ACÇÃO EXECUTIVA
ILEGITIMIDADE DA EXEQUENTE
CESSÃO DE CRÉDITOS
ÓNUS DA PROVA
Sumário

Sumário: (da responsabilidade do relator):
I – A nulidade da sentença prevista na al. b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC abrange, apenas, a absoluta falta de fundamentação, isto é, a absoluta falta de indicação das razões de facto e de direito que justificam a decisão, e não a fundamentação insuficiente ou lacónica e, muito menos ainda, o desacerto da decisão;
II – À decisão sobre a matéria de facto não é aplicável o regime das nulidades da sentença previsto no art. 615.º, n.º 1 do CPC, mas sim o disposto no respecivo art. 662.º, pelo que as eventuais deficiências ao nível da decisão sobre a matéria de facto não são causa de nulidade da sentença, mas sim fundamento de impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
III – Compete à exequente/embargada o ónus de provar que o crédito decorrente da livrança que deu à execução lhe foi cedido pelo(s) anterior(es) titular(es), sob pena de ilegitimidade, por não figurar no título executivo como credora, nem demonstrar a sucessão na titularidade desse crédito.

Texto Integral

Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa, sob a forma ordinária, que ARES LUSITANI STC, S.A., move contra AA, veio este deduzir embargos de executado, onde, para além do mais, defende que a exequente carece de legitimidade, por não se encontrar fundamentada a alegada transmissão para si do crédito exequendo, e impugna a veracidade, autenticidade e legalidade dos documentos juntos pela exequente com o requerimento executivo e as assinaturas apostas nos mesmos.
1.2. A exequente contestou, pugnando pela improcedência dos embargos e reafirmando as alegadas transmissões do crédito exequendo, juntando documentos, sem requerer a produção de qualquer outro meio de prova.
1.3. Em 13.10.2022, foi proferido o seguinte despacho: «Notifique a exequente para em dez dias juntar aos autos versão integralmente legível dos contratos de cessão de créditos e respetivos anexos juntos ao requerimento executivo».
1.4. Após junção (em 11.11.2022) de documentos pela exequente, foi, em 23.03.2023, proferido o seguinte despacho: «O documento eletrónico anexo como doc 2 continua a ter partes ilegíveis. Por outro lado, a exequente não identifica onde se encontra o credito exequendo nos anexos aos contratos, designadamente por referencia a pagina e linha. Razão pela qual se lhe concede o prazo de dez dias para o efeito. Notifique».
1.5. Nessa sequência, a exequente procedeu (em 18.04.2023) à junção de documentos, cuja veracidade, legalidade e autenticidade foram impugnados (em 05.03.2023) pelo executado/embargante, sem que a exequente algo tenha requerido.
1.6. Em 15.10.2024, foi, então, proferido despacho saneador, que julgou procedente a excepção da ilegitimidade activa, e, em consequência, absolveu o executado/embargante da instância executiva, condenando a exequente/embargada nas custas.
1.4. Inconformada, apelou a exequente/embargada, pedindo que tal decisão seja revogada e substituída por outra que julgue improcedente a excepção da ilegitimidade activa, formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
«1. Veio o Tribunal a quo decidir, da seguinte forma, “Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, julgo procedente a excepção de ilegitimidade activa, e, em consequência, absolvo o Embargante da instância executiva. * Custas pela Embargada (art. 527.º, n.º 1 e n.º 2, do N.C.P.C.). * Fixo aos Embargos o valor de €679.218,23.”
2. Ressalvando-se o devido respeito pela opinião do Ilustre Julgador a quo, vem a Recorrente interpor recurso da Sentença proferida, porquanto crê que a sua decisão, assenta num notório erro de apreciação da prova carreada para os autos e em consequência numa nulidade da sentença recorrida.
