CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
MORA NO PAGAMENTO DA RENDA
OBRAS DE CONSERVAÇÃO
INCUMPRIMENTO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
ABUSO DE DIREITO
Sumário

Sumário:
I – A mora no pagamento da renda, pelo tempo estabelecido na lei, constitui incumprimento fatal do inquilino gerador na esfera jurídica do senhorio do direito potestativo a poder resolver o contrato de arrendamento (artigo 1083º, nº 2, início, do Código Civil).
II – No contrato de arrendamento para habitação, o sinalagma relevante dos vínculos das partes centra-se na obrigação de proporcionar o gozo residencial da casa, no lado do senhorio (artigo 1031º, alínea b), do CC), e na obrigação de pagar a renda, no lado do inquilino (artigo 1038º, alínea a), do CC).
III – A verificação do incumprimento da obrigação em realizar obras de conservação, que carrega sobre o senhorio, não é, só por si, suficiente para permitir concluir que, por causa das anomalias no arrendado, não debeladas, aos inquilinos foi subtraído o seu gozo residencial.
IV – Nessa circunstância, não é lícito, ao inquilino, sustar o pagamento total da renda, nem lhe é facultado poder validamente invocar a excepção de não cumprimento do contrato (artigo 428º, nº 1, do CC).
V – Não configura uma situação de abuso de direito (artigo 334º do CC), o accionamento da resolução do arrendamento, após uma década de não pagamento total das rendas, sob a invocação da carência de obras, que nunca se realizaram, sem interpelação do senhorio para as pagar, mas mantendo os inquilinos a sua residência no locado.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório

1. L…, «na qualidade de cabeça-de-casal da herança de A… », propôs acção declarativa contra F… e esposa L…, a pedir (1.º) a resolução do contrato de arrendamento, relativo à casa da Rua … nº …, .. esquerdo, na …, e a condenação dos réus (2.º) na sua desocupação imediata e no pagamento (3.º) das rendas em atraso, de 10.400,00 €, e (4.º) em indemnização, pelo valor mensal da renda, por cada mês de ocupação indevida (17.11.2023).
Em síntese, e ao que sobretudo interessa; alegou que os réus são inquilinos habitacionais do locado, por contrato de 1 de Outubro de 1975, com a renda de 160,00 € mensais; e senhoria a herança de A… . As rendas deixaram de ser pagas, desde 2013; cifrando-se as que estão em atraso, desde Maio de 2018, no valor dos peticionados 10.400,00 €.
Os réus contestaram; (1.º) concluindo que a acção é improcedente; e (2.º) pedindo a condenação do autor a pagar-lhes uma indemnização de 18.978,36 €, e juros desde a notificação da contestação (27.12.2023).
E disseram. (1.º) A partir de finais de 2013, o locado começou a padecer de infiltrações do telhado e fachada, humidade e bolores, nas paredes e no tecto, com maus cheiros e apodrecimento do pavimento; advertido o senhorio, nada fez; ficando o arrendado sem habitabilidade condigna, em especial na divisão da sala; e, neste cenário, suspenderam o pagamento da renda. Com o estado da casa, e sem obras, o senhorio mais não reclamou rendas; contexto que se manteve durante quase 10 anos. E só em Abril de 2022, as reclamou. Entretanto, as humidades e os bolores prejudicaram a saúde, e produziram dano a bens dos réus. Ocorre a excepção de não cumprimento; que impede a resolução do contrato de arrendamento.
Por outro lado; se assim não for; (2.º) agiu o senhorio durante cerca de 10 anos por forma a criar nos réus a convicção de que, não realizando as obras, também não exigia as rendas. Sendo, portanto, abusivo, e ilegítimo, o accionamento da resolução.
O incumprimento das obras (3.º), os bolores e humidades, causaram estragos nos bens do casal, prejudicam-lhes a saúde, geram-lhes ansiedade e angústia; danos (não patrimoniais) que representam um valor mínimo de 5.000,00 €, para cada um dos réus.
Por outro lado, e ainda; (4.º) em finais 1999, empreenderam na casa, após obtida a autorização do senhorio, essenciais obras de conservação; gastando 8.978,36 €, em benfeitorias necessárias ou, pelo menos, úteis, e de que se querem ver ressarcidos.
Registam, por fim, ter feito o depósito da renda vencida em Dezembro de 2023.
O autor replicou (1.4.2024).
O arrendado (1.º) tem condições de habitabilidade; e jamais os réus reclamaram junto ao senhorio que aí fizesse obras necessárias ou urgentes.
Aproveitaram, ao invés, os réus, (2.º) condicionantes conexas para se subtraírem a pagarem as rendas durante o largo período decorrido.
A isto acresce (3.º); a prescrição do crédito de obras; e do crédito indemnizatório.
Em todo o caso; a feitura de obras exigia autorização escrita, que não houve.
São obras voluptuárias; e, além do mais, indemonstradas.
Como indemonstrados, ainda, quaisquer pressupostos indemnizatórios.
Em síntese; (1) não opera a excepção de não cumprimento; (2) não opera o abuso de direito; e, (3) na reconvenção, (3.1) opera a excepção da prescrição ou, ao menos, (3.2) a improcedência do pedido valor de obras, (3.2.1) não autorizadas ou (3.2.2) voluptuárias, e, por falta de prova, também, (3.3) a improcedência da indemnização.

2. O senhor juiz a quo proferiu a sentença final (13.1.2025).

2.1. Julgou a acção procedente [recusou; (1.) a excepção de não cumprimento; e (2.) o abuso de direito] e a reconvenção parcialmente procedente [recusou; (1.) o crédito por benfeitorias e prejudicado o tema da sua prescrição; e (2.) a prescrição da reparação por danos (não patrimoniais)] e:
(1.º) declarou a cessação do contrato de arrendamento da casa da Rua … nº …, … andar esquerdo, por resolução;
(2.º) condenou os réus à sua entrega ao autor;
(3.º) condenou os réus a pagarem ao autor as rendas, vencidas entre Maio de 2018 e 17 de Novembro de 2023, no valor de 10.400,00 €, e todas as vencidas a seguir, no montante mensal de 160,00 €, até ao trânsito em julgado;
(4.º) condenou os réus, após trânsito, a pagarem ao autor o montante de 160,00 € por cada mês de ocupação, até efectiva entrega;
(5.º) e condenou-os em juros moratórios.
(6.º) condenou « o autor […] na qualidade de cabeça-de-casal », a pagar ao réu marido uma indemnização de 3.000,00 € e à ré esposa uma indemnização de 3.000,00 €, a título de danos morais; e nos juros moratórios « a contar desde a notificação da contestação (24.2.2024) ».

