal fazer a escolha das mensagens que entenda por relevantes para a investigação, promovendo a sua junção aos autos, cabendo a decisão final (recorrível) ao juiz de instrução.
Texto Integral
Acordam os Juízes que compõem a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
Nos presentes autos foi proferido o seguinte despacho judicial, que se transcreve:
“Fls. 2832 e 2833: Consigno que tomei conhecimento dos ficheiros guardados: - Na pen acondicionada no saco de prova série …; - No CD acondicionado no saco de prova série …; - No CD acondicionado no saco de prova série …; - Na pen acondicionada no saco de prova série …; - Na pen acondicionada no saco de prova série …; - No CD selado com o selo da PJ com o n.º ...; - No CD selado com o selo da PJ com o n.º ...; - Na pen acondicionada no saco de prova série …; - Na pen acondicionada no saco de prova série …; - Na pen acondicionada no saco de prova série …; - Na pen acondicionada no saco de prova série …, tendo acedido ao conteúdo de alguns desses ficheiros e constatado que dos mesmos fazem parte mensagens de correio electrónico – arts. 179.º, n.º 3, e 268.º, n.º 1, al. d), ambos do Código de Processo Penal, ex vi art. 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15.09. O Ministério Público requereu que este tribunal, após proceder à abertura e primeira visualização dos ficheiros que contêm correio eletrónico, e concretamente após exclusão daqueles que possam contender com a reserva da vida privada, (...) autorize o Ministério Público, na qualidade de titular da acção penal, a selecionar o correio electrónico que se afigure relevante para a descoberta da verdade, a fim de posteriormente promover, junto do JlC, a sua junção aos autos nos termos do disposto no artigo 179º, nº3 e268º, nº1, al. d), ambos do Código de Processo Penal, ex vi art. 17º da Lei 109/2009, de 15/09. Contudo, a intervenção que o Ministério Público pretende assumir no procedimento tendente à junção aos autos de correspondência electrónica não encontra suporte nem na letra nem no espírito do regime legal acima citado. Na verdade, resulta do disposto no n.º 3 do art. 179.º do Código de Processo Penal (aplicável por força do estatuído no art. 17.º da Lei n.º 109/2009) que entre a tomada de conhecimento, pelo juiz, do conteúdo da correspondência apreendida (que ocorreu neste momento) e a ponderação judicial sobre a relevância desta para a prova não pode haver intromissão de outros sujeitos processuais, nomeadamente do Ministério Público, no acesso ao conteúdo de tal correspondência. De outro modo, não se compreenderia que em caso de irrelevância da correspondência para a prova só o juiz ficasse ligado por dever de segredo relativamente ao respectivo conteúdo (cf. a parte final do citado n.º 3 do art. 179.º). Em suma, em matéria de correspondência electrónica apreendida, vigora o princípio da reserva de juiz consagrado no art. 32.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (a propósito, cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021 – https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210687.html). Pelo que, consequentemente, indefere-se a pretensão em causa. III. Atento o volume da correspondência electrónica em causa, solicite ao Ministério Público que indique órgão de polícia criminal (bem como, se necessário, especialista informático) para coadjuvar na tomada de conhecimento das mensagens de correio electrónico que são relevantes para a prova. […]”
Inconformado com tal despacho, o Ministério Público apresentou o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem: “1. O objecto do presente recurso é o despacho datado de 28-01-2025 (fls. 2836 e verso), que indeferiu que o Ministério Público procedesse à selecção das mensagens de correio electrónico a juntar ao inquérito por revelantes para a prova, nos seguintes termos:
a. a intervenção que o Ministério Público pretende assumir no procedimento tendente à junção aos autos de correspondência electrónica não encontra suporte nem na letra nem no espírito do regime legal acima citado.
b. Na verdade, resulta do disposto no n°. 3 do art. 179.° do Código de Processo Penal (aplicável por força do estatuído no art. 17° da Lei 109/2009) que entre a tomada de conhecimento, pelo juiz, do conteúdo da correspondência apreendida (que ocorreu neste momento) e a ponderação judicial sobre a relevância desta para a prova não pode haver intromissão de outros sujeitos processuais, nomeadamente do Ministério Público, no acesso ao conteúdo de tal correspondência. De outro modo, não se compreenderia que em caso de irrelevância da correspondência para a prova só o juiz ficasse ligado por dever de segredo relativamente ao respectivo conteúdo (cf. a parte final do citado n°. do art. 179°).
b. Em suma, em matéria de correspondência electrónica apreendida, vigora o princípio da reserva de juiz consagrado no art. 32°, n°4, da Constituição da República Portuguese (a propósito, cf. o Acórdão do Tribunal Tribunal Constitucional n° 687/2021‑ https://www.tribunalconstitucionaLpt/tc/acordaos/20210687.htmL 2. Incumbe ao Ministério Público, na qualidade de titular da acção penal, correlacionar o correio electrónico com a restante prova já carreada ou a carrear para os autos, seleccionar aqueles que entender necessários para o esclarecimento dos factos, em obediência ao princípio do acusatório plasmado no artigo 32°, n°5 da CRP.