3. Em sede de fundamentação, entendeu o Tribunal a quo que, “(… )Verifica-se, com pertinência para esta questão, apelando aos factos provados, que, efectivamente, em 19/12/2018 a CEMG celebrou com a Mimulus Finance, DAC um contrato de cessão de créditos e esta última e a Ares Lusitani celebraram, por sua vez um contrato de cessão de créditos em 12/04/2019. Contudo, os referidos contratos não identificam cabalmente quais os créditos titulados pelas cedentes que são objecto de cessão, ou seja, não resulta dos documentos juntos que o crédito que se encontra reclamado e titulado pela livrança apresentada à execução foi objecto dos ditos contratos, e, como tal, cedido à Exequente. Isto porque os anexos 10 a 12 do 1.º contrato (fls. 118 a 128) – Doc. 2 junto com o RE estão ilegíveis, o mesmo sucedendo com a listagem que integra o Doc. 2 junto com o requerimento de 11/11/2022 e o Doc. n.º 3 junto com este requerimento tratase uma de listagem avulsa, não rubricada pelas partes contratantes, de créditos por referência apenas a números internos, sem correspondência com a livrança, nem com os seus subscritores ou com o valor com o qual foi preenchida, inexistindo possibilidade de confirmar com segurança que se refere ao crédito constante da livrança dada à execução, logo, sem elementos suficientes que permitam estabelecer uma conexão com o crédito exequendo. Também o anexo 9 do 2.º contrato junto com o Requerimento Executivo (Doc. 3) é uma listagem avulsa de créditos por referência apenas a números internos, sem correspondência com a livrança, nem com os seus subscritores ou com o valor com o qual foi preenchida, inexistindo possibilidade de confirmar com segurança que se refere ao crédito constante da livrança dada à execução. Por outro lado, o Doc. 2 junto com o requerimento de 18/04/2023 (tal como o Doc. 3 junto com o Req.to de 11/11/2022) trata-se de um documento avulso, não rubricado pelas partes contratantes, que nada indica tratar-se de anexo de qualquer um dos contratos invocados, tratando-se, ao invés, de um documento gerado por via electrónica, cuja assinatura, para ser válida, carece de ser certificada nos termos legais para valer enquanto tal, e que, de todo o modo, trata-se, mais uma vez, de listagem avulsa de créditos por referência apenas a números internos, sem correspondência com a livrança, nem com os seus subscritores ou com o valor com o qual foi preenchida. Aliás, a profusão de documentos com listagens avulsas apresentados pela Embargada exequente, em que as listagens juntas no Requerimento Executivo são distintas dos documentos electrónicos apresentados em 18/04/2023, é sintoma da dificuldade demonstrada por aquela na cabal identificação de que o crédito reclamado na execução foi objecto dos ditos contratos de cessão. Conclui-se, assim, que os documentos juntos aos autos não permitem concluir que o crédito exequendo foi objecto dos contratos de cessão invocados. Logo, é manifesta a ilegitimidade da Exequente para demandar o executado na acção executiva, na posição de credora (…)”.
4. Ora, a aqui Recorrente deu entrada a acção executiva em 05/02/2020.
5. Em 16/06/2020 foi proferido Despacho Liminar a ordenar a citação do executado para, em vinte dias pagar, ou opor-se à Execução.
6. Aquando do presente Despacho o Tribunal não convidou a Recorrente a aperfeiçoar a petição inicial de forma a suprir eventuais irregularidades ou imprecisões ou até a juntar documento mais legível.
7. A 14/09/2020 foram deduzidos Embargos de Executado pelo aqui Recorrido,
8. Os quais foram contestados em 01/02/2021 pela Recorrente.
9. Em 13/10/2022 foi a Exequente/Recorrente notificada “para em dez dias juntar aos autos versão integralmente legível dos contratos de cessão de créditos e respetivos anexos juntos ao requerimento executivo.”
10. A Recorrente procedeu em conformidade.
11. Em 23/03/2023 o douto Tribunal profere despacho indicando o seguinte “O documento eletrónico anexo como doc 2 continua a ter partes ilegíveis. Por outro lado, a exequente não identifica onde se encontra o credito exequendo nos anexos aos contratos, designadamente por referencia a pagina e linha. Razão pela qual se lhe concede o prazo de dez dias para o efeito. Notifique”
12. Tempestivamente a aqui Recorrente informou, “que a ilegibilidade do documento se deve ao seu volume que não é suportavel pelo citius. Desta feita, a aqui Embargada vem, muito respeitosamente, juntar a Escritura indicada como doc. 2 e bem assim, assinalar na lista dos créditos cedidos a concreta operação/crédito cedido e aqui em discussão (PÁGINA 9)”
13. Note-se que as Cessões de Créditos, quando envolvem milhares de créditos como é o caso da(s) presente(s) por conterem muitas páginas, são documentos informaticamente muito “pesados”, sendo que quando juntos via citius poderão ver a sua legibilidade comprometida.
14. Quando o Tribunal entende que o documento não está suficientemente legível é seu dever requerer a sua junção para que possa proferir uma decisão fundamentada e justa.
15. A Recorrente respondeu a todos os convites do Tribunal, cooperando sempre e assinalando a amarelo na página 9 da lista de créditos o concreto crédito cedido e aqui em discussão - nº 433360012127.
16. elo que não pode a Recorrente aceitar que o douto Tribunal refira que “os referidos contratos não identificam cabalmente quais os créditos titulados pelas cedentes que são objecto de cessão”
17. Nem tão pouco se aceita a conclusão do douto Tribunal, “ou seja, não resulta dos documentos juntos que o crédito que se encontra reclamado e titulado pela livrança apresentada à execução foi objecto dos ditos contratos, e, como tal, cedido à Exequente”.
