I – O recurso à equidade para fixação da indemnização por danos patrimoniais assume-se como critério excepcional ou supletivo que apenas pode – e deve – ser aplicado quando não seja possível averiguar o valor dos danos (cfr. art.º 566.º, n.º 3, do CC);
II – Para que esteja legitimado o recurso à equidade, não basta que o valor dos danos não seja apurado no âmbito da acção onde se pede a respectiva indemnização, sendo ainda necessário que não se vislumbre como possível ou viável o seu apuramento em futuro incidente de liquidação; se o apuramento do valor dos danos ainda se apresentar como possível e viável, não estará legitimado o julgamento segundo a equidade, devendo, ao invés, ser proferida sentença de condenação genérica, nos termos previstos no art.º 609.º, n.º 2 do CPC, que possibilite o efectivo apuramento do seu valor em posterior incidente de liquidação;
III – Estando em causa o apuramento de dano resultante da perda/inutilização de bens usados cujo valor real (à data do facto lesivo) não se apurou nem é expectável que possa vir a ser apurado, a respectiva indemnização pode – e deve – ser fixada com recurso à equidade, ponderando as concretas circunstâncias do caso, designadamente: o custo dos bens (novos) adquiridos para substituição, o tempo de uso/utilização dos bens inutilizados, o período de “vida útil” desses bens que ainda seria expectável e a vantagem obtida pelo lesado com a substituição de bens antigos e usados por bens novos.
IV – A indemnização fixada com recurso à equidade configura-se, por regra e se nada se disser em contrário, como valor actualizado à data da decisão, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do art.º 566.º do CC, pelo que, de acordo com a jurisprudência firmada pelo AUJ 4/2002, não vence juros de mora a partir da citação, mas sim e apenas a partir da data da decisão que fixou tal indemnização.
(Sumário elaborado pela Relatora)
1.º Adjunto: José Avelino Gonçalves
2.º Adjunto: Maria João Areias
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
AA, residente na Rua ..., ..., ... ..., instaurou acção – com processo comum – contra A..., Lda., com sede na Rua ..., ... ..., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia total de 17.491,63€, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Fundamenta a sua pretensão em danos que foram causados no sistema eléctrico em determinados equipamentos (sistema de ar condicionado, controlador dos motores dos portões e iluminação remota, bomba da fossa e passadeira rolante) por força de descarga de corrente ocorrida durante a realização de testes pelos funcionários da Ré no âmbito do serviço – que o Autor havia contratado com ela – de instalação de um sistema de painéis fotovoltaicos na sua habitação. Alega que os danos causados nos referidos equipamentos ascendem ao valor global de 15.814,97€ e que, pelo facto de a Ré não ter providenciado de forma célere com a reparação, foi obrigado a suportar a despesa de 176,66€ com o desentupimento das fossas, mais alegando que esta situação – designadamente a privação do ar condicionado – lhe causou incómodos relevantes na medida em que nessa ocasião o Autor e a sua mulher cumpriam parte das suas obrigações em teletrabalho, reclamando, por isso, a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia de 1.500,00€.
A Ré contestou, aceitando a verificação dos danos e a sua responsabilidade, alegando, contudo, que o lesado também concorreu para a sua verificação por ter exigido, de forma inoportuna, aos funcionários da Ré a reposição urgente da tensão eléctrica nos referidos equipamentos. Impugna ainda o valor dos danos patrimoniais, na medida em que correspondem aos valores de aquisição de equipamentos novos quando é certo que os que foram danificados tinham muitos anos de utilização e o seu valor ascendia apenas a 2.566,71€ e sustenta não ser devida indemnização por danos não patrimoniais.
Requereu ainda a intervenção principal provocada da seguradora B... – Companhia de Seguros, S.A. para quem transferiu a responsabilidade por danos causados no âmbito da sua actividade.
Admitida a referida intervenção, veio a Interveniente – após citação – apresentar contestação, aceitando a sua responsabilidade, mas impugnando o valor dos danos patrimoniais que são invocados pelo Autor e alegando que, tendo em conta os anos de uso, os equipamentos tinham apenas o valor de 2.657,81€. Sustentando não haver lugar à indemnização de quaisquer danos não patrimoniais, alega ainda que se dispôs a pagar o valor indemnizatório de 2.677,27€ (correspondente ao valor que apurou como correspondente aos danos causados) que o Autor não aceitou.
Foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas da prova.
Após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu condenar a Ré a pagar ao Autor o montante de 1.457,28€ (mil, quatrocentos e cinquenta e sete euros e vinte e oito cêntimos) e condenar a B... - Companhia de Seguros, SA, a pagar ao Autor o montante de 13.115,55€ (treze mil, cento e quinze euros e cinquenta e cinco cêntimos), sendo essas quantias acrescidas de juros legais, contados desde a citação até integral pagamento.
Inconformada com essa decisão, a Interveniente B... – Companhia de Seguros, S.A. veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
O Autor/Apelado respondeu ao recurso, sustentando a sua improcedência.
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – importa apreciar e decidir as seguintes questões:
· Saber se estavam reunidos os pressupostos necessários para fixar a indemnização (em relação ao ar condicionado e passadeira) com recurso à equidade;
· Saber, em caso de resposta afirmativa à questão anterior, se a decisão recorrida errou no julgamento em equidade, extravasando os limites que tinha por provados, apurando, em caso afirmativo, o valor da indemnização;
· Saber se os juros de mora em relação à indemnização referente ao ar condicionado, passadeira e danos não patrimoniais são devidos desde a data da citação (como se considerou na decisão recorrida) ou se apenas são devidos desde a data da sentença (como sustenta a Apelante).
III.
Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto (introduzimos, para maior facilidade de exposição, numeração dos factos provados o que, ao contrário do que é habitual, não foi feito em 1.ª instância):
1. A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização, instalação e manutenção de equipamentos de energia, principalmente equipamentos de energias renováveis.
2. Em Junho de 2021, no exercício da sua actividade profissional, através de correspondência electrónica, Autor e Ré celebraram um contrato para fornecimento e instalação de equipamentos fotovoltaicos, nomeadamente, Kit Fotovoltaico com 12 painéis 320Wp, inversor Huawei Híbrido Trifásico 5kW, Smart Power Sensor Trifásico, com estrutura para telhado inclinado.
3. Os trabalhos de instalação iniciaram-se no dia 30.07.2021, na moradia do Autor, com a instalação de suportes para os painéis e preparação da cablagem eléctrica.
4. Em 02.08.2021, os equipamentos foram entregues na morada do Autor.
5. Na mesma data, iniciou-se sua a instalação, feita por funcionários da Ré.
6. Concluída a instalação dos painéis e quadros, o Autor solicitou que fosse reposta a tensão eléctrica nos equipamentos do seu domicílio com urgência.
7. Assim, os técnicos da Ré repuseram a tensão, sem antes se certificarem de que o circuito eléctrico estava completo e com todas as salvaguardas em funcionamento, acabando por activar a rede com tensão num fio de neutro, fio que tinha sido colocado como tal apenas para fins de instalação, de forma temporária.
8. A existência de tensão em fio neutro causou sobretensão no circuito, verificando-se imediatamente que a sobretensão causou danos em equipamentos eletrónicos do local, em particular equipamentos com mais idade.
9. Verificou-se imediatamente que ficaram danificados os seguintes equipamentos:
(1) ar condicionado com pelo menos 19 anos de utilização;
(2) sistema de automatismo do portão;
(3) passadeira de corrida com pelo menos 20 anos de utilização;
(4) Bomba de fossa com pelo menos 10 anos de utilização.
10. À data dos factos encontrava-se transferida para a B... - Companhia de Seguros, SA, nos termos das condições especiais, particulares e gerais da apólice nº ...16, incluindo a cobertura de responsabilidade civil extracontratual, com o limite de capital de € 500.000,00 (por sinistro/período de vigência) relativo à cobertura responsabilidade civil exploração, deduzida a franquia contratual de 10% dos prejuízos indemnizáveis, com o mínimo de 250,00€ e o máximo de 2.500,00 €.