3. A intervenção jurisdicional na fase de inquérito é limitada, prendendo-se com aqueles atos que, nos termos dos artigos 269°, do Código de Processo Penal, estejam na disponibilidade decisória do juiz de instrução, ou com aqueloutros que devam ser pessoalmente praticados por aquele, nos termos do artigo 268° do mesmo diploma legal.
1. No que respeita à falta de suporte na letra e espírito do regime legal importa contextualizar que estamos perante uma diligência de inquérito, fase processual dirigida pelo Ministério Público e, outrossim, que as regras relativas ao correio electrónico foram alteradas através da Lei do Cibercrime para fazer face a novas realidades, pelo que a remissão operada pelo artigo 17° da Lei 109/2009 de 15/09 para o artigo 179° do Código de Processo Penal, carece de ser interpretada respeitando a unidade do sistema jurídico- penal português.
2. Estamos perante normas criadas pelo legislador em tempos distintos e que pretenderam dar resposta a problemáticas diferentes, pelo que uma aplicação automática não é consentânea com o espirito do sistema.
3. O entendimento defendido pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal - o único a ter acesso a todas as mensagens e a proceder à escolha - conduziria a que o despacho por si proferido de apreensão de mensagens de correio eletrónico fosse insidicável e como tal irrecorrível.
4. Com efeito, seria conceder ao Juiz de Instrução Criminal um poder de direcção do inquérito absoluto, pois tudo o que considerasse irrelevante para a prova ficaria para sempre selado pelo dever de segredo, inacessível ao Ministério Público e, como tal, fora de qualquer controlo.
5. Tal significaria uma perda de prova irreparável, colocando em causa o exercício da acção penal e, em última instância o poder punitivo do Estado.
6. Revertendo para o caso concreto, estamos perante matéria complexa e extensa com 9 operações em ..., executados entre 2015 e 2020, apresentados por 8 beneficiárias, objecto de investigação, bem como 12 fornecedoras, com ligações entre si, num esquema de sobrefaturação e/ou facturação sem substância.
10. A selecção de correio electrónico, reclama um profundo conhecimento dos incentivos em causa - mormente no que respeita as especificidades da tramitação, aprovação e contratualização e da execução financeira - do objecto do processo e das provas a correlacionar, ao qual o Juiz de Instrução é alheio.
11. Não se alcança razão pela qual o Meritíssimo Juiz a quo veda por completo ao Ministério Público, magistratura com assento constitucional, dominus do inquérito, obrigada a critérios de estrita legalidade e objectividade, a selecção de quaisquer mensagens de correio de eletrónico, mas acaba por colocar tal função nas mãos da Policia Judiciária, em face da complexidade dos autos.
12. O Mmo. Juiz de Instrução Criminal ao trazer à colação o Acórdão do Tribunal Constitucional 687/2021 compara realidades distintas.
7. À luz da redação do artigo 17°, sobre a qual o Tribunal Constitucional se debruçou, inexistia o primeiro controlo efectuado pelo Juiz de Instrução Criminal no primeiro acesso ao correio electrónico.
13. À luz da actual redação do artigo 17° da Lei 109/2009 de 15/09 e 179°, n°3 do C.P.P, o Juiz de Instrução Criminal é o primeiro a visualizar o correio electrónico, garantindo-se, dessa forma, que a afetação dos direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e sigilo das comunicações (artigo 34.°, n.°s 1 e 4, da CRP) e à proteção dos dados pessoais, no domínio da utilização da informática (artigo 35.°, n.°s 1 e 4 da Lei Fundamental), enquanto manifestações tuteladas da reserva de intimidade da vida privada (n.° 1 do artigo 26.° da CRP), são adequadas, necessárias e proporcionais às finalidades do inquérito.
14. Destarte, a seleção das mensagens de correio electrónicos, previamente visualizadas pelo Juiz de Instrução Criminal, não viola o princípio de reserva de juiz.
16. Ao invés, ao proferir o despacho ora colocado em crise, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal agiu em crassa violação de disposições legais e constitucionais, assumindo uma posição de direcção do inquérito, determinando o que é, ou não, relevante para a prova, através de uma grave limitação das funções constitucionalmente atribuídas ao Ministério Público.
17. A interpretação plasmada no despacho recorrido faz tábua rasa das disposições constitucionais que estabelecem a estrutura acusatória do processo penal (art. 32.° n.° 5, da C.R.P.1) e a autonomia do Ministério Público (art. 219.° n.° 2, da C.R.P.2), das quais decorrem, em conjugação com a lei processual penal, que compete ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal, a direcção do inquérito e, consequentemente, a escolha das mensagens de correio electrónico com relevância probatória.