2.2. A sentença discriminou os factos provados com a seguinte ordem e redacção.

1. Encontra-se inscrita pela apresentação 34 de 1961/10/25, a aquisição, com por compra, a favor de A…, casado com L…, do direito de propriedade sobre prédio urbano situado na Rua …, lotes …-A e …-B, descrito na Conservatória do Registo Predial da … sob o número 2…, da freguesia da B…, composto por terreno para construção com a área de 671,50m2, que confronta a norte com C…, do sul com F…, do nascente com M… e a poente com Rua …, no qual foram construídos dois edifícios: edifício composto de cave com 4 fogos, rés-do-chão e sete andares, tendo o último piso (7.º andar) 2 fogos e cada um dos restantes 3 fogos, ocupa a área coberta de 204,49m2 e tem um logradouro com a área de 193,55m2, está situado na Rua …, lote …-A - artigo … . Edifício composto de cave com lados direito e esquerdo, rés-do-chão com uma loja, rés-do-chão também com lados direito e esquerdo, primeiro a sexto andares com lados, direito, esquerdo e frente e sétimo andar apenas com lados direito e esquerdo, com a área coberta de 204,49m2 e tem um logradouro com 68,97m2, está situado na Rua …, Lote …-B, artigo … .
2. No dia 1 de Setembro de 2015, no Cartório Notarial de …, foi exarado um escrito denominado Documento Autêntico Europeu Escritura Pública Habilitações de Herdeiros, no qual L…, declarou perante a notária, na qualidade de cabeça-de-casal, que A… faleceu intestado no dia 17 de Julho de 1992, tendo deixado com únicos herdeiros o cônjuge sobrevivo L… e dois filhos, L… e A… . Declarou ainda ter L… falecido intestada a 4 de Março de 1995, tendo deixado com únicos herdeiros ose dois filhos, L… e A… . Por fim, declarou que A… faleceu intestado a 18 de Dezembro de 2008, tendo deixado como único e universal herdeiro o seu irmão L… .
3. Em documento escrito e assinado datado de 1 de Outubro de 1975, A… , na qualidade de senhorio, e F…, na qualidade de inquilino, declararam ajustar entre si o arrendamento do 4.º esquerdo do prédio da …, Rua …, lote …-A, freguesia da …, para habitação exclusiva do inquilino, pelo prazo de 6 meses, com início a 1 de Outubro de 1975, sucessivamente renovado por iguais períodos e nas mesmas condições, estipulando-se a renda mensal de mil e seiscentos escudos, a ser pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquela a que a renda disser respeito.
4. Ficou a constar no artigo 5.º do acordo referido em 3., a seguinte cláusula:
Não poderá o inquilino fazer quaisquer obras sem prévia licença escrita do senhorio, nem alegar retenção, nem pedir indemnização por benfeitorias voluptuárias ou úteis, ou por montagem de instalações eléctricas nem levantar as que fizer na casa, as quais só poderão ser executadas com autorização escrita do senhorio; ficando este com a faculdade de fazer quaisquer obras em benefício da casa, sem necessidade de autorização do inquilino.
5. Os réus habitam na fracção desde a data referida em 3., denominando-se actualmente a morada na Rua …, n.º …, … esquerdo.
6. Por força do procedimento de actualização extraordinária da renda ocorrido em Dezembro de 2013, a renda é actualmente de 160 euros mensais.
7. Os réus receberam de L… uma carta datada de 6 de Março de 2013, com o assunto Alteração de morada – N.º Conta, onde consta, além do mais, o seguinte:
Comunico a V. Ex.ª que, por motivos profissionais e pessoais, toda a correspondência, no futuro, deverá ser enviada para: Rua da …, n.º …, …, …D. Por motivos de força maior, as rendas deverão ser depositadas ou transferidas para uma nova conta no Banco Espírito Santo, a qual se encontra no nome da minha esposa C…, anexando um documento a esta carta, com os respectivos números. (…). Solicito que me indique um número para contacto e se possível o respectivo e-mail. Os mesmos poderão ser-me enviados para o meu e-mail por sms. Caso necessite dos recibos, os mesmos poderão ser enviados por e-mail.
No rodapé da carta ficou ainda a constar o seguinte:
Rua da …, n.º…D, …, …, E-mail ….. Telm 9…0.
8. Na sequência de carta de advogado em nome do autor, datada de 18 de Fevereiro de 2014, a interpelar o pagamento das rendas relativas aos meses de Novembro de 2013 a Março de 2014, os réus, representados por advogado, enviaram ao advogado do primeiro um fax datado de 14 de Abril de 2014, a comunicar ter procedido ao pagamento da renda em 8 de Novembro de 2013 e que se propõem pagar duas rendas em cada um dos meses seguintes e ainda que:
Sucede que chove no andar, existe o risco de curto circuito e incêndio de electricidade, a pintura, o reboco das paredes e tectos está a desfazer-se, as madeiras estão a degradar-se, os móveis das divisões estão resguardados com plásticos, a água que entra é recolhida em recipientes, conforme fotos que foram entregues. (…).
5. O meu cliente avisou o seu cliente da necessidade de reparar as infiltrações existentes na fracção, repetidamente, mas aquele nada fez até à data.
6. Deste modo, aguardo as suas notícias sobre as reparações urgentes no andar arrendado (…).
9. Desde data não concretamente apurada, mas desde o ano de 2014, têm ocorrido infiltrações de água pelas paredes e tectos da sala da fracção dos réus, que causam humidade e bolor e maus cheiros, o que fez com que os inquilinos, desde em data não concretamente apurada, tenham deixado de usar aquela divisão. No ano de 2022, foi reconhecida por autoridade de saúde a situação de insalubridade da sala.
10. O autor nunca realizou obras de conservação na fracção dos réus.
11. O autor, representado por advogado, enviou ao réu F…, que a recebeu, uma carta registada datada de Abril de 2022 a exigir o pagamento das rendas referentes aos meses de Outubro de 2015 a Abril de 2022. Em resposta, o réu, representado por ilustre advogada, declara, além do mais, que o pagamento da renda não foi efectuado por falta de realização de obras no prédio do arrendado necessárias à reposição das suas condições de habitabilidade.
12. O autor, representado por advogado, enviou aos réus, que as receberam a 16 de Janeiro de 2023, cartas registadas com aviso de recepção com o assunto Interpelação para pagamento de rendas em atraso, declarando, na carta enviada ao réu marido, interpelar V. Ex.ª para que proceda ao pagamento das rendas referentes aos meses de Outubro de 2015 a Janeiro de 2023, conforme contrato de arrendamento celebrado entre as partes. (…) Sucede, porém, que V. Ex.a não pagou a renda mensal referente aos meses supra mencionados a que esta obrigada, não tendo igualmente efectuado qualquer depósito liberatório, pelo que, encontrando-se em dívida a quantia de €14.080,00 (catorze mil e oitenta euros) referente ao valor das rendas em atraso, nos termos dos artigos 1038.º alínea a) do Código Civil (…).
13. Em data não concretamente apurada do ano de 2023, ocorreu uma inundação no apartamento sito no 5.º esquerdo, o que fez com que se infiltrasse água através do tecto do locado, na zona da casa de banho e do quarto de dormir dos réus, assim como se verificaram estragos no tecto falso da casa de banho.
14. O réu F… nasceu a 19 de Outubro de 1951 e a ré L… a 14 de Maio de 1954.
15. F… é portador de doenças que lhe confere uma incapacidade permanente global de 75%.
16. Os réus depositaram na Caixa Geral de Depósitos, à ordem dos presentes autos, o montante de 160,00 euros, a título de renda referente ao mês de Dezembro de 2023.
17. No ano 2000, os réus procederam à substituição dos móveis e electrodomésticos da cozinha, assim como a substituição do revestimento na cozinha e casa de banho e substituição do lavatório da casa de banho, com armário incorporado, tendo gasto, pelo menos, 4.266,54 euros.
18. Em consequência das patologias que atingem a fracção que habitam, os réus têm sentido mau estar, tristeza, ansiedade e, até, angústia e perturbações no sono.

2.3. E discriminou como factos não provados.

a. Sem prejuízo do facto referido em 16., os réus pagaram as rendas que se venceram a partir de Dezembro de 2013.
b. Os réus solicitaram à Câmara Municipal de … intervenção perante o mau estado de conservação do locado.
c. Os réus comunicaram ao autor que, perante a situação de infiltração de água na fracção, suspendiam o pagamento das rendas.
d. Sem prejuízo das comunicações referidas em 8. e 11., os réus têm vindo a insistir perante o autor a realização das obras.
e. A insalubridade do locado tem vindo a agravar o estado de saúde dos réus, em especial no respeita aos efeitos nas vias respiratórias.
f. As infiltrações têm causado o aparecimento de bolores em mobiliário, cortinados, almofadas, cobertores e roupas, entre outros objectos.
g. A saúde dos réus tem-se vindo a agravar pelo facto de o autor, desde início de 2023, estar a realizar obras noutros apartamentos do edifício, causando ruídos e acumulação de poeiras e pelo facto de permitir que nesses apartamentos residam diversos imigrantes que aí pernoitam em beliches, como um hostel, provocando ruídos de intensidade superior à que seria normal para as condições de habitabilidade desse edifício.
h. No ano de 1999, por falta de conservação, o mobiliário e sanitários da cozinha e casa de banho estavam podres e partidos, em especial nas dobradiças, estando a pia da cozinha partida, o que causava infiltrações de águas no piso inferior.
i. As janelas e os estores estavam degradados, necessitando de restauro ou substituição.
j. A canalização de águas apresentava canos de ferro em elevada corrosão e o contador eléctrico não suportava uma potência adequada ao normal consumo doméstico e com falta de tomadas em todas as divisões para utilização dos utensílios e electrodomésticos modernos.
k. A pintura de tectos e de paredes estava deteriorada, os revestimentos cerâmicos partidos e o pavimento em madeiro podre, necessitando de substituição.
l. Em Setembro de 1999, o réu marido pediu ao autor autorização para fazer obras no arrendado, o que ele aceitou.
m. Os réus realizaram obras para reparação das patologias descritas, designadamente, substituição do revestimento do hall de entrada e de um quarto, em cerâmica; substituição do pavimento nos dois quartos, em tacos de madeira afagado e envernizado; substituição de janelas em 3 divisões (dois quartos e cozinha); colocação de um estore num quarto, que não tinha estore; colocação de tectos falsos no wc e no hall de entrada, uma vez que tecto original estava extremamente deteriorado; colocação de divisória/resguardo junto à porta do hall de entrada, para evitar a entrada de poeiras e ventos provindos das escadas do edifício e para privacidade dos RR., uma vez que de frente à porta de entrada no arrendado está a porta da casa-de-banho, o que se revelava constrangedor quando os RR. abriam a porta do arrendado a visitas; substituição da canalização de água quente e fria e da instalação eléctrica interior e exterior, despendendo o valor total de 8.978,36 euros.
n. A ré L… sofre de colesterol, tensão alta, insónias e outras patologias, tendo sido recentemente sujeita a cirurgia por doença cancerígena. O filho tem sofrido dificuldades ao nível respiratório.

