NARRAÇÃO DOS FACTOS NA ACUSAÇÃO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 1/2015
Sumário


A acusação particular do assistente tem de narrar factos que, se provados em julgamento, preenchem os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime imputado. No entanto, a lei não exige que acusação seja uma peça processual perfeita no plano formal, da arrumação dos factos nos cânones dogmáticos da teoria da infração penal. As deficiências formais só serão causa de inviabilidade da acusação se importarem omissão ou ininteligibilidade, sem preciosismos linguísticos. Cumpridos os requisitos de narração dos factos de maneira percetível para os sujeitos processuais e operativa para os fins a que se destina, que são a delimitação do objeto da atividade probatória e da decisão de facto e de direito, mais importante que a perfeição formal são as exigências de justiça material e de descoberta da verdade, inerentes ao interesse público da ação penal.

O acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015 não é aplicável da mesma maneira ao dolo e ao conhecimento da ilicitude. A demonstração positiva da consciência da ilicitude, para ter conteúdo substancial e não ser apenas um formalismo destituído de utilidade, só será relevante como objeto autónomo de prova em julgamento quando se tratar de um caso em que a proibição seja axiologicamente neutra ou pouco evidente e o seu conhecimento seja essencial para que se possa dizer que o agente sabia que praticava um crime; ou quando existam indícios de inimputabilidade ou de verificação de quaisquer causas de exclusão da culpa que a acusação deva afastar com prova positiva.

Constando da acusação por crime de difamação que os arguidos atuaram «bem sabendo que tal conduta não lhes era permitida», essa expressão é suficiente para a imputação da ação com consciência da ilicitude penal. Atuar sabendo que uma conduta não é permitida é o mesmo que atuar sabendo que a conduta é proibida. E se os arguidos estão acusados de um crime (e não de infração disciplinar ou ilícito civil) não há qualquer dúvida sobre a natureza da proibição cujo conhecimento lhes é imputado.

Texto Integral

Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

1.1. Decisão recorrida

Despacho proferido em 23jan2025, no qual o juiz de instrução decidiu não pronunciar os arguidos AA, BB e CC por crimes de difamação com publicidade e calúnia, previstos nos artigos 180º nº 1 e 183º nº 1 al. a) do CP, que lhes foram imputados na acusação particular do assistente DD.

1.2. Recurso, respostas e parecer

1.2.1. O assistente recorreu do despacho de não pronúncia pedindo a sua revogação e substituição por outro que pronuncie os arguidos nos termos da acusação particular ou, subsidiariamente, que lhe dê a possibilidade de suprir a nulidade que a afeta.

Para tanto, concluiu assim o recurso:

1. A acusação particular encontra-se estruturada e contém o mínimo dos elementos que permitem a sua procedibilidade formal e substancial (artigos 285, nº. 2 e 283, nº. 3 e 7, ambos do Código de Processo Penal), não existindo, pois, fundamento legal para a sua rejeição.

2. Os arguidos não são “extraterrestres”, antes jornalistas, bem informados, não podendo deixar de conhecer a proibição legal e penal.

De todo o modo,

3. O conhecimento da proibição legal não integra o elemento subjetivo do tipo de ilícito (artigo 14.º do C.P.), relevando apenas em sede de culpa, nos termos do artigo 17.º do Código Penal.

4. Apenas no direito contraordenacional ou penal secundário ou quando se esteja perante novas incriminações não suficientemente solidificadas na comunidade é de exigir o “conhecimento da proibição legal” por parte do agente e consequentemente é obrigatória a narração na acusação desse elemento como forma de realização do dolo do tipo.

5. Assim sendo, como é, deveria ter sido ditado douto despacho de pronúncia contra os arguidos, BB e CC, pela prática, em concurso real, de um crime de difamação com publicidade e calúnia, previstos e punidos pelo art.180º, nº. 1 e 183º, nº. 1, al. a), do C.P.

