I – A extinção de uma obrigação por novação objectiva, ou seja, por contracção de nova obrigação em substituição daquela (cfr. art.º 857.º do CC) pressupõe declaração expressa das partes nesse sentido (cfr. art.º 859.º do CC).
II – Tendo ocorrido uma denominada “Alteração e Reestruturação de Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente” por via da qual se estabeleceu que o crédito aberto deixava de vigorar como conta corrente e passava ao regime de mútuo com as condições ali estipuladas (em que o valor mutuado correspondia ao saldo devedor da anterior conta corrente e seria destinado à “liquidação de responsabilidade anteriormente contraídas” emergentes da anterior operação de crédito) e declarando os outorgantes, de modo expresso, que estas alterações não implicavam novação do crédito, subsistindo as cláusulas do anterior contrato de abertura de crédito que não fossem alteradas, impõe-se concluir – perante as declarações expressas dos outorgantes e à luz do disposto no art.º 859.º do CC – que o referido acordo/contrato não extinguiu (por novação) a obrigação anterior, correspondendo apenas a uma simples modificação ou alteração da obrigação que existia e que se mantém;
III – Não tendo ocorrido, nas circunstâncias referidas, a extinção/novação da obrigação que existia à data do referido acordo, mantêm-se as garantias que haviam sido anteriormente prestadas em relação a essa obrigação, designadamente o aval prestado em livrança que havia sido entregue;
IV – Nas circunstâncias referidas e não estando o avalista vinculado ao pacto de preenchimento que tenha sido fixado no referido acordo por não ter tido nele intervenção, o preenchimento abusivo da livrança tem que ser avaliado à luz do anterior pacto de preenchimento que havia sido subscrito pelo avalista – a que continua vinculado por se manter a obrigação a que respeitava – tendo em conta o valor do crédito que, à data, era garantido pelo aval e as demais condições que aí haviam sido estabelecidas.
(Sumário elaborado pela Relatora)
1.º Adjunto: Anabela Marques Ferreira
2.º Adjunto: Chandra Gracias
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
A Caixa Geral de Depósitos, S.A. (melhor identificada nos autos) instaurou execução contra AA, BB e CC (melhor identificados nos autos), pedindo o pagamento da quantia de 53.532,60€ acrescida de juros e imposto de selo, vencidos e vincendos.
Fundamenta a execução numa livrança subscrita pela sociedade A... e avalizada pelos Executados, que foi entregue à Exequente no âmbito de um contrato de mútuo (no valor de 78.000,00€ e com a referência ...91) que celebrou com a referida sociedade, livrança essa que não foi paga no seu vencimento (14/03/2024) nem posteriormente.
A Executada BB veio deduzir embargos à execução, alegando, em resumo: que a livrança em causa foi entregue em branco e apenas com as assinaturas; que tal livrança não foi entregue para garantia do contrato de mútuo que é referido pela Exequente, mas sim no âmbito de outro contrato que foi objecto de alterações; que as responsabilidades assumidas nesse contrato e respectivas alterações foram liquidadas pelo contrato de mútuo que é alegado pela Exequente e que, nessa medida, a Embargante não é responsável por qualquer obrigação, sendo, por isso, abusivo o preenchimento do título. Mais alega que não outorgou o contrato de mútuo a que se reporta a Exequente (nem na qualidade de avalista), pelo que não celebrou qualquer acordo de preenchimento, não declarou que a livrança em causa se destinasse a assegurar as responsabilidades emergentes desse mútuo e não declarou que a livrança se mantinha e autorizava o seu preenchimento. Alega ainda que a Exequente não lhe comunicou o vencimento antecipado da obrigação e também por isso seria abusivo o preenchimento da livrança, sendo certo que desconhece a que respeita o valor titulado na livrança, nomeadamente qual o valor de capital, juros, comissões e outros eventuais encargos, não aceitando, por isso, – e impugnando – o valor titulado.