11. No mesmo dia, 02.08.2021, a Ré fez participação de sinistro de responsabilidade civil junto à seguradora.
12. Como a Ré não procedeu à reparação célere dos danos provocados na casa do Autor, este viu-se obrigado a avançar com a reparação do controlador dos motores dos portões para evitar uma eventual devassa da casa; e a avançar com a reparação da bomba da fossa, por estarem afectadas as condições de habitabilidade pelos maus cheiros que podiam exarar do sistema de esgotos, agravado com o facto de se estar no pino do Verão.
13. Para a reparação da bomba da fossa, o Autor teve de chamar por duas vezes os serviços da Câmara Municipal para a limpar, primeiro para retirar a bomba para reparar e posteriormente para voltar a colocar.
14. O custo com o desentupimento da fossa nas duas vezes ascendeu a €176,66.
15. Porque os custos com a reparação da climatização da casa eram de valor superior, o Autor aguardou cinco meses para adquirir e colocar os novos equipamentos, o que apenas fez já no final de Dezembro/21.
16. Na reparação/substituição dos equipamentos o autor gastou:
- sistema de ar condicionado ..........................€12.619,80;
- controlador dos motores dos portões........... € 467,40;
- bomba da fossa ................................................€ 1.228,77;
- passadeira rolante .............................................€ 1.499,00;
17. Entre Agosto/21 e Dezembro/21, quer o Autor, quer a sua mulher cumpriam parte das suas obrigações profissionais em teletrabalho.
18. Durante o período de Verão, com o imenso calor que se fez sentir, o trabalho do Autor e da família foi feito com maior penosidade, dado que esteve impossibilitado de climatizar adequadamente a casa de forma a sentirem-se confortáveis.
19. O mesmo se verificou no final de Outono/princípio de Inverno, quando chegou o frio.
20. O Autor teve que desenvolver todos os contactos necessários para que os danos sofridos fossem reparados de forma a evitar situações muito desagradáveis e preocupantes (segurança da casa, maus cheiros) e proceder ao respectivo pagamento.
21. Apesar das diligências feitas pelo Autor junto da Ré, até à data ainda não foi ressarcido dos prejuízos sofridos.
22. Em consequência da participação feita pela Ré à B... - Companhia de Seguros, SA, esta procedeu à realização de peritagem com vista à determinação desses danos e respectivo enquadramento contratual tendo, posteriormente, considerado que as circunstâncias da ocorrência se enquadravam no âmbito de cobertura da apólice “Responsabilidade Civil Exploração - CE 001.
23. Aquando da peritagem, foi exibido ao perito nomeado pela B... - Companhia de Seguros, SA o local de instalação do sistema solar fotovoltaico (na cobertura da moradia) e, na cave do edifício, o respectivo inversor híbrido trifásico da marca “HUAWEI”, bem como as respectivas ligações ao quadro elétrico parcial da cave. Foram-lhe, ainda, exibidos os vários equipamentos danificados na sequência da sobretensão originada pelos trabalhos da Ré.
24. O perito constatou que não se apresentavam em funcionamento:
a) O automatismo do portão de viaturas do logradouro, cuja placa eletrónica tinha sido desmontada para a reparação e o receptor da garagem;
b) A electrobomba das águas residuais da fossa marca “Tsurumi” instalada numa caixa de pavimento no logradouro, onde a empresa “C...” se encontrava a intervir para o vazamento da fossa pelo não funcionamento da mesma e para permitir que os técnicos desmontassem o equipamento;
c) Os equipamentos de ar condicionado da marca “Daikin” da sala de jantar, da sala de estar, do escritório, de três quartos e, ainda, duas unidades exteriores;
d) Uma passadeira eléctrica da marca “Weslo” instalada no ginásio da cave.
25. Face aos factos apurados, a B... - Companhia de Seguros, SA considerou que a ocorrência teve origem em avarias nos equipamentos da moradia de habitação do terceiro, resultantes dos trabalhos executados pelos funcionários da segurada/Ré, no decorrer dos quais ocorreu o afrouxamento do neutro, quando procederam à interligação de uma instalação fotovoltaica ao quadro elétrico parcial (cave), o que propiciou uma variação de potência de corrente elétrica (sobretensão). E quantificou os danos apurados em €2.657,81 (dois mil, seiscentos e cinquenta e sete euros e oitenta e um cêntimos), sendo €2.568,32 (dois mil, quinhentos e sessenta e oito euros e trinta e dois cêntimos) referente aos equipamentos e €89,49 (oitenta e nove euros e quarenta e nove cêntimos) referente ao vazamento da fossa.
