EMBARGOS DE EXECUTADO
DÍVIDA LIQUIDÁVEL EM PRESTAÇÕES
INCUMPRIMENTO
ANTECIPAÇÃO DO VENCIMENTO
AUSÊNCIA DE COMUNICAÇÃO AO DEVEDOR
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
FORMAÇÃO DO TÍTULO CAMBIÁRIO E EXECUTIVO
Sumário

I – Ressalvando os casos em que tal tenha sido convencionado entre as partes, a antecipação do vencimento da dívida liquidável em prestações nos termos previstos no art.º 781.º do CC não opera de forma automática por força da falta de realização de uma das prestações; para que tal vencimento antecipado se tenha por verificado, é necessário que o credor exerça efectivamente essa faculdade legal, comunicando ao devedor que declara imediatamente vencidas e exigíveis todas as prestações.
II – Não tendo o credor exercido essa faculdade por via da referida comunicação e não estando contratualmente prevista a antecipação do vencimento de todas as prestações por efeito automático da falta de pagamento de uma delas, o incumprimento de uma ou mais prestações não interfere com a data de vencimento das restantes, mantendo-se em vigor – e até ao final do contrato – o plano de vencimento das prestações e ficando cada uma delas (de forma autónoma) sujeita ao prazo de vencimento próprio e ao prazo de prescrição de cinco anos a contar da data desse vencimento, nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do art.º 310.º do CC.
III – Para os efeitos referidos no art.º 311.º do CC apenas releva o título executivo cuja formação seja posterior à constituição do direito em questão, não relevando para esse efeito a livrança que, apesar de ter sido preenchida pelo credor em momento posterior, foi subscrita pelo devedor no momento da celebração do contrato e, consequentemente, no momento da constituição do direito e da inerente obrigação.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Relatora: Maria Catarina Gonçalves

1.º Adjunto: Anabela Marques Ferreira

2.º Adjunto: José Avelino Gonçalves

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... – Stc, S.A. melhor identificada nos autos, instaurou execução contra AA, melhor identificados nos autos, pedindo o pagamento da quantia de 52.633,46€ correspondente ao valor de uma livrança subscrita pelo Executado para garantia de um contrato de crédito ao consumo celebrado com o Banco Espírito Santo em 18/05/2011, livrança essa que foi preenchida pela Exequente – a quem foi cedido o crédito em questão – tendo em conta o vencimento do contrato por incumprimento do Executado, nela apondo a data de vencimento de 06/10/2023, factos esses (preenchimento da livrança e data de vencimento) que foram levados ao conhecimento do Executado.

O Executado veio deduzir embargos de executado, invocando, na parte que releva para o recurso, o preenchimento abusivo da livrança, tendo em conta que a obrigação emergente do contrato subjacente – um contrato de crédito celebrado em 18/05/2011 – está sujeita ao prazo de prescrição de cinco anos, nos termos do art.º 310.º, alíneas d) e e) do CC, e esse prazo já havia decorrido, à data da propositura da execução sendo certo que o incumprimento do contrato (primeira falta de pagamento da prestação devida) ocorreu há mais de 10 ou 11 anos.

A Exequente contestou, pugnando pela improcedência das excepções invocadas e sustentando: que não existiu qualquer preenchimento abusivo (na medida em que não foi preenchida além dos montantes permitidos pelo pacto de preenchimento e na medida em que não existe nenhum limite temporal ao preenchimento do título) e que o crédito não está prescrito, na medida em que, tendo ocorrido o vencimento antecipado da totalidade dos montantes em dívida por força do incumprimento do devedor, o prazo de prescrição aplicável não é o prazo de cinco anos, mas sim o prazo ordinário de vinte anos a que se reporta o art.º 309.º. Sustenta ainda que, ainda que se tenha entendimento diferente, o prazo de prescrição, no caso, sempre seria de vinte anos em virtude do disposto no art.º 311.º, n.º 1, do CC, uma vez que sobreveio outro título executivo (a livrança).

Conclui pela improcedência dos embargos.

