DECISÃO SUMÁRIA
Sumário


I. Interposto recurso da decisão do juiz de julgamento que determinou a devolução do processo ao juiz de instrução para conhecer de requerimentos do arguido depois de proferido despacho de pronúncia e tendo o juiz de instrução rejeitado competência para esse efeito, o acórdão que conheceu daquele recurso revogando o despacho recorrido, transitado em julgado na pendência do recurso do despacho do juiz de instrução, determina a inutilidade superveniente deste recurso, nos termos do artigo 277.º. al. e), do CPP, ex vi artigo 4.º do CPP,
II. Com efeito, seja qual for o sentido da decisão do recurso do despacho do juiz de instrução que conheça de mérito, tal decisão não produzirá qualquer efeito processual: se o recurso for julgado improcedente, limitar-se-á o acórdão, em substância, a uma decisão similar à proferida no anterior acórdão que reconhece a competência do juiz presidente do tribunal do julgamento para conhecer das questões que o recorrente pretende ver conhecidas e decididas pelo juiz de instrução; se o recurso for julgado procedente, o acórdão que vier a ser proferido não pode ser executado face ao disposto no artigo 625.º do CPC, ex vi art.º 4.º do CPP,  por se apresentar em contradição com aquele anterior acórdão.
III. A inutilidade superveniente determina a extinção da instância de recurso, circunstância que obsta ao conhecimento deste que deve ser conhecida em decisão sumária nos termos do art.º 417.º, n.º 6, al. a), do CPP.
IV. Nos termos do disposto no artigo 415.º do CPP, a desistência do recurso deve fazer-se por requerimento ou por termo no processo e deve ser verificada por despacho do relator, não sendo admissível a desistência (tácita) pelo mero silêncio do arguido.

Texto Integral


DECISÃO SUMÁRIA


1. Examinados os autos, verifica-se que deve ser proferida decisão sumária, nos termos do artigo 417.º, n.º 6, al. a), do Código de Processo Penal («CPP») por ocorrer circunstância que obsta ao conhecimento do recurso.

2. AA, juiz de direito, arguido, com a identificação dos autos, interpõe recurso do despacho de 08.10.2024, proferido pela Senhora Juíza Desembargadora do Tribunal da Relação de Coimbra em funções de juiz de instrução, que, depois de proferida decisão instrutória – em 22.05.2024 – pela qual foi pronunciado pela prática de três crimes de violência doméstica e ordenada a remessa dos autos à distribuição para julgamento – remessa que ocorreu em 19.08.2024 –, declarou «a incompetência material do juiz de instrução criminal para conhecer as nulidades invocadas pelo arguido do despacho que indeferiu as nulidades do despacho que não admitiu o recurso do despacho que indeferiu as nulidades da própria decisão instrutória», em requerimentos por este apresentados após a decisão instrutória.

3. Apresenta motivação de que extrai as seguintes conclusões:

“1 - Do despacho de 12.07.2024 que não admitiu o recurso interposto pelo arguido no dia 5.07.2024 foi apresentada reclamação ao Exmo. Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a qual foi indeferida;

2 - De tal decisão foi apresentado recurso de constitucionalidade de normas para o Tribunal Constitucional, o qual foi admitido com efeito suspensivo pelo Exmo. Juiz Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;

3 - Da atribuição de tal efeito ao recurso interposto pelo arguido resulta que a decisão sobre a dita reclamação não transitou em julgado, não se consolidando material e processualmente;

4 - Por conseguinte, a questão da admissibilidade do recurso interposto pelo arguido no dia 5.07.2024 do despacho que indeferiu as invocadas nulidades da decisão instrutória ainda não se encontra ainda decidida;

5 - Daí decorrendo que a decisão instrutória ainda não se consolidou material e processualmente, por os seus efeitos se encontrarem dependentes da admissibilidade ou não do recurso interposto da decisão de indeferiu as nulidades que o arguido suscitou da mesma (decisão instrutória);

6 - Caso venha a ser declarada a inconstitucionalidade invocada pelo arguido na dita reclamação, será de admitir o recurso da decisão que indeferiu as nulidades suscitadas da decisão instrutória;

7 - Sendo admissível tal recurso, caso este venha a obter procedência, a decisão instrutória será declarada nula;