26. Para cálculo do valor dos equipamentos à data do sinistro, foi tido em conta o respectivo custo em novo, a vida útil estimada e o tempo de uso estimado declarado pelo lesado, ou o ano de fabrico que consta dos equipamentos, de acordo com o Decreto Regulamentar 25/2009 de 14 de Setembro.
27. A B... - Companhia de Seguros, SA ofereceu o pagamento de indemnização ao Autor, tendo endereçado os seguintes recibos ao Autor, que nunca providenciou pelo respectivo recebimento:
A) Recibo 001 – €2.311,48 – valor apurado em sede de peritagem para os equipamentos, aplicada a deduzida a franquia contratual a cargo do segurado de €265,78, sendo que dos prejuízos apurados de €2.657,81, a quantia de €2.568,32 corresponderia a equipamentos e a quantia de €89,49 corresponderia ao vazamento da fossa (representada pelos recibos referidos em C) e D)).
B) Recibo 003 – € 285,25 – recibo referente ao IVA e trabalhos de vazamento da fossa, deduzida a franquia contratual aplicável: - factura da reparação do sistema de bombagem das águas residuais – IVA de €229,77, - factura de trabalhos de novo vazamento da fossa no valor de €87,17, num total de €316,94, ao qual foi deduzida a franquia contratual de 10% – €31,69.
C) Recibo 004 –€73,71 – recibo referente ao primeiro vazamento da fossa, deduzida a franquia contratual a cargo da tomadora do seguro.
D) Recibo 005 – €6,83 – recibo adicional respeitante ao primeiro vazamento da fossa.
Não se julgou provado:
- que o sistema de bomba de fossa tinha o valor de €997,40;
- que o equipamento de ar condicionado tinha o valor de €998,17;
- que a passadeira tinha o valor de €103,74 €.
IV.
O objecto do presente recurso está limitado ao valor da indemnização devida ao Autor pelos danos causados pela Ré em determinados equipamentos e à data a partir da qual são devidos juros de mora.
A sentença recorrida fixou essa indemnização no valor global de 14.572,83€ assim discriminado:
- 10.000,00€ em relação ao ar condicionado (com pelo menos 19 anos de utilização);
- 1.200,00€ relativamente a uma passadeira de corrida (com pelo menos 20 anos de utilização);
- 467,40€ relativamente ao controlador dos motores do portão;
- 1.228,77€ relativamente a uma bomba de fossa;
- 176,66€ relativamente ao valor despendido com o desentupimento da fossa;
- 1.500,00€ a título de danos não patrimoniais.
A discordância da Apelante em relação à sentença limita-se aos valores que foram fixados, com recurso à equidade, relativamente ao ar condicionado e à passadeira, não pondo em causa – e aceitando, portanto – os restantes valores.
E tal discordância assenta em duas circunstâncias:
· Segundo a Apelante não estavam reunidos os pressupostos necessários para julgar segundo a equidade (tanto mais que a sentença recorrida nem sequer indicou a razão pela qual julgava nesses termos), pelo que deveria ter sido proferida decisão que relegasse a quantificação dos danos para liquidação de sentença;
· Mais considera a Apelante que, caso se conclua pelo uso legítimo da equidade, a decisão recorrida errou na sua aplicação, extravasando os limites que tinha por provados e em função dos quais o valor daqueles bens não poderia ser fixado em quantia superior a 4.000,00€.
Analisemos essas questões.
O recurso à equidade
Julgar segundo a equidade significa, em linhas gerais, julgar e decidir de acordo com razões de conveniência e oportunidade de forma a alcançar a justiça do caso concreto; não equivale, naturalmente, a um julgamento em função de critérios arbitrários, mas sim a um julgamento em que o juiz não está adstrito e vinculado a critérios de estrita legalidade (rigoroso respeito pelos critérios normativos) e julga em função de um juízo prudencial e casuístico que pondere as circunstâncias particulares do caso concreto e que seja apto a alcançar uma solução que seja adequada e justa ao caso particular que está em julgamento.