Tendo sido convidada a “...concretizar temporalmente o incumprimento do Embargante do contrato de crédito ao consumo, bem como, a densificar desde quando é que os juros devidos de: € 27.873,83 se mostram contabilizados”, veio a Exequente esclarecer que o incumprimento definitivo ocorreu em Novembro de 2011 e que a livrança foi preenchida à data indicada na comunicação anexa ao requerimento executivo.

Na sequência desses actos e por se ter entendido que estado dos autos já permitia a apreciação do mérito dos embargos, foi proferida decisão que decidiu julgar procedentes os embargos e declarar extinta a execução.

 

Inconformada com essa decisão, a Embargada veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).

O Embargante respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se a obrigação exequenda está (ou não) prescrita, apurando se ela estava sujeita ao prazo de prescrição de cinco anos estabelecido na alínea e) do art.º 310.º do CC ou ao prazo ordinário de vinte anos e apurando se é (ou não) aplicável o disposto no art.º 311.º do mesmo diploma.


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III.

Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. Em 17.10.2023, a Exequente, deu entrada de requerimento executivo para pagamento de quantia certa contra o Executado, ora Embargante.

2. A quantia exequenda aposta no requerimento executivo é no valor 52 633,46 € (Cinquenta e Dois Mil Seiscentos e Trinta e Três Euros e Quarenta e Seis Cêntimos).

3. O NOVO BANCO, S.A. foi constituído por deliberações do Conselho de Administração do Banco de Portugal lavradas em actas de reuniões extraordinárias de 3 e 11 de Agosto de 2014, e cujo objecto social consiste na "Administração de activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão transferidos do Banco Espírito Santo, S.A. para o Novo Banco, S.A., e desenvolvimento das actividades transferidas enunciadas no artigo 145º - A do RGICSF e com o objectivo de permitir uma posterior alienação dos referidos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão para outra ou outras instituições de crédito.

4. Operou-se a favor do NOVO BANCO, S.A., nos termos da supras referidas actas, a transferência de direitos (e activos) e obrigações do Banco Espírito Santo, S.A. a favor deste banco de transição que, para os devidos efeitos legais e contratuais, sucedeu ex lege nos direitos (e activos) e obrigações daquele, mais ficando investido na posição de credor de cada um dos créditos anteriormente detidos pelo Banco Espírito Santo, S.A.

5. A B..., S.A.R.L., sociedade de responsabilidade limitada (société à responsabilité limitée), constituída ao abrigo das leis do Luxemburgo, com sede em Rue ..., ... Luxemburgo, registada no Registo Comercial e das Sociedades do Luxemburgo sob o n.º ...79, celebrou com o NOVO BANCO, S.A. um Contrato de Cessão de Créditos, em 22 de Dezembro de 2018, mediante o qual a referida entidade declarou ceder diversos créditos, bem como, todas as garantias e acessórios a ele inerentes, incluindo os créditos que aquela instituição bancária detinha sobre o ora Executado, conforme documento n.º1 junto com o requerimento executivo e cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.

6. Por sua vez, por contrato de cessão de créditos celebrado em 03 de Abril de 2020, alterado a 31 de Março de 2021, a Sociedade B... declarou ceder à Sociedade A... – STC, S.A., diversos créditos, bem como todas as garantias e acessórios a ele inerentes, conforme contrato junto na execução em 24.10.2023 e cujo teor se dá por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.

7. Na sequência do descrito em 6) a Exequente remeteu ao Executado, para a Rua ..., LT ... A, ..., ... ..., missiva registada com aviso de recepção, datada de 27.09.2023, com a seguinte epígrafe “Resolução por incumprimento e interpelação para pagamento de livrança”, onde dá conta do descrito em 6).

8. A Exequente apresentou como título executivo na execução uma livrança com o seguinte teor:

7. Na data de vencimento da predita livrança, o(s) Executado(s) não procedeu ao seu pagamento, nem posteriormente.

8. Tal livrança foi subscrita para garantia da boa execução do Contrato de Crédito ao Consumo BES com a ref. ...31, que assumiu na escrita do Banco Cedente o n.º ...82 e que actualmente assume o n.º ...07, celebrado entre o Banco Espírito Santo, S.A., actualmente designado por Novo Banco, S.A., e o Executado em 18.05.2011, junto aos autos com a Contestação aos embargos como documento n.º1 e cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.