Sem conceder,

6. Ainda que se considerasse, a título estritamente académico, que assistia razão ao Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, ainda assim, deveria ter sido concedida ao assistente a possibilidade de suprir a deficiência indicada, o que não sucedeu.

7. O Meritíssimo Juiz não levou a cabo uma correcta interpretação do preceitos e diplomas legais invocados na presente peça recursiva.

1.2.2. O Ministério Púbico respondeu defendendo que o recurso deve ser julgado improcedente, essencialmente, com os seguintes argumentos:

- A pretendida oportunidade para o aperfeiçoamento da acusação não é admissível, face ao decidido no acórdão de uniformização de jurisprudência nº 7/2005, segundo o qual não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido;

- Na acusação o assistente imputou que «os arguidos agiram voluntária e conscientemente, difamando-o com publicidade, no propósito de ampliar a calúnia e fazer chegar a mesma ao maior número de pessoas possível, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida». A expressão é vaga e mistura não só e de forma deficiente os conceitos de dolo (conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo), com os de culpa (conhecimento da reprovabilidade da conduta em virtude proibição legal penal), não chegando sequer a explicitar se conduta era proibida penalmente, contraordenacionalmente, deontologicamente, etc.

- Constando na acusação, quanto ao elemento subjetivo, tão só que os arguidos sabiam que a sua conduta é penalmente proibida por lei, atuando de forma voluntária e deliberada, impõe-se concluir que não foi alegada a determinação livre e consciente, enquanto elemento subjetivo do dolo do tipo de culpa;

- De acordo com a jurisprudência uniformizada do acórdão de uniformização de jurisprudência nº 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, a acusação é nula por não reunir os requisitos formais para prosseguir para a fase de Julgamento;

1.2.3. O arguido BB também respondeu ao recurso, defendendo igualmente a sua improcedência, com as seguintes conclusões:

1) A Acusação Particular é nula, por violação do art.º 283.º, n.º 3, alínea b) aplicável ex vi o art.º 285.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal e por manifesta falta de fundamento porque os factos dos Autos não são considerados crime com base na alínea d), do n.º 3, do art.º 311.º, do C.P.P.;

2) Não existem indícios suficientes que permitam a submissão do Arguido a julgamento, não sendo provável a condenação do Arguido ora Respondente em sede de julgamento. (Cfr. art.º 308.º, n.º 2, do C.P.P.);

3) Não devendo assim ser pronunciado o aqui Respondente – BB – pela prática, em concurso real, de um crime de difamação com publicidade e calúnia previstos e punidos pelos art.ºs 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, crimes que não praticou.

1.2.4. Parecer do Ministério Público na Relação e resposta da recorrente

Na Relação o Ministério Público acompanhou a argumentação da resposta do Ministério Público junto do tribunal recorrido e pronunciou-se pela improcedência do recurso.

2. Questões a decidir no recurso

São duas as questões a decidir no presente recurso, por esta ordem:

- A acusação é nula por falta de narração dos factos necessários para submeter os arguidos a julgamento?

- Sendo nula, deve o assistente ser convidado a suprir essa nulidade?

Daqui resulta que as outras questões levantadas na resposta ao recurso apresentada pelo arguido BB, relativas à subsunção jurídica dos factos e à sua punibilidade, não serão conhecidas por estarem fora do objeto do recurso.

3. Fundamentação

3.1. Factualidade processual relevante

(súmulas)

3.1.1. O assistente deduziu acusação particular contra os arguidos, na qual constam os seguintes factos alegados (referimos apenas o que releva para a decisão do caso em apreço):

1. O assistente é Presidente da Direcção do … (…).

(…)

11. No dia 5 de Dezembro de 2022, foi publicado no site www…. um artigo com o título “Agressão em jogo do Campeonato de Portugal. Presidente do … agride equipa que recolhia imagens”.

12. O dito artigo, aventava o seguinte:

O incidente envolver uma equipa de … que filmava o jogo entre o … e o ….

Os elementos que filmavam, na bancada central, o encontro manifestaram-se em voz alta após lance dentro das 4 linhas.