Segundo a noção dada por Diogo Freitas do Amaral[1], a equidade é a “forma de solução de conflitos jurídicos que assenta na aplicação da Justiça conforme as circunstâncias específicas de cada caso concreto”.
O julgamento segundo a equidade não é, evidentemente, uma forma de julgamento que esteja instituída como regra no nosso sistema processual civil e que se possa classificar como “normal”, correspondendo, pelo contrário a um critério ou modo de julgamento excepcional que, conforme resulta do art.º 4.º do CC, apenas é legítimo nas situações aí enunciadas e entre as quais destacamos – por ser essa a que pode relevar nos presentes autos – as situações em que exista disposição legal que expressamente o permita.
No caso, estamos no âmbito de apuramento de danos patrimoniais (e respectiva indemnização) em que o julgamento com recurso a equidade está legitimado pelo art.º 566.º, n.º 3, do CC se e na medida em que não puder ser averiguado o valor exacto dos danos.
Ainda assim e como resulta do disposto na norma citada, o recurso à equidade – designadamente em matéria de danos patrimoniais – assume-se como critério excepcional ou supletivo que apenas pode – e deve – ser aplicado quando não seja possível averiguar o valor dos danos. Não basta, para o efeito, que o valor dos danos não seja apurado no âmbito da acção onde se pede a respectiva indemnização, sendo ainda necessário que não se vislumbre como possível ou viável o seu apuramento em futuro incidente de liquidação; se o apuramento do valor dos danos ainda se apresentar como possível e viável, não estará legitimado o julgamento segundo a equidade, devendo, ao invés, ser proferida sentença de condenação genérica, nos termos previstos no art.º 609.º, n.º 2 do CPC, que possibilite o efectivo apuramento do seu valor em posterior incidente de liquidação.
A verdade é que, apesar de contestar o recurso à equidade, a Apelante nada alega de concreto no sentido de justificar que é possível apurar – ainda que em posterior incidente de liquidação – o valor do dano em questão.
E, na verdade, não nos parece que seja.
Não se vislumbrando – nem sendo indicado pela Apelante – qualquer outro facto que pudesse ainda ser apurado com vista à determinação do valor do dano, o máximo que, em teoria, poderia ser apurado em termos mais objectivos era o valor dos bens no estado em que eles se encontravam aquando do facto danoso.
Certo é que, neste momento, já não podemos ter como minimamente provável que seja possível o apuramento daquele valor.
Com efeito, passaram quatro anos desde a data em que ocorreu o dano e não sabemos sequer se os equipamentos em causa (o ar condicionado e a passadeira rolante) ainda estão na posse do Autor em termos que permitissem a realização de uma perícia para apuramento do seu valor (não será expectável que assim seja, tendo em conta o tempo decorrido). Mas, ainda que estivessem, não será expectável que a observação de equipamentos que não estão em uso e em funcionamento e estão danificados há quatro anos permitisse apurar o estado de conservação em que se encontravam e a sua aptidão funcional e, consequentemente, o valor que tinham quando, antes do facto lesivo, estavam em uso e funcionamento.
Nessas circunstâncias e ainda que, como diz a Apelante, o recurso à equidade seja a ultima ratio para uma decisão judicial – ou seja, um critério excepcional ou supletivo que apenas opera quando os outros critérios falham por falta de idoneidade para apurar o valor do dano – não existe, no caso, verdadeira alternativa à sua aplicação, uma vez que não resultou provado o valor do dano e, nas circunstâncias acima descritas, não podemos ter como realmente possível que esse valor ainda pudesse ser apurado em posterior incidente de liquidação.
Entendemos, portanto, em razão do exposto, que estava – e está – legitimado o recurso à equidade para apuramento do dano e do valor da respectiva indemnização.
