UNIÃO DE FACTO
EFEITOS
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário

Sumário: (elaborado pela relatora)
I. A Lei n.º 7/2001, que veio proteger as uniões de facto, apenas pretendeu estender a estas alguns direitos próprios da relação matrimonial.
II. Um membro da união de facto que não foi parte no contrato de arrendamento, não tem que ser accionado quer na acção de despejo quer na execução para entrega de coisa certa, ou qualquer outro procedimento legalmente previsto, porquanto inexiste, nesse caso, litisconsórcio necessário passivo ou litisconsórcio voluntário.
III. O diferente tratamento do casamento e da união de facto não viola o princípio da igualdade (artigo 13.º CRP), pois este princípio apenas proíbe discriminações arbitrárias ou desprovidas de fundamento ou de justificação racional, sendo certo que o casamento e a união de facto são situações material e juridicamente diferentes.
IV. Não padecem de inconstitucionalidade, as norma dos artigos 12.º, n.º 1, e 15.º B, n.º 3, do NRAU, quando interpretadas no sentido de que as comunicações aí reguladas ou procedimentos aí referidos não têm de ser dirigidas e/ou intentados relativamente à pessoa que viva em união de facto com o arrendatário.
V. A interposição de recurso com base num fundamento/entendimento que não mereceu o acolhimento deste Tribunal, assim como da maioria da doutrina e jurisprudência, não se subsume a qualquer conduta processual susceptível de integrar a previsão do art. 15.º-R do NRAU.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
Em 11/11/2024, HERANÇA DEIXADA POR ÓBITO DE BB, representada pela cabeça de casal, intentou contra AA o presente procedimento especial de despejo.
Para o efeito, alegou a celebração com a Requerida de um contrato de arrendamento relativo ao imóvel sito na Rua …, bem como a falta a falta de pagamento de rendas referentes aos meses de Abril, Maio e Junho de 2020, Novembro e Dezembro de 2021 e Janeiro a Abril de 2022.
Juntou formulário do imposto de selo, comprovativo da comunicação à requerida arrendatária do montante em dívida da renda, registo dos CTT, contrato de arrendamento para fim habitacional celebrado com a requerida em 29-02-2016, comunicação da resolução do contrato datada de 12-04-2022, registo dos CTT e aviso de recepção e certidão negativa do agente de execução.
A requerida foi notificada, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 15.º-D da Lei n.º 6/2006, de 27-02, para, no prazo de QUINZE (15) DIAS:
• Apresentar oposição no Balcão do Arrendatário e do Senhorio, caso não concorde com o que é indicado pelo senhorio; ou
• Desocupar o local arrendado e pagar o montante relativo a rendas, encargos e/ou outras despesas, acrescido do valor da taxa do procedimento paga pelo senhorio; ou
• Caso a morada em causa seja a sua habitação e considere que existem razões sociais, nomeadamente devido à sua situação económica ou estado de saúde, que impedem desocupação imediata, solicitar o adiamento do despejo (por um prazo máximo de 5 meses). Para tal deverá apresentar junto do Balcão Nacional do Arrendamento, que remeterá para o tribunal, um pedido de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação;
Mais foi notificada de que:
• Se no prazo dos 15 dias nada fizer, será proferida decisão judicial para entrada imediata no domicílio, que permitirá ao senhorio proceder, imediatamente, à desocupação do local arrendado, recorrendo, se necessário, ao auxílio das autoridades policiais;
• A decisão judicial para entrada imediata no domicílio permitirá, sendo caso disso, também ao senhorio iniciar um processo de execução em tribunal para cobrança das rendas, encargos e/ou outras despesas, da taxa do procedimento especial de despejo que o senhorio pagou e dos juros de mora devidos.
Devidamente notificada, a requerida juntou aos autos comprovativo de pedido de concessão de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo, não tendo apresentado oposição, constituído mandatário ou tido qualquer outra intervenção nos autos.
Na sequência da notificação da requerido e constatada a não dedução de oposição, foi emitido o título de desocupação do imóvel arrendado.
A 22-05-2025 foi proferida sentença que decidiu: “A 28/03/2025, o tribunal proferiu a seguinte decisão judicial (DECISÃO RECORRIDA)
“Assim, e atento o cumprimento dos requisitos inerentes ao Procedimento Especial de Despejo, importa:
• Condenar a Requerido a pagar a quantia de € 3150,0 a título de rendas, acrescidos dos juros vencidos na data da propositura do P.E.D., e dos vencidos desde essa data até efetivo e integral pagamento;
• Determinar/autorizar a entrada imediata no locado.