18. O Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal ao proferir o despacho recorrido fez uma errada interpretação do disposto nos artigos 17° e 28° da Lei 109/2009, de 15/09, artigo 17°, 53°, n°2 b), 179°, 262°, n°1, 263°, n°1 e 269° n° 1 d) e O, todos do Código de Processo Penal.
19. Excedeu os seus poderes, substituindo-se ao Ministério Público e violando as normas previstas nos artigos 4°, 17°, 53°, n.° 2, al. b), 263°, n.° 1, 262°, n.° 1, e 267° do Código de Processo Penal, e 1°, 2°, 3°, n.° 1, al. c), e 75°, n.° 1, do Estatuto do Ministério Público.
20. Concomitantemente, violou disposições com assento constitucional, designadamente da reserva do juiz de instrução criminal, contida no artigo 32°, n°4 da CRP, o princípio do acusatório e autonomia do Ministério Público, plasmados nos artigos 32°, n° 5 e 219°, n°1, respectivamente da CRP. Termos em que deverá o despacho em crise ser revogado e substituído por outro que disponibilize ao Ministério Público, na qualidade de titular da acção penal, para investigação, a pesquisa e selecção do correio electrónico que se afigure relevante para a descoberta da verdade e para a prova. […]
Não foi apresentada resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público.
O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos com efeito meramente devolutivo.
Em sede de parecer a que alude o art.º 416.º do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto corroborou a motivação do recurso apresentado pelo Ministério Público na primeira instância.
Após exame preliminar e colhidos os Vistos, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Balizado que está o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente, cumpre nos presentes autos responder à seguinte questão: se, após ter o Juiz de Instrução procedido à abertura e primeira visualização dos ficheiros que contêm correio electrónico (e, concretamente, após, por parte do mesmo Juiz de Instrução, proceder à exclusão daqueles que possam contender com a reserva da vida privada) deve ser o Ministério Público a selecionar o correio electrónico que se afigure relevante para a descoberta da verdade material ou se tal papel deve caber ao Juiz de Instrução.
A este respeito cumpre, no essencial, fazer a correlação entre o art. 17.º da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro) e a remissão que aí se faz para o regime previsto no Código de Processo Penal respeitante à apreensão de correspondência, maxime, o que se dispõe no n.º 3 do art. 179.º.
É a seguinte a redacção do art. 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro:
“Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.”
Dispõe o art. 179.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, por sua vez, o seguinte:
“3 - O juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.”
O despacho recorrido assenta a sua decisão na interpretação literal desta última norma.
Cumpre saber no presente recurso se tal interpretação literal se mostra adequada ao universo digital da prova apreendida no decurso de uma investigação.
Começamos por reconhecer que o legislador tem revelado pouca preocupação em esclarecer matéria que se mostra complexa e já se encontra suficientemente debatida, com tempo e profundidade, em fontes doutrinárias e jurisprudenciais.
O entendimento do tribunal recorrido, sem dúvida alguma, encontra a sua fundamentação na literalidade dos textos legais supra citados, muito embora, como sucede no caso dos autos, a sua aplicabilidade concreta gere os problemas que, também de forma compreensível, são colocados pelo titular da acção penal no recurso agora em apreciação.
Exemplo da análise cuidada, extensa e delimitadora das dificuldades geradas por um regime legal pouco adaptado à realidade probatória digital (que a Lei do Cibercrime, infelizmente, nesta matéria, não veio, ainda, de forma incompreensível, tornar claro) é o Acórdão deste Tribunal, de 11 de Maio de 2023, proferido no processo n.º 215/20.5T9LSB-C.L1, relatado por Paula Penha, disponível in 3www.dgsi.pt4, que tratou de avaliar a bondade da decisão judicial proferida por juiz de instrução, perante um acervo probatório extensíssimo – com semelhanças com o caso em análise nos presentes autos – que, sem deixar de ter o primeiro acesso ao material apreendido, perante a sua incapacidade de o analisar totalmente, remeteu o mesmo ao Ministério Público, de modo a que este, enquanto titular da acção, pudesse discernir o que fosse proveitoso para a investigação, muito embora o crivo final nunca deixasse de ser o do juiz de instrução, a quem caberia decisão final de admitir a prova. Nesse aresto, os recorrentes eram arguidos alvo da investigação e defendiam a ilegitimidade de tal despacho, sem razão, todavia.