Os associados dos … não terão gostado e o presidente do clube, DD, levou o protesto ao extremo.

O dirigente levantou-se e empurrou de forma deliberada o tripé e a câmara de filmar não permitindo que estes elementos continuassem a recolha de imagens do encontro.

Não se trata de uma equipa de jornalistas mas sim de uma equipa de “observadores” do FC de … que acompanha o FC… e que filma todos os encontros do clube.

(…)

13. Consultada a Filha Técnica de tal site de informação, apura-se que tem sede na (…).

14. Sendo propriedade da sociedade “…”, com sede na (…).

15. O arguido, BB, é sócio gerente da aludida sociedade comercial.

16. É também o Director do indicado site de informação, de periodicidade diária, atenta a sua qualidade de jornalista (…).

Na sua ausência,

17. O indicado BB, é substituído pela arguida e jornalista AA.

18. Tal artigo fez constar factos grosseiramente falsos, não se encontrando assinado.

19. O arguido, BB não cuidou de apurar previamente o efectivamente sucedido, nomeadamente, junto do assistente ou da Polícia de Segurança Pública, como era seu dever.

20. Por seu turno, a arguida AA, não se opôs à publicação levada a cabo pelo arguido BB, como também era seu dever (…).

21. EE, publicou no dia 5 de Dezembro de 2022, na sua página do Facebook, o seguinte:

Atitude lamentável do Sr. Presidente do … ontem para com o staff da equipa técnica do FC…, as imagens valem mais que as palavras, que este vídeo chegue onde tem de chegar para que não se repitam, agradeço a partilha do vídeo por todos aqueles que desejam um futebol mais saudável. Obrigado.

22. No indicado vídeo, não se vislumbra qualquer agressão do assistente a qualquer pessoa.

Em consequência de tal publicação,

23. Foram efetuados diversos comentários, entre os quais, constava o do arguido CC, ao referir:

“Este senhor já tinha feito o mesmo num jogo de sub-19 frente ao …. Agrediu um treinador adjunto. E pelos vistos continua. E novamente em casa, com a conivência de todos”.

24. Com tal comentário, o arguido CC fez inculcar a falsa ideia que o assistente teria agredido terceiras pessoas.

25. E que tal já havia sucedido no passado, mediante agressão a um treinador adjunto do …, o que igualmente corresponde a uma grosseira falsidade.

26. O único e exclusivo propósito dos arguidos foi difamar o assistente, colocando em crise a sua honra, bom nome e consideração devida.

27. Os arguidos agiram voluntária e conscientemente, difamando-o com publicidade, no propósito de ampliar a calúnia e fazer chegar a mesma ao maior número de pessoas possível, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida.

28. Ao procederem como o fizeram, e sem razão alguma que o justifique, cometeram os arguidos, em concurso real, um crime de difamação com publicidade e calúnia, previstos e punidos pelo art. 180º, n.1 e 183º, n.º 1, do Código Penal.

29. O comportamento doloso e censurável dos arguidos/demandados causou graves danos morais ao assistente/demandante.

30. Atentando contra a sua honra, bom nome e consideração.

(…)

3.1.2. O arguido BB requereu a abertura de instrução, nos seguintes termos (referimos só a parte relevante para o recurso, sem os sublinhados e negritos do original):

16.º Assim, a acusação particular apresentada por um Assistente há-de conter, necessariamente, a concretização precisa e concisa dos factos – objectivos e subjectivos – conformadores do ilícito penal em causa.

17.º O que salvo melhor opinião não ocorre no caso concreto.

(…)

35.º Que pese embora a utilização da fórmula genérica da prática de factos de forma dolosa o Assistente não concretiza em nenhum ponto da acusação particular de que modo o aqui Arguido preencheu com a sua actuação tal dolo.

36.º Não existindo presunções de dolo, os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa do Arguido impõem ao Assistente, acusador particular, o dever de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico-penal lesado pela conduta proibida.