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Custas pela Requerida – artigo 527.º, do CPC.
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Valor da causa – atento o exposto no artigo 297.º, 298.º, n.º 1, do CPC, fixa-se como valor da causa o montante de € 13650,00.
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Registe e Notifique.
Comunique-se nos termos do disposto no artigo 17.º, n.º 1, da Portaria n.º 9/2013, de 10 de janeiro.”
A 02-06-2025 veio a requerida constituir mandatário.
Inconformada, com a sentença que julgou a acção procedente, veio a Requerida a 11-06-2025 apelar, tendo apresentado alegações, em que formulou as seguintes conclusões:
I. Nos presentes autos, foi proferida sentença que determinou a condenação da Requerida no pagamento das rendas em dívida, bem como a autorizar a entrada imediata no locado pela Requerente.
II. O contrato de arrendamento que constitui causa de pedir nos autos foi celebrado em 29 de Fevereiro de 2016 e assinado pela Requerida, como arrendatária.
III. À data da celebração do contrato de arrendamento a Requerida vivia já há 2 anos em união de facto com CC.
IV. A união de facto entre a Requerida e CC, mantém-se ininterrupta, tendo filhos em comum e filhos não comuns a viver no locado.
V. Vivem no locado além do casal, mais 5 filhos das seguintes idades, 9, 15, 17, 22 e 24 anos.
VI. A Requerente sabe-o muito bem pois a Requerida por diversas vezes quis efectuar alguns melhoramentos e acrescentos no imóvel, designadamente criando mais quartos para as crianças, através de estruturas de pladur, leves e amovíveis, o que a Senhoria sempre recusou.
VII. A Requerente não desconhecia que o imóvel locado era e sempre foi a casa de morada de família da Requerida e o seu companheiro CC e os 5 filhos.
VIII. Conforme a prova que se junta e consta da base de dados do IRN para o cartão do cidadão de CC e carta remetida pelas Finanças dirigida ao mesmo, para o imóvel em causa, (Docs. 1 e 2 que se juntam).
IX. A lei protege a casa de morada de família, em caso de despejo, mesmo em situações de união de facto, conforme decorre das disposições conjugadas dos arts. 1682ºB, 1793º, 1110º do Código Civil e art. 15ºB da Lei 6/2006 de 27/02, com as alterações da Lei 56/2023 de 06/10.
X. Deveria a Requerente ter proposto o presente PED igualmente contra o companheiro da Requerida, CC, em litisconsórcio necessário passivo, aplicando-se o disposto nos arts. 34º, 35º e 30º do CP Civil, sob pena de ilegitimidade passiva, absolvendo-se a Requerida do procedimento.
XI. Deve considerar-se, que num despejo da casa de morada de família de um casal em união de facto, ainda que conste como arrendatário apenas um dos membros do casal, ocorre a violação do princípio da igualdade (face aos cônjuges), por aplicação das disposições citadas em 9ª e 10ª, declarando-se inconstitucional a interpretação dada ao art. 15º B da Lei 6/2006, revista pela Lei 56/2023, pelo tribunal recorrido.
XII. Deveria a sentença recorrida ter julgado pela verificação de ilegitimidade por preterição do litisconsórcio necessário passivo, absolvendo a requerida do PED, aplicando correctamente as disposições conjugadas dos arts. 1682ºB, 1793º, 1110º do Código Civil e art. 15ºB da Lei 6/2006 de 27/02, com as alterações da Lei 56/2023 de 06/10 e arts. 34º, 35º e 30º do CP Civil, sob pena de ilegalidade e inconstitucionalidade na aplicação da lei.
Conclui assim pela procedência da apelação e revogação da sentença por outra que absolva a requerida por ilegitimidade.
Devidamente notificada da interposição de recurso, veio a Autora/Recorrida apresentar as suas contra-alegações nas quais apresenta as seguintes CONCLUSÕES:
“A. O presente recurso carece de fundamento.
B. Desde logo, a recorrente tenta demonstrar, com a junção de dois documentos, uma alegada união de facto.
C. Sendo certo que os documentos juntos não provam uma união de facto mas, apenas e tão só, poderão demonstrar que CC tem a sua morada fiscal na morada do imóvel em causa.