A Exequente contestou, alegando, em resumo: que a livrança foi entregue no âmbito de um contrato de abertura em conta corrente para gestão automática de tesouraria que celebrou com a sociedade B..., Ld.ª e no qual a Embargante se constituiu como avalista; que esse contrato teve várias alterações, mantendo-se sempre a garantia prestada e o aval da Embargante com pacto de preenchimento; que o contrato de Novembro de 2019 (identificado no requerimento executivo) é apenas uma outra alteração do referido contrato e não um novo contrato, tendo-se mantido a garantia dada pela livrança e tendo sido celebrado novo pacto de preenchimento, não sendo verdade, portanto, ao contrário do que sustenta a Embargante, que tenham sido liquidadas as responsabilidades emergentes do contrato original; que, apesar de não ter estado presente no momento da assinatura, a Embargante esteve presente em toda a reestruturação, recebeu cópia do contrato, conforme foi combinado pelas partes, e deu o seu expresso acordo ao teor do contrato, sabendo que a Exequente era titular de uma livrança por si assinada e sendo conhecedora do pacto de preenchimento que havia subscrito; que a Embargante era apenas avalista e por isso não tinha que lhe ser comunicado o vencimento antecipado da operação.
Conclui pela improcedência dos embargos.
Em resposta aos documentos apresentados pela Exequente/Embargada, a Embargante reafirmou: que não assinou o contrato em questão e o novo pacto de preenchimento que nele foi celebrado; que não fez as declarações dele constantes (não declarou que a livrança se destinava a titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo; não declarou que a livrança se mantinha válida e que mantinha a autorização dada à CAIXA para a preencher quando tal se mostrasse necessário e não acordou sobre o modo e termos – constantes do contrato – em que a livrança poderia ser preenchida pela exequente) e que o envio da carta junta não supre a necessária declaração expressa da embargante que nunca foi dada.
Foi proferido o despacho saneador e foram delimitados os temas da prova.
Após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu julgar os embargos procedentes e julgar extinta a execução em relação à Embargante.
Inconformada com essa decisão, a Embargada, Caixa Geral de Depósitos, S.A., veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
A Embargante/Apelada respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste, no essencial, em saber se ocorreu (ou não) preenchimento abusivo da livrança que fundamenta a execução, analisando, em particular:
· a questão de saber se a Embargante deu a sua adesão ou aceitação tácita ao acordo celebrado em 05/11/2019;
· a questão de saber se o referido acordo implicou (ou não) uma efectiva alteração da relação contratual anteriormente existente em termos de saber se a obrigação existente continua a ser a mesma e se, em consequência, se mantem o aval anteriormente prestado pela Embargante, ainda que esta não esteja vinculada ao acordo de 05/11/2019;
· a questão de saber se, ainda que não esteja vinculada ao acordo de 05/11/2019, a Embargante/Apelada continua vinculada ao pacto de preenchimento anteriormente firmado, apurando, em caso afirmativo, se a livrança foi (ou não) preenchida em desconformidade com este pacto.
III.
Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:
1. Por requerimento executivo dado entrada em juízo em 26 de Abril de 2024, o Exequente apresentou como título executivo a livrança n.º ...90, a qual contém, para além do mais, as seguintes menções:
1. Na frente:
a. Local e data de emissão: ..., 2012-07-03
b. Importância: 53.532,60 €uros
c. Vencimento: 2024-03-14
d. Valor: ...91
e. Nome e morada do(s) subscrito(es): A..., Lda, Estrada ..., ..., ...., ... ...