37.º Assim, e embora exista referência ao crime que supostamente o Arguido terá praticado, há uma omissão relativamente aos elementos subjectivos que enformam o referido crime.

(…)

39.º No caso concreto o crime de difamação apenas é punível quando se preenche que o mesmo haja sido praticado com dolo.

40.º E, a estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo.

41.º Por um lado, o elemento intelectual de representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objectivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável.

42.º Por outro lado, o elemento volitivo que consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito.

No caso concreto,

43.º Não existem, na acusação particular, os concretos elementos subjectivos do crime, nomeadamente quanto ao conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor.

44.º Pois que, os factos praticados pelo Arguido não constituem crime na medida em que foram praticados no âmbito do próprio exercício do direito de informação, através da função da imprensa e esta através da sua actividade dirigida à formação da opinião pública, que há-de valer como justificação jurídico-penal de qualquer “ofensa” à honra que aquela traga consigo.

45.º Porque prosseguia um interesse legítimo, enformado pelos factos que sobejamente se encontram plasmados nos Autos, sem qualquer dolo.

46.º Logo, a falta de preenchimento da alegada actuação dolosa do Arguido constitui uma nulidade.

(…)

3.1.3. O despacho recorrido de não pronúncia tem o seguinte conteúdo resumido:

(…)

O assistente pretende a condenação dos arguidos pela prática de, em concurso real, um crime de difamação com publicidade e calúnia, previsto e punidos pelo art. 180.º, n.º1, e 183.º, n.º1, al. a), do Cód. Penal, pelo que cabe ponderar se a acusação é formalmente válida e se é provável a condenação em sede de julgamento.

Os arguidos requerentes invocam a nulidade da acusação particular por violação do disposto no art. 283.º, n.º 3, al.b), do Cód. Processo Penal.

O art. 180.º, n.º 1, do Cód. Penal, incrimina “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo”. A tutela penal do bem jurídico honra cessa, nos termos do n.º 2 do referido normativo, na circunstância de expectio veritatis conjugada com a realização de interesses legítimos, excepto no disposto no art. 180.º, nº 3 CP (se a imputação for relativa a factos atinentes à intimidade da vida privada e familiar). O tipo objectivo depende da (i) imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa física viva, (ii) a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou reprodução daquela imputação ou deste juízo, (iii) dirigido a terceiro.

(…)

A questão prévia a decidir nos presentes autos é a de saber se a acusação reúne todos os requisitos formais para prosseguir para a fase de julgamento.

O n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal elenca, nas suas diversas alíneas, os requisitos que deverá conter a acusação, sob pena de nulidade. Entre estes requisitos está a narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada conforme resulta do disposto na alínea b) do n.º 3 do citado normativo legal. A violação deste normativo implicará a rejeição da acusação por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal. A narração factual é um requisito que reveste especial importância na medida em que é a acusação que fixa o objecto do processo, o qual se irá manter até ao trânsito em julgado da sentença, protegendo o arguido contra eventuais alargamentos dos poderes de cognição e decisão do Tribunal, por forma a garantir que uma vez comunicada a acusação ao arguido este possa conhecer quais os factos e o crime que lhe são imputados, permitindo-lhe, deste modo, preparar e organizar adequadamente a sua defesa.

(…)

Nos termos conjugados dos arts.º 9º, 14.º, 16.º, 17.º 40.º e 71.º todos do Cód. Penal, é pressuposto da aplicação/determinação da sanção criminal a verificação/apuramento do conhecimento e da vontade do agente na prática do ilícito e a culpa do agente do crime, a sua posição de contrariedade em relação ao direito, nos factos alegadamente praticados.