8 - Por outro lado, a Sr.ª juíza de instrução não se pronunciou sobre o recurso de constitucionalidade de normas relativo à decisão instrutória, que o arguido apresentou no dia 11.09.2024, quanto às suas als. a) a g), admitindo-o ou rejeitando-o;

9 - Contrariamente ao entendimento da Sr.ª Juíza da Instrução, a decisão instrutória ainda não se consolidou material e processualmente, encontrando-se dependente da apreciação das inconstitucionalidades invocadas pelo arguido;

10 - Deste modo, falece o pressuposto lógico da declaração de incompetência material vertida no despacho recorrido;

11 - É manifesto o “erro” da decisão da Sr.ª Juíza de Instrução de 8.10.2024, ao considerar que por ser irrecorrível a decisão instrutória a mesma está imune a nulidades ou a inconstitucionalidades, as quais, por isso, não podem ser suscitadas nem declaradas superiormente, anulando a decisão instrutória e os efeitos que a mesma pretendia produzir;

12 - A Sr.ª Juíza de Instrução está obrigada a apreciar o requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade de decisões pela mesma proferida, como imposto pelo n.º 1, do art.º 76.º, da Lei n.º 28/82, de 15.11., na última versão dada pela Lei Orgânica n.º 1/2022, de 4/01., o que não fez;

13 - Tal omissão, configura a nulidade prevista no art.º 120.º, n.º 2, al. d), do Cód.Proc.Penal, por insuficiência, por não ter sido praticado ato legalmente obrigatório, o que expressamente se invoca e requer que seja declarado;

14 - No estado em que os autos se encontram não poderá a Sr.ª Juíza de Instrução declarar-se incompetente para apreciação de alegadas nulidades suscitadas pelo arguido, no pressuposto de que a decisão instrutória se consolidou processualmente, por na verdade tal não ter sucedido;

15 - E desse modo, igualmente o processo não poderá ser remetido à distribuição;

16 - A decisão de 8.10.2024 deverá ser revogada, ordenando-se à Sr.ª Juíza de Instrução que, por um lado, respeite a atribuição de efeito suspensivo ao recurso de constitucionalidade já admitido pelo Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e, por outro, que aprecie o requerimento de recurso de inconstitucionalidade que o arguido apresentou tempestivamente;

17 - O entendimento de que os art.ºs 17.º, 61.º, n.º 1, al. g), 98.º, n.º 1, 307.º a 310.º, do Cód.Proc.Penal, permitem que o juiz de instrução possa deixar de apreciar um recurso de constitucionalidade que foi apresentado pelo arguido relativamente a decisão proferida pelo mesmo (Juiz de Instrução), optando pela remessa dos autos para distribuição, é inconstitucional, por violação dos art.ºs 20.º, 32.º, n.º 1 e 52.º, n.º 1, ambos da C.R.Portuguesa, o que expressamente se invoca e requerer que seja declarado;

18 - O entendimento de que os art.ºs 17.º e 310.º, ambos do Cód.Proc.Penal, permitem que o juiz de instrução possa declarar a sua incompetência material para conhecer de um alegado requerimento do arguido a arguir «(…) nulidades do despacho que indeferiu as nulidades do requerimento de interposição do recurso do despacho de indeferimento da nulidade da decisão instrutória. (…)», com fundamento em que a decisão instrutória se consolidou, sem que tivesse sido apreciado previamente o recurso de inconstitucionalidade de normas apresentado no dia 11.09.2024, onde se incluiu a própria decisão instrutória, é inconstitucional, por violação dos art.ºs 32.º, n.º 1 e 52.º, n.º 1, ambos da C.R.Portuguesa, o que aqui expressamente se invoca e pretende ver declarado;

Por todo o exposto, a decisão recorrida deverá ser revogada, ordenando-se à Sr.ª Juíza de Instrução que:

a) respeite o efeito suspensivo atribuído ao recurso de constitucionalidade admitido pelo Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, mantendo-se os autos na instrução até ao transito em julgado da decisão que indeferiu a reclamação apresentada pelo arguido contra despacho que não admitiu recurso;

b) aprecie o requerimento de recurso de inconstitucionalidade de normas que o arguido tempestivamente apresentou nos autos e, em caso de admissão com efeito suspensivo – como se espera –, respeite a autoridade do Tribunal Constitucional, mantendo-se os autos na instrução até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida pelo mesmo, com as consequências processuais daí advenientes, que se espera serem a declaração das inconstitucionalidades das normas invocadas, na interpretação dada pela Sr.ª Juíza de Instrução, com a consequente reformulação da decisão instrutória nos termos superiormente ordenados;

Em todo caso, deverá conhecer-se e declarar-se nulidade e as inconstitucionalidades invocadas.»