2. No verso
2. Entre o Exequente, a sociedade “A..., Lda.”, na qualidade de devedora ou cliente, AA e mulher, BB e DD, como Avalistas foi celebrado, em 12 de Janeiro de 2011, considerado perfeito em 20 de Janeiro de 2011, um contrato de abertura de crédito em conta corrente para gestão automática de tesouraria, até ao montante de 40 mil €uros, que se mostra junto aos autos sob a referência 10964536 de 08 de Julho, como Doc. 1 e aqui se dá por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
3. No âmbito do referido contrato a sociedade “A..., Lda.”, na qualidade de devedora ou cliente e AA e mulher, BB e DD, como Avalistas entregaram ao Exequente a seguinte livrança
(frente)
(verso)
Com, nomeadamente, montante e vencimento em branco para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo, devidamente datada, subscrita pela primeira e avalizada pelos segundos, que autorizaram desde já o Exequente a proceder ao seu preenchimento quando tal de mostre necessário, a juízo do próprio, nos termos das cláusulas 22. e 25. do contrato que se mostra junto aos autos sob a referência 10964536 de 08 de Julho, como Doc. 1 e aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
4. O contrato referido em 2. foi objecto de alteração em 03 de Maio de 2011, por documento epigrafado “Alteração ao Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente para Gestão Automática de Tesouraria”, junto aos autos sob a referência 10964536 de 08 de Julho, como Doc. 1 e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
5. Na cláusula 23. da alteração contratual referida em resulta que a titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo, a Cliente e os Avalistas entregaram ao Exequente aquando do contrato inicial uma livrança com montante e vencimento em branco, subscrita pela primeira e avalizada pelos segundos, e agora declaram que a mesma se mantém válida e mantêm a autorização data ao Exequente para preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo do próprio Exequente, tendo em conta, nomeadamente, que a importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do empréstimo, nomeadamente em capital, agora elevado para 70 mil €uros, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo da própria livrança, cfr. cláusula 23. do contrato de Alteração ao Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente para Gestão Automática de Tesouraria, junto aos autos sob a referência 10964536 de 08 de Julho, como Doc. 1 e aqui se dá por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
6. O contrato referido em 2., alterado cfr. referido em 4., foi objecto de alteração em 03 de Julho de 2012, por documento epigrafado “Alteração ao Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente para Gestão Automática de Tesouraria”, junto aos autos sob a referência 10964536 de 08 de Julho, como Doc. 1 e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
7. A referida alteração contratual foi celebrada entre o Exequente, a sociedade A..., Lda. como Devedora ou Cliente e AA e mulher, BB e CC, todos como Avalistas e AA e BB, ainda, também, como Autores de Penhor.
8. Dos considerandos desta alteração contratual decorre, para além do mais, que:
“(…)IV – Pretende agora a CLIENTE proceder a nova alteração contratual, nomeadamente, elevar o limite de crédito até €125.000,00 (…), bem como substituir o aval prestado por DD pelo de CC, a qual desde já declarada conhecer perfeita e integralmente os termos, cláusulas e condições do referido contrato, e ainda, reforçar as garantias prestadas com a constituição de penhor, o que merece a concordância da CAIXA.
V- Contra a entrega da livrança prevista na Clausula 23. é nesta data devolvida à CLIENTE a livrança referida na alínea ii dos considerandos. (…)”.
9. Assim, no âmbito da alteração contratual referida em 6. a sociedade “A..., Lda.”, na qualidade de devedora ou cliente e AA e mulher, BB e CC, como Avalistas entregaram ao Exequente a seguinte livrança
(frente)
(verso)
Com, nomeadamente, montante e vencimento em branco para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo, devidamente datada, subscrita pela primeira e avalizada pelos segundos, que autorizaram desde já o Exequente a proceder ao seu preenchimento quando tal de mostre necessário, a juízo do próprio, nos termos das cláusulas 20.1 e 23. da “Alteração ao Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente para Gestão Automática de Tesouraria” datada de do 03 de Julho de 2012, contrato que se mostra junto aos autos sob a referência 10964536 de 08 de Julho, como Doc. 1 e aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
10. Em 10 de Outubro de 2012 foi efectuada nova alteração ao contrato celebrado em 20 de Janeiro de 2011, com as alterações de 03 de Maio de 2011 e 03 de Julho de 2012, sendo nela interveniente, para além do Exequente, a sociedade A..., Lda. como Devedora ou Cliente e AA e mulher, BB e CC, todos como Avalistas e AA e BB, ainda, também, como Autores de Penhor, cfr. Alteração ao Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente para Gestão Automática de Tesouraria” datada de do 10 de Outubro de 2012, contrato que se mostra junto aos autos sob a referência 10964536 de 08 de Julho, como Doc. 1 e aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
11. Dos considerandos desta alteração contratual decorre, para além do mais, que:
“(…) III – Pretende agora a CLIENTE proceder a nova alteração contratual, nomeadamente, introduzir novas modalidades de utilização múltipla, estabelecendo o limite de crédito até €152.000,00 (…), mantendo-se as garantias prestadas, o que merece a concordância da CAIXA. (…)”
12. Da cláusula 32. da referida alteração contratual decorre que “(…) Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes deste contrato, sem prejuízo das livranças que venham a ser exigidas para a realização das operações relativas às utilizações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 da Cláusula 7, a CLIENTE e os AVALISTAS atrás identificados para o efeito entregaram à CAIXA, aquando da alteração contratual datada de 03/07/2012, uma livrança em branco com montante e vencimento em branco (…) subscrita pela primeira e avalizada pelos segundos, declaram que a mesma se mantém válida e mantêm a autorização dada à CAIXA para preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CAIXA, tendo em conta, nomeadamente (…) b) a importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança. (…)”.
