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QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
ATRASO NA APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
Sumário
I - Estando a insolvente incapaz de satisfez as suas dívidas desde 2015, à partida, torna-se irrelevante o atraso na apresentação à insolvência. II - Considerar-se que, não obstante aquela incapacidade desde 2015, os administradores agravaram a situação de insolvência impõe, para que funcione a presunção do nº 3 al. a) do artigo 186º do CIRE, a demonstração desse agravamento. III - Não se provando, a insolvência há-de considerar-se fortuita.
Texto Integral
Processo: 9635/18.4T8VNG-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 1
ACÓRDÃO
I. RELATÓRIO (transcrição parcial)
No âmbito do presente processo de insolvência instaurado por “A..., lDA.”30.11.2018, foi a mesma declarada insolvente por sentença proferida em 04.12.2018
Em 05.02.2019, veio AA, casado, contribuinte nº ..., residente na Rua ..., ..., ... Porto, sócio do restaurante “A..., Lda.”, requerer a abertura do incidente de qualificação de insolvência, concluindo pela sua qualificação como culposa e afectados pela mesma os sócios- gerentes BB, CC e DD, bem como o sócio EE.
Alegou, em síntese que, as irregularidades na prestação de contas dos últimos 3 anos (2015, 2016 e 2017) equivale à falta de prestação de contas, prejudicando, assim, a análise económico-financeira da sociedade, violando o direito fundamental dos sócios previsto no art.º 21º nº 1 c) e no art.º 214º nº 1, ambos do Código das Sociedades Comerciais. A...” é um restaurante de referência do Porto, e com a recente classificação de loja protegida pelo “...”, aprovado em sessão camararia.
Mais alegou que em 19-12-2017 foi celebrado um acordo de revogação do contrato de arrendamento do estabelecimento da “A...”, no seguimento de uma carta enviada pelo senhorio em 03-10-2017, que o requerente desconhece o teor e quem assinou.
No dia 02-11-2017 foi realizada uma Assembleia Geral da sociedade, em que o aqui Requerente esteve representado pela sua filha FF, e na qual foi apresentada pelo sócio EE uma proposta de um acordo de revogação do contrato de arrendamento pelo valor de €40.000,00 (quarenta mil euros), que o aqui Requerente, na pessoa de sua filha, votou contra, e bem assim a sócia GG. A...”, depois da classificação atribuída pelo município ..., estava protegida contra a denúncia do contrato de arrendamento por parte do proprietário do imóvel. A Requerente ignora, por outro lado, que “bolso” teve por destino esta importância. A sociedade não tem qualquer trabalhador ao seu serviço porque os despediu a todos em 14-03-2018, o encerramento veio a acontecer em 31-05-2018. A lista de bens anexa ao requerimento de apresentação à insolvência (anexo IV) não reflecte todo o património da sociedade.
A sociedade “A..., Lda.” apresentou-se à insolvência em 29-11-2018, encontrou-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas no momento em que celebrou o acordo de revogação do contrato de arrendamento do estabelecimento, ou seja, 19-12-2017. A gerência da sociedade “A...” também conhecia a sua situação de insolvência, pelo menos desde 2015.
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Por despacho proferido em 03.04.2019, foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.
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Em 16.04.2029, 03.10.2019 e 14.11.2019 o A.I. veio juntar o seu parecer. Alegou, em síntese que as informações quanto aos bens são dispares. Tratando-se de um Estabelecimento de Restauração é entendimento do AJ existirem os bens móveis que compõem um Restaurante o que é suposto terem delapidado todo o património; a falta de colaboração para com o AJ e entrega da contabilidade, são razões para se qualificar a Insolvência Culposa, sendo responsáveis: os Sócios EE; BB; GG e DD esta última na qualidade de sócia Gerente.
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Os autos foram com vista ao MºPº, o qual, juntou o seu parecer em 03.10.2022, concluindo pela qualificação como culposa nos termos do disposto no artº 186º, n.º 2, al. i) e n.º 3 al. a) do CIRE, face aos elementos documentais existentes nos autos e à perícia realizada no âmbito do Processo nº 477/12.1TYVNG-J3, deste juízo de comércio.
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Deu-se cumprimento ao disposto no artº 188º, n.º 5 do CIRE .
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Os requeridos vieram deduzir oposição: os requeridos BB e DD em 09.12.2023 e o requerido EE, em 15.02.2024, concluindo pela qualificação da insolvência como fortuita.
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Foi fixado o objecto do litígio e elaborados os temas de prova.
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Realizou-se a audiência final, com observância do legal ritualismo, como o atesta a respetiva acta.
A final foi proferida sentença que decidiu:
a) qualificar como culposa a insolvência de “A..., LDA.”, declarando afectada pela mesma BB E DD; b) fixar em 2 (dois) anos para BB E DD o período da sua inibição para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa e em igual período a inibição dos requeridos para administrar patrimónios de terceiros; c) determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por BB E DD e condená-los na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; d) condenar, ainda, os requeridos BB E DD a pagar aos credores o montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo senhor Administrador da Insolvência nos termos do art. 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que não forem pagos pelo produto da liquidação do activo, até às forças do seu património. e) absolver o requerido EE, do pedido contra si formulado.
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RECURSO BB e DD não se conformando com a decisão proferida nestes autos, vieram interpor recurso.
Após alegações terminam com as seguintes CONCLUSÕES
1. Os presentes autos tiveram início com AA, doravante o “Recorrido”, sócio da insolvente “A..., Lda.”, a requerer a qualificação da insolvência desta como culposa, com afectação de BB, DD, CC e EE;
2. O pedido do Recorrido fundava-se na destruição/dissipação de património da insolvente, na falta de colaboração com o Administrador de Insolvência e com o processo e no atraso na apresentação à insolvência;
3. Quanto ao Requerido CC, este havia falecido em 20-12-2018, pelo que, quanto a ele, a instância já havia sido extinta;
4. Quanto ao Requerido EE, a Sentença Recorrida decidiu que este “não deve ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa”, por não ter praticado qualquer acto de gestão relativamente à insolvente;
5. Quanto à falta de colaboração dos aqui Recorrentes para com o Administrador de Insolvência e para com o processo, decidiu a Sentença do Tribunal a quo “que não houve falta de colaboração por parte dos requeridos.”;
6. Quanto à alega dissipação de bens da insolvente, por parte dos Recorrentes, alegada pelo Recorrido, a Sentença recorrida determinou que “não se detectou, assim, que os bens da insolvente tenham sido desviados”; 7. Quanto ao incumprimento do dever de apresentação à insolvência por parte dos Recorrentes, a Sentença do Tribunal a quo considerou ter ficado “demonstrado o nexo de causalidade entre a omissão do dever legal consagrado no artigo 18.º, n.º 1 do CIRE [apresentação à insolvência no prazo de 30 dias após o conhecimento da situação] e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.”; 8. Porquanto, no entendimento do Tribunal a quo “após 14.03.2018 a situação de insolvência agravou-se com o vencimento de créditos dos trabalhadores, tributários e de cotizações, tendo sido reclamados e verificados créditos no valor total de €150.518,11, entre os quais € 3.865,29, do qual €3.659,91 respeita a capital e juros de mora de IRC vencido a 04/10/2018, € 8.862,39 de cotizações à Segurança Social referentes ao mês de maio de 2018 e €90.967,53 de créditos laborais, nos quais se incluem não apenas as indemnizações do cessação do contrato de trabalho mas também férias vencidas e não gozadas, subsídio de férias e de tudo como melhor resulta do Apenso G e do apenso de reclamação de créditos (apenso B)”;
9. Não podem, no entanto, os Recorrentes, concordar com este entendimento. Vejamos.
10. O n.º 3 do artigo 186.º do CIRE preceitua que se “presume a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) (…)”;
11. Prevendo o nº 1 do artigo 18.º que o “o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la”, acrescentando o n.º 3 do mesmo artigo que “Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º”.