Apuramento do dano e respectiva indemnização
Estando legitimado – como se referiu – o recurso à equidade, resta agora saber se a decisão recorrida errou no julgamento que efectuou segundo esse critério e se excedeu – como diz a Apelante – os limites dentro dos quais tinha que se mover: os limites que se tinham como provados.
O princípio geral em matéria de indemnização – que vem fixado no art.º 562.º do CC – é o de que quem está obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, resultando da conjugação desse artigo com o art.º 566.º que, em princípio, o dano deve ser eliminado por reconstituição natural e apenas haverá lugar a indemnização em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Significa isso, portanto, que, estando aqui em causa a danificação de coisas usadas, a Ré tinha, em princípio, o dever de reparar essas coisas com vista a colocá-las no estado em que se encontravam ou o dever de entregar coisas idênticas.
No caso, ainda que a matéria de facto não seja expressa nesse sentido, tudo aponta para o facto de as coisas (o ar condicionado e a passadeira) não serem susceptíveis de reparação (ninguém, aliás, sustentou o contrário), pelo que a reposição da situação anterior só poderia ser feita pela entrega de coisa idêntica ou por indemnização em dinheiro que, conforme previsto no n.º 2 do art.º 566.º, tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que possa ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
No caso dos autos, estando em causa uma indemnização pela perda/inutilização de bens usados, considerou a decisão recorrida que ela deveria corresponder ao valor dos bens aquando do sinistro, clarificando, no entanto, que esse valor não correspondia apenas ao seu valor de mercado, mas também ao seu valor funcional para o lesado, ou seja, à utilidade e à funcionalidade que os bens ainda mantinham e que tornavam supérfluo um novo investimento para a sua substituição. Segundo a decisão recorrida, este investimento seria, portanto, um custo desnecessário caso não tivesse ocorrido a lesão, pelo que, em caso de perda do bem por força do facto lesivo, não deve ficar, na totalidade, a cargo do lesado, embora importe também eliminar a vantagem que advém para o lesado pelo facto de passar a beneficiar de bens novos e, por consequência, melhores do que aqueles de que dispunha.
Nessas circunstâncias, e partindo do princípio que o lesante só deve ser obrigado a indemnizar o lesado pelo preço de uma coisa usada nas condições daquela que foi danificada (no sentido de evitar o seu enriquecimento injustificado) a decisão recorrida ponderou o valor de custo dos bens (novos) adquiridos pelo Autor para substituir os que haviam sido perdidos/inutilizado, ponderou os anos de uso que os bens perdidos já tinham aquando do facto lesivo e ponderou que, apesar de tudo, eles funcionavam e satisfaziam as necessidades do Autor, concluindo, em equidade e com base nos referidos elementos, pelo valor indemnizatório de 1.200,00€ em relação à passadeira e 10.000,00€ em relação ao sistema de ar condicionado.
Declarando – na conclusão 4.ª das alegações – que não censura a introdução do conceito de “valor funcional” (feita pela decisão recorrida) para apuramento do valor da indemnização, a Apelante sustenta, no entanto, que a decisão recorrida extravasou os limites que tinha por provados porque não atendeu correctamente aos anos de utilização dos referidos equipamentos. Apelando ao uso dos critérios objectivos para a depreciação dos bens constantes do Decreto Regulamentar nº 25/2009 de 14 de Setembro – com base nos quais os bens teriam um valor de 2.568,32€ – considera a Apelante que o factor de utilidade introduzido pelo Tribunal “não pode sobrelevar o desvalor desses bens pela sua depreciação e uso” e que o valor em questão não podia ser fixado em quantia superior a 4.000,00€.
Pensamos, no entanto, que os critérios resultantes do citado diploma não se revelam adequados para estabelecer, ainda que em termos aproximados, o valor dos bens aqui em causa para efeitos de fixação da indemnização.