3. Os réus não se conformaram com a sentença; e interpuseram recurso.

3.1. Esquematizaram assim as conclusões da sua alegação.

a. Impugna-se a decisão proferida em 16 dos factos provados e a) dos factos não provados, porquanto, desde Dezembro de 2023, os apelantes têm vindo a efectuar, todos os meses, o depósito da renda à consignação, por virtude da lei, apesar de estarem dispensados de apresentar nos autos o respectivo comprovativo, nos termos do citado artigo 20º, do NRAU.
b. Ainda que o Tribunal a quo tivesse dúvidas sobre os depósitos subsequentes, deveria ter solicitado aos apelantes esclarecimento sobre essa matéria e/ou ordenado a junção aos autos dos comprovativos desses depósitos posteriores àquele depósito inicial que juntou na contestação, nos termos do artigo 611º, do C.P.C.
c. Ao não o fazer, o Tribunal a quo fez um incorrecto julgamento da matéria de facto relativa às rendas vencidas na pendência da acção e até ao trânsito em julgado da decisão definitiva sobre essa matéria.
d. Atendendo ao alegado no artigo 61º da contestação, ao documento junto a esse articulado sob o nº 36, e ao disposto nos artigos 17º a 20º, do NRAU, requer-se seja alterada a alínea 16) dos factos provados, nos seguintes termos:
Os réus abriram conta de depósito em consignação, na Caixa Geral de Depósitos, à ordem dos presentes autos, para depósito das rendas na pendência da presente acção de despejo, sendo o primeiro depósito no montante de 160,00 euros, referente ao mês de Dezembro de 2023
e. Ou, caso se entenda não permitirem os autos concluir por tal decisão, requerem os apelantes que lhes seja ordenado, pelo Tribunal a quo ou pelo Tribunal ad quem, que juntem aos autos comprovativo dos depósitos subsequentes ao inicial, para os efeitos previstos no artigo 611º, do C.P.C.
f. Relativamente a 9. dos factos provados, requer-se seja aditado que
desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o início do ano de 2022, também a casa de banho da fracção o réu apresentava tectos com humidades e bolores
g. Tal facto foi alegado no artigo 11º da contestação e resulta demonstrado através do depoimento da testemunha E…, […], das fotografias juntas como docs. nºs 10, 11 e 12 na contestação, e das declarações de parte do apelante F…, […].
h. Mais se requer sejam aditados à matéria de facto julgada provada, e na sequência do que consta do ponto 12, o que resultou alegado nos artigos 16º a 22º da contestação, no sentido de que
Entretanto, e ao longo os anos, os RR. não pagaram as rendas porque ficaram a aguardar que o A. realizasse obras no arrendado, e o A., por sua vez, também não lhes exigiu o pagamento dessas rendas
i. Resultando tal factualidade demonstrada através do depoimento da testemunha C…, […], e da testemunha E…, […]; e das declarações do Réu F… em depoimento de parte, […].
j. Já o depoimento de parte prestado pelo Autor revela-se inverosímil, ao dizer que nunca teve conhecimento de que o arrendado sofria infiltrações, que necessitava de obras, e que existiam infiltrações no edifício; também não se revela credível que não tenha tido conhecimento de qualquer queixa e que apesar de não receber rendas durante anos, não interpelando os réus para o pagamento; não se afigura verosímil que só no Tribunal, volvidos 10 anos é que, tenha o A. afinal, tomado conhecimento das infiltrações, nunca se tendo dignado a visitar o arrendado – […].
k. Mais disse o A. que contratou advogado para cobrança das rendas, Sr. Dr. L…, que tratava dos assuntos do autor; porém, questionado sobre se tomou conhecimento da resposta dada pelo advogado dos RR., o Sr. Dr. A…, já o negou – […].
l. Mantendo o A. a mesma postura de alegação de desconhecimento no que respeita à resposta que a mandatária dos RR. enviou à sua mandatária no ano de 2022 – doc. nº 20 junto com a contestação – […].
m. Disse o autor que esteve ausente e alheado dos assuntos do arrendado; contudo, […] [n]as declarações de parte acabou por resultar que apenas esteve ausente de Portugal pelo período de 1 ano, entre 2015 e 2016, e que teve muitas conversas com outros inquilinos.
n. Relativamente ao facto julgado não provado em b) da decisão recorrida (os réus solicitaram à Câmara Municipal de … intervenção perante o mau estado de conservação do locado) este resulta demonstrado através do documento apresentado com a contestação sob o nº 25, pelo que se requer que seja julgado provado.
o. Relativamente a c) e d) dos factos julgados não provados, requer-se que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que julgue provado que
os réus comunicaram ao autor que, perante a situação de infiltração de água na fracção, suspendiam o pagamento das rendas
e que
os réus têm vindo a insistir perante o autor a realização das obras”, porquanto resulta da prova documental junta aos autos - docs. nºs 15 e 16 juntos com a contestação, correspondência trocada entre mandatários das partes no ano de 2014; docs. nºs 17 e 20 juntos com o mesmo articulado, bem como da correspondência trocada entre mandatários no ano de 2021; e documento junto no requerimento dos RR. de 07/06/2024, no âmbito de injunção em matéria de arrendamento requerida pelos RR. em 2024.
p. Ficou evidente do depoimento de testemunhas que os RR. deixaram de pagar rendas porque não eram efectuadas obras no seu arrendado por banda do A. – nesse sentido, vide o depoimento da testemunha A…, […] e da testemunha P…, […].
q. Aliás, não se encontra no processo qualquer documento escrito onde o senhorio conteste a necessidade de realização de obras ou mencione que já as executou, sendo certo que este confessou, em depoimento de parte, que desde o início do arrendamento, nunca foram executadas obras no arrendado – vide facto julgado provado em 10.
r. O Tribunal a quo julgou não provado que
f) As infiltrações têm causado o aparecimento de bolores em mobiliário, cortinados, almofadas, cobertores e roupas, entre outros objectos”,
quando tal resultou do depoimento prestado pela testemunha P… […], pela testemunha A… […], pela testemunha E… […], e também foi afirmado pelo R. F…s em declarações de parte – […].
s. É aliás o que decorre das regras da experiência e senso comum, atendendo ao estado em que se encontravam as paredes e tectos do arrendado, reproduzido nas fotografias juntas aos autos – vide docs. nºs 7 a 12 juntos com a contestação - pelo que se requer que o Tribunal julgue o facto em causa como provado.
t. O Tribunal a quo julgou não provado que
g) a saúde dos réus tem-se vindo a agravar pelo facto de o autor, desde início de 2023, estar a realizar obras noutros apartamentos do edifício, causando ruídos e acumulação de poeiras e pelo facto de permitir que nesses apartamentos residam diversos imigrantes que aí pernoitam em beliches, como um hostel, provocando ruídos de intensidade superior à que seria normal para as condições de habitabilidade desse edifício”.
u. Porém tal facto foi confirmado através do depoimento das testemunhas P…, […], e E…, […] da respectiva gravação, pelo que se requer que, também no que respeita a tal facto, seja alterada a decisão recorrida, sendo o mesmo julgado provado.