18. No âmbito de uma cessão de créditos a identificação dos créditos faz-se pelo nº do contrato,
19. No seguimento de convite pelo douto Tribunal a Recorrente juntou a lista dos créditos cedidos,
20. A Recorrente assinalou na pagina 9 da lista, a amarelo, o crédito cedido e aqui em crise.
21. O nº do contrato coincide com o nº da livrança – nº 433360012127,
22. Na descrição do requerimento executivo a Exequente já havia indicado este nº de contrato, cfr. infra:
“1. A CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL adquiriu, em 31 de Março de 2011, o Finibanco S.A., tendo ficado titular de todos os contratos de crédito detidos por este.
2. Por Contrato de Cessão de Carteira de Créditos, outorgado em 27.12.2018, a CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL – CAIXA ECONÓMICA BANCÁRIA, S.A. (adiante abreviadamente designada por CEMG) cedeu à MIMULUS FINANCE DAC os créditos decorrentes da operação n.º ..., bem como todas as garantias a eles inerentes, conforme contrato de cessão de créditos, que aqui se junta como Documento n.º 2 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
3. Posteriormente, a 12.04.2019, a MIMULUS FINANCE DAC cedeu à ARES LUSITANI STC SA, os créditos acima identificados, bem como todas as garantias a eles inerentes, conforme contrato de cessão de créditos e respetivo anexo com identificação da operação n.º ..., que aqui se junta como Documento n.º 3 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.”
23. Por fim e não menos importante será de notar que o original da livrança, título executivo, foi junto aos autos em 10/02/2020!
24. A Recorrente respondeu ao convite do Tribunal, assinalando e autonomizando na lista de créditos, , o crédito aqui em discussão;
25. Esse crédito está identificado pelo nº …,
26. O nº …. corresponde ao nº da livrança, aqui título executivo – e não corresponde a um nº interno como tenta o Tribunal a quo fazer crer.
27. O nº da livrança encontra-se expressa no requerimento executivo,
28. No requerimento executivo está expresso o valor pelo qual foi preenchida a livrança;
29. Da livrança resultam os seus subscritores e avalista;
30. O original da livrança nº …. foi junto aos autos pela Exequente e aqui Recorrente, já após a cessão de créditos,
31. E (inexplicavelmente) o douto Tribunal conclui que, “os referidos contratos não identificam cabalmente quais os créditos titulados pelas cedentes que são objecto de cessão, ou seja, não resulta dos documentos juntos que o crédito que se encontra reclamado e titulado pela livrança apresentada à execução foi objecto dos ditos contratos, e, como tal, cedido à Exequente.” - ?!
32. Mais, o Tribunal a quo conclui ainda que inexiste, “possibilidade de confirmar com segurança que se refere ao crédito constante da livrança dada à execução, logo, sem elementos suficientes que permitam estabelecer uma conexão com o crédito exequendo” - ?!
33. Face a todo o supra exposto não compreende como chegou o tribunal a quo a tão descabida conclusão.
34. Pelo que surge a questão, Como poderia a Exequente, aqui Recorrente, ter na sua posse o título executivo se o crédito titulado por este documento não lhe tivesse sido cedido?
35. Face a todo o supra exposto, não se compreende o raciocínio do Tribunal a quo,
36. Quando é facto mais que evidente que o crédito cedido corresponde à livrança executada e cujo original foi entregue.
37. Que mais prova poderia a aqui Recorrente fazer?!
38. A única dificuldade que a Exequente/Recorrente teve foi inicialmente na legibilidade dos documentos por razões de limitação do próprio citius, mas que foi claramente ultrapassada.
39. Pelo que outra conclusão não se pode retirar que não seja que o Tribunal formulou o seu juízo fazendo tábua rasa,
40. Da descrição dos factos (onde constava o nº do contrato/nº da livrança),
41. Da lista de créditos de onde resulta o nº do contrato/nº da livrança,
42. E bem assim, do próprio original da livrança junto ao processo.
43. Valorando erradamente toda a prova carreada nos autos.
44. Ou seja, o Tribunal a quo claramente não relacionou todos os elementos/documentos que dispunha.
45. Denotando um claro desinteresse do Tribunal a quo de todos os factos e prova juntos pela Exequente, aqui Recorrente.
46. Sendo certo, que dúvidas nunca poderiam existir quanto à legitimidade da aqui Recorrente.
47. Face a todo o supra exposto, entende a Recorrente que andou mal o Tribunal a quo quando decidiu, “(…)que os documentos juntos aos autos não permitem concluir que o crédito exequendo foi objecto dos contratos de cessão invocados. Logo, é manifesta a ilegitimidade da Exequente para demandar o executado na acção executiva, na posição de credora”.