12. Já o artigo 3.º, nº1, do CIRE estatui: “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
13. Sendo entendimento unânime da jurisprudência dos tribunais superiores que a que a previsão do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE corresponde a uma presunção juris tantum, exigindo-se, assim, a sua consubstanciação - para verificação - através da prova de existência de um nexo de causalidade entre o comportamento verificado (o não cumprimento do prazo para apresentação à insolvência), e a criação ou agravamento da situação de insolvência; 14. Resultando ainda claro que este comportamento, no caso o alegado incumprimento do prazo de apresentação à insolvência, previsto no artigo 18.º do CIRE, deve ser conformado e consubstanciado na prova da existência, por parte dos responsáveis, de dolo ou culpa grave 15. Ora, após assumirem a Gerência da insolvente (em 27-11-2017), os Recorrentes empenharam-se, com todos os meios disponíveis, na busca de soluções que permitissem a manutenção desta no giro comercial;
16. Porém, o nível de conflitualidade existente entre os sócios, o investimento necessário para renovar as instalações onde esta desenvolvia a sua actividade, bem assim como a sua situação financeira, tornavam a situação da insolvente bastante complexa;
17. Com a assinatura da revogação do contrato de arrendamento, a 19-12-2017, concretizada com a desocupação do imóvel e encerramento do estabelecimento em 31-05-2018, a manutenção da actividade da insolvente revelou-se praticamente impossível;
18. Pelo que, e após uma análise séria e consciente à situação desta, os Recorrentes não vislumbraram outra alternativa, no interesse dos credores, que não fosse apresentar a sociedade à insolvência;
19. Passando o foco dos aqui Recorridos a ser o de assegurar que os credores eram prejudicados na menor medida possível, garantindo que os seus direitos eram, previamente ao processo de insolvência, integralmente acautelados;
20. Tendo, como já se disse, iniciado um processo de despedimento colectivo ao abrigo do disposto do artigo 359.º do Código do Trabalho em 03-03-2018 e que ficou concluído, atentos os prazos legais, apenas a 31-05-2018;
21. A este propósito, diz a Sentença recorrida, no que respeita aos créditos laborais, no valor total de € 90.967,53, que, em virtude do alegado atraso na apresentação à insolvência, se venceram, para além das indemnizações resultantes da cessação do contrato de trabalho, também férias vencidas e não gozadas e subsídio de férias.
22. A verdade é que não assiste, quanto prejuízo relativo aos créditos laborais, qualquer razão ao Tribunal a quo, porquanto, o valor destes créditos resulta, maioritariamente, das indemnizações devias pelo despedimento colectivo que, em face da revogação do contrato de arrendamento, configurou uma decisão acertada dos Recorridos, quer no interesse da insolvente, quer no interesse do trabalhadores-credores. 23. É que, se não o tivessem feito, nos termos do Código do Trabalho, deixando o tema dos contratos de trabalho nas mãos do Administrador de Insolvência que viesse a ser nomeado, e que, por certo, decidiria pela sua cessação, o valor da indemnização seria manifestamente superior. 24. Da mesma forma que a cessação dos contratos de trabalho ao abrigo de um procedimento de despedimento colectivo permitiu estancar, não só, como já se disse, o valor das indemnizações devidas, permitiu também bloquear o acréscimo de valor devidos a título de férias vencidas não gozadas e subsídio de férias. 25. Defende ainda a Sentença recorrida que os “€ 3.659,91 que respeita a capital e juros de mora de IRC vencido a 04/10/2018”, correspondem a um prejuízo resultante o atraso na apresentação à insolvência por parte dos Recorridos. 26. Ora, cumpre esclarecer, que este valor, relativo a IRC, e cujo prazo limite de pagamento terminou em 04-10-2018, diz respeito ao exercício do ano de 2017, nos termos do artigo 104.º do Código do IRC. 27. Significa isto que este crédito – constituído durante o ano de 2017 e vencido em 2018 –sempre seria devido, quer a insolvência fosse declarada em Janeiro de 2018, quer, como aconteceu, em 30-11-2018. 28. Por último, a Sentença recorrida faz ainda referência, para justificar o prejuízo resultante do atraso na apresentação à insolvência a “€ 8.862,39 de cotizações à segurança social referentes ao mês de maio de 2018”. 29. Ora, no mês de Maio de 2018, e como resulta da documentação relativa ao processo de despedimento colectivo, venceu-se o pagamento das indemnizações devidas aos trabalhadores, correspondendo o valor reclamado pela Segurança Social às contribuições e cotizações relativas a esses valores devidos aos trabalhadores. 30. Também este valor, relativo a contribuições e cotizações da Segurança Social, sempre seria devido, quer a apresentação à insolvência tivesse tido lugar em Janeiro de 2018 ou em Novembro do mesmo ano, porquanto, os valores sobre os quais incidiu eram de constituição inevitável, quer tivessem sido constituídos, como foram, no âmbito de um despedimento prévio, quer este despedimento tivesse ocorrido já no âmbito do processo de insolvência. 31. Importando dar nota que caso o despedimento tivesse tido lugar no âmbito do processo de insolvência, o decurso do tempo e as circunstâncias jurídicas desse mesmo despedimento, tinham levado a um incremento dos valores em dívida (mais tempo de antiguidade, mais valor devido a título de proporcional de subsídio de férias, mais férias não gozadas), levando, por inerência, a um maior valor a título de cotizações e contribuições devidos à Segurança Social. 32. Assim, relativamente aos créditos em que a Sentença a quo se funda para (tentar) fixar um nexo de causalidade entre o atraso e o prejuízo resultante, importa deixar claro que nenhum crédito surgiu em consequência do eventual incumprimento do prazo previsto no artigo 18.º do CIRE.
33. Todos os créditos reclamados no processo, sempre o seriam, quer a apresentação tivesse tido lugar em Janeiro de 2018 ou, como teve, em Novembro do mesmo ano. 34. Aliás, caso os Requeridos tivessem apresentado a sociedade à insolvência, logo em Janeiro de 2018, o passivo desta seria muito superior e asconsequências para os credores bem mais gravosas.
35. É que, no âmbito do acordo de revogação do contrato de arrendamento, a Insolvente recebeu, em compensação, € 40.000,00; 36. Tendo esse valor sido, exclusivamente, utilizado no giro comercial da sociedade, nomeadamente no cumprimento de obrigações regulares, bem assim como na liquidação de créditos laborais, contribuindo, assim, para a diminuição do passivo que a sociedade apresentou aquando da declaração de insolvência. 37. Entre o recebimento do valor de compensação por conta da revogação do contrato de arrendamento, € 40.000,00 em 20-12-2027, e o encerramento definitivo do estabelecimento, que só ocorreu a 31-05-2018, os aqui Requeridos liquidaram todos os valores resultante da exploração do estabelecimento/restaurante, nomeadamente: fornecedores, trabalhadores, tributos e impostos; 38. Ora, o prejuízo de que a lei faz depender a qualificação da insolvência como culposa em virtude do atraso na apresentação não pode consubstanciar-se em situações de acumulação de passivo ou vencimento de juros de mora, o que, porém, in casu, nem sequer aconteceu;
39. Devendo consubstanciar-se em prejuízos efectivos, sejam pela constituição de novos créditos no período que medeia entre o prazo sociedade deveria ter-se apresentado e a aquele em que a insolvência foi efectivamente declarada, seja pela celebração de negócios, também neste período de tempo, que possam configurar-se como ruinosos, sejam eles de assunção de obrigações, constituição de garantias, de venda de património, o que, como resulta evidente, também não sucedeu nos presentes autos. 40. Em suma, do eventual atraso na apresentação à insolvência da sociedadenão resultou qualquer prejuízo para os credores.