v. O mesmo se requerendo no que respeita aos factos que ficaram a constar nas alíneas h), i), j), k) e m) que o Tribunal a quo julgou não provados, pois a sua veracidade decorre das declarações de parte do R. F… […] e resulta, aliás, das regras da experiência e senso comum, considerando que, pelo menos desde o início do arrendamento, em 1975, o A. nunca realizou qualquer obra no arrendado, sendo o prédio de construção anterior a 1961 – vide ponto 1 dos factos provados.
w. Tendo a testemunha A… confirmado ter visto os tacos em madeira deteriorados, e verificado que os réus fizeram obras no chão em cerâmica / mosaico da cozinha e hall de entrada do arrendado […].
x. Não foi produzida qualquer outra prova que pudesse pôr em causa essa prova testemunhal e decorrente de declarações de parte, pelo que se requer seja julgada pelo Tribunal como provada.
y. O Tribunal a quo julgou não provado que
l) Em Setembro de 1999, o réu marido pediu ao autor autorização para fazer obras no arrendado, o que ele aceitou”.
z. No que respeita a este facto, as declarações prestadas pelo A. e pelo R. foram contraditórias; contudo, através da audição do que foi declarado por ambos e do recurso às regras da experiência e senso comum, entendem os RR. ter demonstrado que o A. autorizou o réu F… a realizar obras, em reunião havida no escritório daquele, na R…; nesse sentido, vide as declarações de parte do réu F…, […].
aa. O declarado pelo Autor no âmbito das declarações de parte revela-se inverosímil, alegando que apesar do arrendado, desde a construção do edifício, nunca ter sido objecto de quaisquer obras, nunca foi interpelado pelos RR. para fazer obras, nem nunca autorizou que fossem feitas obras pelos RR., e que desde 1975 até ao julgamento, não se recorda de alguma vez a ter interagido com os RR., de ser terem encontrado […].
bb. Pelo que se requer seja julgado provado que
Em Setembro de 1999, o réu marido pediu ao autor autorização para fazer obras no arrendado, o que ele aceitou”.
cc. No que à decisão de direito diz respeito, não podem os apelantes concordar com o Tribunal a quo quando declarou a cessação do contrato de arrendamento em causa nos autos, condenando os apelantes a entregar o respectivo arrendado ao autor, devoluto e livre de pessoas e bens.
dd. Resultou demonstrado que o contrato de arrendamento teve o seu início a 01/10/1975, e que o senhorio nunca aí realizou quaisquer obras de conservação; decorridos quase 50 anos de vigência do contrato, não faz sentido a conclusão de que apenas numa sala seria necessária a realização de obras de conservação, para que fixasse proporcionado aos apelantes o gozo pleno do arrendado, como é sua obrigação.
ee. Eventualmente, os apelantes apenas conseguiram demonstrar a total insalubridade de uma sala, pelo menos, desde o ano de 2014, mas nessa data o restante arrendado também não tinha sido objecto de qualquer obra de conservação por banda do senhorio há quase quatro décadas.
ff. Em Dezembro de 2013, quando os apelantes suspenderam o pagamento das rendas ao senhorio, já havia decorrido 38 anos da entrega do arrendado, sem que o senhorio tivesse feito qualquer obra.
gg. Salienta-se a obrigação do senhorio, na qualidade de proprietário do arrendado de efectuar obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético – artigo 89º, nº 1, do Decreto-Lei n.º 555/99.
hh. Nos termos do artigo 428º, nº 1, do Código Civil, “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
ii. O facto de os inquilinos continuarem a residir no arrendado, apesar de não ser alvo de obras de conservação há quase 50 anos, não significa que não estejam privados do gozo pleno do arrendado, significa que têm sofrido efectivamente tal privação, uma vez que, mesmo se deixassem de aí residir, o senhorio não iria realizar obras para depois lhe permitir regressar e retomar o arrendamento.
jj. Entendendo os RR. que lhes assistiu o direito de invocar a excepção de não cumprimento para suspender o pagamento das rendas pelo que o Tribunal a quo, ao decidir diferentemente violou a regra que decorre do citado artigo 428º, nº 1, do Código Civil.
kk. Sem conceder, ainda que assim se não entenda, sempre se dirá que o exercício do direito à resolução do contrato pelo senhorio é manifestamente abusivo.
ll. Decorre dessa matéria de facto que os RR., legitimamente, criaram a convicção de que o A., enquanto não realizasse as obras de que o arrendado carecia, também não lhes ia exigir o pagamento das rendas.
mm. A actuação do A., de vir agora invocar a mora no pagamento de rendas e proceder à resolução do contrato de arrendamento, sem realizar quaisquer obras no arrendado durante cerca de 10 anos de infiltrações de águas, de humidades, bolores e maus cheiros, é manifestamente abusiva.
nn. De facto, o A. age em abuso de direito, nas modalidades de venire contra factum proprium e de suppressio, porquanto, depois de se ter abstido durante 10 anos de realizar obras no arrendado e de exigir o pagamento da renda mensal, veio em Janeiro de 2023 exigir o pagamento dessas rendas, tendo dois meses depois, resolvido extrajudicialmente o contrato de arrendamento com fundamento na mora no pagamento dessas rendas e, um mês depois, intentado despejo em processo urgente, apesar de nenhuma obra ter feito no arrendado e de saber ser esse o motivo pelo qual os RR. suspenderam o pagamento das rendas.
oo. Os RR. confiaram legitimamente que o A. não iria fazer cessar o contrato de arrendamento e avançar com acção de despejo; contavam os RR. com um comportamento do A. consentâneo com a boa fé nas relações contratuais, que seria o de realizar obras no arrendado para que o mesmo voltasse a ter as condições mínimas de habitabilidade e salubridade, para depois exigir dos RR. o pagamento da respectiva renda.
pp. É, assim, manifestamente abusiva a actuação do A. em pedir o despejo do arrendado onde os RR. habitam há quase 50 anos, invocando o exercício do direito à resolução com fundamento numa suposta mora no pagamento de rendas desde Outubro de 2015.
qq. Nos termos do artigo 334º, do Código Civil, “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
rr. Termos em que pedem os RR. que seja declarado ilegítimo, porque abusivo, o exercício, pelo A., do direito de exigir o pagamento das rendas peticionadas, bem como o direito à resolução do contrato de arrendamento em causa nos autos, e consequente direito de exigir dos RR. a desocupação imediata do arrendado, livre de pessoas e bens, quando nada fez, até à data, para repor esse arrendado em condições mínimas de habitabilidade condigna, revogando-se e julgando-se a acção improcedente, por não provada.
ss. No que respeita ao pedido reconvencional de condenação do A. no pagamento aos RR. de benfeitorias, resultou da prova produzida nos autos que as benfeitorias realizadas pelos apelantes revelaram-se necessárias à conservação do arrendado, pelo que o Tribunal a quo, ao ter entendimento diferente, mal decidiu, violando o disposto nos artigos 1046º, 1273º e 216º, do Código Civil, […].
Em suma; deve a « sentença recorrida ser revogada e substituída por decisão que julgue a acção improcedente, por não provada; e procedente, por provado, o pedido reconvencional deduzido pelos apelantes, de condenação do A. no pagamento de indemnização por benfeitorias ».