9. No âmbito de tal contrato, foram aceites, pelo então BES e pelo Embargante as condições particulares constantes do documento acima mencionado, constando, entre outras:

• Que o limite ou montante máximo do crédito é de 17.936,36€

• O Embargante obrigou-se, por seu turno, a restituir a referida quantia em 120 prestações mensais e sucessivas em prestações mensais constantes e sucessivas de capital e juros de 273,34€, vencendo-se a primeira no dia 2

10. O ora Embargante deixou de cumprir com o que fora estipulado no contrato de crédito, reportando-se o seu incumprimento definitivo a Novembro de 2011.


/////

IV.

A questão suscitada no recurso prende-se – como acima se referiu – com a prescrição da obrigação subjacente à livrança que serve de fundamento à execução.

Com efeito, estando em causa um contrato de mútuo cuja amortização seria feita em prestações mensais sucessivas de capital e juros, considerou a decisão recorrida que era aplicável o prazo de prescrição de cinco anos previsto na alínea e) do art.º 310.º do CC e, invocando ainda o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 6/2022, considerou que esse prazo se havia completado em relação à totalidade das prestações em 02/11/2016, ou seja, cinco anos após o momento em que o Embargante/mutuário havia interrompido o pagamento dessas prestações (o que ocorreu antes de Novembro de 2011).

Em desacordo com a decisão, a Apelante desenvolve a sua argumentação em torno da sua discordância em relação ao AUJ 6/2022, apontando diversos argumentos no sentido de sustentar que, ao contrário do que se decidiu nesse Acórdão, tendo ocorrido o vencimento antecipado das prestações, nos termos do art.º 781.º do CC (o que, no caso, teria ocorrido em Novembro de 2011) deixa de ser aplicável o prazo de cinco anos previsto no art.º 310.º do CC e passa a ser aplicável o prazo ordinário de vinte anos. No seu entender, o prazo prescricional de cinco anos é aplicável quando estejam em causa prestações vencidas, de capital e juros, sendo cada uma delas individualmente considerada para este efeito, mas deixa de ser aplicável a partir do momento em que ocorra o vencimento antecipado de todas as prestações.

Apreciemos.

É indiscutível – tal é reconhecido pela sentença recorrida e pela Apelante – que, estando aqui em causa prestações referentes a um contrato de mútuo que incluíam capital e juros, cada uma dessas prestações parcelares (que tinham, naturalmente, prazos de vencimento autónomos) ficava sujeita ao prazo de prescrição de cinco anos nos termos previstos na alínea e) do art.º 310.º do CC a contar do respectivo vencimento.

Tal solução tem sido aceite – sem controvérsias – na nossa jurisprudência e também não foi questionada pela sentença recorrida e pela Apelante.

 Questão diversa – que foi objecto de controvérsia na nossa jurisprudência – é a de saber se esse prazo de prescrição de cinco anos se mantém ainda que, por efeito do incumprimento do mutuário, o mutuante, ao abrigo da lei (cfr. artigo 781º do CC) e do contrato, considere vencidas todas as demais prestações.

Foi esta questão – que era, como se disse, objecto de controvérsia na jurisprudência – que veio a ser objecto de uniformização de jurisprudência por via do Acórdão n.º 6/2022 de 30/06/2022[1] onde se estabeleceu que:

I - No caso de quotas de amortização de capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do art. 310.º, al. e), do CC, em relação ao vencimento de cada prestação.

II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do art. 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incindindo o seu termo “a quo” na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas”.

Assim, segundo a doutrina fixada nesse Acórdão, ainda que, em resultado do incumprimento, ocorra o vencimento antecipado de todas as prestações, continua a ser aplicável o prazo de prescrição de cinco anos em relação a todas as prestações ou quotas que assim se venceram.

Foi com fundamento na doutrina fixada neste Acórdão que a sentença recorrida considerou verificada a prescrição, entendendo que, não obstante o vencimento antecipado das prestações, continuava a ser aplicável o prazo de prescrição de cinco anos e que este se contava a partir da data do incumprimento e consequente vencimento antecipado (ocorrido em Novembro de 2011) e é a doutrina fixada nesse Acórdão que a Apelante tenta afastar, argumentando e tentando demonstrar que ela não está correcta e que, ao contrário do que dela resulta, tendo ocorrido o vencimento antecipado das prestações, deixa de ser aplicável o prazo de prescrição de cinco anos, passando a ser aplicável o prazo ordinário de vinte anos.