13. Em 26 de Março de 2013 foi celebrado entre o Exequente, a sociedade A..., Lda. como Devedora ou Cliente e AA e mulher, BB e CC, todos como Avalistas e AA e BB, ainda, também, como Autores de Penhor, um contrato epigrafado de “Alteração ao Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente (de utilização múltipla”, contrato que se mostra junto aos autos sob a referência 10964536 de 08 de Julho, como Doc. 1 e aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
14. Dos considerandos desse contrato decorre que:
“I – Por contrato considerado perfeito em 20/01/2011, a Caixa concedeu à CLIENTE uma abertura de crédito sob a forma de conta-corrente (…);
II – Por alterações contratuais de 03/05/2011, 03/07/2012 e 16/10/2012, acordaram as partes em introduzir novas modalidades de utilização (…) e reforçar a garantia prestada com introdução de penhora;
III – Pretende agora a CLIENTE proceder a nova alteração contratual, nomeadamente, substituir uma das modalidades de crédito e elevar o limite de crédito até € 162.500,00 (…), bem como atualizar o clausulado, o que merece a concordância da CAIXA. (…)”
15. Da cláusula 26.1 e 32 do contrato referido em 13. decorre, para além do mais, que para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes deste contrato, a CLIENTE e os AVALISTAS entregaram à CAIXA, aquando da alteração contratual datada de 03/07/2012, uma livrança com montante e vencimento em branco, subscrita pela primeira e avalizada pelos segundos e declaram que a mesma se mantém válida e mantêm a autorização dada à CAIXA para preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CAIXA , tendo em conta, nomeadamente que a importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente em capital, agora elevado para 162.500,00 €uros, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança.
16. Do documento epigrafado de “Alteração e Reestruturação de Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente”, datado de 05 de Novembro de 2019, que se mostra junto aos autos sob a referência 10964536 de 08 de Julho, como Doc. 2 e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, resulta, para além do mais, o seguinte:
“Contratantes:
PRIMEIRO: A..., Lda. (…) designada por DEVEDORA ou CLIENTE;
SEGUNDOS: BB, divorciada (…) CC (…), AA, divorciado (…) adiante designados por AVALISTAS;
TERCEIRA: CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A. (…)
Considerando que:
(…)
3-Por alterações contratuais datadas de 03/05/2011, 3/07/2012, 16/10/2012 e 26/03/2013 e negociações posteriores, acordaram as partes alterar o limite de crédito que vigora atualmente até € 78.000,00 (…) introduzir novas modalidades de utilização, passando a presente operação a vigorar sob a forma de abertura de crédito em conta corrente de utilização múltipla, bem como dispensar e substituir o aval prestados (…);
4-O contrato encontra-se em vigor, apresentando a conta corrente, aberta na DAP UAP-POLO NEGOC EMPRESAS/ENI-COIMBRA, com o n.º ...92 um saldo devedor de €78.000,00 (…);
5.O CLIENTE, em face das dificuldades no reembolso das quantias devidas, solicitou à CGD a reestruturação do pagamento das referidas responsabilidades e a autonomização da conta corrente, mantendo o aval prestado, o que esta aceita;
Em efetivação do que acima se expôs, as PARTES livremente convencionam e expressamente aceitam a presente ALTERAÇAO E REESTRUTURAÇÃO DE CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO EM CONTA CORRENTE, doravante, apenas CONTRATO, que se rege pelos considerandos anteriores e pelas cláusulas seguintes:
CLÁUSULA PRIMEIRA: As responsabilidades emergentes da Abertura de Crédito formalizada pelo contato datado de 20/01/2011 vencidas e não pagas, no montante global de 78.000,00 (…) são reestruturadas nesta operação, regulada pelo presente contrato.