41. Pelo que, andou mal a Sentença Recorrida ao qualificar a insolvência como culposa, com afectação dos aqui Recorrentes, sem que resultasse provado dos autos a existência de qualquer prejuízo por conta do eventual atraso na apresentação à insolvência.
Deve o presente recurso ser considerado totalmente procedente, revogando-se, consequentemente, a sentença que qualificou a insolvência como culposa com afectação dos aqui Recorrentes, devendo tal sentença ser substituída por uma que julgue a insolvência como fortuita.
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RESPOSTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ÀS ALEGAÇÕES DO RECURSO
O Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 02/07/2015 (Processo nº 5024/12.2TTLSB.L1.SI considerou que “…o erro de julgamento gerador da violação de lei substantiva decompõe-se numa das seguintes vertentes:
- erro de interpretação;
- erro de determinação da norma aplicável;
- ou erro de aplicação do direito. (…)
Sendo que, em qualquer das referidas modalidades, a violação da lei substantiva reconduz-se sempre a um erro: um erro de interpretação ou de determinação da norma aplicável ou de aplicação do direito.
Erro que pode começar na interpretação e subsunção dos factos e do direito e estender-se à sua própria qualificação, o que, em qualquer circunstância, afecta e vicia a decisão proferida, pelas consequências que acarreta, tanto mais que assentou e foi fruto de um desacerto, de um equívoco ou, como enuncia a lei, de um erro.”
O erro de julgamento não se traduz na mera divergência entre aquilo que a Apelante entende que deveria ter sido dado como provado, a partir de uma interpretação pessoal dos factos trazidos à lide, e aquilo que o Tribunal recorrido veio a efetivamente considerar como provado, ou seja, a questionar a convicção do julgador, a qual se forma livremente, com base nos elementos de prova globalmente considerados em conjugação com as regras da experiência comum.
No caso em análise, a M.ma Juíza a quo motivou a matéria de facto por critérios objetivos de que se serviu na avaliação e na aquisição do seu conhecimento.
Vejamos:
A qualificação da insolvência como culposa deveu-se ao preenchimento de circunstâncias previstas no art.º 186º do C.I.R.E., mais concretamente na alínea a) do nº 3 da citada norma.
De harmonia com o disposto no nº 1 do art.º 186º do C.I.R.E. “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
O processo de insolvência teve início a 19/11/2028 por apresentação da devedora, sendo que os recorrentes assumiram a gerência da sociedade a 27/11/2017. O período relevante, no caso, é o que medeia entre 27/11/2027 e 19/11/2018.
A Lei 9/2022, de 11/01, introduziu alteração ao art.º 186º do CIRE, passando o seu nº 3 a apresentar a seguinte redação: “Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) o dever de requerer a declaração de insolvência.
b) …”
O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/02/2025, in www.dgsi.pt, pronunciando-se sobre o nº 3 do artº 186º do CIRE, considerou: “…esta norma consagra presunções juris tantum da culpa grave a que alude o nº 1 do mesmo artigo, que apenas são afastadas se o visado lograr fazer prova do contrário, nos termos do disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 350º do Código Civil. Presume-se unicamente a existência de culpa grave, não prescindindo, portanto, da prova do nexo de causalidade exigido pelo nº 1, do mesmo artigo.”
O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do art.º 3º, ou à data em que devesse conhecê-la (cfr. art. 18º, n.º 1, do CIRE), sendo que, quando o devedor seja titular de uma empresa, se presume de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do art. 20º (cfr. art.º 18º, n.º 3, do CIRE).
Consagra-se um dever do devedor de, verificada e conhecida a situação de insolvência, se apresentar à insolvência, sob pena de gravosas consequências.
O primeiro critério para inferir da verificação da situação de insolvência é a incapacidade do devedor de cumprir as suas obrigações vencidas (art.º 3º, nº 1, do CIRE), mas as pessoas coletivas e os patrimónios autónomos são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliado de acordo com as normas contabilísticas enunciadas no nº 3 da citada norma legal, situação que se verificava nos autos, como foi apurado pelo Ex.mo Administrador da Insolvência tendo em atenção a perícia efetuada à gestão e contas da sociedade no âmbito do Processo nº 477/12.1TYVNG-J3, deste juízo de comércio (Inquérito Judicial à Sociedade), da qual resultou que a degradação dos capitais próprios da ora insolvente, demonstrados por:
Ano Ativo Passivo
2015 44.335,12 830.879,92
2016 33.399,30 847.741,99
2017 79.167,10 851.280,38
O pedido de insolvência foi apresentado a 19/11/2018 por apresentação da devedora e a situação de insolvência foi declarada no dia 04/12/2018.
Todavia, desde a que assumiram a gerência a 27/11/2017, não podiam os Apelantes desconhecer a situação de insolvência em que a sociedade se encontrava, tendo em atenção o valor do ativo e o avultado passivo, acima já indicado.
Mas a atuação dos Apelantes não foi a de requerer a declaração de insolvência da sociedade, antes a de celebrar o acordo de revogação do contrato de arrendamento a 19/12/2017, data a partir da qual a sociedade ficou sem local para continuar a exercer a sua atividade e auferir dela proveitos, e com os € 40.000,00 obtidos fez uma liquidação informal, procedendo a pagamentos da forma que entendeu, sem observância da graduação que resultaria do processo de insolvência, e a 03/03/2018 deram início ao despedimento coletivo dos trabalhadores, concretizado a 31/05/2018.
Entretanto venceram-se novas dívidas, como o IRC vencido a 04/10/2018 (e a insolvência decorre da incapacidade de satisfazer dívidas vencidas), os créditos laborais vencidos após janeiro de 2018 e os decorrentes do despedimento coletivo concluído em maio de 2018, bem como os créditos da segurança social relativos a esse mês, créditos ao fornecedor B..., SA e à C..., como resulta da sentença de verificação e graduação de créditos e do depósito documental.
Não procede o argumento de que tais dívidas sempre se venceriam, fossem ou não respeitados os prazos para cumprimento do dever de apresentação à insolvência, pois que, se o fossem, os valores de compensações, férias vencidas e não gozadas, subsídio de férias e de Natal seriam substancialmente inferiores, assim como os valores das respetivas contribuições para a segurança social.
Note-se que, apesar de a 31/12/2017 a sociedade insolvente apresentar um ativo de € 79.167,10, apenas foi possível apreender e liquidar para a massa, no processo de insolvência, um bem no valor de € 809,10, sendo o passivo de € 851.280,38, tendo sido reclamados e reconhecidos créditos no valor de € 150.518,11. Entre estes, além dos já referidos créditos laborais, tributários e à segurança social, venceram-se ainda créditos de fornecimento de água pela C... e fornecimentos à credora B..., SA, cujas faturas venceram-se entre maio e setembro de 2018 (vd. Apenso G). Mais acresce o crédito de custas no valor de € 9.460,96 verificado no apenso F (custas do referido processo 477/12. 1TYVNG-J3, deste juízo de comércio), extinto por inutilidade superveniente da lide.
De acordo com o art.º 14º do Decreto-Lei nº 59/2015, de 21/04, o financiamento do Fundo de Garantia Social é assegurado não apenas pelo conjunto dos empregadores, como do próprio Estado, o tal Fundo assegurou neste processo o pagamento de créditos laborais no valor de € 64.847,40 (vd. Apensos D e E).