48. Decisão com base num erro de apreciação da prova que viola o direito de crédito da Recorrente.
49. Razão pela qual se recorre da presente decisão.
50. Em suma, ao decidir o Tribunal a quo, “que os documentos juntos aos autos não permitem concluir que o crédito exequendo foi objecto dos contratos de cessão invocados. Logo, é manifesta a ilegitimidade da Exequente para demandar o executado na acção executiva, na posição de credora. * Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, julgo procedente a excepção de ilegitimidade activa, e, em consequência, absolvo o Embargante da instância executiva.” entende a Recorrente que houve um erro notório na apreciação da prova.
51. Verifica-se um erro na apreciação da prova quando no texto da decisão se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
52. As regras da experiência comum deveriam levar o Tribunal a concluir que considerando todo o exposto anteriormente quanto à identificação do crédito cedido,
53. Considerando que a Exequente/Recorrente tem na sua posse o original da livrança que titula o crédito cedido,
54. Que a aqui Exequente é parte legítima nestes autos.
55. Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
56. O que salvo melhor entendimento não se verificou na sentença recorrida,
57. Não tendo existido qualquer exame crítico da prova documental junta aos autos, violando em consequência o disposto no artigo 607º nº 4 do CPC.
58. Para a formação da convicção do Tribunal, o n.º 4 do art. 607.º do C.P.C. , que está em causa, impõe ao julgador que na fundamentação da sentença declare ( cita-se ) “ quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras de experiência”.
59. O dever de fundamentação das decisões decorre do art. 208.º, n.º 1, do CRP, sendo da maior relevância não só para que possa ser exercido controlo no julgamento da matéria de facto, como na decisão de direito.
60. Assim, a fundamentação da convicção do julgador deve ser feita com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo que as partes saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal. O que não foi feito.
61. Ora, a violação das disposições supra constitui uma nulidade da sentença, sujeita ao regime dos artigos 615º nº 1 b) do CPC.
62. Aqui chegados, dúvidas não restam de que se impõe a anulação da decisão recorrida, devendo o Tribunal a quo declarar a legitimidade da Exequente, aqui Recorrente.
63. Imperando a necessidade de revogação da sentença de que aqui se recorre».
1.5. O executado/embargante contra-alegou, propugnando pela confirmação da decisão recorrida, alinhando as seguintes conclusões:
«A. A exequente/embargada/recorrente não fundamentou a sua legitimidade ativa para a presente ação executiva.
B. O título executivo que serve de fundamento à presente ação executiva é uma livrança da qual é beneficiária a Caixa Económica Montepio Geral (Finibanco), subscrita pela sociedade J. S… & Filhos, S.A. e com o valor de € 634.052,82.
C. A exequente alega ter adquirido o crédito detido sobre o executado em 12.04.2019 à MIMULUS FINANCE DAC, sendo que esta havia adquirido tal crédito em 27.12.2018, à CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL – CAIXA ECONÓMICA BANCÁRIA, S.A., a qual por sua vez adquiriu, em 31 de Março de 2011, o Finibanco S.A., tendo ficado titular de todos os contratos de crédito detidos por este.
D. Nenhum dos documentos juntos pela recorrente faz qualquer menção expressa à transmissão do concreto crédito detido pela exequente sobre o executado.
E. Não resulta dos documentos juntos pela exequente/embargada/recorrente que o crédito que se encontra reclamado e titulado pela livrança apresentada à execução foi objeto dos ditos contratos de cessão de créditos, e, como tal, cedido à Exequente.
F. É manifesta a ilegitimidade da exequente/embargada/recorrente para demandar o executado na presente ação executiva, na posição de credora. G. Face ao que, bem andou o Tribunal a quo ao julgar procedente a invocada exceção de ilegitimidade ativa, e, em consequência, absolveu o embargante da instância executiva, com as devidas e legais consequências. H. Exceção que se requer a V/ Exªs seja confirmada, com o que se fará a costumada JUSTIÇA!».
1.6. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, as questões essenciais a decidir consistem em saber:
a) se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação;
b) se houve erro notório na apreciação da prova.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A decisão recorrida considerou provada a seguinte matéria de facto:
«1 – A Exequente Ares Lusitani intentou uma acção executiva para pagamento de quantia certa contra o Embargante, munida de uma livrança da qual é beneficiária a Caixa Económica Montepio Geral (Finibanco), cujo teor se dá por integralmente reproduzido, subscrita pela sociedade J. S… & Filhos, S.A. e com o valor de €634.052,82.
2 – Lê-se no requerimento executivo, na exposição de facto, além do mais:
«QUESTÃO PRÉVIA
1. A CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL adquiriu, em 31 de Março de 2011, o Finibanco S.A., tendo ficado titular de todos os contratos de crédito detidos por este.