Ora, salvo o devido respeito, quer a sentença recorrida, quer a Apelante, partem de um pressuposto errado, porquanto ambas consideram que, no caso, ocorreu vencimento antecipado das prestações em Novembro de 2011 (quando o mutuário/Embargante deixou de pagar as prestações), sendo certo, no entanto, que não existe qualquer base factual (nada foi alegado) que permita sustentar essa afirmação/conclusão.

Tal questão remete-nos para o disposto no art.º 781.º do CC onde se determina o seguinte:

Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”.

Ora, prevendo-se na citada norma a perda do benefício do prazo concedido ao devedor nas obrigações pagáveis em prestações, tem sido entendido que o que aqui se estabelece é apenas a possibilidade ou faculdade de o credor poder exigir de imediato o pagamento de todas as prestações e não a imediata constituição em mora do devedor relativamente a todas elas. O que aí se consigna não é, portanto, o vencimento automático de todas as prestações por força da falta de pagamento de uma delas, mas sim uma mera faculdade concedida ao credor – que ele pode exercer ou não – de fazer operar esse vencimento antecipado, exigindo, de imediato, todas as prestações. Nessas circunstâncias, estando em causa um benefício concedido ao credor – que este poderá exercer ou não – não poderá ser dispensada a interpelação do devedor para o efeito; aquele vencimento antecipado da dívida não é, portanto, de verificação automática (sem prejuízo, naturalmente, de tal ter sido convencionado entre as partes) e só com a interpelação – por via da qual o credor exerce o direito ou benefício que a lei lhe concede –  se pode ter como verificado o vencimento (antecipado) de todas as prestações e a consequente exigibilidade da totalidade da dívida.

A este propósito, refere Antunes Varela[2] que assim deve ser interpretado o art.º 781º “…e não no sentido de que, vencendo-se imediatamente, ex vi legis, as prestações restantes, o devedor comece desde esse momento, ao arrepio da doutrina geral do art. 805º, nº 1, a responder pelos danos moratórios”. E, acrescenta, “o vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não vencera constitui um benefício que a lei concede – mas não decreta ela própria – ao credor, não prescindindo consequentemente da interpelação do devedor (…) A interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação (realizando todas as prestações restantes) constitui a manifestação da vontade do credor em aproveitar o benefício que a lei lhe atribui”.

Tem sido esse também o entendimento da nossa jurisprudência, ao nível, designadamente, do STJ, como se vê pelos Acórdãos de 03/10/2024 (processo n.º 16296/20.9T8PRT-A.P2.S1), 04/07/2024 (processo n.º 4871/22.1T8SNT-A.L1.S1), 29/05/2024 (processo n.º 592/22.3T8PRT-A.P2.S1), 19/01/2023 (processo n.º 1335/19.4T8MAI-A.P1.S1), 19/01/2023 (processo n.º 4288/21.5T8VNF-A.G1.S1), 14/10/2021 (processo n.º 475/04.9TBALB-A.P1.S1) e 11/03/2021 (processo n.º 1366/18.1T8AGD-B.P1.S1)[3], entre outros.

É certo que, apesar de a lei não consignar – como referimos – o vencimento automático de todas as prestações por força da falta de pagamento de uma delas, nada obsta a que as partes estipulem esse vencimento automático, dispensando, portanto, qualquer interpelação para o fazer operar.

Mas também não foi isso que aconteceu na situação dos autos.

Se olharmos às condições gerais do contrato, verificamos que o vencimento antecipado das prestações vem regulado no ponto 13, estipulando o n.º 1 que as situações aí enunciadas – onde se inclui a falta de pagamento de duas prestações sucessivas cujo valor seja superior em 10% ao montante total do crédito ou, em qualquer caso, a falta de pagamento de três prestações sucessivas – são passíveis de ser consideradas como fundamento do vencimento antecipado do crédito, estipulando o n.º 2 que, após a ocorrência de uma dessas situações, o banco poderá exercer todos ou qualquer um dos direitos e/ou acções seguintes, disso notificando por carta registada com aviso de recepção o cliente: a) cancelar o crédito não autorizado, se for o caso; b) declarar imediatamente vencidas todas as obrigações assumidas pelo cliente no contrato, exigindo o pagamento imediato de todos os montantes devidos ao seu abrigo; c) proceder à imediata execução de todas ou parte das garantias.