E apesar de admitir estar impossibilitada de satisfazer as obrigações vencidas, nem ter trabalhadores ao seu serviço ou sequer estabelecimento onde pudesse desenvolver a sua atividade, quando se apresentou à insolvência a 28/11/2018 a sociedade A..., Lda considerou ser ainda possível obter a sua recuperação no âmbito do processo de insolvência, para o manifestou a sua intenção de apresentar um plano de recuperação, intenção que reiterou na Assembleia de Credores que teve lugar a 24/01/2019, propondo- se apresentar um plano em 30 dias, vindo a 22/02/2019 requerer o prosseguimento dos autos para liquidação, por não ter obtido consenso de todos os credores em condições que permitissem a recuperação.
Do exposto resulta que, em janeiro de 2018 os Apelantes deviam ter apresentado a sociedade A..., Lda à insolvência e, ao fazê-lo apenas a 29/11/2018, agravaram a situação de insolvência, pelo vencimento de novos créditos, que a sociedade não tinha capacidade de honrar, pois que, do valor obtido com a cessação do contrato de arrendamento, fez uma liquidação informal sem observância da graduação decorrente de um processo de insolvência, apenas sendo obtido para a massa o valor de € 809,10.
A sentença recorrida fez adequada integração dos factos invocados nos articulados quando qualificou como culposa a insolvência de A..., Lda e declarou como afetados o ora Apelantes.
Não merece qualquer reparo a seleção dos factos dados como provados ou não provados na sentença, e respetiva motivação e a subsunção jurídica que da mesma resultou, norteada pelos princípios gerais aplicáveis como o da livre apreciação da prova.
O adiamento da decisão de apresentação à insolvência importou prejuízo para os credores.
Da conjugação dos meios de prova resultam verificados os factos ínsitos na alínea
a) do nº 3 do art.º 186º do C.I.R.E., porquanto se demonstrou o incumprimento do dever de requerer a insolvência, com agravamento da situação de insolvência.
Como tal, bem andou o tribunal recorrido em qualificar a insolvência de A..., Lda como culposa e declarar como afetados os aqui Apelantes, com as legais consequências.
Termos em que se conclui que o recurso não merece provimento, por ser destituído de fundamento, devendo manter-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.
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AA, Requerente/Apelado veio responder ao recurso, terminando com as seguintes CONCLUSÕES
1. A sentença proferida contém uma correta valoração da matéria de facto e uma correta aplicação do Direito, pelo que não merece qualquer reparo ou censura, devendo manter-se tal e qual foi doutamente proferida.
2. De acordo com as alegações de recurso apresentadas e as respetivas conclusões, os recorrentes pugnam por uma tese que não tem qualquer acolhimento.
3. A sociedade “A..., Lda.” apresentou-se à insolvência em 29-11-2018.
4. O restaurante “A..., Lda.” encontrou-se impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas no momento em que celebrou o acordo de revogação do contrato de arrendamento do estabelecimento, ou seja, em 19-12-2017, deixando de dispor do espaço onde funcionava o restaurante, deixando de haver actividade, e consequentemente receita.
5. A gerência da “A...” tomou conhecimento da situação de insolvência em 19-12-2017, pois nesta data sabia, ou não podia ignorar com culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
6. E ainda que se entenda que o momento do conhecimento da situação de insolvência é o do despedimento colectivo dos trabalhadores – 14-03-2018 – ou o do encerramento do estabelecimento – 31-05-2018, A...” só se apresentou à insolvência em 29-11-2018, prazo que muito excede os 30 dias previstos legalmente.
7. E essa falta de apresentação atempada à insolvência torna evidente o prejuízo que daí resulta para os credores, pelo avolumar dos seus créditos face ao vencimento de juros, e pelo consequente avolumar do passivo global da sociedade insolvente.
8. Essa inércia da gerência da “A...”, pela não apresentação atempada à insolvência, projectou, na esfera jurídica dos credores, prejuízos que se relacionam com o abandono e consequente degradação de alguns bens, pelo menos durante o período de que a sociedade dispunha para se apresentar à insolvência.
9. Por outro lado, a gerência da sociedade “A...” também conhecia a sua situação de insolvência, pelo menos desde 2015!
10. Ou seja, pelo menos desde 2015, a sociedade apresenta um passivo manifestamente superior ao activo.
11. Ora, logo no momento em que os Recorrentes assumiram a Gerência da insolvente (em 27-11-2017), conheciam, ou tinham obrigação de conhecer, a situação de insolvência em que se encontrava o restaurante “A...”.
12. No entanto, a gerência da “A...” só se apresentou à insolvência em 29-11-2018, em prazo que muito excede os 30 dias previstos legalmente.
13. Ora, da sentença proferida resulta explicitamente que ficou demonstrado o nexo de causalidade entre a omissão do dever legal consagrado no artigo 18.º, nº1, do CIRE e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
Senão vejamos o que diz a sentença:
14. “No caso sub judice, demonstrou-se que, muito embora a sociedade se tenha apresentado à insolvência em 30.11.2018, pelo que resulta dos autos, deveria tê-lo feito em momento anterior.
15. Da factualidade apurada para a fixação do concreto momento em que a devedora ficou impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, para, desse modo, definir a data em que os seus gerentes tomaram conhecimento da situação de insolvência ou em que devesse conhecê-la, está provado que, desde 2015 que a sociedade apresentava um passivo superior ao activo, cfr. ponto 23 dos factos provados.
16.Mais resultou provado que, em 19.12.2017 acordou na revogação do contrato de arrendamento do espaço onde desenvolvia actividade e ter promovido em 14.03.2018 o despedimento coletivo dos trabalhadores, ficando sem actividade que pudesse fazer face às dividas vencidas e às que posteriormente se venceriam, cfr. pontos 17 e 21. Estava assim a insolvente impossibilitada de pagar as dividas vencidas, pelo menos, desde 19.12.2017, quando deixou de ter disponível o espaço para laborar e obter meios para saldar as suas dividas, ficando sem trabalhadores ao seu serviço desde 14.03.2018, pelo que, deveria ter-se apresentado à insolvência em Janeiro de 2018 e não o fez, só o fazendo em 30.11.2018.
17. Na verdade, após, 14.03.2018 a situação de insolvência agravou-se com o vencimento de créditos dos trabalhadores, tributários e de cotizações, tendo sido reclamados e verificados créditos no valor total de €150.518,11, entre os quais € 3.865,29, do qual €3.659,91 respeita a capital e juros demora de IRC vencido a 04/10/2018,€ 8.862,39de cotizações à Segurança Social referentes ao mês de maio de 2018 e €90.967,53 de créditos laborais, nos quais se incluem não apenas as indemnizações do cessação do contrato de trabalho mas também férias vencidas e não gozadas, subsídio de férias e de tudo como melhor resulta do Apenso Ge do apenso de reclamação de créditos (apenso B).”
E em conclusão, diz a sentença que:
18. “No caso em apreço, concluímos pela verificação dos fundamentos vertidos no artº 186º, n.º 3, al. a) do CIRE, donde resulta a gravidade objectiva do comportamento do requerido relevante na situação de insolvência, ou, pelo menos, no agravamento dessa situação. Com efeito, os requeridos, perante as dificuldades económicas já sentidas a partir de 2015 com o aumento do passivo em relação ao activo, com a celebração do acordo revogatório do contrato de arrendamento e o despedimento coletivo dos trabalhadores, factos que não podiam desconhecer, deveriam ter-se apresentado à insolvência, em janeiro 2018, o que não fizeram, evitando assim, o agravamento da sua situação e o prejuízo dos credores, pelo que, tendo perfeito conhecimento da sua situação não deram cumprimento aos deveres que lhes eram impostos pelo artº 186º, n.º 3, al. a) do CIRE. No plano subjectivo, recolheram-se elementos que permitem concluir pela imputação dessa conduta aos requeridos.”