CLÁUSULA SEGUNDA: Fica acordado que, a partir da presente data, o crédito aberto deixa de vigorar como conta corrente, passando ao regime de mútuo, nas condições adiante estipuladas, mantendo-se, no entanto, integralmente válidas e em vigor as restantes condições do contrato não alteradas ou revogadas pelo presente.
CLÁUSULA TERCEIRA: As presentes alterações não implicam novação do crédito, subsistindo na integra as cláusulas e condições constantes do Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente celebrado em 20/01/2011, com as alterações que lhe sobrevierem, que não sejam modificadoras ou contrárias ao ora estipulado, incluindo as garantias prestadas.
(…)
2. CONTRATO N.º: ...91
3.FINALIDADE: Destinado à liquidação de responsabilidade anteriormente contraídas junto da CGD emergentes da operação de crédito identificada no Considerando 1.
(…)
5.MONTANTE: €78.000,00 (…)
6.PRAZO GLOBAL: 53 meses (…)
7.TAXA DE JURO:
7.1-O capital vence juros à taxa de 4% ao ano, acrescida de uma componente variável, sempre positiva, correspondente à média aritmética simples das Taxas Euribor a 12 meses, apurada com referência ao mês imediatamente anterior ao do inicio de cada período de contagem (….)
8.TAE: A taxa anual efetiva (TAE), calculada nos termos do Decreto-Lei n.º 220/94 de 23 de agosto, a aplicar no primeiro período de contagem de juros, é de 5,121%. Para os períodos seguintes, a TAE será calculada com base na fórmula constante do anexo 2 do Decreto-Lei n.º 200/94, (…).
9. PAGAMENTO DOS JUROS E DO CAPITAL:
9.1-O empréstimo será reembolsado conforme plano a seguir discriminado:
1)Prestação 01 a Prestação 06: €500 (…) mensais;
2)Prestação 07 a Prestação 24: €1000 (…) mensais;
3)Prestação 25 a Prestação 36: €1.650 (…) mensais;
4)Prestação 37 a Prestação 48: €2.100 (…) mensais;
5)Prestação 49 a Prestação 53: €2.400 (…) mensais;
9.2-Os juros serão calculados dia a dia sobre o capital em cada momento em divida e liquidados e pagos em conjunto com os reembolsos de capital (…).
11.COMISSÕES
(…)
14. CAPITALIZAÇÃO DE JUROS
(…)
15. DESPESAS
(…)
16.INCUMPRIMENTO – JUROS:
16.1-Em caso de incumprimento da obrigação de pagamento de (i) capital, (ii) juros remuneratórios capitalizados, exceto na parte em que estes se tenham vencido sobre juros remuneratórios anteriormente capitalizados (que não vencem juros moratórios) e ou (iii) comissão pela recuperação de valores em divida, na medida em que tiver acrescido ao capital, a CAIXA poderá cobrar, dia a dia e por todo o período de duração do incumprimento, juros calculados à taxa estipulada nos termos da cláusula 7 (…), acrescida de uma sobretaxa de 3% ou outra que seja legalmente admitida. (…).
23. TITULAÇÃO POR LIVRANÇA EM BRANCO
23.1. - Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes deste contrato, a CLIENTE e os AVALISTAS atrás identificados para o efeito entregaram à CAIXA, em 03/07/2012, uma livrança com montante e vencimento em branco (…) subscrita pela primeira e avalizada pelos segundos, declaram que a mesma se mantém válida e mantêm a autorização dada à CAIXA para preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CAIXA , tendo em conta, nomeadamente (…) b) a importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança. (…)”.
29. DATA DA PERFEIÇÃO DO CONTRATO
29.1 – O presente contrato considera-se perfeito quando contiver as assinaturas de todos os CONTRATANTES.
(…) 29.4 – Quando a data de perfeição do contrato não coincida com a data da sua feitura, a CGD dará conhecimento à CLIENTE e aos demais
CONTRATANTES da data da perfeição, mediante simples entrega de fotocópia ou duplicado do contrato, que conterá a indicação da data de perfeição.