O diploma em causa estabelece o regime das depreciações e amortizações dos elementos do activo para efeitos do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas. Trata-se, portanto, de um diploma que regula o modo de cálculo das depreciações dos bens para efeitos fiscais (IRC) e que não se pode ter como válido – pelo menos com um mínimo de segurança – para efeitos de cálculo do valor dos bens e fixação da indemnização em caso de perda ou inutilização desses bens, importando notar, além do mais, que as taxas de depreciação nele fixadas se dirigem a bens inseridos em actividades (comerciais/industriais) das pessoas colectivas que, no geral, pressupõem uma utilização dos bens mais constante e intensiva que nem sempre é equiparável – por regra não será – ao tipo de utilização e consequente depreciação de um bem de uso doméstico (como acontece na situação dos autos) em que o tipo, a forma e a intensidade do uso podem ser muito variáveis com reflexos evidentes no valor do bem, seja ao nível do seu estado de conservação, seja ao nível do seu valor funcional e das utilidades que ainda tem aptidão para proporcionar em uso doméstico.
De qualquer forma, ainda que a equidade não radique em critérios estritamente objectivos e ainda que, por isso, envolva, inevitavelmente, alguma margem de discricionariedade do julgador (que não se confunde com arbitrariedade), pensamos que a decisão recorrida não terá ponderado correctamente o tempo de uso dos bens para efeitos de, em equidade, apurar a respectiva indemnização.
Sabemos que o sistema de ar condicionado e a passadeira adquiridos pelo Autor para substituir os inutilizados custaram – em estado novo – 12.619,80€ e 1.499,00€ respectivamente e sabemos que os inutilizados tinham já, respectivamente, 19 anos e 10 anos de utilização.
Não obstante o tempo de uso, os referidos equipamentos ainda funcionavam e satisfaziam as necessidades do Autor e respectivo agregado, desconhecendo-se, contudo, qual era o seu real estado de conservação e qual era o tempo útil que ainda se podia ter como expectável, tendo em conta que essas circunstâncias podem variar, de modo relevante, em função do tipo e intensidade de utilização a que estavam e haviam sido sujeitos ao longo dos anos.
É certo, no entanto, que o tempo de uso (já prolongado) aumenta, de forma considerável, a provável necessidade de serem substituídos a curto ou médio prazo, até porque qualquer avaria que pudesse ocorrer (probabilidade que vai aumentando cada vez mais à medida que o tempo passa) implicaria, provavelmente, a necessidade de adquirir novos equipamentos dada a normal dificuldade de adquirir peças para reparação de aparelhos ou equipamentos já antigos.
Nessas circunstâncias, pensamos que os valores de 10.000,00€ e 1.200,00€ que foram fixados na sentença serão um pouco excessivos na medida em que se aproximam muito do valor dos equipamentos novos sem que se leve em devida consideração o tempo de uso dos antigos e a alta probabilidade (que vai aumentando cada vez mais) de terem que ser substituídos a curto ou médio prazo. Os referidos valores acabam por traduzir – a nosso ver – um benefício injustificado para o Autor que, além de beneficiar de equipamentos novos e com maiores e melhores aptidões do que as que lhe eram proporcionadas pelos antigos, vê ainda dilatado, de modo substancial, o período temporal em que terá que fazer novo investimento com a aquisição de novos equipamentos.
Ponderamos, portanto, em resumo, as seguintes circunstâncias:
· O preço dos novos equipamentos que o Autor teve que adquirir (12.619,80€ e 1.499,00€);
· O tempo de utilização dos antigos (19 anos relativamente ao ar condicionado e 10 anos em relação à passadeira);
· A circunstância de os equipamentos antigos ainda estarem funcionais dispensando o Autor de realizar, para já, o investimento que, na sequência do facto danoso, teve que fazer;
· A circunstância de se desconhecer o valor de mercado e o real estado de conservação dos equipamentos e, consequentemente, o período de “vida útil” que ainda era expectável, mas admitindo, em todo o caso, a probabilidade (de grau relevante, tendo em conta o tempo de utilização) da necessidade de aquisição de novos equipamentos a curto ou médio prazo (necessidade que foi eliminada com a aquisição agora efectuada),
· A vantagem obtida pelo Autor (que importa considerar no sentido de eliminar qualquer enriquecimento injustificado, tendo em conta que a indemnização visa reparar um dano e não criar um enriquecimento injustificado do lesado à custa do lesante), não só pelo facto de passar a usufruir de equipamentos novos e mais funcionais, mas também pelo facto de ter ficado agora dispensado de fazer a curto prazo qualquer investimento para substituição dos equipamentos.