2. Por Contrato de Cessão de Carteira de Créditos, outorgado em 27.12.2018, a CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL – CAIXA ECONÓMICA BANCÁRIA, S.A. (adiante abreviadamente designada por CEMG) cedeu à MIMULUS FINANCE DAC os créditos decorrentes da operação n.º ..., bem como todas as garantias a eles inerentes, conforme contrato de cessão de créditos, que aqui se junta como Documento n.º 2 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
3. Posteriormente, a 12.04.2019, a MIMULUS FINANCE DAC cedeu à ARES LUSITANI STC SA, os créditos acima identificados, bem como todas as garantias a eles inerentes, conforme contrato de cessão de créditos e respetivo anexo com identificação da operação n.º ..., que aqui se junta como Documento n.º 3 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos».
3 –A CEMG e a sociedade Mimulus Finance, DAC, celebraram em 19/12/2018 um contrato de cessão de créditos e esta última e a Ares Lusitani celebraram em 12/04/2019 um contrato de cessão de créditos, conforme documento juntos com o requerimento executivo, que aqui se dão por reproduzidos».
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Comecemos por verificar se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação.
O tribunal a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, mas não se pronunciou sobre a arguida nulidade, como se lhe impunha, atento o disposto nos arts. 641.º, n.º 1 e 617.º, n.º 1 do CPC.
A omissão de despacho do tribunal a quo sobre a nulidade arguida não determina necessariamente a remessa dos autos à 1.ª instância para tal efeito (cfr. n.º 5, do referido art. 617.º), cabendo ao relator apreciar se essa intervenção se mostra ou não indispensável – cfr., neste sentido Abrantes Geraldes, in Recursos no Processo Civil, p. 149.
Ora, no caso presente, tendo presente a natureza das questões suscitadas e o enquadramento que devem merecer, não se justifica a baixa do processo para a pronúncia em falta, passando-se desde já ao conhecimento da suscitada nulidade.
Dispõe a al. b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, disposição que é aplicável aos despachos (art. 613.º, n.º 3 do CPC).
As causas de nulidade, taxativamente, enumeradas no art. 615.º do CPC, não visam o chamado erro de julgamento, nem a injustiça da decisão ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável. Não obstante, muitas vezes, as partes confundem os vícios que determinam as nulidades da sentença/despacho com o inconformismo quanto ao teor da decisão, como parece ocorrer no caso vertente.
Vejamos, ainda assim, se o despacho em causa é nulo por falta de fundamentação.
Como é consabido, o dever de fundamentação das decisões judiciais tem consagração constitucional (art. 205.º da CRP) e infraconstitucional (art. 154.º do CPC), apenas sendo dispensável no caso de decisões de mero expediente.
Assim, ainda que a questão decidenda não suscite especiais dúvidas, a respectiva decisão deve ser fundamentada nos termos que se apresentem ajustados ao caso, sendo certo que a qualidade da fundamentação é aferida em função do seu conteúdo substancial e não por via da sua extensão.
Tem sido, uniformemente, entendido pela jurisprudência que a nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC abrange, apenas, a absoluta falta de fundamentação (isto é, a falta absoluta de indicação das razões de facto e de direito que justificam a decisão) e não a fundamentação insuficiente ou lacónica e, muito menos ainda, o desacerto da decisão.
Nesta senda, escreveu-se no acórdão do STJ de 2.06.2016, in www.dgsi.pt, que «As causas de nulidade tipificadas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 615º […] ocorrem quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão (al. b)) ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou se verifique alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (c)). O dever de fundamentar as decisões tem consagração expressa no artigo 154º do Código de Processo Civil e impõe-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respectivo fundamento ou fundamentos […] Não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a falta absoluta de motivação constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo 668º citado, como dão nota A. Varela, M. Bezerra e S. Nora (Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, p. 670/672), ao escreverem “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. Só a total omissão dos fundamentos, a completa ausência de motivação da decisão pode conduzir à nulidade suscitada».
Este traduz, aliás, o pensamento de Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, V, 3.ª ed., Coimbra Editora, p. 140, quando refere que «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto».
No caso vertente, decorre à evidência que o despacho recorrido não padece de falta de fundamentação, sendo perfeitamente possível descortinar as razões que conduziram à decisão, tanto que a recorrente logrou atacá-las, por via deste recurso.
A recorrente refere que a decisão recorrida não procedeu a uma exame crítico da prova documental junta aos autos, o que viola o disposto nos arts. 208.º, n.º 1 da CRP e 607.º, n.º 4 do CPC (cfr. conclusões 55.ª a 61.ª). Ou seja, ao invocar a nulidade supra referida, a recorrente insurge-se, na verdade, contra a forma como o tribunal a quo apreciou a prova produzida e fixou a matéria de facto provada e não provada.
Sucede que à decisão sobre a matéria de facto não é aplicável o regime das nulidades da sentença previsto no art. 615.º, n.º 1 do CPC, mas sim o disposto no respectivo art. 662.º.