D. Não obstante, mesmo admitindo – que não se admite – que a recorrente vive em situação de união de facto, certo é que a doutrina e jurisprudência actuais já são unânimes quanto à desnecessidade de notificação do unido de facto, quer na resolução do contrato quer na instauração do PED.
E. É orientação actual dos tribunais que ambas as comunicações terão de ser feitas apenas ao titular do contrato de arrendamento, não tendo de ser feita também à pessoa que viva em união de facto com o arrendatário e que não tenha outorgado o contrato.
F. O regime de união de facto apenas é equiparado ao regime do casamento (em matéria de direito do arrendamento) no que respeita à rutura da união de facto ou morte de um dos unidos de facto. Não existe qualquer equiparação de regime nas restantes matérias nas quais se inclui a comunicação da resolução do contrato de arrendamento e da instauração do PED.
G. O presente recurso constitui um manobra dilatória, a juntar a outras que a recorrente tem feito durante estes 3 últimos anos, com a finalidade de permanecer a habitar o imóvel sem qualquer custo para ela e com prejuízo considerável para a recorrida.
H. Tal actuação, indiciadora de litigância de má-fé, é enquadrável no regime constante do nº 2 do art. 15.º - R do NRAU, o que se requer.”
Na mesma data de interposição de recurso, veio a requerida apresentar requerimento de diferimento da desocupação do imóvel por razões sociais e económicas.
A Autora veio, por requerimento de 26-06-2025 opor-se ao diferimento de desocupação do imóvel.
Por despacho de 10-07-2025 foi liminarmente indeferido o incidente de diferimento de desocupação do locado, por manifestamente intempestivo, nos termos do disposto nos arts. 863.º e 865.º do CPC.
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (arts. 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim apreciar no caso concreto:
• Da preterição de litisconsórcio necessário passivo pela circunstância do presente procedimento especial de despejo ter sido intentado apenas contra a requerida desacompanhada do seu pretenso companheiro, CC.
• Da inconstitucionalidade do art. 15.º B do NRAU quando interpretado no sentido de não equiparar, para os efeitos ali consignados, a união de facto ao casamento;
• Da litigância de má-fé da requerida- art.º 15.º -R do NRAU
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II. Fundamentação:
Resultam provados os factos ou actos processuais referidos e datados no relatório que antecede, a que se acrescentam os seguintes:
1. Em 29-02-2016, requerente (na qualidade de primeira outorgante ou senhoria) e requerida (na qualidade de segunda outorgante ou arrendatária) celebraram contrato de arrendamento para fim habitacional do prédio urbano sito na Rua …, pelo prazo de 5 anos, mediante o pagamento de renda mensal de € 300,00 por depósito ou transferência bancária, destinando o mesmo a habitação própria e permanente da arrendatária e dos que com ela vivam em economia comum.
III. O Direito:
Apreciação:
A) Da preterição de litisconsórcio necessário passivo
Dispõe o art. 15.º B, do NRAU, sob a epígrafe “Apresentação, forma e conteúdo do requerimento de despejo”, no seu n.º 3 que “ Havendo pluralidade de arrendatários ou constituindo o local arrendado casa de morada de família, o requerente deve indicar como requeridos todos os arrendatários e ambos os cônjuges, consoante o caso, e identificar os respetivos domicílios. “
A recorrente estriba o seu recurso na circunstância, apenas alegada em sede de recurso, de que à data do contrato de arrendado vivia já em união de facto com CC, a qual se mantém, vivendo no locado juntamente com 5 filhos (comuns e não comuns). Entende por isso que o presente procedimento deveria ter sido intentado não apenas contra si, mas também contra o seu companheiro, CC.
Dispõe o art. 33.º do CPC que “1. Se, porém, a lei ou o negócio jurídico exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade”.
A suscitada questão da legitimidade passiva ad causam pode ser conhecida por este Tribunal da Relação como objecto de apelação, apesar de não ter sido invocada em momento processual anterior, isto porque, sendo de conhecimento oficioso, não foi concretamente decidida no tribunal recorrido, não se tendo, sobre ela, formado caso julgado formal.
Condescendendo que estaria em causa a resolução do contrato de arrendamento relativo à casa de morada de família- sendo certo que este conceito sempre exigiria a articulação de factos, em sede de oposição, que lhe dessem conteúdo - certo seria que, se a requerida fosse casada, a acção tinha de ser intentada contra ambos os cônjuges.
