EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
Sumário

Na exoneração do passivo restante estão em conflito dois interesses: o da protecção dos credores, a quem é concedido o rendimento disponível do insolvente pelo período de três anos; e do devedor, a quem se concede uma “segunda oportunidade”, proporcionando condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período de três anos a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos.

Texto Integral

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Comércio de Santarém, foi deferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente (…), nascido a 09.02.1947, e determinou que constituía rendimento disponível a entregar ao Administrador da Insolvência, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, todo e qualquer montante recebido que, mensalmente, fosse superior a 1 salário mínimo nacional.

Deste despacho traz o insolvente recurso, concluindo:
1. (…)
2. O devedor é casado, o seu cônjuge não aufere rendimentos, vivem em casa arrendada, pagando uma renda mensal de € 355,00 (…).
3. É reformado por velhice, e gasta toda a reforma nas suas despesas básicas.
4. O que aliás resulta do relatório do sr. Administrador e de toda a documentação junta.
5. O insolvente juntou recibos, e elencou despesas mensais certas, artigo 20.º da p.i., que actualizou por requerimento datado de 21.02.2025 donde resulta que gasta em média com estas despesas fixas, o montante de € 775,00/mês, restam-lhe, e o que gasta em alimentação, cerca de € 489,00. Qualquer homem médio tem noção de que estes gastos são mínimos, e logo, razoáveis.
6. O tribunal considera que os recibos juntos relativos aos pagamentos de água, luz, telefone, internet e medicamentos, são insuficientes para fazer prova. Não mostram se o consumo é razoável. Com o devido respeito isto não faz qualquer sentido, quando dos mesmos resulta que o devedor gasta em média o que qualquer homem médio que pague estas despesas, sabe que correspondem ao mínimo dos mínimos, tendo até em conta o valor da inflação e o custo do cabaz básico alimentar.
7. Ora, se atentarmos nestas despesas fixas, contrariamente ao que fez o tribunal a quo, temos que se o insolvente receber apenas o ordenado mínimo nacional, tal como decidido pelo Tribunal a quo deixa de comer; o que naturalmente põe em causa o mínimo da sua subsistência, ademais atenta a sua idade avançada (78 anos) e o seu estado de saúde com uma incapacidade de 80%.
8. Posto isto também concluímos que o tribunal decidiu com desacerto jurídico pois não acautelou o mínimo de subsistência do devedor conforme o impõe a já citada aliena i) do n.º 1 do artigo 239.º do CIRE. Na verdade, entendemos que o montante mínimo indisponível deve corresponder a um ordenado mínimo e meio vezes 14 meses, até por uma obrigação cívica decorrente da idade e da doença do insolvente, a que o tribunal não se pode alhear.

Não houve contra-alegações.
Cumpre-nos decidir.

A decisão recorrida considerou assente a seguinte factualidade:
1. O agregado familiar do insolvente é constituído pelo próprio e pela esposa.
2. Está reformado por velhice, beneficiando de uma reforma no valor mensal de € 1.264,09, a que acresce complemento por dependência no valor mensal de € 127,63.
3. É pessoa doente.
4. Despendem mensalmente a quantia de € 355,00 com renda de casa.
5. Despende mensalmente quantia que concretamente não foi possível apurar em água, luz, gás, telecomunicações, alimentação, vestuário, saúde e deslocações.

Aplicando o Direito, a questão a decidir consiste da determinação do rendimento disponível do Insolvente, para os fins do artigo 239.º, n.º 3, do CIRE.
A exoneração do passivo restante procura dar corpo ao princípio do fresh start para pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, com o intuito de extinção das dívidas e libertação do devedor, para que não fique inibido de retomar o exercício da sua actividade económica.
Estão em conflito dois interesses: o da protecção dos credores, a quem é concedido o rendimento disponível do insolvente pelo período de três anos; e do devedor, a quem se concede uma “segunda oportunidade”, proporcionando condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período de três anos a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos.
O montante não abrangido pela cessão do rendimento disponível deve ser fixado casuisticamente, de acordo com os critérios mencionados no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do CIRE, onde avulta o critério do que seja razoavelmente necessário para “o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.”
Remete-se, pois, para o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Constituição, princípio constitucional supremo em que assenta a República Portuguesa, igualmente contemplado no artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.
Trata-se de um princípio ético-jurídico que ilumina todo o direito, quer na vertente dos direitos fundamentais, quer no domínio da composição de interesses que aos Tribunais cabe dirimir, e que fundamenta materialmente o princípio da igualdade, proibindo qualquer diferenciação de dignidades.
Assim, o artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do CIRE, ao apelar ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, impede qualquer juízo punitivo do devedor de boa-fé, proibindo a sua redução a uma existência miserável e à absoluta renúncia ao trem de vida prévio à sua insolvência.
Acresce que o objectivo do instituto da exoneração do passivo restante reside na recuperação do insolvente e no seu regresso à vida económica e social, expurgado do passivo que não consegue solver, desiderato este que se torna impossível cumprir acaso este seja colocado em situação de penúria e de impossibilidade de satisfação das despesas inerentes a uma vida digna.
Neste sentido, o salário mínimo nacional deve ser considerado o montante estritamente mínimo para acudir às despesas inerentes a uma vida digna, tendo em contas as despesas de habitação, de alimentação, de vestuário, de bens essenciais (água, luz, transportes) e de assistência médica.
Por outro lado, do artigo 738.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, resultam serem impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários e prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer regalia social, tendo “como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.
Tratando-se de norma que pretende igualmente dar corpo ao princípio da dignidade da pessoa humana, deverá servir de referência na determinação do rendimento disponível do insolvente, não o privando jamais desse patamar de vivência.

Apreciando o caso concreto, o Insolvente tem já a idade de 78 anos, o seu agregado familiar é constituído pelo próprio e pela esposa, aufere uma pensão por velhice no valor mensal de € 1.264,09, acrescida de complemento por dependência no valor mensal de € 127,63, é pessoa doente (junto com a petição inicial está um atestado médico de incapacidade multiuso mencionando ser o insolvente portador de uma incapacidade permanente global de 49,4%), o casal gasta mensalmente € 355,00 com a renda de casa, e realiza mensalmente despesas em água, luz, gás, telecomunicações, alimentação, vestuário, saúde e deslocações.
Visto que as despesas relativas à renda de casa e ao fornecimento de serviços essenciais são partilhadas pelo insolvente e pela sua esposa, pondera-se justo e razoável atribuir ao insolvente o valor correspondente a 1,25 o salário mínimo nacional, que equivale hoje a € 1.087,50, o qual permitir-lhes-á satisfazer não apenas as despesas documentadas relacionadas com a sua habitação, mas as demais que um casal na sua idade normalmente incorre.

DECISÃO:
Destarte, concedendo-se parcial provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e fixa-se como quantia indispensável ao sustento digno do insolvente, o correspondente a uma vez e vinte e cinco (1,25) o salário mínimo nacional, ficando este obrigado a entregar ao fiduciário, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, todo o rendimento que aufira e que exceda essa quantia.
Custas pela Massa.
Évora, 10 de Julho de 2025
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Vítor Sequinho dos Santos