A Lei do Cibercrime “[…] (na parte com interesse para o caso em apreço) veio estabelecer disposições penais materiais e processuais relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte electrónico – secundarizando o Código de Processo Penal, nomeadamente o regime processual das comunicações telefónicas, previsto nos artigos 187º a 190º do CPP, deixou de ser aplicável, por extensão, às «telecomunicações electrónicas», «crimes informáticos» e «recolha de prova electrónica/informática» e só sendo aplicável a estas matérias o regime geral do Código Penal e do Código de Processo Penal se não contrariar este mesmo regime especial contido na Lei do Cibercrime. Nesta Lei do Cibercrime coexistem dois regimes processuais: o regime dos artigos 11º a 17º (regime processual «geral» do cibercrime e da prova electrónica/prova em suporte electrónico – através da pesquisa e recolha, para prova, de dados já produzidos, mas preservados/armazenados); e o regime dos artigos 18º e 19º (regime processual de autorização e regulação probatória – sendo aquele primeiro no tocante à intercepção de comunicações electrónicas, em tempo real, de dados de tráfego e de conteúdo associados a comunicações específicas transmitidas através de um sistema informático e só a esse são aplicáveis, por remissão expressa, os artigos 187º, 188º e 190º do CPP. ). Em suma – e fazendo nossas a doutas palavras do Exmº Juiz Conselheiro Paulo Dá Mesquita – o Capítulo III da Lei do Cibercrime (doravante com a abreviatura LCC), relativo às disposições processuais [contendo os arts. 11º até 19º inclusive] deve ser encarado como um “escondido” Capítulo V («Da prova electrónica»), do Título III («Meios de obtenção de prova») do Livro III («Da prova») do Código de Processo Penal». E este regime especial contido na LCC é um dos casos ressalvados na parte inicial do nº 3 do art. 126º do CPP, segundo o qual: « Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem consentimento do respectivo titular». Conforme refere o Exmº Juiz Conselheiro Santos Cabral (no “Código de Processo Penal Comentado”, 3ª edição revista da Almedina, págs. 387-418): O núcleo de direitos fundamentais/constitucionais descritos neste nº 3 do art. 126º do CPP – salvaguarda da vida privada, do domicílio, da correspondência ou das telecomunicações – admite compressão, porquanto tal é razoável e admissível, numa lógica de proporcionalidade, e é exigido pelo próprio interesse do Estado no funcionamento da justiça penal enquanto alicerce fundamental de um Estado de Direito.
Aliás, a nossa Constituição da República Portuguesa – apesar de conter o respectivo programa constitucional de protecção de direitos pessoais, nomeadamente através dos seus arts. 26º, nº 1, 32º, nº 8, e 34º – ressalva, expressamente, no nº 4 deste seu art. 34º: A possibilidade de haver ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal. Sendo um desses casos, precisamente, a supra citada Lei do Cibercrime que, conforme já vimos, veio transpor para a nossa ordem jurídica interna a Decisão Quadro nº 2005/222/JAI do Conselho, de 24 de Fevereiro, relativa a ataques contra sistema de informação e veio adaptar o nosso direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa. Tudo isto se impondo face ao caso em apreço - sem desprimor para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos [que tem considerado que o direito ao respeito pela correspondência, consagrado no artigo 8.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, visa proteger a confidencialidade das comunicações numa ampla gama de situações diferentes, incluindo mensagens electrónicas (Copland v. Reino Unido), o uso da internet (Copland v. Reino Unido), e dados armazenados em servidores informáticos (Wieser e Bicos Beteiligungen GmbH v. Áustria) e em diferentes suportes (Petri Sallinen e outros v. Finlândia; Iliya Stefanov v. Bulgária)] e sem desprimor para o Tribunal Constitucional Português [que, por exemplo, considerou no seu acórdão 403/2015 do Tribunal Constitucional (acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.) que o acesso aos dados das comunicações colide com o direito à autodeterminação comunicativa que abrange o comunicar com segurança e confiança e o domínio e autocontrole sobre a comunicação, enquanto expressão e exteriorização da própria pessoa” e que no seu acórdão nº 687/2021 (publicado no DR – I Série de 22/9/2021) considerou inconstitucional o artigo 17.º da Lei do Cibercrime].
Seguindo os ensinamento doutrinais do Exmº Procurador do Ministério Público Dr. João Conde Correia (em “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, 3ª edição, Tomo II, págs. 657-669): As regras relativas à apreensão foram alargadas pelo especialíssimo regime previsto, fora do CPP, através da Lei do Cibercrime para fazer face a novas realidades e inerentes especificidades, tais como dos dados informáticos e do correio electrónico. Justificando-se o sacrifício do interesse individual numa comunicação livre de interferências alheias, em prol do exercício do “ius puniendi” estadual.
Mas, a apreensão (mesmo gozando de legitimidade formal pela existência de prévia autorização ou ordem judicial de apreensão) não legitima, “per si”, a valoração dos elementos probatórios assim conseguidos. Para o efeito, é ainda necessário que o Juiz seja a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo apreendido, sob pena de a omissão total do exame (enquanto acto processual legalmente obrigatório) configurar uma nulidade prevista no art. 120º, nº 2, al. d), do CPP. E, depois, é necessário que o Juiz considere o respectivo conteúdo como relevante para a descoberta da verdade ou para a prova dos factos investigados. Esta ponderação judicial subsequente é sempre aferida em função do valor daquilo que concretamente tenha sido apreendido – sendo necessário este subsequente juízo de prognose favorável quanto àquilo que efectivamente tenha sido apreendido, para que o Juiz ordene a sua junção aos autos (através de despacho fundamentado e recorrível nos termos dos arts. 16º, nº 3, e 17º da LCC em conjugação com os arts. 97º, nº 5, e 399º do CPP “ex vi” do art. 28º da LCC), e só então ficará legitimada a sua utilização no processo .