Neste sentido, veja-se, o acórdão do STJ de 23.03.2017, in www.dgsi.pt:
«I. O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.
III. O mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito».
Também o acórdão da RL de 29.10.2015, in www.dgsi.pt, decidiu que:
«I. A omissão da declaração dos factos não provados é uma circunstância relevante no exame e decisão da causa.
II. A fundamentação da matéria de facto deve indicar, de forma clara, os concretos meios de prova que determinaram a decisão, positiva ou negativa, para, assim, dar adequado cumprimento à formalidade legal consagrada no art. 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
III. Com a omissão das formalidades previstas no art. 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, pode cometer-se uma nulidade processual.
IV. As nulidades da sentença, taxativamente previstas no art. 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não compreendem a decisão sobre a matéria de facto».
Enfim, as eventuais deficiências ao nível da decisão sobre a matéria de facto não são causa de nulidade da sentença, mas sim fundamento de impugnação da decisão sobre a matéria de facto (o que, de resto e como se verá infra, foi feito pela recorrente).
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, improcede a arguida nulidade.
4.2. A recorrente defende que a decisão recorrida enferma de “erro de apreciação da prova carreada para os autos”, quando conclui que os contratos de cessão de crédito juntos não identificam cabalmente quais os créditos objecto de cessão.
Embora tal não tenha sido consignado, autonomamente, na decisão recorrida como “facto não provado”, decorre à evidência da mesma que o tribunal a quo considerou como não provado que o crédito exequendo (decorrente da livrança dada à execução) tenha sido objecto das cessões de créditos alegadas no requerimento executivo e provadas sob o n.º 3 dos factos provados.
É o que se extrai, claramente, desta passagem: «…não resulta dos documentos juntos que o crédito que se encontra reclamado e titulado pela livrança apresentada à execução foi objecto dos ditos contratos, e, como tal, cedido à Exequente».
E fundamentou o tribunal a quo esta sua decisão (nos termos do disposto no art. 607.º, n.º 4 do CPC, contrariamente ao que defendeu a recorrente), nos seguintes moldes:
«Isto porque os anexos 10 a 12 do 1.º contrato (fls. 118 a 128) – Doc. 2 junto com o RE estão ilegíveis, o mesmo sucedendo com a listagem que integra o Doc. 2 junto com o requerimento de 11/11/2022 e o Doc. n.º 3 junto com este requerimento tratase uma de listagem avulsa, não rubricada pelas partes contratantes, de créditos por referência apenas a números internos, sem correspondência com a livrança, nem com os seus subscritores ou com o valor com o qual foi preenchida, inexistindo possibilidade de confirmar com segurança que se refere ao crédito constante da livrança dada à execução, logo, sem elementos suficientes que permitam estabelecer uma conexão com o crédito exequendo. Também o anexo 9 do 2.º contrato junto com o Requerimento Executivo (Doc. 3) é uma listagem avulsa de créditos por referência apenas a números internos, sem correspondência com a livrança, nem com os seus subscritores ou com o valor com o qual foi preenchida, inexistindo possibilidade de confirmar com segurança que se refere ao crédito constante da livrança dada à execução. Por outro lado, o Doc. 2 junto com o requerimento de 18/04/2023 (tal como o Doc. 3 junto com o Req.to de 11/11/2022) trata-se de um documento avulso, não rubricado pelas partes contratantes, que nada indica tratar-se de anexo de qualquer um dos contratos invocados, tratando-se, ao invés, de um documento gerado por via electrónica, cuja assinatura, para ser válida, carece de ser certificada nos termos legais para valer enquanto tal, e que, de todo o modo, trata-se, mais uma vez, de listagem avulsa de créditos por referência apenas a números internos, sem correspondência com a livrança, nem com os seus subscritores ou com o valor com o qual foi preenchida. Aliás, a profusão de documentos com listagens avulsas apresentados pela Embargada exequente, em que as listagens juntas no Requerimento Executivo são distintas dos documentos electrónicos apresentados em 18/04/2023, é sintoma da dificuldade demonstrada por aquela na cabal identificação de que o crédito reclamado na execução foi objecto dos ditos contratos de cessão. Conclui-se, assim, que os documentos juntos aos autos não permitem concluir que o crédito exequendo foi objecto dos contratos de cessão invocados».
A recorrente considera que esta apreciação/valoração da prova está errada e pretende, sem o dizer expressamente, que se considere provado que “o crédito que se encontra reclamado e titulado pela livrança apresentada à execução foi objecto dos ditos contratos, e, como tal, cedido à Exequente”.