3.2. O autor contra-alegou; e concluiu assim.

i. Os Recorrentes admitem expressamente que não pagaram as rendas de 2013 a 2023.
ii. Os Recorrentes não demonstraram ou provaram que existiu uma comunicação de necessidade de realização de quaisquer obras no locado até à apresentação da presente acção.
iii. Os Recorrentes sempre tiveram em sua posse o IBAN do Recorrido para o qual podiam a todo o tempo proceder ao pagamento das rendas devidas.
iv. O Recorrido teve problemas de saúde que lhe dificultaram a cobrança de rendas no período dos factos, no entanto os seus demais inquilinos sempre lhe pagaram as rendas e sabiam para onde as pagar.
v. Não se vislumbra qualquer errónea apreciação da prova produzida que justifique o presente recurso, devendo mesmo ser tido como totalmente improcedente.
vi. O Recorrido desconhece o estado do locado, nunca o visitou, nem nunca recebeu qualquer informação dos Recorrentes sobre o estado do mesmo até proceder à cobrança das rendas que lhe são devidas.
vii. O Recorr[ido] nunca autorizou qualquer obra realizada no locado.
viii. O contrato de arrendamento proíbe a realização de obras no locado pelos Recorrentes sem autorização do Recorrido.
ix. Os Recorrentes colocaram móveis e electrodomésticos no locado na viragem do milénio, o que se considera uma benfeitoria voluptuária.
x. Os Recorrentes têm o gozo do locado desde o início do contrato de arrendamento até ao presente, habitando o imóvel, demonstrando, assim a sua salubridade.
xi. Não se estabelece o nexo causal entre a deterioração da saúde dos Recorrentes e a realização de obras do Recorrido noutras fracções do imóvel.
Por conseguinte; deve manter-se a « sentença recorrida na íntegra » e ser o recurso julgado « totalmente improcedente ».

4. Delimitação do objecto do recurso.

4.1. Por princípio, e na falta de outra especificação, o recurso abrange tudo (as questões; os assuntos) o que, condicionante da parte dispositiva da sentença, seja desfavorável para o recorrente (artigo 635º, nº 3, do Código de Processo Civil).
É, contudo, possível, considerado esse universo, que as conclusões da alegação sinalizem aqueles dos segmentos, mais concretos e particulares, que se visam colocar à apreciação do tribunal superior (artigo 635º, nº 4, do mesmo código); passando então a serem apenas esses os integrantes do objecto circunscrito do recurso.
4.2. Na hipótese, as questões desfavoráveis circunscritas foram as seguintes.
1.º. Em tema de matéria de facto;
1.1; a reconfiguração de 16. dos factos provados e a. dos factos não provados;
1.2; a reconfiguração de 9. dos factos provados;
1.3; o aditamento, como provados, dos factos contidos nos artigos 16º a 22º da contestação;
1.4; a passagem a provado, do facto não provado b.;
1.5; a passagem a provados, dos factos não provados c. e d.;
1.6; a passagem a provado, do facto não provado f.;
1.7; a passagem a provado, do facto não provado g.;
1.8; a passagem a provados, dos factos não provados h., i., j., k. e m.;
1.9; a passagem a provado, do facto não provado l..
2.º. Em tema de enquadramento jurídico;
2.1; a inexistência de obras no bem arrendado, para habitação, vem privando os inquilinos do seu gozo, por molde a permitirem-lhe, sem outras consequências, o não pagamento das rendas (excepção de não cumprimento)?
2.2; a conduta do senhorio, omissiva dessas obras, associada à não exigência das rendas, não pagas, durante um largo período de tempo, torna ilegítimo o accionamento da resolução do contrato, com aquele fundamento (abuso de direito)?
2.3; os inquilinos têm o direito a ser compensados das despesas que suportaram com a introdução de melhorias no bem arrendado (benfeitorias)?