Também recorrendo aos preciosos ensinamentos, quer doutrinais quer jurisprudenciais, expostos pelo Exmº Procurador e docente do CEJ Dr. Rui Cardoso (em “Apreensão de mensagens de correio electrónico e de natureza semelhante” contido em Jurisdição Penal do Centro de Estudos Judiciários – Direito Probatório, Substantivo e Processual Penal - 2019, págs. 61-122): O regime especial contido na LCC relativo à pesquisa e recolha de dados já produzidos, mas preservados/armazenados em suporte electrónico, para poderem vir a servir de meios de prova [quer para crimes especiais ou cibercrimes previstos nos seus arts. 3º a 8º, quer para crimes cometidos por meio de um sistema informático, quer para quaisquer crimes em relação aos quais seja necessária a recolha de prova em suporte electrónico] justifica a compressão de direitos constitucionais, na medida do estritamente necessário para tal. Pelo exposto, em matéria de apreensão de dados informáticos armazenados de mensagens de correio electrónico ou de registos de comunicações de natureza semelhante, nunca estaremos nem completamente dentro, nem completamente fora quer do âmbito do segredo das telecomunicações, quer do âmbito do segredo da correspondência. Mas, estaremos sempre perante perigo de ofensa de direitos fundamentais como são o desenvolvimento da personalidade, a garantia da liberdade individual, a autodeterminação existencial e privacidade e, por isso, com necessidade de tutela adequada. Ficando reservado ao Juiz de instrução o estritamente necessário à garantia de direitos dos visados, conjugando-o com as especificidades técnicas das comunicações electrónicas (muito diferentes da correspondência corpórea) e conjugando-o com a estrutura acusatória do processo penal.
Porém, com ou sem motivo para tal, o legislador prescreveu ser de aplicar, correspondentemente, o regime de apreensão de correspondência previsto no CPP. Esta remissão contida na parte final do art. 17º da LCC (para o regime da apreensão da correspondência previsto no CPP “..aplicando-se correspondentemente..”) não é uma aplicação integral e acrítica deste.
Pois: A obrigatoriedade de ser o Juiz o primeiro a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência corpórea fechada e apreendida (empossada) visa assegurar que o conteúdo da correspondência estava efectivamente nela contida. Não é para impedir que outros, que não o Juiz, tomem conhecimento do conteúdo dessa correspondência em caso de irrelevância probatória: se assim fosse, a decisão do Juiz de juntar ao processo ou devolver deveria ser irrecorrível – o que não é o caso. Ora, sem acesso ao respectivo conteúdo, o recurso da decisão seria uma mera ficção; Sendo que, quanto ao conteúdo em suporte electrónico, a operação de “desencapsulamento” feita pelo JIC não é minimamente equiparável à abertura de correspondência corpórea, pois dados informáticos “encapsulados” que se supõe serem mensagens de correio electrónico ou semelhantes armazenadas no sistema informático não são o equivalente a correspondência fechada, porque: antes de mais, aquelas mensagens ou comunicações nunca estiveram fechadas; para além disso, tal não visa (nem consegue) assegurar a integridade do invólucro; finalmente, porque, por si não significa tomar conhecimento do respectivo conteúdo das mensagens;
· No CPP, o âmbito objectivo é o de correspondência em trânsito ou ainda não aberta; na LCC, são todas as mensagens de correio electrónico ou semelhantes armazenadas num sistema informático, não havendo verdadeiramente regime aberto-lido e fechado-não lido;
· No CPP, a apreensão de correspondência só é meio de obtenção de prova admissível para crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; na LCC, não há catálogo – por força do expressamente previsto no artigo 11.º, aplica-se a processos relativos a crimes (a) previstos nessa lei, (b) cometidos por meio de um sistema informático ou (c) em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico, ou seja, em abstracto, a todos os tipos de crime;
· No CPP, a correspondência tem de ser expedida pelo suspeito/arguido ou lhe ser dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa; na LCC, pode respeitar a qualquer pessoa (mais uma vez, o artigo 11.º não faz qualquer restrição de âmbito subjectivo);
· No CPP e na LCC, o critério da necessidade para a prova é o mesmo: grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova;
· O artigo 17.º da LCC não tem previsão sobre invalidades, pelo que deve operar a remissão para o CPP, aplicando-se o regime do artigo 179.º supra referido;
· O artigo 17.º da LCC não tem previsão sobre a apreensão de correspondência electrónica ou semelhante entre o arguido e o seu defensor, pelo que deve operar a remissão para o CPP (só será admissível se o juiz tiver fundadas razões para crer que aquela constitui objecto ou elemento de um crime);
· No que respeita aos procedimentos, no CPP os OPC's transmitem a correspondência intacta ao juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência e é este que procede à abertura e primeiro toma conhecimento do seu conteúdo; na LCC, durante o inquérito, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, o Ministério Público pode tomar conhecimento de dados ou documentos informáticos e apreendê-los cautelarmente, sem prévia autorização judicial, só estando sujeita a validação do juiz quando o conteúdo seja susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos que possam pôr em causa a privacidade do respectivo titular ou terceiro; na LCC, durante o inquérito, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, se forem encontrados armazenados (nesse ou noutro sistema informático a que seja permitido acesso legítimo a partir do primeiro) mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova;
. Em ambos os regimes há um primeiro momento de empossamento da correspondência corpórea/dados ou documentos informáticos ou correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante (abrangida pela ordem ou autorização judicial de apreensão), seguido do momento da tomada de conhecimento pelo Juiz, seguido do momento do conhecimento com fundamentada tomada de posição pelo Ministério Público e, finalmente, o momento da fundamentada e recorrível decisão judicial sobre a concreta admissão, ou não, como meio de prova a ser junto ao processo.