Vejamos, então, se lhe assiste razão, sendo que, de acordo com a doutrina fixada pelo acórdão uniformizador de jurisprudência de 17.10.2023, «nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações» e sendo certo que decorre com suficiente clareza das conclusões a indicação do concreto ponto facto que a recorrente considera incorretamente julgado (conclusões 17.ª, 36.ª e 47.ª), bem como a especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo (os documentos por si juntos e as regras da experiência comum), que, no seu entender, impunham decisão diversa (conclusões 18.ª a 30.ª e 51.ª a 53.ª), e que os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal (cfr. acs. do STJ, de 28.04.2014, de 08.02.2018, de 08.02.2018, de 06.06.2018, de 12.07.2018, de 13.11.2018 e de 03.10.2019, todos disponíveis in www.dgsi.pt).
Com o requerimento executivo, a exequente alegou ser portadora de uma livrança subscrita pela sociedade Sogestalei - Gestão e Servicos, S.A., e avalizada pelo executado AA, no valor de 634.052,82 €, emitida em 20.04.1988 e vencida em 20/04/2018, cujo original juntou (em 10.02.2020) e que tem aposto o n.º ….
Como da referida livrança consta como beneficiário “Finibanco, S.A.”, a exequente alegou, no requerimento executivo, que a Caixa Económica Montepio geral adquiriu, em 31.03.2011, o Finibanco, S.A., tendo ficado titular de todos os contratos de crédito detidos por este, e que, por contrato de cessão de créditos de 27.12.2018, a CEMG cedeu à MIMULUS FINANCE DAC os créditos decorrentes da operação n.º ... (documento n.º 2), e posteriormente, a 12.04.2019, a MIMULUS FINANCE DAC cedeu à ARES LUSITANI STC SA, os mesmos créditos, com identificação da operação n.º ... (documento n.º 3).
O executado deduziu oposição à execução, mediante os presentes embargos, e disse que «da documentação junta aos presentes autos (Docs.01, 02 e 03), não resulta que nas diversas e sucessivas transmissões de créditos conste especificamente o crédito de que o FINIBANCO é detentor sobre o executado» e que «não tendo o executado/embargante tido qualquer intervenção na elaboração dos documentos juntos aos autos, nem dos mesmos alguma fez foi notificado por qualquer forma ou meio, fica aqui a veracidade, autenticidade e legalidade de tais documentos e respetivas assinaturas apostas nos mesmos, expressamente impugnadas para os devidos e legais efeitos».
Em face de tal impugnação, é inequívoco que incumbia à exequente a prova da veracidade dos documentos (art. 374.º, n.º 2 do CC e 445.º, n.º 2 do CPC), assim como lhe competia provar que o crédito exequendo foi objecto dos referidos contratos (art. 342.º, n.º 1 do CPC).
Sucede que, na contestação aos embargos, a exequente nada requereu no cumprimento dos referidos ónus, limitando-se a reiterar as alegadas transmissões de crédito.
Ainda assim, o tribunal a quo, ao abrigo dos poderes conferidos pelo art. 411.º do CPC, ordenou a notificação da exequente «para em dez dias juntar aos autos versão integralmente legível dos contratos de cessão de créditos e respetivos anexos juntos ao requerimento executivo» e, posteriormente, detectando que «o documento eletrónico anexo como doc 2 continua a ter partes ilegíveis. Por outro lado, a exequente não identifica onde se encontra o credito exequendo nos anexos aos contratos, designadamente por referencia a pagina e linha», concedeu-lhe novo prazo de 10 dias para o efeito.
Mais uma vez, em face dos documentos juntos pela exequente/embargada na sequência do referidos despachos, o executado/embargante impugnou a veracidade, legalidade e autenticidade dos documentos, sem que a exequente algo tenha requerido a este respeito.
Ora, analisados os documentos em causa, de forma “relacionada” e com apelo “às regras da experiência comum”, como defende a recorrente, não podemos deixar de chegar às mesmas conclusões que o tribunal a quo, que, por isso, acompanhamos na íntegra:
- os anexos 10 a 12 do contrato junto com o requerimento executivo como doc. n.º 2 são ilegíveis;
- a listagem que integra o doc. n.º 2 junto com o requerimento de 11.11.2022 é ilegível;
- o doc. n.º 3 junto com o requerimento de 11.11.2022 constitui uma listagem avulsa de créditos, não rubricada pelas partes contratantes, contendo referências a números internos, sem correspondência com o número aposto na livrança e respectivos valores e subscritores;
- o anexo 9 do contrato junto com o requerimento executivo como doc. n.º 3 constitui uma listagem avulsa de créditos (em parte ilegível) com referência a números internos, sem correspondência com a livrança, nem com os seus subscritores ou com o valor pelo qual foi preenchida;
- o doc. n.º 2 junto com o requerimento de 18.04.2023 (tal como o doc. n.º 3 junto com o requerimento de 11.11.2022) constitui um documento avulso, não rubricado pelas partes contratantes, do qual não decorre qualquer ligação aos contratos de cessão de créditos em causa, tratando-se, ao invés, de um documento gerado por via electrónica (sem certificação de assinatura), consistente numa listagem de créditos não datada e sem correspondência com os subscritores e valor aposto na livrança exequenda.