II – Fundamentos

1. A reconfiguração da matéria de facto.

1.1. São os seguintes, em breve síntese, os contornos da controvérsia em causa.
No arrendamento habitacional, o inquilino cessou o pagamento das rendas.
Como razão; a circunstância de o locado padecer de estragos, que desassossegam a utilização, como habitação, e o senhorio omitir a feitura de intervenções capazes de os debelar e fazer suprimir.
Está assumido o não pagamento das rendas (pelo inquilino).
Como o está a omissão das obras (pelo senhorio).
O eixo do mérito da causa, no de mais essencial, fixa-se em apurar acerca da virtualidade da conduta do senhorio, no confronto com a situação do arrendado; em particular, acerca da capacitação da respectiva postura para bloquear o exercício do seu direito potestativo à extinção do contrato, por resolução.
Em reconvenção, invoca-se, ainda, um direito à reparação, por benfeitorias.

1.2. Os factos provados (16. e 9.).
1.2.1. A sentença impugnada deu como não provado que os réus « pagaram as rendas » vencidas a partir de Dezembro de 2013 (a.); e como provado que depositaram a « referente ao mês de Dezembro de 2023 » (16.).
Os réus pretendem que se clarifique a situação do depósito que vêm fazendo.
(1.) Não está aqui em causa recurso em matéria de facto; porquanto não posta em crise a formação de uma convicção, a partir de prova livre (artigos 607º, nº 5, 662º, nº 1, e 663º, nº 2, final, do Código de Processo Civil).
Está abundantemente assumido, desde logo por confissão nos articulados, que as rendas não são pagas desde Dezembro de 2013 (artigo 574º, nº 2, do CPC).
(2.) O fundamento da causa extintiva de resolução quadra-se pelo incumprimento de uma das partes no contrato; significando esse (efectivo) incumprimento o essencial facto constitutivo do direito potestativo da parte lesada.
O autor (senhorio) representou positivamente que as rendas não foram pagas.
E o facto (o não pagamento) está tabelarmente (por modo pleno) provado.
Não obstante o ponto de vista, que transparece na sentença apelada, e tem apoio na jurisprudência [Acórdão da Relação de Lisboa de 30 de Maio de 2023, proc.º nº 14114/21.0T8LSB.L1-7], acerca da distribuição do ónus de prova, mesmo em acção de resolução (por incumprimento), afigura-se (mais) clarificador (e inequívoco) que se expresse, enunciando-o, esse (incontornável) facto constitutivo, ao invés de tão-só o deixar suposto, a partir de um critério (decisório) de dúvida (que é exactamente o que emerge daquele ónus).
Como tal, e por estar plenamente provado, julgamos ser de rectificar a decisão de facto, dela eliminando a alínea a. do elenco não provado e aditando ao do provado um outro (novo) facto, com a seguinte redacção:
« Os réus deixaram de pagar as rendas que se venceram a partir de Dezembro de 2013 »
(3.) Agora, propriamente a respeito do depósito e da pretensão dos réus.
O assunto não é alvo de controvérsia por parte do autor, o senhorio.
O depósito foi empreendido na pendência da acção; e com o enquadramento primordial dos artigos 14º, nº 3, 17º, nº 1, 19º, nº 2, e 20º, do Novo Regime do Arrendamento Urbano [Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro].
E não está minimamente em discussão.
Relevando – isso sim – os vínculos vencidos a montante da interposição da acção de despejo; e as vicissitudes respectivamente envolventes.
Por conseguinte, sem necessidade nesse particular de mutação na decisão.
1.2.2. A sentença centra os estragos na « sala da fracção » (9.).
Visando os réus que se considere, ao menos desde 2022, as patologias « também [n]a casa de banho da fracção ».
O tema das anomalias, na hipótese, surge sobretudo conexo com a motivação da sustação das rendas; muito anterior ao ano de 2022.
Acresce, por outro lado, que o próprio réu marido, nas declarações de parte, ligou a situação da casa de banho ao episódio da inundação com origem na fracção do 5.º andar, e narrado (já) no facto provado 13.; onde, precisamente, (já) se faz reflectir o impacto sobre a dita divisão (e também « no quarto de dormir »).
Ou seja; a redacção do facto provado 9. deve manter-se sem necessidade de outro acréscimo, por ser o aí contemplado o impactante, evidenciado na prova, e como aliás a sentença impugnada, na motivação de facto, faz pressentir.
1.3. Os factos a serem aditados (16º a 22º da contestação).
O assunto é não tanto outra vez de errónea convicção; mas outrossim de omissão de factos com interesse, e que importe aditar ao elenco da sentença.
A alegação em causa, na contestação, reflecte essencialmente (i.) a espera dos réus pela feitura das obras, (ii.) a omissão do autor no pedido das rendas e (iii.) a insistência daqueles junto deste pela realização das intervenções necessárias na casa.
A prova plena (confessória) permitiu (já) demonstrar que o autor nunca realizou obras de conservação (facto 10.). Por outro lado, é intuitivo; (i.) que o senhorio interpelou para o pagamento em Fevereiro de 2014, merecendo uma resposta em Abril seguinte (facto 8.); e que (ii.) depois só o fez em Abril de 2022 (facto 11.) e em Janeiro de 2023 (facto 12.); tudo a deixar transparecer a omissão no interregno, (1.º) do autor em interpelar – como ademais pessoalmente o confirmou, em contexto do depoimento de parte (audiência de 19.9.2024) – ou em fazer as obras, e (2.º) dos réus em pagarem a renda.
É o suficiente, que não justifica outro aditamento.
Questão (já) diferente, mas de direito, será a de saber do efeito (justificação) da conduta dos réus, perante o contexto (igualmente omissivo) de postura do autor.
1.4. Os factos ainda não provados (b.; c. e d.; f.; g.; h. a k. e m.; l.)
Os réus pretendem que se dêem como provados os factos de um largo espectro do elenco dos não provados na sentença impugnada.
E assim.
(i.) A sentença desvaloriza – e bem – o instrumento camarário de 3.2.2014, que se não refere ao edifício da casa arrendada; e que foi o documento junto para sustentar o alegado no artigo 12º da contestação, na origem do facto b..
Os réus reportam-se, agora, a outro documento, dirigido à câmara municipal; mas este num outro enquadramento; instrumental de intimação ao senhorio (artigo 36º da contestação); e que (só) veio a acontecer em 27.2.2024 (junto em 7.6.2024).
O facto b. não tem consistência probatória.
(ii.) Em Abril de 2014, os réus transmitiram ao senhorio a situação de infiltrações e, não obstante isso, propuseram-se a « pagar duas rendas em cada um dos meses seguintes » (facto provado 8.).
Em 20 de Maio de 2022, voltaram a invocar as infiltrações (facto provado 11.).
Em contexto de depoimento de parte (19.9.2024), o autor afirmou que nunca lhe haviam sido dadas informações sobre as infiltrações, e que nunca o contactaram sobre o assunto, designadamente, por forma verbal.
É o suficiente, na falta de melhor solidez, para não se poder superar alguma incerteza. Não obstante o teor da carta do facto 8., ressalta com clareza a motivação da sustação das rendas. As comunicações escritas estão evidenciadas. A insistência não está perfeitamente inequívoca, e esclarecida.
A factualidade não provada em c. e d. não carece de ser alterada.
(iii.) Obtido do artigo 32º da contestação, a sentença julgou não provados os danos em objectos causados pelas infiltrações (facto f.); e refere que « os próprios réus reconhecem que deixaram de usar o divisão afectada ».
Não se pressente consistência suficiente capaz de, aqui, alicerçar melhor prova.
A creditação das testemunhas A… e P… (26.9.2024) não é particularmente sólida; um e outro, amigos e visitas meramente pontuais da casa dos réus, e com centralidade narrativa acerca da situação do espaço (da sala, sobretudo).
Já a testemunha E… (29.10.2024), também inquilina do 1.º andar frente do edifício, há mais de cinco décadas, evidenciou curta neutralidade, fez pressentir algum desassossego no confronto com o seu senhorio; e de qualquer maneira pouco mais adiantou do que um episódio de « sacos de lixo » que a ré esposa lhe terá dito ser de bens « podres que apanh[aram] água ».
O agregado da prova não suporta uma convicção positiva bastante para o facto f..
(iv.) Obtido do artigo 34º da contestação, também se não provou o agravamento do estado de saúde dos réus, por obras noutros apartamentos, ruídos, poeiras, pernoita em beliches de hostel, tudo em perda das condições de habitabilidade no edifício.
A sentença julgou incerta, conclusiva, a situação; e a causalidade pretendida.
Nota-se que a problemática agora é marginal à da carência de obras na fracção arrendada; por conseguinte, em desvio do nexo negocial originário pendente entre (i.) a dívida da renda e (ii.) a dívida de reparação das (impactantes) infiltrações interiores.
Em todo o caso; sem se encontrar nos depoimentos das testemunhas, que os réus indicam, para este efeito, o P… ou a E…, aquela clarividência firme e segura capaz de uma certificação do real estado de facto afirmada. Menos ainda, como refere a sentença, algum tipo de laço (ou ligação) causal (negativo) com a saúde dos réus.
O facto g., não provado, deve ser mantido.
(v.) A sentença julgou, ainda, não provado; a alegação dos artigos 51º a 55º da contestação; que, no ano de 1999, por falta de conservação, havia estragos na cozinha e casa de banho (h.), nas janelas e estores (i.), na canalização e instalação eléctrica (j.), na pintura, revestimentos e pavimento (k.).
E julgou não provado; a alegação no artigo 57º da contestação; a realização de um conjunto de obras, de reparação dessas patologias, a cargo dos réus, com um custo de 8.978,36 € (m.).
Sobre o assunto, na motivação, a sentença aponta reservas probatórias, quanto à necessidade das intervenções « para dotar a fracção de condições de habitabilidade » e quanto à respectiva feitura, acrescida à provada pelo facto 17..
Começa por impressionar o (cerca de) quarto de século transcorrido (!).
Por outro lado; a prova pessoal não permite contemplar, para este espectro ou substrato de facto, uma vocação, uma propensão, especialmente satisfatória.
Obviamente, o réu marido, nas declarações (29.10.2024), afirmou a feitura e o pagamento. E os testemunhos, sobressaindo a E… (apercebeu-se que foram feitas obras) e também o A… (viu obras que o réu lhe disse ter sido ele a fazer), deixam notas (gerais) de referência a este propósito.
Ainda assim; o ónus probatório, mesmo com as dificuldades (a retracção) do tempo (já) corrido, carregava aos réus, titulares do direito que visam detectar, por modo de convencer, com mínima minúcia, do que efectivamente teve lugar.
Não bastando para tanto o contributo do bom-senso ou experiência comum (!).
Impunha-se um apoio por outro tipo de instrumento de prova, mais convincente.
Ora, o que há, de índole documental (junto à contestação), foi devidamente valorado pelo tribunal a quo, exactamente para amparo à prova do facto 17.; quer dizer, de intervenção na cozinha e casa de banho; e não havendo outro (…).
Com a estranheza ademais de um cheque (junto; de 300.000$00; sacado ao BPN) onde, como sacador, aparece uma sociedade comercial – de automóveis (!) –; aparente, e equivocamente, alheia aos actores no arrendamento (!) [o réu marido, nas declarações (29.10.2024), e na esteira do alegara no seu articulado (artigo 57º), afirmou que pedira um empréstimo (ao BCP) para as obras em casa (…)].
Uma situação – esta; a do cheque – no mínimo, incongruente (…).
Uma incoerência que contagia o estado de necessidade da putativa intervenção.
O detalhe, que as alíneas dos factos não provados h. a k. reflectem, não permite a compatibilidade com depoimentos (pessoais) vagos, mais ou menos indistintos; ao menos, como alicerce para uma (consciente) convicção judiciária, de virtualidade a poder sustentar direitos substantivos.
Ou seja; sem merecer reparo a dúvida acerca dos factos h. a k. e m..
(vi.) Por fim; os réus alegaram que, em Setembro de 1999, o autor consentiu nas obras (artigo 56º da contestação); facto que a sentença julgou não provado (l.); « face à contradição das versões apresentadas ».
E julgou, aqui também, bem.
À margem, mesmo, de uma autorização escrita, assumidamente inexistente, mas que era essencial na hipótese, por ter sido consensualmente acordada (cláusula 5.ª do contrato de arrendamento), as declarações de parte, do réu marido (29.10.2024) e do autor (19.9.2024), são, a esse pretexto, perfeitamente inconciliáveis; verbalizando o 1.º, que falou com o senhorio no escritório dele (se podia fazer as obras) e que ele o autorizou (« aquilo é vosso, vocês podem fazer o que quiserem »); negando o 2.º que alguma vez o haja feito (nunca autorizou obras).
Nem vemos aqui experiência comum ou presunção judicial que possa contrariar.
O facto l., julgado como não provado, não pode deixar de ser mantido.
1.5. Concluindo então.
(1.º) O escrutínio fáctico da causa há-de encontrar amparo nas (que forem as) soluções plausíveis da questão de direito controvertida.
(2.º) Ao agregado fáctico, obtido em 1.ª instância, que seja assimilado pela sentença e gerado a partir da formação da convicção sustentada na prova livre, cuja reapreciação seja pedida, no recurso de apelação, ao tribunal ad quem, apenas devem ser inseridas as alterações que as provas produzidas, e os juízos probatórios que lhes vão associados, lhe « imponham » (artigos 640º, nº 1, alínea b), final, e 662º, nº 1, do CPC); isto é, aquelas que, expostas por uma errada (ilógica e inconsequente; à margem dos raciocínios probabilísticos e de normalidade) convicção ali formada, exijam o seu reajustamento e o recentrar em parâmetros aceitáveis (credíveis) de critérios jurídicos e racionais (artigo 607º, nº 5, início, do CPC).
(3.º) Na hipótese, a reponderação das provas (livres) não permite esta mutação.
(4.º) À excepção do facto (real) do não pagamento de rendas, obtido de prova tabelada – excludente, portanto, do julgamento de facto –, enunciado em 1.2.1. (2.), não se mostra ajustado alterar a decisão proferida sobre matéria de facto.