Ora, o que resulta – claramente – dessa cláusula é que o vencimento antecipado de todas as prestações não era uma consequência automática da falta de pagamento de uma das prestações; esse vencimento era apenas uma faculdade conferida ao Banco (conforme resulta da expressão “são passíveis de ser consideradas como fundamento do vencimento antecipado”) que tinha que ser exercida mediante declaração nesse sentido a comunicar ao cliente/mutuário por carta registada com aviso de recepção.

É certo, portanto, que, quer à luz do disposto na lei, quer à luz do contrato, a falta de pagamento de uma prestação não implicava, de forma automática, o vencimento antecipado de todas as prestações; para que tal vencimento operasse era necessário que o credor (Banco) exercesse essa faculdade, comunicando ao mutuário que declarava imediatamente vencidas todas as prestações.

Ora, não há notícia nos autos – nada foi alegado nesse sentido – de qualquer comunicação ou interpelação que tivesse sido feita com aquele objectivo e por via da qual o credor tivesse manifestado a vontade de exercer aquela faculdade, declarando vencidas todas as prestações. A existência dessa declaração/comunicação não foi alegada pela Exequente/Embargada e não foi alegada pelo Executado/Embargante. Na verdade, a única comunicação que é invocada pela Exequente é a carta de 27/09/2023 por via da qual declarou que considerava o contrato resolvido por incumprimento, enviando a livrança preenchida e reclamando o respectivo pagamento, sendo certo, no entanto, que, à data desta comunicação, já não existia qualquer prestação por vencer; já havia decorrido integralmente o prazo de 120 meses que estava previsto no contrato para a amortização do crédito, sendo que, segundo o plano de vencimento das prestações estabelecido, a última prestação havia vencido em 02/06/2021.

É certo, portanto, que, ao contrário do que se considerou na sentença recorrida e ao contrário do que também é pressuposto pela Apelante, nada permite concluir pelo vencimento antecipado de todas as prestações (nem em Novembro de 2011, conforme consideram a decisão recorrida e a Apelante, nem em qualquer outra data posterior e até ao decurso integral do prazo de amortização que terminou em 02/06/2021).

Nessas circunstâncias, não tendo ocorrido o respectivo vencimento antecipado, manteve-se em vigor – e até ao final do contrato – o plano de vencimento das prestações, ficando cada uma delas (de forma autónoma) sujeita ao prazo de vencimento próprio e ao prazo de prescrição de cinco anos a contar da data desse vencimento, nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do art.º 310.º do CC.

Assim sendo, considerando que – conforme resulta dos autos – o Executado foi citado em 28/11/2023, que a execução foi instaurada em 21/10/2023 e que, por isso e nos termos previstos no art.º 323.º, n.º 2, do CC, a prescrição se considera interrompida cinco dias após a instauração da execução (em 26/10/2023), impõe-se concluir que estão prescritas as prestações (de capital e juros) que se foram vencendo mensalmente até 26/10/2018.

Em relação às prestações (de capital e juros) que se venceram após essa data – ou seja, as 32 prestações (no valor de 273,34€ cada) que se venceram em 02/11/2018 e em cada um dos meses subsequentes até 02/06/2021 (data de vencimento da última prestação) – o prazo de prescrição (cinco anos) ainda não se havia completado quando foi interrompido m 26/10/2023.

A execução deve, portanto, prosseguir em relação ao montante de 8.746,88€ (correspondente ao valor das referidas 32 prestações).

Resta deixar uma última nota para consignar a falta de fundamento da pretensão da Apelante quando vem sustentar que o prazo de prescrição teria passado a ser de vinte anos por força do disposto no art.º 311.º do CC.

O nº 1 do citado artigo 311º dispõe que “O direito para cuja prescrição, bem que só presuntiva, a lei estabelecer um prazo mais curto do que o prazo ordinário fica sujeito a este último, se sobrevier sentença passada em julgado que o reconheça, ou outro título executivo”.