Efectivamente, o regime de protecção à habitação da família, constitui o desenvolvimento do disposto no nº 1 do artigo 67.º da Constituição da República, segundo o qual, a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.
O objectivo da lei é, pois, “proteger o interesse de qualquer dos cônjuges (e do agregado familiar em geral) à habitação contra os actos de disposição do outro cônjuge, a título de (cônjuge) arrendatário” (neste sentido ver Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. IV, 2.ª ed., pág. 306).
Conforme se refere no Ac. da Relação do Porto de 13-01-2025 “Para garantir a proteção da casa de morada de família contra atos que possam prejudicar a sua utilização, a lei atribui aos beneficiários da proteção, os cônjuges, determinados direitos, entre os quais, e no que ao caso diz respeito, a necessidade de serem demandados ambos os cônjuges, sempre que estejam em causa ações que tenham por objeto direta ou indiretamente a casa de morada da família-(cf. art.º único da Lei 35/81, de 27 de agosto, e art.º 34.º, n.º 3, do CPCivil)-qualquer que seja o regime de bens do casamento e qualquer que seja o direito através do qual a casa de morada de família é assegurada, designadamente o arrendamento.”
Acontece que, independentemente de o locado ser ou não casa de morada de família, a requerida não é casada com CC.
Defende a Recorrente a equiparação de situações e soluções jurídicas.
Se é um facto que a união de facto é, cada vez mais, olhada como uma relação para familiar, bem mais controversa se revela a total equiparação da união de facto ao casamento.
Mesmo admitindo que os Réus viviam em união de facto e que o locado seria a sua morada de família, ainda assim somos do entendimento que a acção apenas teria de ser proposta contra a Ré.
Com efeito, como se decidiu no Ac. do T.R.P. supra citado “… a proteção concedida por lei à casa de morada de família não se estende ao unido de facto.
Efetivamente, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 7/2001, de 11/05, “as pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a protecção da casa de morada de família, nos termos da presente lei”, e tal protecção só é conferida pela lei, se bem atentarmos na redacção dos artigos 4.º e 5.º, aos casos de ruptura da união de facto ou de morte de um dos seus membros. E tal continua a ser assim, apesar das alterações recentemente introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto, visando o alargamento da protecção dos unidos de facto nas várias vertentes ora modificadas com o fito de consagrar uma maior equiparação das situações de união de facto ao casamento. (…)”
Não tendo nenhuma disposição da Lei n.º 7/2001, equiparado em termos gerais e absolutos as uniões de facto, nos termos em que ali as protege, às relações jurídicas emergentes do casamento, apenas tendo pretendido estender às situações de união de facto alguns direitos próprios da relação matrimonial deve concluir-se que, o membro da união de facto que não foi parte no contrato de arrendamento, não tem que ser accionado quer na acção de despejo quer na execução para entrega de coisa certa, porquanto inexiste, nesse caso, litisconsórcio necessário passivo ou litisconsórcio voluntário.
Torna-se assim evidente que, não sendo a Ré casada com CC, a acção apenas tinha de ser proposta contra a Requerida, na medida em que o contrato de arrendamento ajuizado foi outorgado apenas por esta, na qualidade de arrendatária, nele não figurando, a qualquer título, o seu pretenso companheiro.
B) Da inconstitucionalidade do art. 15.º B do NRAU quando interpretado no sentido de não equiparar a união de facto ao casamento
Igual entendimento teve o Tribunal Constitucional no âmbito do seu Ac. 47/2025, o qual considerou inexistir qualquer inconstitucionalidade na interpretação das normas do NRAU, nomeadamente a constante do artigo 12.º, n.º 1, argumentos igualmente aplicáveis à interpretação do art. 15.º B. Como ali se refere “Não se questiona que a união de facto goza de proteção constitucional, divergindo a doutrina se a mesma radica no artigo 36.º da CRP (como defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira, por contraposição à tese defendida por Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira) ou no direito ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental (como defende Sandra Passinhas, em linha com o pensamento dos dois últimos autores).
Mas já antes referimos que ao legislador ordinário é assegurado o poder de conformação legal da tutela da união de facto, designadamente do alcance da sua equiparação ao casamento, sem que a não equiparação total viole, por si só, algum preceito constitucional, nomeadamente o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, n.º 1.