4. O despacho recorrido foi proferido na sequência do despacho de 24.09.2024 da Senhora Juíza Desembargadora presidente do tribunal de julgamento que, conhecendo de «questão prévia» que considerou colocar-se, declarou «a irregularidade do processado, declarando inválido o ato de remessa à distribuição para julgamento», com o fundamento em que o envio fora «intempestivo», pois «só deveria ter ocorrido depois de esgotados os prazos de recurso/reclamação, arguição de nulidade ou irregularidades», ou seja, depois de definitivamente resolvidas todas as questões suscitadas em requerimentos apresentados posteriormente à decisão instrutória que, nos termos do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, pronunciando o arguido, «determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento».

5. Sucede que, como refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça («STJ») em seu parecer (art.º 416.º, n.º 1, do CPP) – parecer notificado ao arguido (art.º 417.º, n.º 2, do CPP) em contraditório que não obteve resposta –, o Ministério Público interpôs recurso deste despacho de 24.09.2024 para o STJ, que deu origem ao apenso 1022/22.6T9VIS.C1-A.S1, no qual defendeu dever «considerar-se atribuída ao Tribunal de julgamento a competência para os apreciar, como sucederá quanto a quaisquer outros requerimentos formulados pelo arguido no âmbito da fase processual que se encontra actualmente em curso, por força de expressa imposição legal» [artigo 310.º, n.º 1, do CPP], pedindo a revogação desse despacho, «ordenando-se que os autos prossigam em fase de julgamento, com cumprimento do disposto nos arts. 311º a 312º do Código de Processo Penal».

6. Por acórdão de 15.01.2025, transitado em julgado e publicado na Base de Dados dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (em https://www.dgsi.pt), o STJ, concluindo pela «possibilidade de o Tribunal de julgamento tomar posição a respeito dos requerimentos em causa», pela não verificação de «qualquer irregularidade» e que «a decisão instrutória proferida está perfeitamente sedimentada e fixada, ao que se segue, necessária e inquestionavelmente a fase de julgamento», decidiu conceder provimento ao recurso do Ministério Público e «revogar a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra – 4ª Secção – e ordenar que a mesma seja substituída por outra que, tomando posição sobre os requerimentos apresentados pelo arguido – Referências Citius ....40, .....41 e ....42 –, prossiga com os autos, dando cabal cumprimento ao disposto no artigo 311º e seguintes do CPPenal».

7. Por despacho de 11.03.2025, transmitido a estes autos, a Senhora Juíza Desembargadora presidente do tribunal de julgamento, dando cumprimento ao determinado no acórdão do STJ de 15.01.2025, passou a conhecer dos requerimentos em questão, decidindo: (a) quanto ao requerimento com a referência ....40: admitir a reclamação para o Presidente do STJ relativa ao despacho que não admitiu o recurso interposto para o STJ; (b) quanto ao requerimento com a referência ....41, em que o requerente pretendia que fosse reconhecido que a fase de instrução não se encontrava encerrada, o que impediria a remessa do processo à distribuição, que o processo fosse suspenso até que estivesse esgotado o prazo de recurso para o Tribunal Constitucional, e que fosse suspenso o processo até que o recurso da decisão que revogou a suspensão provisória do processo: indeferir todas as pretensões do requerente; e (c) quanto ao requerimento com a referência ....42 (nulidade dos despachos de 12.07.2024 e de 18.6.2024 e recurso do despacho de 14.08.2024): indeferir as pretensões do requerente.

E, procedendo ao saneamento do processo, decidiu «receber em juízo» os autos em que o arguido vem pronunciado para julgamento pelos factos constantes do despacho de pronúncia, ordenando o seu prosseguimento nos termos dos artigos 311.º-A e 311.º-B do CPP (para apresentação de contestação, rol de testemunhas e outros meios de prova).