(…)
(…)”.
17. A Embargada enviou à Embargante cópia do contrato referido em 16. e a Embargante nada disse.
18. A livrança foi preenchida, nomeadamente quanto à importância, em conformidade com o que se mostrava em divida no contrato referido em 16.
Não se julgaram provados os seguintes factos:
i. A Embargante esteve presente na reestruturação do contrato referido em 16. e deu o seu acordo expresso ao teor do contrato.
ii. O pacto de preenchimento celebrado em 03 de Julho de 2012, data em que foi entregue a livrança executada, é um pacto válido e eficaz.
IV.
Conforme resulta da matéria de facto, a presente execução fundamenta-se numa livrança que foi avalizada pela Embargante no âmbito e em garantia de uma alteração – ocorrida em 03/07/2012 – a um contrato de abertura de crédito em conta corrente para gestão automática de tesouraria que havia sido celebrado em Janeiro de 2011 entre a Exequente e a sociedade “A..., Lda.”, sendo que nessa alteração o limite do crédito foi estabelecido em 125.000,00€.
Conforme também resulta da matéria de facto provada, no momento em que foi assinada (pela subscritora e respectivos avalistas) e entregue à Exequente/Embargada, a livrança em questão estava incompleta, no que toca, designadamente, ao montante e data de vencimento, correspondendo, portanto, àquilo que normalmente se designa por “letra em branco”.
Como é sabido, quem emite ou subscreve uma letra ou livrança em branco atribui – expressa ou tacitamente – àquele a quem a entrega o direito de a preencher em determinados termos que, por regra, são definidos através de um acordo ou contrato – o pacto de preenchimento – pelo qual se definem os termos em que a obrigação cartular irá ficar definida e a violação deste acordo ou contrato consubstancia aquilo que se designa por preenchimento abusivo. Tal violação não poderá ser oposta ao portador do título salvo se este o tiver adquirido de má-fé ou cometendo falta grave (cfr. artigo 10º da LULL), mas poderá, naturalmente, ser invocada no âmbito das relações imediatas e entre os sujeitos que tiveram intervenção no acordo ou pacto de preenchimento.
No caso dos autos, o pacto de preenchimento foi efectivamente estabelecido no âmbito da alteração ao contrato acima mencionada.
O contrato em questão sofreu novas alterações em 10/10/2012 e em 26/03/2013 (com alteração do limite do crédito para 152.000,00€ e 162.500,00€ respectivamente), com intervenção de todos os interessados, designadamente a Embargante, no âmbito dos quais se manteve a livrança anteriormente entregue e a autorização para o respectivo preenchimento nos termos aí definidos.
Sucede que em 05/11/2019 é celebrado um novo acordo denominado “Alteração e Reestruturação de Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente”, por via do qual se procedeu à reestruturação do crédito que resultava dos anteriores acordos (contrato inicial e respectivas alterações) cuja conta corrente apresentava um saldo devedor de 78.000,00€ e onde se estabeleceu que a livrança anteriormente emitida se mantinha válida nos mesmos termos em que se mantinha a autorização dada para o respectivo preenchimentos nos termos aí referidos. Foi na sequência deste acordo e respectivo incumprimento que a Exequente preencheu a livrança em questão – que veio apresentar à execução – nela apondo o valor de 53.532,60€ e a data de vencimento de 14/03/2024.
Sucede que a Embargante não teve intervenção no acordo em questão (de 05/11/2019), sendo certo que, apesar de ser aí identificada como contratante, não o assinou nem subscreveu. E é aí que reside a questão central que aqui importa solucionar.