2. O mérito jurídico do recurso.

2.1. A cessação do contrato de arrendamento; por resolução do senhorio.
É incontroverso o não pagamento das rendas, pelos inquilinos, no caso da hipótese; situação que acontece desde Dezembro de 2013.
A acção de despejo foi interposta em Novembro de 2023.
Configuramos, então, um estado de coisas em que os arrendatários, a coberto do contrato, utilizaram a casa locada durante cerca de uma década, sem cumprimento da sua prestação debitória; da adstrição própria do locatário, que é o vínculo da renda.
Só depositaram a renda, em singelo, já na pendência da acção despejo.
Essa situação foi assumida intencionalmente pelos inquilinos num tempo em que operava já a eficácia do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela já citada Lei nº 6/2006, de 27 Fevereiro (artigos 27º e 26º, nº 1).
No quadro normativo, de início aplicável, estabelecia o artigo 1083º, nº 3, do Código Civil, ser inexigível ao senhorio a manutenção do contrato em caso de mora igual ou superior a dois meses no pagamento da renda, naquela que era a versão da Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto; alterada, depois, pela Lei nº 43/2017, de 14 de Junho, ao subir o prazo da mora hábil, para três meses; e mantida esta pela subsequente Lei nº 13/2019, de 12 de Fevereiro.
O significado em qualquer dos casos era representar tratar-se de uma perturbação vocacionada a um incumprimento fatal do contrato, de banda do inquilino; de tal forma que com a virtualidade de fazer germinar, na esfera do senhorio, um direito potestativo à cessação, por resolução, do arrendamento.
Nas sucessivas versões legais, foi o que sempre decorreu do mesmo artigo 1083º. O incumprimento de uma das partes concede à outra o direito à resolução (nº 1); o incumprimento hábil é aquele que, « pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento » (nº 2, trecho inicial).
A particularidade da mora no pagamento da renda, como suporte resolutivo pelo senhorio, encontrava-se num (inovador) modo operativo extrajudicial (artigo 1084º, nº 2, do Código Civil); mas cuja consagração não preteriu a opção, ou oportunidade, pela acção de despejo, caso fosse este o desejo do locador, como a lei permite adivinhar (artigo 1048º, nº 1, do CC) e como a jurisprudência veio a reconhecer, por forma consolidada [p. ex.; Acórdãos da Relação de Lisboa de 11 de Março de 2008, proc.º nº 543/2008-1, ou da Relação de Évora de 25 de Novembro de 2021, proc.º nº 1605/20.9T8SLV.E1].
A situação da hipótese atravessou as diversas versões normativas.
E manteve-se como uma escolha duradoura e continuada; até ao depósito inicial da renda, já na pendência da acção, realizada no mês de Dezembro de 2023.
2.2. A excepção de não cumprimento do contrato.
A opção consciente dos inquilinos fundou-se na (por si alegada) circunstância de a casa locada padecer de anomalias, de patologias várias, sobretudo causadas por infiltrações de águas, e que o senhorio, não obstante informado e sabedor, optou por não dissipar.
Noutras palavras; o senhorio omitiu as obras a que o contrato o obrigava.
Está aqui, portanto, em causa, e também, um incumprimento contratual.
Este inadimplemento do senhorio é posicionado pelos inquilinos, desde logo, no ano de 1999; feito estender para os anos seguintes; e, como se diz, apontado como a causa para a resposta de sustação das rendas.
Enquadrando a hipótese.
(1.) Através do contrato de locação, o locador obriga-se a proporcionar ao locatário o gozo temporário da coisa; sendo o principal dos seus vínculos o de assegurar a este o gozo da coisa locada para os fins a que se destina (artigos 1022º e 1031º, alínea b), do Código Civil) [« uma obrigação de conteúdo positivo » (Luís Menezes Leitão, “Arrendamento Urbano”, páginas 47 a 49)].
No arrendamento urbano, com fim habitacional (artigo 1067º, nº 1), o gozo que se visa é o de um « uso residencial » (para usar a semântica do artigo 1092º, nº 1, no seu segmento inicial).
Quer dizer; o senhorio obriga-se a transmitir para o inquilino os poderes e as faculdades de utilização do bem, de acordo com a vocação deste e os fins do contrato celebrado; traduzindo-se aqueles, no caso da habitação, nas aptidões da ocupação e do aproveitamento (do uso) das várias potencialidades proporcionadas pela casa habitada.
Mais concreto; no quadro a arquitectura da fracção, composição das divisões que a comportam ou outras características que a habilitam, o inquilino fica apetrechado de aí poder fazer o seu centro de vida (o seu lar), confeccionar e tomar as suas refeições como bem lhe aprouver, receber e estar com os amigos e visitas que entenda, centrar o recebimento da sua correspondência postal e indicar essa morada como a de sua residência habitual, passar os seus momentos de descanso e de lazer, bem como usufruir de todas as (várias e possíveis) vantagens que possa extrair, estas ou outras e elas assimiladas, e que o senso comum e a experiência da vida permitam enquadrar.
Nisto consistindo a espessura do « gozo » que ao inquilino é proporcionado.
Porém; apenas isso. Posto que, não obstante a acentuada restrição e contracção dos poderes do proprietário – aproximando (mas só) o direito do locatário a um carisma (de direito) real –, o inquilino não se volve em dono do bem.
A situação jurídica é (só) creditória; geradora de (meros) vínculos obrigacionais.
Prosseguindo.
(2.) Na anatomia do arrendamento, as intervenções materiais sobre a coisa – as obras nela empreendidas – sempre se focaram primordialmente na esfera do senhorio; por ser (exactamente) ele o dono; o titular da coisa; com o (mero) vínculo da cedência.
Era assim, no quadro normativo do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro (artigos 12º ou 13º, nº 1). Persistiu assim, no quadro normativo seguinte, do NRAU (artigo 1074º, nº 1, do CC; nas sucessivas versões) e dos diplomas conexos (Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 157/2006, de 8 de Agosto; artigo 2º, nº 1).
O estatuto do senhorio comporta, portanto, o vínculo a fazer as obras.
De modo que, se as não fizer, incorre igualmente em incumprimento contratual por estar a preterir a realização da prestação devida (artigo 762º, nº 1, do CC); com a virtualidade de poder ter de suportar a reparação dos danos que a omissão possa causar na esfera do seu inquilino (artigo 798º do CC).
Com essa envolvência, a preterição do senhorio, que não efectuar as obras, como todas as (comuns) situações de direito de crédito insatisfeito, habilita o arrendatário a propor acção judicial contra aquele, exactamente pedindo que este seja condenado a efectuá-las; seguindo-se, se disso for caso, a execução para prestação de facto.
Mas, no espectro que (aqui) nos importa, apenas isto; e não mais do que isto (!).
A omissão das obras não significa só por si a omissão da cedência do gozo.
Aquelas podem, ademais, nem ser urgentes, de conservação ordinária, destinadas em geral a manter o prédio em bom estado de preservação, porventura impostas por leis administrativas (artigo 89º, nº 1, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro; nas sucessivas versões); mas sem atingirem a gravidade bastante de a sua omissão pelo senhorio poder comprometer, no todo ou em parte, a habitabilidade do locado.
Esta ideia fundamental, da autonomia entre a obrigação das obras e a obrigação do gozo, transparece, aliás, de vários passos da arquitectura jurídica do contrato. P. ex.; a privação ou diminuição do gozo da cosa locada pode dar lugar a uma redução proporcional da renda, mas numa situação que independe do vínculo das obras (artigo 1040º do CC). Ou ainda; a não realização das obras que caibam ao senhorio pode ser fundamento de resolução do contrato pelo inquilino, mas apenas quando tal omissão comprometa a habitabilidade do locado e, em geral, a aptidão deste para o uso previsto no contrato (artigo 1083º, nº 5, do CC).
Pois bem.
(3.) O vínculo principal do arrendatário é o de pagar a renda (artigo 1038º, alínea a), do Código Civil). Esta constitui a retribuição do « gozo temporário » que lhe é proporcionado, sobre um bem que não é seu (citado artigo 1022º).
À obrigação de pagar a renda contrapõe-se o dever de o senhorio proporcionar ao arrendatário o gozo do arrendado [José João Abrantes, “A excepção de não cumprimento do contrato no direito civil português (conceito e fundamento, página 43; Acórdão da Relação de Guimarães de 19 de Novembro de 2020, proc.º nº 104778/19.3YIPRT)].
Logo; mantendo-se o arrendatário no gozo do arrendado, o dever que o senhorio tem de proceder a intervenções, correcções, reparações, não é correspectivo do dever do arrendatário pagar, e pontualmente, as rendas convencionadas.
A mora do senhorio em fazer as obras não é só por si razão justificativa para que o arrendatário deixe de pagar as rendas; pelo que com essa motivação não poderá invocar a exceptio non adimpleti contractus.
A excepção de não cumprimento do contrato supõe que cada contraente, nos contratos com vínculos sinalagmáticos, possa recusar a sua prestação, na hipótese de o outro não efectuar, ou oferecer, o cumprimento simultâneo da sua (artigo 428º, nº 1, do Código Civil).
É habitualmente caracterizada como excepção dilatória de direito material [José João Abrantes, “A excepção de não cumprimento …”, páginas 151 a 154].
Mas não suporta operatividade quando os vínculos, de uma e outra das partes no contrato em causa, não estejam ligados entre si por um nexo de dependência recíproca ou de correspectividade mútua.
O que, no caso do arrendamento, opera entre o gozo (a cargo de um) e a renda (a cargo do outro). Mas apenas isso. Não tendo a virtude de enquadrar em globo o acervo de todos os vínculos emergentes do contrato, para uma e outra das partes.
A situação da exceptio não ocorre no caso da hipótese apelada.
No bom rigor, os próprios inquilinos assim o chegaram a reconhecer; quando, já por eles sustada a renda, em 14 de Abril de 2014, se propuseram a um pagamento de duas rendas em cada um dos meses seguintes (facto provado 8.) (!).
Ademais disso; (1.º) posicionados na data relevante da sustação, a partir de Dezembro de 2013, só os estragos na divisão de sala da fracção foram hábeis a preterir o ensejo do gozo, mas nessa divisão (facto provado 9.), não nas demais; (2.º) operando mesmo, como real, a versão dos inquilinos réus (que se não provou), ainda assim, as várias anomalias teriam sido por eles reparadas, mantendo o uso, como sua efectiva habitação, do locado ao longo de todos os anos; (3.º) por fim, perpassada a vária prova pessoal que nas sessões de audiência final se proporcionou (incluindo as declarações do réu marido; os depoimentos da vizinha do 1.º frente; os dos dois amigos, visitas pontuais da casa arrendada), fica a clara convicção de que a residência do casal – e que aliás se visa ostensivamente manter – persistiu, ao longo de todos os mesmos anos; por conseguinte, e pese a perturbação (do estado da sala; da omissão de obras), que a cessão do gozo da casa não foi fatalmente, decisivamente, colocada em crise.