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE IMPROCEDER O RECURSO INTERPOSTO PELOS REQUERIDOS, MANTENDO-SE A DECISÃO RECORRIDA, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS,
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
No caso vertente, em face das conclusões do recurso, a questão a apreciar prende-se com a bondade da decisão que qualificou a insolvência como culposa.
III. FUNDAMENTAÇÃO
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A. OS FACTOS Na sentença em crise foram fixados os seguintes factos: 1 - Em 29.11.2018 veio a sociedade “A..., LDA.” requerer a sua declaração de insolvência, cfr. PI junta ao processo principal. 2 - A insolvente A..., Lda foi constituída por contrato de sociedade registado na Conservatória do Registo Comercial pela Ap..., com sede na Rua ..., ..., Porto, com o capital social de 80.000$00, tendo por objeto social a exploração de restaurante e seus derivados, sendo designados gerentes CC, HH, II e JJ, cfr. certidão da CRC junta aos autos. 3 - Pela AP. ... o capital social foi aumentado para 8000000$00, passando a gerência a ser assegurada por CC, HH, AA e AA, cfr certidão da CRC . 4 - Por renúncia de 26/03/2012, registada pela Ap. ... AA cessou as funções de gerente, e pela Ap. ... foi registada a nomeação como gerentes de BB e DD, cfr. certidão da CRC. 5 - O gerente AA faleceu no ano de 2007, tendo-lhe sucedido como únicos e universais herdeiros, a esposa GG e os filhos daquele do 1º casamento, EE, KK, LL e BB, também sucessores da quota que o falecido detinha na sociedade. 6 - As últimas contas depositas na Conservatória do Registo Comercial respeitam ao ano de 2016 (01-01-2016 a 31-12-2016), tendo o depósito sido efetuado a 2017-06-23 pelo Dep. 2363, cfr. certidão da CRC. 7 - Em 04.12.2018 foi proferida sentença a declarar a insolvência da sociedade “A..., LDA.”, nomeado A.I. o Sr. Dr. MM e designada data para realização de assembleia de credores, cfr. processo principal. 8 - Em 21.01.2019 foi junto pelo A.I. o relatório do artº 155º do CIRE o qual conclui pela liquidação do activo, cfr. processo principal. 9 - Na Assembleia de Credores que teve lugar a 24/01/2019, foi proposto pela devedora a apresentação de plano de insolvência, pretensão que foi votada favoravelmente, mas tal plano não se concretizou, tendo sido ordenado por despacho proferido a 13/03/2019 o prosseguimento dos autos para liquidação, cfr. processo principal. 10 - Foi apreendida para a massa insolvente uma viatura automóvel e um saldo no valor de €809,10, cfr. apenso C. 11 - Em 25.06.2021 foi proferido despacho a ordenar a substituição do A.I. 12 - No âmbito da Liquidação apenas foi obtido para a massa insolvente o valor de € 809,10, pelo que o processo foi encerrado ao abrigo do art.º 232º por decisão de 07/06/2022, no processo principal. 13 - Foram reclamados e reconhecidos créditos no valor global de €150.518,11 entre os quais €3.865,29, do qual €3.659,91 respeita a capital e juros de mora de IRC vencido a 04/10/2018, €8.862,39 de cotizações à Segurança Social referentes ao mês de maio de 2018 e €90.967,53 de créditos laborais, nos quais se incluem não apenas as indemnizações do cessação do contrato de trabalho mas também férias vencidas e não gozadas, subsídio de férias e de tudo como melhor resulta do Apenso G e do apenso de reclamação de créditos (apenso B). 14 - Em 03.10.2017 os proprietários das instalações onde a insolvente exercia a sua actividade enviou-lhe uma carta comunicando a sua intenção de denunciar o contrato de arrendamento em vigor, solicitando a desocupação do locado em 6 meses contra pagamento de indemnização, cfr. doc. 9 junto ao requerimento de 15.02.2024. 15 - Em 02.11.2017 foi realizada assembleia geral da sociedade para deliberar sobre a proposta de acordo revogatório dos contratos de arrendamento das instalações do restaurante A..., onde estiveram presentes, o requerente, HH, CC, GG, EE, KK, LL e BB, tendo votado contra GG e o requerente, os demais (representando a maioria) votaram favoravelmente, pelo que, a proposta foi aprovada por maioria dos votos, cfr. doc. junto ao requerimento de 09.02.2023. 16 - A deliberação não foi impugnada. 17 - Por acordo revogatório do contrato de arrendamento celebrado a 19/12/2017 entre a insolvente e a senhoria do espaço onde aquela laborava, foi acordado revogar os dois contratos de arrendamento, ficando a senhoria obrigada a pagar àquela a quantia de €40.000,00, cfr. doc. junto ao requerimento da insolvente em 19.03.2020. 18 - A A.I. solicitou informação ao mandatário da insolvente, nomeadamente extratos bancários da sociedade desse período (dezembro de 2017 e meses seguintes), assim como a documentação contabilística que comprovasse a utilização desse valor, ao que o mandatário da insolvente informou que “o referido valor foi, em exclusivo, utilizado no âmbito do giro comercial da Sociedade, nomeadamente no cumprimento de obrigações regulares, bem assim como na liquidação de créditos laborais.”, tendo fornecido o IBAN da conta bancária da insolvente ( ... – conta no Banco 1...) e o Balancete de Dezembro de 2017, em que resulta a entrada do valor da indemnização (€ 40.000,00) nas contas da Sociedade (conta ...), cfr. docs. juntos ao requerimento de 06.12.2021 do apenso C. 19 - Por requerimento da A.I. de 18.02.2022 foram juntos os extratos bancários entre 05.12.2017 e 28.02.2018, fornecidos pela insolvente de onde consta que o valor do acordo de revogação, de €40.000,00 foi depositado na conta da insolvente em 21.12.2017, cfr. apenso C.
20- Em 21.07.2021 o requerente comunicou à A.I. que o restaurante A... reabriu ao publico em 01.07.2021, cfr. doc. junto requerimento do requerente de 22.07.2022. 21 - A 14/03/2018 a insolvente promoveu o despedimento coletivo dos seus trabalhadores, cfr. docs. juntos ao requerimento de 09.02.2023. 22 - O estabelecimento encerrou em 31.05.2018. 23 - No âmbito do Processo nº 477/12.1TYVNG-J3, deste juízo de comércio (Inquérito Judicial à Sociedade instaurado pelo ora requerente em 19.04.2012), eram sócios, CC, HH, AA, foi realizada perícia à gestão e contas do exercício da insolvente, da qual resultou que a degradação dos capitais próprios da ora insolvente, demonstrados por: Ano Ativo Passivo 2015 44.335,12 830.879,92 2016 33.399,30 847.741,99 2017 79.167,10 851.280,38 24 - Deste relatório elaborado pelo Sr. Perito ali nomeado, consta que a contabilidade se encontrava organizada e actualizada, cfr. doc. junto ao requerimento de 09.02.2023. 25 - Tal processo foi declarado extinto por inutilidade superveniente da lide. 26 - Em 05.02.2019, veio AA, casado, contribuinte nº ..., residente na Rua ..., ..., ... Porto, sócio do restaurante “A..., Lda.”, requerer a abertura do incidente de qualificação de insolvência. 27 - Em cartas enviadas à A.I. pelo requerente foi dado conhecimento que o registo da marca “Restaurante A...” foi requerido em 18.09.2017 por BB e ter o restaurante reaberto ao publico em 01.07.2017, tendo o espaço mudado, mas a carta, as francezinhas, funcionários e mobiliário, não. Cfr. doc. junto ao requerimento de 22.07.2022.