Assim, com ponderação de todos esses elementos, pensamos ser ajustado, em equidade, fixar o valor do dano – correspondente, não só ao valor real dos bens no mercado (que não resultou apurado, mas que, seguramente, seria reduzido), mas também ao seu valor funcional para o lesado (factor ponderado na decisão recorrida e aceite pela Apelante) – em cerca de 50% do custo dos novos equipamentos, ou seja, 7.000,00€.
Assim, somando esse valor aos restantes danos patrimoniais que não estão em causa no recurso (176,66€, 467,40€ e 1.228,77€), alcançamos o valor global de 8.872,83€, sendo esse, portanto, o valor da indemnização devida ao Autor com referência aos danos patrimoniais, a que acresce ainda a indemnização por danos não patrimoniais que foi fixada em 1.500,00€ e que também não está em causa no recurso, no total de 10.372,83€.
Nos termos e em conformidade com a sentença recorrida (que, nessa parte, não foi impugnada) e tendo em conta a franquia de 10%, a Interveniente (Apelante) suportará o valor de 9.335,55€.
Juros de mora
A Apelante insurge-se ainda contra a decisão recorrida no segmento em que condenou no pagamento de juros de mora a contar da citação, sustentando, com fundamento no art.º 805.º do Código Civil e no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2002 de 9 de Maio que, no que toca às quantias referentes ao ar condicionado, passadeira e danos não patrimoniais, os juros de mora não são devidos desde a data da citação, mas apenas desde a data da sentença recorrida.
Assiste razão à Apelante.
O Acórdão em questão – de 09/05/2002 (proferido no processo n.º 01A1508)[2] – uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:
“Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.
É certo, por outro lado, que, conforme tem sido entendido pelo STJ, as indemnizações calculadas com base na equidade têm de ser entendidas, salvo expressa menção em contrário, como actualizadas[3]. Conforme se diz no referido Acórdão de 30/10/2008, “Uma quantia fixada segundo a equidade, é-o atendendo aos padrões actuais de justiça do julgador. Deste modo, ainda que nada se diga, há que entender que tal montante é fixado de forma actualizada”; de acordo com as palavras do Acórdão de 24/05/2018 (já referido), “Ainda que não tenha sido declarada expressamente tal actualização, a aplicação do critério da equidade para a determinação do quantum indemnizatório evidenciaria tacitamente a mesma”.
À luz do exposto, e tendo em conta que as indemnizações a que se reporta a Apelante (referentes ao ar condicionado, passadeira e danos não patrimoniais) foram fixadas com recurso à equidade – logo de forma actualizada, sendo certo que nada se disse em contrário – elas não vencem juros a partir da citação, mas sim e apenas, como sustenta a Apelante, a partir da data da sentença recorrida.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
V.
Pelo exposto, concedendo-se parcial provimento ao presente recurso, decide-se:
Ø Condenar a Interveniente B... - Companhia de Seguros, SA, (Apelante) a pagar ao Autor o montante de 9.335,55€ (nove mil, trezentos e trinta e cinco euros e cinquenta e cinco cêntimos), a título de indemnização pelos prejuízos (patrimoniais e não patrimoniais) resultantes do facto acima mencionado, acrescida de juros de mora desde a data da citação no que respeita à quantia de 1.685,55€ e desde a data da sentença recorrida no que respeita à quantia de 7.650,00€, revogando-se a decisão recorrida no segmento em que condenou a Interveniente em valor superior;
Ø Confirmar, no mais, a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante e do Autor (Apelado), na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(José Avelino Gonçalves)
(Maria João Areias)
[1] Cfr. Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Vol. I, 2017, pág. 17.
[2] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Acórdãos do STJ de 30/10/2008 (processo n.º 08B2662), de 9/10/2008 (processo n.º 07B4692), de 18/03/2010 (processo n.º 467/1999.C1.S1), de 8/04/2010 (processo n.º 608/06.OTBPMS.C1.S1) e de 24/05/2018 (processo n.º 1212/12.0TBSTS.P1.S1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.