A circunstância de, nesta última listagem, constar o número da livrança exequenda não é, quanto a nós, suficiente para ter-se por certo que o crédito dela emergente foi objecto das cessões de créditos, pois que, como se disse, a listagem em causa foi elaborada pela exequente/embargada, na sequência do despacho de 23.03.2023 e com intuitos de provar (a posterior) o facto em causa, não se tratando de um documento contemporâneo dos contratos de cessão de créditos e que deles fizesse parte e, portanto, de uma prova já constituída antes do processo.
No que concerne às regras da experiência comum (decorrentes, de acordo com a recorrente, do facto de ser portadora da livrança exequente), valem, salvo melhor opinião, as seguintes considerações feitas pelo tribunal a quo: «Aliás, a profusão de documentos com listagens avulsas apresentados pela Embargada exequente, em que as listagens juntas no Requerimento Executivo são distintas dos documentos electrónicos apresentados em 18/04/2023, é sintoma da dificuldade demonstrada por aquela na cabal identificação de que o crédito reclamado na execução foi objecto dos ditos contratos de cessão».
Temos, pois, que, em face da prova produzida, não pode confirmar-se, com a segurança necessária, que o crédito resultante da livrança dada à execução foi cedido à exequente/embargada, na sequência dos contratos referidos no n.º 3 dos factos provados, pelo que, não se vislumbra a alegada existência de erro na apreciação da prova.
Destarte, tal como se concluiu na decisão recorrida, a exequente carece de legitimidade para demandar o executado, na posição de credora.
Soçobram, assim, todas as conclusões da recorrente, improcedendo o recurso por si interposto.
A recorrente suportará as custas do recurso, por ter ficado vencida (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

V – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
*
Lisboa, 10.07.2025
Rui Oliveira
Cristina Lourenço
Maria do Céu Silva (vencida)

Voto de vencido
Bastará, para afirmar a legitimidade processual da exequente, ter em conta os factos constitutivos da sucessão alegados no requerimento executivo (cf. arts. 54º nº 1 e 30º nº 3 do C.P.C.) ou é necessário verificar se os documentos provam as alegadas cessões (cf. art. 356º nº 1 do C.P.C.)?
Na decisão recorrida, a verificação se os documentos provam as cessões não foi tratada como questão autónoma da questão da legitimidade processual e a recorrente não discordou da decisão nessa parte.
No acórdão em que fiquei vencida, pode ler-se:
«Embora tal não tenha sido consignado, autonomamente, na decisão recorrida como “facto não provado”, decorre à evidência da mesma que o tribunal a quo considerou como não provado que o crédito exequendo (decorrente da livrança dada à execução) tenha sido objecto das cessões de créditos alegadas no requerimento executivo e provadas sob o n.º 3 dos factos provados».
Pode ler-se ainda:
«Temos, pois, que, em face da prova produzida, não pode confirmar-se, com a segurança necessária, que o crédito resultante da livrança dada à execução foi cedido à exequente/embargada, na sequência dos contratos referidos no n.º 3 dos factos provados».
Se assim é, o estado dos autos não permite julgar procedente a exceção da ilegitimidade processual da exequente no despacho saneador.
Isto porque, “no saneador-sentença, o juiz deve, quando seja caso disso, declarar quais os factos que julga (plenamente) provados, mas não já os factos que julga não provados” (www.dgsi.pt Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 6 de junho de 2019, no processo 21172/16.7T8LSB.L1-2).
Acresce dizer que, no meu entender, perante listas de créditos rubricadas que, devido à sua dimensão e às limitações do citius, são ilegíveis e listas de crédito não rubricadas que são legíveis e que têm assinalado um número de contrato coincidente com o número da livrança que serve de base à execução, o tribunal poderia e deveria fazer algo, como, por exemplo, solicitar à exequente a exibição das listas de crédito originais e tirar cópia legível (cf. art. 441º do C.P.C.).
É de salientar que “a entrega ou transmissão da livrança e demais elementos do crédito serve de substrato (…) ao juízo de inferência, de dedução/indução […], ajustando-se, de acordo com as regras da lógica e os princípios da experiência, à transmissão do crédito pela cessão cujo contrato foi junto” (www.dgsi.pt Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido a 7 de março de 2024, no processo 890/22.6T8MAI-A.P1).
Assim, revogaria a decisão recorrida e relegaria para final o conhecimento da exceção da ilegitimidade processual da exequente.
*
Maria do Céu Silva