Como afirma Sandra Passinhas (cit., p. 118), “[é] pacífico, mesmo para quem entenda que o artigo 36.º da CRP inclui a união de facto no seu âmbito normativo, que a sua proteção constitucional não exige, todavia, que o legislador dê à união de facto efeitos idênticos aos que atribui ao casamento, equiparando as duas situações”. Neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, p. 561), em anotação ao artigo 36.º, afirmam que “nada impõe constitucionalmente um tratamento jurídico inteiramente igual das famílias baseadas no casamento e das não matrimonializadas, desde que as diferenciações não sejam arbitrárias, irrazoáveis ou desproporcionadas e tenham em conta todos os direitos e interesses em jogo”. No mesmo sentido se pronuncia Cristina Araújo Dias (Da inclusão constitucional da união de facto: nova relação familiar, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Rebelo de Sousa, Coimbra, 2012, p. 460), segundo a qual a inclusão constitucional da união de facto ao lado do casamento não exige uma regulamentação idêntica, a qual também não se justifica face ao princípio da igualdade do artigo 13.º CRP.
Sandra Passinhas prossegue (cit., pp. 118 e 119), afirmando o seguinte: “Nem se diga que o diferente tratamento do casamento e da união de facto viola o princípio da igualdade (artigo 13.º CRP), pois este princípio apenas proíbe discriminações arbitrárias ou desprovidas de fundamento ou de justificação racional. Ora, o casamento e a união de facto são situações materialmente diferentes: os casados assumem o compromisso de vida em comum; os membros da união de facto não assumem, não querem ou não podem assumir esse compromisso. Nas palavras de Diogo Leite de Campos, “entre o casamento e a união de facto há extremas marcadas que impedem que se fale de analogia jurídica”. O desfavor ou desproteção dos unidos de facto relativamente aos cônjuges é assim objetivamente fundado, e este entendimento é também perfilhado pelo Tribunal Constitucional, que já decidiu que: “na ótica do princípio da igualdade, a situação de duas pessoas que declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem, intencionalmente, opta por o não fazer”.
Já o Acórdão do TC 159/2005 (relatado por Paulo Mota Pinto ) o havia anteriormente afirmado: “legislador constitucional não pode ter pretendido retirar todo o espaço à prossecução, pelo legislador infraconstitucional, cujo programa é sufragado democraticamente, de objetivos políticos de incentivo ao matrimónio enquanto instituição social, mediante a formulação de um regime jurídico próprio – por exemplo, distinguindo entre a posição sucessória do convivente em união de facto (reduzida ao referido direito a exigir alimentos da herança) e a do cônjuge. A diferenciação de tratamento em causa na presente norma não pode, assim, ser considerada como destituída de fundamento razoável ou arbitrária”.
Concluímos assim, na senda da doutrina e da jurisprudência maioritária, senão mesmo uniforme, que a total equiparação da união de facto ao casamento não tem sustentação legal, jurisprudencial ou doutrinária e mesmo que afirmar – tal como o faz Sandra Passinhas (A União de Facto em Portugal, Atualidade Jurídica Iberoamericana Nº 11, Agosto 2019, ISSN: 2386-4567, pág. 119) - que uma tal equiparação seria, ela própria, inconstitucional. Conforme refere a mesma “uma legislação que equiparasse totalmente a união de facto ao casamento seria inconstitucional, fosse qual fosse a via por que essa equiparação se fizesse, na medida em que retiraria aos particulares a possibilidade de partilharem uma vida em comum sem estarem ligados pelos laços apertados do casamento. Do mero facto de coabitarem, com mais ou menos requisitos, resultaria uma submissão a efeitos que claramente extrapolariam da vontade dos conviventes. A decisão de casar é uma opção constitucionalmente protegida, mas a decisão de não casar também o é”.
O legislador ordinário, no uso do seu poder de conformação, equiparou a união de facto ao casamento para diversos efeitos, designadamente para efeitos: de protecção da casa de morada de família em caso de ruptura da união de facto e em caso de morte de um dos seus membros; de benefícios em matéria de férias, faltas, feriados, licenças; de preferência na colocação dos trabalhadores da administração pública; de aplicação do regime do IRS; de protecção social na eventualidade de morte do beneficiário e de acesso a outras prestações por morte; de adopção; de indemnização dos danos não patrimoniais decorrentes da morte do unido de facto; do direito de exigir alimentos da herança do falecido; de aquisição da nacionalidade portuguesa; de recurso às técnicas de procriação medicamente assistida; de recusa legítima a depor; etc. Mas, de outra banda, o mesmo legislador não recorreu ao seu poder de conformação para equiparar a união de facto ao casamento para efeitos cessação do contrato de arrendamento, actualização de rendas ou obras e, consequentemente, para efeitos da legitimidade processual para as acções onde se discutam estas matérias, tal como não o fez para muitos outras efeitos, tanto pessoais e como patrimoniais, de que são exemplo a sujeição aos deveres conjugais, o estabelecimento de relações de afinidade com os parentes do outro, a alteração do nome, o regime de bens, a administração dos bens, a responsabilidade pela dívidas, etc.