Analisando a acusação particular, não é feita a descrição factual com vista a satisfazer os requisitos apontados para o preenchimento do tipo criminal, designadamente, o dolo da culpa/a culpa dolosa (a atuação consciente de que a conduta em causa é prevista e punida por lei). É verdade que o assistente alega que «os arguidos agiram voluntária e conscientemente, difamando-o com publicidade, no propósito de ampliar a calúnia e fazer chegar a mesma ao maio número de pessoas possível, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida». A vacuidade da expressão “não era permitida” não esclarece se a conduta em causa era proibida e punida por Lei Penal. Tal expressão não comporta o mesmo conteúdo da expressão “o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal”, sendo de concluir que a sua referência foi omitida do libelo acusatório. Não foram descritos factos que legitimam a aplicação de uma pena aos arguidos. A mera referência a uma conduta que não era permitida pode levar a equacionar outros blocos normativos, nomeadamente, os civilísticas e os deontológicos (todos os arguidos são jornalistas), que não o bloco normativo constante da Lei Penal.

Tendo assente a jurisprudência uniformizada do Acórdão nº 1/2015 do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, inexistem os factos necessários a subsumir para efeitos de apuramento da culpa do agente e é a acusação legalmente inadmissível, devendo ser declarada nula. Concluímos, pelo exposto, não ter o assistente dado integral cumprimento ao disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal.

Prescreve o art. 308.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal, “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”. De acordo com o n.º 3 deste normativo, “No despacho referido no n.º 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.”.

Em resumo, as condutas descritas são subjectivamente atípicas e ocorre a violação do art. 283.º, n.º 3 al. b), do Código de Processo Penal, que determina a nulidade da acusação, de acordo com o enquadramento jurisprudencial citado, e logicamente, impõe-se a decisão de não pronúncia.

Nestes termos, e ao abrigo do disposto no art. 308.º, n.º3, do Cód. Processo Penal, decide-se:

a) declarar nula a acusação por violação do art. 283.º, n.º 3 al. b) aplicável ex vi art. 285.º, n.º 3, ambos do Código Processo Penal e, em consequência, não pronuncio os arguidos AA, BB e CC pela prática, em concurso real, de um crime de difamação com publicidade e calúnia, previsto e punidos pelo art. 180.º, n.º1, e 183.º, n.º1, al.a), do Cód. Penal;

b) extinguir de imediato as medidas de coacção em vigor – art.º 214.º, n.º1, al. b) do Cód. Processo Penal. e,

c) determinar o oportuno arquivamento dos autos.

3.2. Análise do mérito do recurso

É fora de qualquer dúvida que a acusação particular do assistente tem de observar os requisitos da narração dos factos previstos no artigo 283º nº 3 al. b), aplicável ex vi artigo 284º no 2, ambos do CPP, sendo nula se o não fizer. Os factos que a acusação há de narrar são os que permitam, se provados em julgamento, preencher os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime imputado.

É, pois, necessário, no que releva para o caso em apreciação, que da acusação resulte a alegação de o acusado, dirigindo-se a terceiros, através de meio ou em circunstâncias que facilitem a divulgação da mensagem, ter imputado a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou ter formulado sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração (elementos objetivos do tipo); de ter representado aqueles factos e ter atuado com intenção de os realizar, ou de os ter representado como consequência necessária da sua conduta ou de os ter representado como consequência possível dessa conduta e se ter conformado com a sua realização (elementos subjetivos do tipo: dolo direto, necessário ou eventual); e de ter atuado com capacidade de avaliação das consequências do ato, liberdade de determinação de acordo com essa avaliação e consciência da ilicitude (culpa).

No despacho recorrido não se questionou a narração dos elementos objetivos do tipo nem, na verdade, da atuação dolosa dos arguidos. A razão da não pronúncia, de acordo com esse despacho, que delimita o objeto do presente recurso, refere-se, apenas, à omissão dos factos relativos à culpa, mais concretamente por a alegação «bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida» não ser suficiente para integrar a imputação de uma atuação com consciência da ilicitude penal.