8. Na sequência do recebimento de cópia deste despacho vindo do Tribunal da Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, na consideração de que o STJ decidiu no sentido de que «deverá ser o juiz de julgamento a pronunciar-se acerca dos requerimentos formulados» pelo arguido – o que fez pelo acórdão de 15.01.2025, cumprido pelo despacho da Senhora Juíza Desembargadora de 11.03.2025 –, pronunciou-se no sentido de que, neste quadro, «irá ser indiferente o que, prosseguindo o presente recurso, vier a ser decidido: a ser julgado improcedente o recurso, a decisão será similar à anterior já proferida por este STJ; a ser oposta, dando-se provimento ao recurso do arguido, não terá efeitos práticos, atento o disposto no artigo 625.º do Código de Processo Civil (aplicável ex vi do artigo 4.º do C Processo Penal», daqui decorrendo «que – a prosseguirem os autos – se possa até entender que se estará perante a prática de atos proibidos por lei, por inúteis (art.º 130.º do CPCivil)».

Pelo que promoveu a notificação do arguido para vir aos autos esclarecer se mantém o desejo de apreciação do recurso ou se do mesmo desiste, entendendo-se que a falta de resposta corresponde à desistência.

Notificado desta promoção, o arguido nada disse.

Apreciando.

9. Nos termos do disposto no artigo 415.º do CPP, o arguido pode desistir do recurso interposto até ao momento de o processo ser concluso ao relator para exame preliminar (n.º 1), devendo a desistência fazer-se por requerimento ou por termo no processo e ser verificada por despacho do relator (n.º 2).

No caso dos autos, o arguido não veio desistir do recurso nem por requerimento nem por termo no processo.

Assim sendo, apesar da notificação efetuada nos termos propostos pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto, não sendo legalmente admissível a desistência (tácita) pelo mero silêncio, não pode ser verificada a desistência, por ausência de forma legalmente imposta.

10. Todavia, como resulta do anteriormente exposto nos pontos 5. a 7., ocorre, na pendência do recurso, um facto gerador de inutilidade superveniente, pois que, como nota o Senhor Procurador-Geral Adjunto, seja qual for o sentido da decisão que conheça de mérito, tal decisão não produzirá, em qualquer caso, qualquer efeito processual:

(a) se o recurso for julgado improcedente, limitar-se-á o acórdão, em substância, a uma decisão similar à proferida no acórdão de 15.01.2025 (apenso 1022/22.6T9VIS.C1-A.S1), transitado em julgado, que reconhece a competência do juiz presidente do tribunal do julgamento para conhecer das questões que o recorrente pretende ver conhecidas e decididas pelo juiz de instrução e que já o foram pelo juiz do julgamento em cumprimento do decidido naquele acórdão; e,

(b) se o recurso for julgado procedente, o acórdão que vier a ser proferido não pode ser executado por se apresentar em contradição com aquele anterior acórdão de 15.01.2025 sobre questão fundamental substancialmente idêntica traduzida na questão de saber se a competência para apreciar e decidir das questões objeto do despacho recorrido pertence ao juiz de instrução ou ao juiz de julgamento – a decisão que reconhecesse competência ao juiz de instrução seria sempre incompatível com a anterior decisão que a reconheceu como pertencendo ao juiz do julgamento. Com efeito, como dispõe o artigo 625.º do Código de Processo Civil («CPC»), aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão ou contradição entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar. Ou seja, sempre teria de se cumprir o decidido no acórdão de 15.01.2025, já cumprido.

11. O recurso tornou-se, pois, supervenientemente inútil; o seu conhecimento e a decisão a proferir não terão qualquer utilidade.

Nos termos do artigo 277.º, al. e), do CPP, também aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, a instância extingue-se sempre com a inutilidade superveniente da lide, i.e., sempre que por facto ocorrido na pendência da instância, a continuação da lide – neste caso, do recurso – não tenha qualquer utilidade.

O recurso não deve, pois, continuar, antes deve cessar, sob pena de violação do artigo 130.º do CPC, que proíbe a prática de atos inúteis.

11. Pelo exposto, com estes fundamentos, em decisão sumária, nos termos do artigo 417.º, n.º 6, al. a), do CPP, declara-se extinta a instância de recurso, circunstância que obsta ao conhecimento deste.

Sem custas (artigo 513.º do CPP).

Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de setembro de 2025

José Luís Lopes da Mota (relator)