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B - Factos não provados: Não se provou que: - o requerido EE tivesse praticado quaisquer actos de gerência de facto ou de direito, tomado decisões, contratado fornecedores, feito pagamentos.
- tenha havido ocultação ou dissipação de património por parte dos requeridos.
- tenha havido falta de colaboração reiterada por parte dos requeridos ao ex-A.I. nem à A.I. em funções.
B. O DIREITO
O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores. Mas para que possa iniciar-se a liquidação total do património do devedor é absolutamente indispensável que o tribunal emita uma sentença que o declare em estado de insolvência. Quer dizer: a sentença é o único título executivo susceptível de servir de base á execução universal e colectiva em que a insolvência se resolve. Proferida essa sentença, o sacrifício de todos os bens do insolvente que se segue, mais não é que a sua execução.
No entanto, para que seja proferida a sentença de declaração de insolvência, exige a lei que o devedor se encontre em estado de insolvência. Portanto, o primeiro problema que aquela sentença deve resolver é se se verificam as condições e circunstâncias, que, no pensamento da lei, justificam a declaração daquela situação de insolvência.
A impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos que caracteriza o estado de insolvência, pode, porém, ser meramente casual, ou fortuita e culposa, lato sensu (artº 185 do CIRE).
A insolvência é culposa quando esse estado tiver criado ou agravado em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 186 nº 1 do CIRE).
A qualificação da insolvência como culposa reclama, portanto, uma conduta ilícita e culposa do devedor ou dos seus administradores.
A ilicitude do comportamento do devedor ou dos seus administradores reparte-se por elementos objectivos e subjectivos. O elemento objectivo afere a ilicitude da actuação do devedor ou dos administradores pela sua correspondência com o estado de insolvência do primeiro: a conduta é ilícita se dela resulta a criação ou agravamento da situação de insolvência. O elemento subjectivo valora a conduta pelo conhecimento e vontade do devedor ou dos seus administradores na criação ou agravamento da situação de insolvência, i.e., pelo dolo ou pela negligência daquele ou destes. Mas não releva uma qualquer negligência – mas apenas uma negligência grave ou grosseira, quer dizer, uma negligência de grau essencialmente aumentado ou intensificado, portanto, uma violação particularmente qualificada dos deveres de cuidado ou diligência presentes no caso. Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 07.12.2012, tirado no processo 2273/10.1TBLRA-B.C1 Relembremos o texto do artigo 186º do CIRE. 1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. 2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas; c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; ; e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa; f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto; g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência; h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º 3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial. 4 - O disposto nos n.os 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações. 5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.
É praticamente uniforme na jurisprudência o entendimento de que este n.º 2 consagra presunções juris et de jure, pelo que a prova de alguma das situações ali contempladas determina, inexoravelmente, a qualificação da insolvência como culposa, dispensando a prova tanto do dolo ou da culpa grave do gerente ou administrador, como do nexo de causalidade entre a sua conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, e não admitindo prova em contrário, nos termos do disposto no artigo 350.º, n.º 2, parte final, do Código Civil (CC).
Alguma doutrina, com eco numa jurisprudência minoritária, suscita reservas quanto à qualificação das regras deste n.º 2 como verdadeiras presunções – que o artigo 349.º do CC define como «as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – e quanto à sua falta de autonomia relativamente ao n.º 1.
Neste sentido, Rui Pinto Duarte escreve o seguinte: «o n.º 1 do art. 186.º contém uma proposição que visa ligar certos efeitos (mediados pela qualificação da insolvência como culposa) ao facto de a insolvência ter sido criada ou agravada por actuação dolosa ou culposa do devedor ou dos seus administradores; o n.º 2 não tem, pelo menos, nalgumas das suas alíneas, por objecto ligar o estabelecimento desse facto a outros, como seria próprio de uma presunção, antes contém proposições substantivas especiais, que em parte são concretizações da proposição geral e em parte afastamentos dela; na medida em que não visam a aplicação do n.º 1, os enunciados do n.º 2 não são presunções da existência da hipótese de facto nele descrita; as regras do n.º 3, essas sim, admitindo a categoria das presunções legais (sobre cuja utilidade tenho dúvidas, por entender que as mesmas se reconduzem tendencialmente a regras sobre ónus de prova e ficções), podem ser qualificadas como presunções de a insolvência ter sido criada ou agravada por actuação dolosa ou culposa dos administradores do devedor» (Responsabilidade dos administradores: coordenação dos regimes do CSC e do CIRE, III Congresso de Direito da Insolvência, Cord. Catarina Serra, Coimbra 2015, p. 160, nota 22).
No mesmo sentido, escreve-se o seguinte no ac. TRP de 10.02.2011 (proc. n.º 1283/07.0TJPRT-AG.P1): «Neste contexto, e como se refere em douto acórdão do Tribunal Constitucional referido pelo recorrente – acórdão n.º 570/2008 – “… é duvidoso que na previsão do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE se instituam verdadeiras presunções… o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal de situações típicas de insolvência culposa”.
Por isso que seja mais correcto afirmar-se em nosso entender, que nas situações a que se faz referência no artº 186º, nº2, do CIRE, mais do que uma presunção legal, se verifica o que Batista Machado define – “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, págs. 108 e 109 – como “ficções legais”, pois que, o que o legislador extrai a partir do facto base, não é um outro facto, mas antes uma conclusão jurídica, numa remissão implícita para a situação definida no nº 1 do artº 186º do CIRE. E por isso que, à semelhança das presunções juris et de jure não admita prova em contrário, sendo que dispensa a alegação – e consequentemente a prova – de qualquer outro facto, ficcionando desde logo, a partir da situação dada, a verificação da situação de insolvência dolosa».
Seja como for, estas diferentes qualificações da natureza das regras do n.º 2 não geram dissensos relevantes quanto ao seu efeito prático: a prova de uma das hipóteses previstas naquele n.º 2 conduz necessariamente à qualificação da insolvência como culposa e à afectação do seu autor por esta qualificação. Nos termos do n.º 3, do mesmo artigo 186.º do CIRE, presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido alguma das obrigações descritas nas suas alíneas. É pacífico na jurisprudência e na doutrina que esta norma consagra verdadeiras presunções juris tantum da culpa grave a que alude o n.º 1 do mesmo artigo, que apenas serão afastadas se o visado lograr fazer prova do contrário, nos termos do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 350.º do CC. Menos pacífica começou por ser a questão de saber se esta presunção abrange igualmente o nexo de causalidade, isto é, se esta norma dispensa igualmente a prova do nexo de causal entre a conduta do administrador (que se presume gravemente culposa) e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Na jurisprudência sempre foi claramente maioritária a resposta negativa a esta questão. Neste sentido, escreveu-se o seguinte no ac. do TRC de 16.09.2014 (proc. n.º 1146/12.8TBCVL-B.C1): «A qualificação da insolvência como culposa pressupõe, (…) de acordo com a norma citada [referindo-se ao artigo 186.º, n.º 1, do CIRE]: que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por determinada conduta ou actuação do devedor ou dos seus administradores; que tal actuação seja dolosa ou gravemente culposa e que esta actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Contudo, o nº 2 da norma citada enuncia um conjunto de situações, cuja verificação determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, presumindo o legislador – sem admitir prova em contrário, como decorre da expressão “considera-se sempre” – que em tais situações a insolvência é sempre culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Situação diversa ocorre nas situações previstas no nº 3 da norma citada, onde apenas se presume a existência de culpa grave, sem dispensa, portanto, da demonstração do nexo causal entre o comportamento do devedor – que a lei presume como gravemente culposo – e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Por outro lado, e ao contrário do que acontece nas situações a que alude o nº 2, a presunção de culpa estabelecida no nº 3 pode ser ilidida mediante prova em contrário (conclusão que se impõe em face do disposto no art. 350º, nº 2, do C.Civil e em face da circunstância de a lei o não proibir)». Cfr. Acórdão desta Relação, relatado pelo Sr. Desembargador Artur Dionísio Oliveira, de 20.02.2024, tirado no processo 1872/22.3T8AMT-C.P1.