Sendo de salientar que a exigida tomada de conhecimento, em primeiro lugar, pelo JIC não visa impedir que outros tomem conhecimento subsequente do seu conteúdo.
Aliás, o seu não envio pelo JIC ao Ministério Público (antes da tomada de decisão pelo JIC) que impedisse o Ministério Público de tomar conhecimento do respectivo conteúdo, criaria um regime de segredo e, mais, faria com que o JIC assumisse a direcção do inquérito – algo que incumbe, exclusivamente, ao Ministério Público.
Em conformidade com a estrutura acusatória do processo penal português, durante a fase de inquérito, o Ministério Público tem essa função como titular do inquérito e o Juiz de Instrução tem a função juiz de garantias. Isto é, trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).
A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.
Durante o inquérito, o juiz de instrução deve ser apenas juiz de liberdades e garantias: juiz de controlo, não de iniciativa. Deve ser garante dos direitos do visado pela investigação criminal e controlador da actividade do Ministério Público e das polícias criminais que o coadjuvam. Não tendo nem devendo, por isso, ter qualquer empenho nos interesses em conflito, não tomando parte activa na investigação, não dominando o seu impulso, o seu objecto ou o seu resultado […] O Juiz chamado cada vez mais à boca de cena – num processo crescentemente complexo e onde o conflito verdade/direitos fundamentais se exacerba –, correlativamente exige-se-lhe que se alheie da investigação do caso e da dialética do processo. O nº 4 do artigo 32.º da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos («reserva do juiz»). Intervenção do juiz que vale — e só vale — no âmbito do núcleo da garantia constitucional. Ou seja, intervenção que apenas deve acontecer na estrita medida do necessário para protecção efectiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, mas não mais do que isso, sob pena de violação do acusatório e da imparcialidade do próprio juiz de instrução – que é uma decorrência do Estado de direito democrático (prevista no arts. 2º e 202º, nº 1 da CRP). O juiz de instrução não pode ter qualquer “influência” ou “manipulação” sobre a definição do objecto do inquérito, deve ser alheio à definição da estratégia de investigação do Ministério Público e OPC's, devendo actuar apenas no campo da admissibilidade legal das intervenções requeridas. A competência do juiz de instrução durante a fase processual presidida pelo Ministério Público, sempre que estejam em causa actos que interferem com direitos fundamentais e outras matérias que a lei reserve ao juiz, obedece a um quadro de intervenção tipificada e provocada. Pois a magistratura judicial, por natureza, não actua ex oficio em processos de que não é titular, devendo acentuar-se que este princípio da inoficiosidade não deriva de um preconceito histórico, mas de um modelo garantista em que se condiciona a intervenção do único órgão com poderes em áreas fundamentais de direitos liberdades e garantias à intervenção prévia de uma outra entidade.”
Por isso, não se coadunaria com tal função do JIC proceder, oficiosamente, à selecção das provas recolhidas em suporte electrónico que são de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova. Para além de tal não se traduzir em qualquer real garantia, violaria a estrutura acusatória do processo, pois essa é matéria essencial à direcção do inquérito e à definição do seu objecto e, assim, comprometeria a posição de imparcial juiz das liberdades.
Para além disso, alinhamo-nos na posição assumida por esta Relação de Lisboa em inúmeros acórdãos citados no Acórdão de 10/8/2020 (no processo nº 6330/18.8JFLSB-A.L1-3 acessível na dgsi.pt) no sentido de ser necessária uma intervenção inicial do Juiz no âmbito do art. 17º da LCC, isto é, a apreensão (enquanto empossamento) de mensagens de correio electrónico e/ou registos de comunicações de natureza semelhante, armazenados num sistema informático, carece sempre de autorização judicial ou ordem judicial prévia.