Por outro lado, e como se refere no Ac. do TC 47/2025 “(…) a circunstância de a união de facto não estar sujeita, no nosso ordenamento jurídico, a qualquer registo público ou formalidade, potencia o seu desconhecimento por parte de terceiros, inclusivamente do senhorio, e não raras vezes suscita a questão da prova dessa união e/ou da sua duração. Assim, perante a equiparação da união de facto ao casamento para os efeitos das comunicações a cargo dos senhorios previstas nos artigos 10.º, n.º 2, do NRAU, estes correriam o risco de, com frequência, se verem confrontados com a ineficácia dessas comunicações ou, pelo menos, com a discussão a respeito da existência de uma união de facto há mais de dois anos. Em contrapartida, está ao alcance dos unidos de facto, que já o sejam no momento da celebração do contrato de arrendamento, outorgar nesse contrato e, por essa via, garantir que todas as comunicações tenham de ser dirigidas aos dois membros da união, garantindo igualmente a sua legitimidade processual para as ações em que se discutam tais comunicações.(…)”
Em suma, nem a norma do artigo 12.º, n.º 1, nem do artigo 15.º B, n.º 3, do NRAU, interpretadas no sentido de que as comunicações aí reguladas ou acções aí referidas não têm de ser dirigidas e/ou intentadas relativamente à pessoa que viva em união de facto com o arrendatário, padecem de qualquer inconstitucionalidade.
c) Da litigância de má fé da Requerida
Nas suas contra-alegações de recurso, requer a Autora a condenação da Requerida como litigante de má-fé.
Para tanto refere que o presente recurso constitui uma manobra dilatória, com a finalidade de permanecer a habitar o imóvel, com prejuízo considerável para a recorrida, convocando para o efeito o Art. 15.º -R, n.º 3, do NRAU.
Com efeito dispõe este artigo que:
“1 - Aquele que fizer uso indevido do procedimento especial de despejo do locado incorre em responsabilidade nos termos da lei.
2 - Se o senhorio ou o arrendatário usarem meios cuja falta de fundamento não devessem ignorar ou fizerem uso manifestamente reprovável do procedimento especial de despejo, respondem pelos danos que culposamente causarem à outra parte e incorrem em multa de valor não inferior a 10 vezes a taxa de justiça devida.
3 - O disposto no número anterior é ainda aplicável ao detentor do locado ou a qualquer outro interveniente no procedimento especial de despejo que, injustificadamente, obste à efetivação da desocupação do locado.
4 - Incorre na prática do crime de desobediência qualificada quem infrinja a decisão judicial de desocupação do locado.”
A leitura deste art. 15.º-R remete-nos para a responsabilidade no caso de má-fé, reproduzindo a previsão do das als. a) e d) do art. 542.º do CPC.
Da mesma forma que a litigância de má fé não se basta com a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta – conforme se decidiu no Ac. do STJ de 18-02-2015 -, entendemos que o mesmo se passa com a responsabilidade a que alude o art. 15.º R do NRAU.
Assim, apreciando a conduta processual da apelante, somos do entendimento que a mesma instaurou o presente recurso, com fundamento que não mereceu o acolhimento deste Tribunal, assim como da maioria da doutrina e jurisprudência. Mas tal, por si só, não se subsume a qualquer conduta processual reveladora de má fé, censurável, prevista no preceito citado, pelo que improcede a requerida condenação.
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IV. Decisão:
Por todo o exposto, ACORDAM OS JUÍZES DESTA 6.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, em julgar a apelação da Requerida/Apelante totalmente improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas da apelação pela Requerida/Apelante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido
Registe e notifique.
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Lisboa, 11-09-2025
Maria Teresa Mascarenhas Garcia
Nuno Luís Lopes Ribeiro
Anabela Calafate
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1. Por opção da Relatora, o acórdão utilizará a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1945 (respeitando, não obstante, nas citações a grafia utilizada pelos/as citados/as).