Tudo por tal forma que fosse capaz de viabilizar a licitude da omissão da renda.
Os réus não reclamaram a redução da renda proporcional à retracção do seu gozo.
Apenas sustaram, durante cerca de uma década, o pagamento total da renda.
O senhorio nunca realizou obras de conservação (facto provado 10.).
Donde; ocorreu porventura em mora, enquanto preteriu uma prestação devida.
Não se mostra cisão fatal na concessão do gozo [Acórdão da Relação do Porto de 13 de Novembro de 2023, proc.º nº 401/22.3T8AVR-A.P1].
A opção arriscada, certamente audaz, dos inquilinos, não foi a mais certa.
Na esfera jurídica do senhorio não pode deixar de ser reconhecido o germinar de um direito potestativo à resolução do contrato de arrendamento; e que ele vem agora exercitar, com sustento, mediante a actual acção de despejo.
2.3. O abuso de direito.
Aparenta-se que o desassossego neste contrato já dura há, pelo menos, um quarto de século. Os inquilinos alegam que, já em 1999, detectaram patologias; solicitaram autorização; empreenderam obras (num segmento que não provaram). E alegam, que em 2020, executaram intervenções (que provaram; facto 17.).
Entretanto, a opção da sustação das rendas iniciou em Novembro de 2013; não obstante a vencida nesse mês fosse paga e, quanto às demais, já vencidas, se houvesse proposto de as pagar « duas rendas em cada um dos meses seguintes » (facto 8.).
A partir de Dezembro de 2013, mais nenhuma renda foi paga.
Os inquilinos participaram os estragos na casa, ao menos, em 14 de Abril de 2014 (facto provado 8.). Depois, por escrito, só voltaram a fazê-lo em 20 de Maio de 2022; mais de oito anos depois (facto provado 11.).
O senhorio não executou obras (facto provado 10.).
E não se demonstrou que, até Abril de 2022, por alguma vez interpelasse os seus arrendatários para que lhe pagassem as rendas, vencidas e em falta.
O tempo continuou a correr (…); e a verdade é que, só com a interposição da acção judicial de despejo, em 17 de Novembro de 2023, depois de para esta serem citados, os inquilinos procederam ao depósito, em singelo, da renda (facto 16.).
O exercício do direito à resolução é feito, pelo senhorio, em abuso de direito?
O abuso de direito é uma válvula de escape da ordem jurídica; prevista para enfrentar situações onde a actuação de atribuições, formalmente enquadradas, possa acarretar resultados indesejáveis, desviantes dos padrões de justiça, acerto e equilíbrio [Tatiana Guerra de Almeida, “Comentário ao Código Civil (parte geral), Universidade Católica Editora, páginas 788 e 789].
Corresponde ao desenvolvimento dos parâmetros da boa fé; esta, convocada em toda a actuação jurídica (artigo 762º, nº 2, do CC); e feito operar, aquele, sempre que essa convocação exija que sejam contornadas as fronteiras normativas estabelecidas.
É que prescreve o artigo 334º do Código Civil; que « é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito ».
À margem de toda a dogmática envolvente – e é abundante –, cremos poder assentar com alguma segurança em três pontos importantes. O 1.º; de que a válvula opera nos limites do exercício do direito, o titular que actua tem o direito e vai fazê-lo exercitar. O 2.º; o de que, pese toda a conceptualização (abstracta) contida na norma, é essencial que os factos no processo mostrem, evidenciem, revelem, o substrato próprio que está acautelado, e materializem a sua espessura. O 3.º; o de que, apurado o abuso positivamente, a consequência há-de ser a do bloqueio do exercício empreendido, por uma das (várias) formas possíveis, precisamente a que for mais oportuna e conveniente aos parâmetros da boa fé que sejam os concretamente prosseguidos.
O caso da hipótese apelada é o de um senhorio habitacional que, ao longo de quase uma década, terá pactuado com o não pagamento das rendas pelo seu inquilino. A isto se associando a necessidade de obras de conservação, assumidamente omitidas.
O estado de coisas, assim evidenciado – em particular, o curso do tempo conexo com as obras em falta –, foi de molde a criar uma expectativa firme, uma convicção segura, junto dos inquilinos, de que este senhorio jamais reclamaria as rendas, que não estavam a ser pagas – entenda-se; nem retiraria as consequências naturais da sua falta de pagamento (!) – enquanto não realizasse as obras?
Nenhum dos factos convocados ao processo o permite, com segurança, afirmar.
É verdade, haverem casos em que a expectativa profunda, legítima e sólida, associada a um determinado comportamento, permite verificar o abuso do direito exercido em desvio a esse comportamento.
Como é verdade, noutros casos, que a chamada supressio, sustentada na passagem do tempo que habilita alguém a criar uma fundada esperança de que, se não aconteceu, já não vai acontecer, permite operar o abuso, se acabar por acontecer.
Mas, em qualquer dos casos, não basta uma simples confiança.
É preciso que se mostre de tal maneira configurada a situação que, a não ser que opere a válvula de escape, o sentimento jurídico razoável, a sensibilidade do equilíbrio e da justiça, choca, afronta, e manifestamente, com a sua preterição.
Obtendo-se, por essa via, um resultado concreto indesejável, desviante, de modo claro e inequívoco, ostensivo, e impassível de não ser pressentido, até mesmo pelo jurista menos atento e comprometido.
Para a economia de um contrato de arrendamento habitacional, com todas as envolventes que habitualmente o quadram, em face de uma utilização residencial efectiva, durante quase uma década, sem qualquer pagamento, ainda que sem obras, e na falta de mais outra qualquer condicionante conexa, como se os inquilinos, na verdade, fossem os titulares da propriedade sobre a morada, o que a experiência comum nos proporciona é exactamente o contrário.
Expectável era que, a todo o momento, o senhorio reclamasse a retribuição (!).
Tomando, com a sua opção, os inquilinos uma posição de especial fragilidade, e desassociada de suporte jurídico consistente; contraindo, dessa maneira, um risco sério de, a qualquer momento, se poderem ver confrontados com o despejo; e como veio a efectivamente acontecer.
O escape do abuso de direito não é apto, assim, a paralisar o direito do autor.
2.4. O reembolso pela introdução de benfeitorias.
O confronto da prova sinaliza que os inquilinos (1.º) não mostraram que, em Setembro de 1999, obtiveram autorização do senhorio para fazer obras (facto l.), nem que as hajam realizado, com um custo de 8.978,36 € (facto m.); mas (2.º) mostraram que no – já longínquo – ano de 2000 «procederam à substituição dos móveis e electrodomésticos da cozinha, assim como à substituição do revestimento na cozinha e casa de banho e substituição do lavatório da casa de banho, com armário incorporado», com um custo de 4.266,54 € (facto 17.).
O quadro normativo, naquele tempo, era o do RAU, antes já citado.
Ao inquilino, cujo direito era só o de gozo e não de transformação do bem arrendado, estava por princípio vedado a intervenção (a obra) sobre este; constituindo em regra essa intervenção uma violação do regime locativo.
Numa interpretação a contrario do (então) artigo 64º, nº 1, alínea d), daquele regime, era possível intuir que obras que não fossem de alteração substantiva da estrutura externa ou disposição interna, nem envolvessem deterioração considerável, e não autorizadas, por modo escrito ou verbal, não seriam por regra lícitas [Jorge Aragão Seia, “Arrendamento Urbano”, 5.ª edição, página 371].
Ou seja; apenas se, nessas, autorização houvesse, poderiam ser legitimadas.
A hipótese apelada apresenta, porém, uma outra particularidade.
E, essa, a da cláusula 5.ª, que foi inserida no contrato de arrendamento; e de onde consta (1.) a necessidade de uma autorização escrita do senhorio, para obras, (2.) bem como a renúncia à indemnização por benfeitorias voluptuárias ou úteis (facto 4.).
Na situação, a consequência era a de que, arredadas intervenções urgentes (artigo 1036º do Código Civil) ou outras excepcionalmente admissíveis (artigo 4º do RAU), o inquilino não estava habilitado, salvo autorização escrita, a outra qualquer incursão.
Os réus não alegam a autorização escrita; que – é consensual – nunca existiu.
O conceito de benfeitorias consta do artigo 216º do Código Civil; as « despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa » (nº 1); sendo necessárias as que forem indispensáveis para a sua conservação, úteis as que, não o sendo, lhe aumentam o valor, e voluptuárias as que apenas servem para recreio do seu autor (nº 3).
E, para a hipótese, na falta de demonstração da sua essencialidade, a intervenção apurada pressente-se quadrar (apenas) o conceito de benfeitoria útil.
Ora, o locatário, na falta de outra convenção, é equiparado ao possuidor de má fé quanto a benfeitorias que haja feito na coisa (artigo 1046º, nº 1, do Código Civil).
E a sua compensação contempla-se no artigo 1273º, nº 1, final, e nº 2, do CC.
Já, porém; (1.º) enquanto a intervenção não foi licitamente feita, porque à margem da consensualizada autorização escrita, por um lado, e (2.º) na medida em que contratualmente prescindiu de ser compensado por putativas benfeitorias úteis introduzidas, por outro lado; parece-nos inequívoco ter de naufragar qualquer pretensão de compensação, que pudesse ter nascido com a despesa, em 2000, e houvesse de ser devida ao(s) inquilino(s).
A decisão final, sustentada na (originária) convenção das partes, só pode ser a de que o direito ao reembolso dos réus, pela introdução das benfeitorias, não existe.

III – Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em:
1.º; rectificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, eliminar do enunciado dos factos não provados a alínea a. e aditar ao descritivo dos factos provados, um outro, novo, com a seguinte redacção:
« Os réus deixaram de pagar as rendas que se venceram a partir de Dezembro de 2013 »
2.º; no restante, julgar o recurso de apelação improcedente e confirmar o decidido pela sentença, na parte impugnada; (1.) na acção, julgando-a procedente, (2.) na reconvenção, julgando-a improcedente, no segmento em que absolveu o autor da compensação a título de benfeitorias custeadas pelos réus.
As custas devidas pelo recurso são encargo integral dos apelantes (réus na causa), que nele têm um total decaimento (artigo 607º, nº 6, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 15 de Julho de 2025
Luís Filipe Brites Lameiras
Edgar Taborda Lopes
Cristina Silva Maximiano