E, também, nos alinhamos com a posição assumida na decisão sumária de 6/2/2019 desta Relação de Lisboa (no processo nº 152/16.8TELSB em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jurmostradoc.php?nid=5594&codarea=57) segundo a qual: «[o] Juiz de Instrução deve ser o primeiro a tomar conhecimento das comunicações recolhidas, seja no momento em que estas são extraídas em busca por si presidida, seja ulteriormente quando os suportes onde estas foram alocadas lhe são apresentados”, mas “em casos como o dos autos, em que podem estar em causa milhares de documentos (emails), esse conhecimento objectivo de todo o conteúdo pelo JIC, tem-se afigurado de difícil concretização, todavia, nada obsta a que o Juiz de instrução, caso queira tomar previamente conhecimento desse conteúdo integral, o faça, selecionando o que entender relevante e devolva depois o processo ao Ministério Público com aquilo que for pertinente para a investigação”, podendo ainda devolver ao Ministério Público todos os suportes, “devendo o Ministério Público, após visualização da totalidade dos conteúdos de correio electrónico e registos de comunicações contidos nos suportes em causa, dar deles conhecimento à Juíza de Instrução, a fim de então, esta decidir quais têm relevância para a investigação e quais devem ser anexados aos autos, com observância de todos os formalismos legais vigentes”.
Pois, conforme já referimos, o juiz de instrução (durante a fase de inquérito) não é um juiz investigador, é sim um juiz de direitos, liberdades e garantias a quem compete, nomeadamente, autorizar ou ordenar apreensões e a quem compete ser a primeira pessoa a tomar conhecimento da correspondência/correio electrónico/ registos de comunicações de natureza semelhante apreendidas.
E, depois dessa primeira tomada de conhecimento pelo JIC, caberá ao Ministério Público (enquanto autoridade judiciária que dirige o inquérito e a respectiva investigação criminal) a competência para tomar conhecimento de todos aqueles meios de prova em suporte electrónico apreendidos. Pois, só assim lhe será possível aferir e pronunciar-se, fundamentada e detalhadamente, sobre a concreta relevância probatória, ou não, de todos e cada um desses meios probatórios apreendidos em face dos crimes investigados pelo Ministério Público.
Pois, conforme já referimos, houve prévia autorização judicial de tais apreensões – que lhes conferiu intrínseca legitimidade objectiva – e tais apreensões foram seguidas da primeira tomada de conhecimento judicial do conteúdo apreendido.
E, também conforme já referimos, a especificidades do regime especial da Lei do Cibercrime não se coaduna com a remissão total e acrítica (pretendida pelos recorrentes) para o regime geral do CPP – sob pena de se deitar por terra as, já sobreditas, virtualidades materiais e processuais conferidas pela LCC. No âmbito da LCC, o Juiz de instrução é garante da compressão de direitos constitucionais, na medida do estritamente necessário, conjugado com as especificidades do domínio do cibercrime e com as especificidades técnicas da prova electrónica, nomeadamente das telecomunicações electrónicas – muito diferentes da tradicional correspondência corpórea a que se reporta o art. 179º, nº 3, do CPP.
Por isso, não consideramos ser obrigatório, em sede da Lei do Cibercrime (como é o caso dos autos) que o primeiro conhecimento judicial pelo JIC tenha de ser do respectivo conteúdo total /completo apreendido. E, também, consideramos ser admissível e adequado que o JIC, antes da sua decisão de junção, ou não, aos autos dos concretos elementos em suporte electrónico apreendidos, tenha solicitado o aludido e prévio parecer/proposta do Ministério Público. Aliás, conforme já vimos, no domínio da LCC:
- dos dados ou documentos informáticos pesquisados e apreendidos (nos termos dos seus arts. 15º e 16º) só são apresentados ao JIC aqueles cujo conteúdo seja susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos que possam pôr em causa a privacidade do respectivo titular ou de terceiro. E, uma vez apresentados estes, pode o JIC ordenar, ou não, a sua junção aos autos depois de ponderar a relevância, ou não, em função dos interesses do caso concreto. No tocante ao correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante, encontrados armazenados (nos termos do seu art. 17º) são sempre apresentados ao JIC, independentemente do seu conteúdo. E, uma vez apresentados, pode o JIC ordenar, ou não, a sua junção aos autos, se se lhe afigurarem como relevantes/de grande interesse, para a descoberta da verdade ou para a prova, em função dos interesses do caso concreto. Ora, parece-nos óbvio que esta ponderação/avaliação, perante cada caso concreto no âmbito da Lei do Cibercrime, tem de ser feita pelo JIC após a tomada de conhecimento dos crimes investigados pelo Ministério Público, dos concretos factos indiciados e das respectivas provas necessárias para a descoberta da verdade material.