A sentença recorrida – dando razão à Embargante – concluiu pelo preenchimento abusivo da livrança, argumentando:
- Que a livrança entregue em Julho de 2012 foi preenchida em conformidade com as responsabilidades emergentes do empréstimo cujo conteúdo contratual e pacto de preenchimento constam do documento outorgado em 05/11/2019;
- Que, ocorrendo uma alteração da relação fundamental, o pacto de preenchimento só passa a valer para essa “nova” ou reconfigurada relação fundamental se o subscritor em branco o declarar;
- Que, por isso e ainda que esse contrato (de 05/11/2019) resultasse de uma alteração contratual ao contrato de 12/01/2011 – sucessivamente alterado em 03/05/2011, 03/07/2012, 10/10/2012 e 26/03/2013 – o pacto de preenchimento anteriormente firmado só valeria para essa reconfigurada relação fundamental se a Embargante assim o declarasse;
- Que, no caso, isso não aconteceu, sendo certo que a Embargante não foi parte nesse acordo e respectivo pacto de preenchimento, não deu o seu consentimento expresso – ou tácito – para o preenchimento da livrança em conformidade com a relação fundamental reconfigurada em Novembro de 2019;
- Que o silêncio da Embargante à missiva referida em 17. dos factos provados não tem valor de declaração negocial, visto que o silêncio só vale como tal, quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção – art. 218.º do Código Civil;
- Que, por essas razões, não existe qualquer obrigação cambiária estabelecida entre a Embargante/avalista e a Embargada no que toca à relação subjacente reconfigurada em 05/11/2019;
- Que, em consequência, o preenchimento da livrança foi abusivo por não ter sido feito em conformidade com os pactos de preenchimento estabelecidos em 2012 e 2013, mas sim em conformidade com um pacto de preenchimento ao qual a Embargante era alheia.
A Apelante discorda, sustentando, no essencial:
- Que a Embargante aceitou tacitamente a sua permanência como avalista no âmbito da alteração ocorrida, uma vez que recebeu a cópia dessa alteração – onde era mencionada a sua qualidade de avalista e a manutenção da garantia anteriormente prestada – e nada disse, não tendo manifestado, em momento algum, a sua vontade de não aceitar o que ali se dispunha e que não pretendia manter-se como avalista;
- Que não existiu uma efectiva alteração da relação contratual; a relação contratual é a mesma e apenas foram concedidas ajudas à empresa – por via da reestruturação do débito – de forma a cumprir o contratado inicialmente.
- Que, além do mais, a referida alteração contratual apenas beneficiou a Embargante, uma vez que, se o crédito não tivesse sido reestruturado (como aconteceu), a livrança teria sido preenchida pelo valor de 78.000,00€ (que, à data, se encontrava em dívida), quando é certo que veio a ser preenchida por valor inferior em função das alterações contratuais ocorridas que eram mais favoráveis para a Embargante;
- Que não pode afirmar-se que a livrança tenha sido preenchida em desconformidade com o pacto de preenchimento firmado na data em que ela foi entregue, porque estava em causa o mesmo contrato (a dívida continuava a ser a mesma que havia sido originada pelo contrato inicial) e as alterações contratuais ocorridas apenas replicavam o pacto inicialmente estabelecido;
- Que, de qualquer forma e ainda que se entendesse – como se entendeu na decisão recorrida – que a última alteração não poderia produzir efeitos quanto à Recorrida, sempre se deveria equacionar a sua responsabilidade nos termos da última alteração ao contrato que assinou e que manteve o seu aval, devendo ser condenada na exacta medida da dívida calculada nos termos dessa mesma alteração, uma vez que o referido contrato não se extinguiu e que não houve qualquer acordo que tivesse anulado o aval por si prestado
Apreciemos então essa matéria.
Começamos por recordar que, apesar de nele ter sido identificada como contratante/avalista, a Embargante não subscreveu o acordo/contrato de 05/11/2019 e tão pouco se provou que tenha estado presente na sua negociação e/ou que tenha dado o seu acordo expresso ao que nele ficou vertido (cfr. pontos i. e ii. dos factos não provados). E, ao contrário do que pretende a Apelante, pensamos não poder afirmar-se que a mera circunstância de a Embargante não ter respondido à carta por via da qual lhe foi enviada cópia do contrato possa valer como declaração tácita no sentido de aceitar a sua vinculação às obrigações dele decorrentes.