Aceitamos que a acusação não é uma peça processual perfeita no plano formal, da arrumação dos factos nos cânones dogmáticos da teoria da infração penal. Simplesmente, as deficiências formais não são só por si causa de inviabilidade da acusação. Isso só se imporá se importarem omissão ou ininteligibilidade na narração dos factos. O que é determinante é verificar, sem preciosismos linguísticos, se, na substância, a acusação contém uma imputação de factos suficiente e clara para permitir a realização de um julgamento vinculado a um tema viável – isto é, que possa terminar numa condenação – e para assegurar aos arguidos uma efectiva possibilidade de defesa, o que naturalmente pressupõe o conhecimento preciso dos factos imputados. Sendo a acusação um ato de comunicação, através do qual o órgão do Estado, titular da ação penal, comunica aos destinatários – os sujeitos processuais e os terceiros que dela podem tomar conhecimento – todos os elementos necessários para introduzir o processo em tribunal, o que é essencial é que seja redigida de forma a permitir a transmissão do respetivo conteúdo, de maneira percetível para o recetor e operativa para os fins a que se destina, que são a delimitação do objeto da atividade probatória e da decisão de facto e de direito. Cumpridos esses objetivos, mais importante que a perfeição formal são as exigências de justiça material e de descoberta da verdade, inerentes ao interesse público da ação penal. Portanto, dito isto, ou a acusação deduzida pelo assistente, ainda que formalmente deficiente, contém de forma perceptível todos os factos essenciais para imputar aos arguidos o crime de difamação com publicidade e calúnia, caso em que estará em condições de prosseguir; ou faltam-lhe factos e é nula.

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, de 20NOV2014 (DR 18, série I, de 27JAN2015), citado no despacho recorrido, fixou a seguinte jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal».

Procurando sumariar a respetiva fundamentação, nesse acórdão considerou-se que o tribunal de julgamento não pode deduzir por extrapolação dos factos relativos ao tipo objectivo os factos pertinentes para o preenchimento do tipo subjectivo, se omissos na acusação. Tão pouco pode integrá-los com recurso ao mecanismo do artigo 358º do CPP, dado a adição de factos constitutivos do crime não constituir uma alteração não substancial da acusação. Igualmente não pode aditá-los com recurso ao mecanismo do artigo 359º do CPP, pois sendo tais factos omissos, não se trata da imputação de um crime diverso, mas da imputação de um crime onde antes não o havia. Como tal, a acusação deve conter a descrição precisa dos factos da vida real que correspondem aos elementos constitutivos do tipo, tanto os do tipo objectivo como os do tipo subjectivo de ilícito. Os primeiros definem o conteúdo ou objecto da acção típica; os segundos a relação psicológica do agente com essa acção. Os elementos subjectivos – continua o acórdão – são o dolo ou a negligência, isto é, o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, que contêm um elemento intelectual – o conhecimento: previsão ou representação – e um elemento volitivo – vontade de actuação livre (querendo realizar o facto), consciente (representando as circunstâncias do facto) e ciente da proibição (consciência da ilicitude).

A questão controversa que deu origem à não pronúncia dos arguidos tem a ver com a falta da imputação completa do facto de terem atuado com consciência da ilicitude. Quer dizer, se na acusação constasse a expressão tabelar tradicional “atuou com consciência da ilicitude” seria viável; não a contendo, é nula. Mas – perguntamos agora nós – se a imputação de tal facto, feita daquela maneira tabelar, é essencial e se dessa essencialidade resulta que a actividade probatória em julgamento tem de incluir especificamente esse facto, o que é que terá de ser provado em julgamento, aditando-se essa imputação, que não tivesse já de o ser sem ela? É que estamos claramente num daqueles casos em que o próprio acórdão de fixação de jurisprudência reconhece que o conhecimento da ilicitude promana da realização do próprio facto, dada a relevância axiológica do acto ser significativa e estar enraizada nas práticas sociais, sendo desnecessária uma prova autónoma do conhecimento da proibição penal para se saber que o acto é ilícito. Não existindo qualquer causa extraordinária que exclua esse conhecimento, é óbvio que qualquer pessoa, para mais sendo jornalista, sabe que difamar outra é ilícito e penalmente proibido.