Descendo ao caso em apreço, haveria que determinar se a insolvência era culposa porque os administradores do devedor (que não é uma pessoa singular) incumpriram o dever de requerer a declaração de insolvência; Na sentença em crise escreveu-se: “Resta-nos apreciar se houve violação ao dever de apresentação à insolvência previsto no artº 186º, n.º 3 do CIRE. O Ministério Público invoca que a insolvente estava impossibilitada de pagar as suas dividas desde dezembro de 2017. O artigo 186.º, nº3, do CIRE preceitua: “Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) (…)”. O artigo 18.º, nº1, do CIRE esclarece que “o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la”. Acrescenta o seu n.º 3 que “Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º”. Por seu turno, o artigo 3.º, nº1, do CIRE estatui: “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”. A alínea a) do nº3 do artigo 186.º do CIRE “consagra uma mera presunção «juris tantum» de existência de culpa grave, não estabelecendo qualquer presunção quanto à verificação dos demais pressupostos fixados no nº1 do mesmo preceito para que a insolvência possa ser qualificada como culposa”, sendo que “esta só poderá ser declarada se tiver sido feita prova desses outros pressupostos, particularmente do nexo de causalidade adequada entre o comportamento do administrador do devedor integrador daquela alínea e a criação ou o agravamento da situação de insolvência” – cf. Ac. da Rel. do Porto, de 5.06.2012, proc. nº363/10.0TYVNG-A.P1, in www.dgsi.pt. Com efeito, a presunção prevista no nº3 do artigo 186.º do CIRE é ilidível, a articular, à luz do nº3 do artigo 9.º do Código Civil, com o nº1 do citado artigo, impondo-se exigir, para qualificar a insolvência como culposa, a prova de que a situação de insolvência foi criada ou agravada por essa conduta dos administradores da insolvente, porquanto da diferenciação entre o nº2 e o nº3 do artigo 186.º do CIRE “resulta que o legislador não quis consagrar, neste último caso (no n.º3), uma concepção complementar, a acrescer à noção geral de insolvência culposa definida no n.º1, em termos de dispensar a demonstração do nexo causal entre o comportamento verificado e o agravamento ou o surgimento da situação de insolvência do devedor” – cf. Ac. da Rel. de Lisboa, de 22.01.2008, proc. nº10141/2007-7; no mesmo sentido, o Ac. da Rel. do Porto, de 13.09.2007, proc. nº0731516, ambos in www.dgsi.pt. No caso sub judice, demonstrou-se que, muito embora a sociedade se tenha apresentado à insolvência em 30.11.2018, pelo que resulta dos autos, deveria tê-lo feito em momento anterior. Da factualidade apurada para a fixação do concreto momento em que a devedora ficou impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, para, desse modo, definir a data em que os seus gerentes tomaram conhecimento da situação de insolvência ou em que devesse conhecê-la, está provado que, desde 2015 que a sociedade apresentava um passivo superior ao activo, cfr. ponto 23 dos factos provados. Mais resultou provado que, em 19.12.2017 acordou na revogação do contrato de arrendamento do espaço onde desenvolvia actividade e ter promovido em 14.03.2018 o despedimento coletivo dos trabalhadores, ficando sem actividade que pudesse fazer face às dividas vencidas e às que posteriormente se venceriam, cfr. pontos 17 e 21. Estava assim a insolvente impossibilitada de pagar as dividas vencidas, pelo menos, desde 19.12.2017, quando deixou de ter disponível o espaço para laborar e obter meios para saldar as suas dividas, ficando sem trabalhadores ao seu serviço desde 14.03.2018, pelo que, deveria ter-se apresentado à insolvência em Janeiro de 2018 e não o fez, só o fazendo em 30.11.2018. Na verdade, após, 14.03.2018 a situação de insolvência agravou-se com o vencimento de créditos dos trabalhadores, tributários e de cotizações, tendo sido reclamados e verificados créditos no valor total de €150.518,11, entre os quais € 3.865,29, do qual €3.659,91 respeita a capital e juros de mora de IRC vencido a 04/10/2018, € 8.862,39 de cotizações à Segurança Social referentes ao mês de maio de 2018 e €90.967,53 de créditos laborais, nos quais se incluem não apenas as indemnizações do cessação do contrato de trabalho mas também férias vencidas e não gozadas, subsídio de férias e de tudo como melhor resulta do Apenso G e do apenso de reclamação de créditos (apenso B). Consideramos, assim, demonstrado o nexo de causalidade entre a omissão do dever legal consagrado no artigo 18.º, nº1, do CIRE e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. Quanto ao preenchimento desta alínea, parece-nos que, s.m.o., a factualidade provada permite enquadrar, sem qualquer dúvida, a conduta dos requeridos na mesma e concluir pela violação do dever ali previsto. Perante tudo o que exposto ficou, entendemos que a qualificação da presente insolvência deve assumir natureza culposa e afectada por ela os requeridos BB e DD, atento o disposto no artigo 186.°, nº 3, al. a) do C.I.R.E.”
Parece-nos ter sido seguido, na sentença, o seguinte silogismo:
● o artigo 3.º, nº1, do CIRE estatui: “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
● para qualificar a insolvência como culposa, é necessária a prova de que a situação de insolvência foi criada ou agravada por essa conduta dos administradores da insolvente
● no caso sub judice, demonstrou-se que, muito embora a sociedade se tenha apresentado à insolvência em 30.11.2018, pelo que resulta dos autos, deveria tê-lo feito em momento anterior.
● está provado que desde 2015 que a sociedade apresentava um passivo superior ao activo, cfr. ponto 23 dos factos provados.
● em 19.12.2017 acordou na revogação do contrato de arrendamento do espaço onde desenvolvia actividade e promoveu em 14.03.2018 o despedimento coletivo dos trabalhadores, ficando sem actividade que pudesse fazer face às dividas vencidas e às que posteriormente se venceriam, cfr. pontos 17 e 21.
● estava assim a insolvente impossibilitada de pagar as dividas vencidas, pelo menos, desde 19.12.2017, quando deixou de ter disponível o espaço para laborar e obter meios para saldar as suas dividas, ficando sem trabalhadores ao seu serviço desde 14.03.2018, pelo que, deveria ter-se apresentado à insolvência em Janeiro de 2018 e não o fez, só o fazendo em 30.11.2018.
● após 14.03.2018 a situação de insolvência agravou-se com o vencimento de créditos dos trabalhadores, tributários e de cotizações.
Vejamos.
BB e DD foram nomeados gerentes em 27.11.2017. Logo, estando provado que “desde 2015 que a sociedade apresentava um passivo superior ao activo, cfr. ponto 23 dos factos provados” e sabendo nós que “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”, facilmente se conclui que não foram estes administradores que, com a sua conduta, criaram a situação de insolvência.
Assim, resta verificar se a terão agravado.
É referido na sentença que “em 19.12.2017 acordou na revogação do contrato de arrendamento do espaço onde desenvolvia actividade e promoveu em 14.03.2018 o despedimento coletivo dos trabalhadores, ficando sem actividade que pudesse fazer face às dividas vencidas e às que posteriormente se venceriam, cfr. pontos 17 e 21”.