É certo, portanto, que a alteração do prazo de prescrição que aí se estabelece pressupõe que sobrevenha sentença passada em julgado ou outro título executivo, sendo necessário, portanto, que a formação deste título seja posterior à constituição do direito em questão. Como se refere no Acórdão do STJ de 30/06/2022[4], “o citado art.º 311.º n.º 1 do Código Civil alude ao título executivo que sobrevier ao direito, e não ao título que lhe seja contemporâneo”.

Ora, salvo o devido respeito, não é isso que acontece no caso em análise, uma vez que o título executivo que é invocado pela Apelante é a livrança que foi subscrita pelo Executado à data da celebração do contrato, sendo, por isso, contemporânea da constituição da obrigação.

Nenhuma razão poderá ser reconhecida à Apelante quando pretende apoiar a pretensa superveniência do título na circunstância de a livrança ter sido preenchida mais recentemente (pela própria Apelante, diga-se). Com efeito, ainda que a livrança apenas se torne completa com o respectivo preenchimento, é evidente que a sua força executiva assenta, também e sobretudo, no acto de subscrição do devedor (a promessa de pagamento a que se reporta o art.º 75.º da LULL) e sendo este acto contemporâneo da celebração do contrato e da constituição do direito, jamais se poderia considerar que estava em causa um título de constituição posterior ou superveniente apenas porque – por acto unilateral da credora (ainda que previamente autorizado pelo pacto de preenchimento) e sem intervenção do devedor – a livrança veio a ser preenchida em momento posterior ao da sua subscrição.

É certo que a formação integral e plena do título apenas se completa com o seu preenchimento, mas a verdade é que a assinatura/subscrição do devedor é um elemento essencial desse título sem o qual este não pode ser formado. Na verdade, o processo de formação do título (letra ou livrança) que é entregue em branco e da constituição da respectiva obrigação cambiária não ocorre num momento único e prolonga-se no tempo; conforme refere Carolina Cunha[5] “... a obrigação cambiária não se forma de golpe mas através de um processo cuja primeira etapa – necessária, se bem que insuficiente – consiste na assinatura do título”.

Ora, para que se possa falar em título posterior à constituição do direito para os efeitos previstos no citado art.º 311.º é necessário que todo o processo de formação tenha ocorrido após esse momento e tal não acontece, como vimos, com a livrança em causa nos autos. O processo de formação desse título completou-se, é certo, em momento posterior com o preenchimento da livrança, mas iniciou-se – com a assinatura do título – no momento da constituição do direito, não correspondendo, portanto, a título que se tenha formado integralmente após o direito e que, nessa medida, possa relevar para efeitos do disposto no citado art.º 311.º.

Refira-se, além do mais, que, à data do preenchimento da livrança, já havia decorrido o prazo de prescrição de cinco anos em relação à quase totalidade das prestações cuja prescrição aqui reconhecemos, pelo que a eventual procedência desta questão nunca teria grandes efeitos práticos.

Improcede, portanto, esta questão.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


/////

V.
Pelas razões expostas, concede-se parcial provimento ao presente recurso e, em consequência:
Ø Revoga-se a sentença recorrida no segmento em que julgou verificada a prescrição em relação às últimas 32 prestações, no valor global de 8.746,88€ (oito mil, setecentos e quarenta e seis euros e oitenta e oito cêntimos), determinando-se, nessa parte, a improcedência dos embargos e a prosseguimento da execução em relação à quantia referida e respectivos juros de mora;
Ø Confirma-se, no mais, a sentença recorrida.

Custas a cargo de ambas as partes, na proporção do respectivo decaimento, tomando em consideração o benefício de apoio judiciário concedido ao Embargante/Apelado.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                             (Anabela Marques Ferreira)

                                                (José Avelino Gonçalves) 


[1] Disponível em http://www.dgsi.pt. e publicado no D.R., I Série, de 22/09/2022
[2] Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., págs. 53 e 54.
[3] Todos disponíveis em https://www.dgsi.pt.
[4] Proferido no processo n.º 1736/19.8T8AGD-B.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Letras e Livranças, 2012, pág. 642.