Para testar ao limite a solução do despacho recorrido (e também, de certo modo, do acórdão de fixação de jurisprudência), vamos imaginar que era deduzida uma acusação por homicídio doloso, em que o agente do crime, além de ter morto a vítima, escondeu o cadáver, dissipou outras provas e andou fugido enquanto a polícia o procurava. O Ministério Público deduzia uma acusação com todos os factos, mas por lapso omitia a fórmula “sacramental”: “o arguido actuou com consciência da ilicitude” e escrevia “bem sabendo o arguido que o seu comportamento não era permitido”. Quid juris? Haveria o arguido ficar impune com base no raciocínio de que não lhe tinha sido imputado um facto essencial para a sua defesa, quando é evidente que o conhecimento da ilicitude decorria não só da natureza do ato criminoso, mas do comportamento de ocultar provas e de evitar a detenção policial? Se não se suscitasse qualquer questão de diminuição da imputabilidade ou outra causa que pudesse excluir a ilicitude, que prova mais teria o Ministério Público de fazer nesse julgamento aditando-se aquela imputação?

Para nós, a jurisprudência fixada no referido acórdão não é aplicável da mesma maneira ao dolo e ao conhecimento da ilicitude. Se repararmos bem, no 6º parágrafo do ponto 10.2.3.1 da respectiva fundamentação, diz-se que a consciência da ilicitude se coloca no plano dogmático a um nível diferente da avaliação do dolo na realização do facto típico, porque tem a ver com a questão da relevância do erro sobre a ilicitude ou sobre a proibição. Diz-se ainda que, se não se tratar de um caso em que se possa afastar a censurabilidade do acto, o facto praticado sem consciência da ilicitude é equiparável ao praticado com essa consciência. E mais adiante, nos parágrafos 1º e 2º do ponto 10.2.4, faz-se de novo uma distinção entre as questões da tipicidade e do conhecimento da proibição.

Sem entrarmos aqui na desnecessária dissecação das teorias dogmáticas da infracção penal, não podemos deixar de chamar a atenção para o facto de as doutrinas finalistas da acção separarem os conceitos de culpa e dolo e retirarem o elemento culpa do tipo subjectivo de ilícito. A culpa será um pressuposto da infração, mas não um elemento do tipo. De acordo com a teoria finalista da acção, a tipicidade subjectiva inclui o dolo ou a negligência, isto é, a representação e vontade do agente quando actua de modo a preencher os elementos objectivos típicos, sendo a culpabilidade uma questão puramente normativa, que tem a ver com as questões da imputabilidade, da consciência da ilicitude e da exigibilidade de conduta diversa. Aliás, o nosso código penal não deixa de conter elementos que suportam a teoria finalista da acção que separa a culpa da tipicidade. Da conjugação dos artigos 20º nº 1 e 91º nº 1 resulta que pode haver prática de factos típicos (incluindo naturalmente o tipo objecto e subjectivo) sem consciência da ilicitude ou capacidade de avaliação ou actuação de acordo com essa avaliação. Do mesmo modo o artigo 17º, ao determinar que a falta de consciência da ilicitude exclui a culpa, mas não o dolo, mostra que a culpa não faz parte do tipo subjectivo de ilícito.

Parece-nos que, em bom rigor, a demonstração positiva da consciência da ilicitude, para ter conteúdo substancial e não ser apenas um formalismo destituído de utilidade, só será relevante como objecto autónomo de prova em julgamento quando se tratar de um caso em que a proibição seja axiologicamente neutra ou pouco evidente e o seu conhecimento seja essencial para que se possa dizer que o agente sabia que praticava um crime; ou quando existam indícios de inimputabilidade ou de verificação de quaisquer causas de exclusão da culpa que a acusação deva afastar com prova positiva.

Não é a primeira vez que questões como esta chegam aos tribunais de recurso.