Quanto a este aspecto, devemos lembrar que houve uma assembleia geral da sociedade em 02.11.2017 (quando os ora gerentes ainda não o eram) na qual foi deliberado, por maioria, o acordo revogatório dos contratos de arrendamento.
Os actuais administradores apenas formalizaram o acordo revogatório de acordo com a deliberação da Assembleia.
Diz-se na sentença que “Estava assim a insolvente impossibilitada de pagar as dividas vencidas, pelo menos, desde 19.12.2017, quando deixou de ter disponível o espaço para laborar e obter meios para saldar as suas dividas, ficando sem trabalhadores ao seu serviço desde 14.03.2018, pelo que, deveria ter-se apresentado à insolvência em Janeiro de 2018 e não o fez, só o fazendo em 30.11.2018.”
A sociedade já estava incapaz de pagar as dívidas desde 2015.
Mais se refere que, ao ter “entregue” o espaço onde laborava e tendo procedido ao despedimento colectivo dos trabalhadores, aumentou os créditos, o que não teria acontecido se tivesse requerido, em Janeiro, a insolvência da sociedade.
No que toca ao caso dos trabalhadores, o despedimento colectivo envolve encargos relacionados com as indemnizações, salários devidos…..mas esses encargos existem, de igual forma, quando o despedimento é efectuado no âmbito da insolvência.
Pode em alguns casos, o despedimento colectivo gerar encargos mais elevados devido às indemnizações e procedimentos específicos e do outro lado, a insolvência pode limitar os recursos disponíveis para pagar esses encargos, podendo resultar em encargos menores, mas com o risco de não pagamento integral dos direitos dos trabalhadores, sendo que estes têm prioridade no pagamento dos créditos.
O que se pretende salvaguardar com a apresentação à insolvência é impedir o aumento dos créditos, com o objectivo de, não tendo a sociedade capacidade para pagar as suas dívidas (estando por isso insolvente) os credores vejam cada vez mais longe a possibilidade de ver satisfeitos os seus créditos.
O despedimento colectivo, pese embora o tempo de duração em cumprimento das regras legais, permite que os trabalhadores vejam satisfeitos, de forma mais sustentada, os seus créditos.
Relativamente ao pagamento à Segurança Social, as mesmas são igualmente devidas perante um processo de insolvência, enquanto os despedimentos não ocorrerem.
No que respeita ao pagamento de IRC, aquele que se venceu em Maio de 2018 refere-se ao período de tributação correspondente ao ano de 2017, pois, em Portugal, o IRC normalmente é declarado e pago no ano seguinte ao do exercício fiscal.
Não vemos como os administradores tenham agravado um crédito que se refere a um período de tributação no qual não eram gerentes.
Concluindo, entendemos que perante a fluidez da matéria de facto apurada, nem sequer se pode dizer que os créditos aumentaram. Assim, cremos que é de qualificar a insolvência como fortuita. Ver, no mesmo sentido: . Acórdão da Relação do Porto de 09.04.2024, tirado no processo 663/22.9T8AMT-A.P1 (relator o Ex. Sr. Desembargador Rodrigues Pires)” Com a nova redação do art. 186º, nº 3 do CIRE, onde passou a constar “presume-se unicamente a existência de culpa grave”, ficou definido que para ocorrerem as presunções previstas nas alíneas a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE é imprescindível demonstrar que a situação de insolvência foi causada ou agravada em consequência da conduta assumida pelo devedor integrativa dessas alíneas.”
- Acórdão da Relação de Coimbra de 12.07.2017, tirado no processo 370/14.3TJCBR-A.C1 “Por força da exigência plasmada no nº 1 do art.º 186º do CIRE, quer as situações que se encontram prevenidas nas alíneas a), b), c), d), e), f) e g) do n.º 2 desse artigo, quer as situações descritas nas alíneas do seu nº 3 – v.g., a falta de apresentação tempestiva à insolvência e a omissão das obrigações discriminadas na al. b), atinentes às contas - embora fazendo presumir a culpa (grave, nos casos que se enquadrem no aludido nº 3) dos administradores, só autorizam a qualificar a insolvência como culposa se se evidenciar a existência de nexo de causalidade entre essas faltas e o estado de insolvência. IV - As presunções ilidíveis estabelecidas no aludido nº 3, não abarcam o nexo causal entre as actuações omissivas aí previstas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento, pelo que, embora dispensando-se, na aludida norma, a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência, é necessário, nas situações aí abarcadas, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, não bastando a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. V - A circunstância de o Apelante ter omitido o dever de requerer a insolvência da empresa não é suficiente para que se classifique esta (insolvência) como culposa. VI - A violação, pelos administradores, v.g., do dever de requerer a insolvência, apenas permite presumir a culpa grave daqueles – mas já não a imputação da situação de insolvência, ou o seu agravamento, à respectiva conduta. VII - O atraso na apresentação à insolvência não pode causar prejuízo aos credores com a invocação de que os juros se avolumam na medida em que continuam a ser contados até àquela apresentação. VIII - Actualmente e em face do regime estabelecido no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os créditos continuam a vencer juros após a apresentação à insolvência, pelo que o atraso desta apresentação nunca ocasiona qualquer prejuízo aos credores. IX - Conclui-se, assim, que, por falta de factualidade provada idónea a esse desiderato – v.g., a do prejuízo que, da falta de apresentação tempestiva à insolvência, decorreu para os credores -, não é possível, no caso “sub judice”, dar como verificada a situação que permitiu qualificar como culposa a insolvência da Requerida/recorrente, não sendo possível dar como preenchida a previsão da alínea a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE.” -Acórdão da Relação de Coimbra de 06.10.2020, tirado no processo 3422/19.0T8VIS-B.C1, relatora a Ex. Sr. Desembargadora Maria João Areias“1. A obrigação de apresentação à insolvência não se esgota no momento em que o devedor deixa passar o prazo de 30 dias que a lei lhe confere para o efeito. Tratando-se de um facto continuado, decorrido o prazo legal o devedor permanecerá em incumprimento até se apresentar à insolvência ou até que um terceiro, a quem a lei confira legitimidade para tal, o faça. 2. A presunção de “culpa grave” do nº3 do artigo 186º não prescinde de um juízo de causalidade entre o facto fundamentador da presunção e a criação ou agravamento da situação de insolvência, quer se tenha este por presumido ou se entenda ser este a provar pelo lesado. 3. Da alegação de que, em julho de 2016, a sociedade insolvente se encontrava destituída de qualquer património e inativa há quase um ano, ressalta a irrelevância do atraso na apresentação à insolvência posterior a tal data para a criação ou agravamento da situação de insolvência. Acórdão da Relação de Guimarães de 11 de Maio de 2023, tirado no processo 2411/20.6T8VCT-D.G1 “IV. A presunção de «existência de culpa grave» prevista no art. 186.º, n.º 3, do CIRE, reporta-se unicamente ao incumprimento do dever do administrador do devedor de oportuna apresentação deste à insolvência, ou de elaborar, fiscalizar e depositar as contas anuais daquele; e a lei permite a sua ilisão, pela prova em contrário, isto é, de que não existiu culpa grave na violação daqueles deveres. V. Para que uma insolvência seja qualificada como culposa, pelo incumprimento com culpa grave dos deveres previstos no art. 186.º, n.º 3, do CIRE, exige-se ainda que se alegue e prove que aquele inadimplemento afectou a situação de insolvência, nomeadamente agravando-a. “
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em dar provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e declarando fortuita a insolvência de “A..., LDA”
Custas pelo recorrido.
Registe e notifique.
DN
Porto, 10 de Julho de 2025
(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)
Por expressa opção da relatora, não se segue o Acordo Ortográfico de 1990.
Raquel Correia de Lima
Maria Eiró
Maria da Luz Seabra