Pois, como é óbvio, apesar da designações de algumas pastas remeter para a reserva da vida privada, o seu conteúdo respectivo pode não o ser efectivamente e até pode, por exemplo, ser um código usado no âmbito dos factos investigados.
Pois, como é óbvio, mesmo uma fotografia, por exemplo, relativa ao âmbito da vida privada poderá ter relevância para a descoberta da verdade dos factos investigados se, por exemplo, nela aparecem dois arguidos em convívio íntimo e que, no âmbito dessa investigação diziam nem sequer se conhecerem. E, também, como é óbvio, por exemplo, umas SMS´s poderão ter relevância para a descoberta da verdade dos factos investigados se, por exemplo, nelas consta um assunto concreto que, no âmbito dessa investigação, os arguidos diziam desconhecer em absoluto. Daí a solicitação de proposta/parecer do Ministério Público, ser não só possível como adequada e válida no âmbito do processo criminal. Conforme já referimos, destina-se a permitir ao JIC uma melhor avaliação dos interesses do caso concreto (em investigação pelo Ministério Público face à estrutura acusatória de qualquer processo penal) e ponderação da necessidade da sua junção aos autos com a inerente compressão dos aludidos direitos constitucionais.
A este propósito importa referir o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 651/2022 (acessível no respectivo site da internet), segundo o qual:
Cabe ao Juiz de instrução a função de garantir os direitos fundamentais. Não lhe cabe, porém, concorrer com as funções do Ministério Público no inquérito. Ou seja, embora a direção do inquérito seja da incumbência do Ministério Público e não de um Juiz, quando nesta fase se mostre necessário praticar quaisquer atos instrutórios que possam restringir severamente direitos fundamentais, deve ser um Juiz a decidir, na sua veste de Juiz das liberdades. Surgindo o Juiz de instrução como o garante dos direitos fundamentais dos diversos intervenientes no processo, ele não controla, porém, o exercício da ação penal, nem a bondade dos interesses invocados que pertence, por inteiro, ao Ministério Público.
A intervenção do Juiz de Instrução Criminal em sede de inquérito deve pautar-se por um princípio da intervenção enquanto Juiz das liberdades (e não como Juiz de investigação), respeitando o modelo constitucional de divisão de funções entre a magistratura judicial e a magistratura do Ministério Público (cfr. artigos 32.º, n.º 4 e 5, e 219.º da CRP).
A reserva de Juiz comprime, portanto, a reserva do Ministério Público na direção do inquérito. Uma tal compressão só encontra, porém, justificação na medida do necessário para a proteção efetiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (sobre esta ponderação, vide Acórdão n.º 474/2012, 1.ª Secção, ponto 9.3.2.).” – cfr. Acórdão desta Relação, supra melhor identificado.
Regressando ao caso dos autos, o Sr. Juiz de Instrução, depois de reconhecer ter sido o primeiro a ter acesso à informação constante dos ficheiros guardados, constatou que dos mesmos faziam parte mensagens de correio electrónico. O Ministério Público, salvaguardando aquela informação que contivesse conteúdo atinente à reserva da vida privada (o que, bem, logo deixou ao critério do juiz de instrução de avaliar e logo excluir dos autos), veio solicitar autorização para seleccionar o correio electrónico que se afigurasse relevante para a descoberta da verdade material, a fim de promover, num momento posterior, a sua junção aos autos, decisão final que assim ficaria a cargo do juiz de instrução, portanto, sempre susceptível do controlo judicial, solução que entendemos ser a mais consentânea com a estrutura acusatória do processo e com as funções de garantia do juiz de instrução, que, efectivamente, não é o investigador.
Aliás, solução semelhante é a que se colhe do regime processual penal das escutas telefónicas, as quais, num momento prévio, dependem da autorização judicial para se iniciarem, mas, só após a sua gravação (portanto, depois de o órgão de polícia criminal e do Ministério Público terem tido o primeiro acesso à informação recolhida em tais conversas privadas), vão ao crivo do juiz com a promoção das que interessam ou não à investigação, sendo que ficam nos autos as que o juiz de instrução entender sejam relevantes, podendo excluir (em despacho fundamentado – cfrs. arts. 188.º, n.º 6 e 97.º, n.º 5 do CPP) as que entender não relevem para a investigação ou sejam atentatórias da reserva da intimidade ou da vida privada dos intervenientes (cfr. art. 188.º, n.os 1, 2, 4 a 6 do CPP).
Cremos assim, para concluir, que a pretensão do Ministério Público no presente recurso é a que melhor se coaduna com o seu estatuto constitucional de titular da acção penal e com o regime processual penal da recolha e valoração da prova obtida em âmbito digital.
III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho posto em crise, que deverá ser substituído por outro que lhe disponibilize a pesquisa e selecção do correio electrónico que considere relevante para a descoberta da verdade material, o que, depois, deverá promover em conformidade junto do Juiz de Instrução titular.
Sem custas.
Notifique.