Nos acórdãos TRC, de 13set2017 (processo 146/16), em que faltava na acusação por crime de injúria a expressão «sabia que a sua conduta era proibida e punida» e TRL, de 10mar2022 (processo 8467/19.7T9LSB.L1), em que faltava expressão equivalente à anterior num crime de difamação, decidiu-se que as acusações deviam ser rejeitadas precisamente por adesão à fundamentação do acórdão uniformizador acima referido.

Trata-se, porém, de jurisprudência que não é pacífica e que talvez nem seja maioritária. No acórdão TRE, de 19dez2019 (processo 219/18), considerou-se que a falta de narração do facto «falta de consciência da ilicitude» não inviabilizava a condenação por crime de coação. No acórdão TRE, de 26out2021 (processo 89/98.0TBELV.E1), decidiu-se que a omissão do facto «bem sabia o agente que a sua conduta era proibida» não era imprescindível para a imputação de um crime de dano. E no acórdão TRE, de 22fev2023 (processo 11/21.2PBFAR.E1), entendeu-se que a falta de idêntica expressão não impedia a condenação por crime de ameaça.

Estas acórdãos mostram que a jurisprudência tende a fazer uma interpretação restritiva (ou, talvez melhor, distintiva) do acórdão uniformizador 1/2015, afastando-se da construção clássica e separando a falta de alegação dos factos relativos ao dolo e ao conhecimento da ilicitude.

Como visto acima, a acusação imputa aos arguidos terem atuado «bem sabendo que tal conduta não lhes era permitida». No despacho recorrido considerou-se que essa imputação não equivalia no seu significado à outra, tida por necessária, de “os arguidos terem atuado sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”, pois a mera referência a uma conduta não ser permitida pode levar a equacionar proibições civilísticas ou deontológicas e não penais. Bom, esta objeção, a ser válida, acabaria por inviabilizar uma grande parte das acusações deduzidas pelo Ministério Público, em que se usam fórmulas como “atuou com consciência da ilicitude”, “atuou ciente da proibição legal”, “sabendo que a conduta era proibida”, ou outras equivalentes em que não se faz referência expressa à lei penal.

A interpretação e aplicação da lei no despacho recorrido não está correta. Na acusação alega-se que o único propósito dos arguidos foi difamar o assistente (26), que, ao procederem assim, praticaram um crime (28) e que atuaram bem sabendo que tal conduta não lhes era permitida (27). Não vemos que possa haver dúvida sobre a imputação de uma ação com consciência da ilicitude penal. Atuar sabendo que uma conduta não é permitida é o mesmo que atuar sabendo que a conduta é proibida. E se os arguidos estão acusados de um crime (e não de infração disciplinar ou ilícito civil) não podem ter qualquer dúvida sobre a natureza da proibição cujo conhecimento lhes é imputado. Daqui não pode deixar de resultar que o assistente lhes imputou uma actuação que eles sabiam ser violadora da lei penal, o que equivale a dizer que atuaram conscientes dessa ilicitude. É este o significado evidente daquela imputação e não pode ser outra a interpretação que lhe é dada. Daí resulta que tal imputação é um tema viável que permite chegar à condenação em julgamento. Não há qualquer violação dos direitos de defesa dos arguidos pois o facto é suficientemente claro para permitir o exercício de um contraditório efetivo.

Verifica-se, assim, em conclusão, que a acusação não está ferida de nulidade por falta de narração dos factos que fundamentam a imputação do crime.

Desta maneira fica prejudicada a necessidade de analisar o pedido subsidiário, de o assistente ser notificado para suprir a nulidade da acusação. De todo o modo, sempre se dirá que essa possibilidade estaria afastada pelo acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 7/2005, de 12MAI2015 (DR 212, série I, de 4NOV2015), em que se decidiu que «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

O recurso é procedente.

4. Decisão

Pelo exposto, acordamos em julgar o recurso procedente e em consequência decidimos revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que não considere a acusação nula por falta dos elementos previstos no artigo 283º nº 3 al. b) do CPP.

Não há lugar ao pagamento de custas.

Évora, 25 de junho de 2025

Manuel Soares

Francisco Moreira das Neves

Mafalda Sequinho dos Santos