É certo que, nos termos do art.º 217.º do CC, a declaração negocial pode ser expressa ou tácita, considerando-se como tácita a declaração que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
Falamos, portanto, de declaração tácita quando a declaração “…é manifestada indirectamente, através de comportamentos realizados com outra finalidade mas que, com toda a probabilidade, segundo as regras da experiência, contêm implícita uma determinada vontade negocial (…) estes comportamentos, de onde a vontade negocial se deduz, são os factos concludentes”[1]. Dizendo de outro modo e segundo as palavras de Carlos Alberto da Mota Pinto[2], a declaração é tácita “…quando do seu conteúdo directo se infere um outro, isto é, quando se destina a um certo fim, mas implica e torna cognoscível, a latere, um autorregulamento sobre outro ponto – em via oblíqua, imediata, lateral – («quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam»)”.
Para que se possa falar em declaração tácita, será necessário que o comportamento ou factos que lhe estão subjacentes (comportamento ou factos concludentes) revelem a declaração com toda a probabilidade; é necessário que, conforme os usos sociais, a dedução da declaração possa ter lugar com toda a probabilidade[3], ou seja, que o comportamento ou factos concludentes evidenciem, de forma inequívoca, a vontade/declaração implícita que deles se pretenda extrair, em termos de se poder afirmar que esse comportamento ou factos não deixam fundamento razoável para duvidar daquela intenção e correspondente declaração porque, segundo os usos da vida, eles apontam, com toda a probabilidade (com alta probabilidade), para tal intenção e correspondente declaração[4].
É certo, no entanto, que, conforme resulta do disposto no art.º 218.º do CC, o silêncio – “nada dizer” e “nada fazer” – apenas vale como declaração negocial quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção. Fora desses casos, o silêncio não vale como declaração negocial – nem mesmo tácita – porquanto não pode ser entendido como facto concludente no sentido de aceitação de uma proposta negocial[5].
Ora, o facto de a Embargada/Apelante ter enviado à Embargante/Apelada uma cópia do contrato onde esta era identificada como contratante/avalista configurava, quando muito, uma proposta de contrato que carecia de aceitação e o mero silêncio da Embargante (ou seja, a mera circunstância de nada ter dito) não pode valer como aceitação tácita; em primeiro lugar, porque o valor desse silêncio como declaração negocial não encontra apoio na lei ou em qualquer uso ou convenção e, em segundo lugar, porque nem sequer corresponde a um facto ou comportamento concludente que evidenciasse, com toda a probabilidade, uma vontade/declaração implícita de aceitação da proposta e vinculação às obrigações que dela resultavam.
Nessas circunstâncias, não há fundamento e base factual para concluir que a Embargante tivesse assumido as declarações e as obrigações constantes do referido contrato e que, de algum modo, se tivesse vinculado ao respectivo cumprimento. Para os efeitos que aqui relevam, a Embargante é alheia a tal contrato, sendo certo que nele não teve intervenção nem aceitou – expressa ou tacitamente – qualquer declaração que ali lhe tivesse sido atribuída.
Apesar disso, não temos como correcta a conclusão – extraída pela decisão recorrida – de que a livrança foi preenchida de forma abusiva e que a Embargante não está vinculada ao seu pagamento.
É indiscutível – à luz da matéria de facto provada – que a Embargante assinou (na qualidade de avalista) a livrança em questão em 03/07/2012 para garantia das responsabilidades emergentes da alteração ao “Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente para Gestão Automática de Tesouraria” que foi celebrada nessa data, tendo subscrito o pacto de preenchimento que aí ficou estabelecido, autorizando a Embargada/Apelante a preencher a livrança quando tal se mostrasse necessário, a juízo da própria Caixa (a Apelante), tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:
“a) A data de vencimento será fixada pela Caixa quando, em caso de incumprimento pela CLIENTE das obrigações assumidas, a CAIXA decida preencher a livrança;
b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança;
c) A CAIXA poderá inserir cláusula “sem protesto” e definir o local de pagamento”
A responsabilidade resultante da referida livrança e o respectivo pacto de preenchimento mantiveram-se nas alterações contratuais que ocorreram em 10/10/2012 e 26/03/2013 que foram implicando um aumento do capital e, consequentemente, do valor da obrigação garantida pelo aval (valor que, em 26/03/2013, era de 162.500,00€).
Sendo inquestionável que a Embargante assumiu, como avalista, as responsabilidades contratuais emergentes da alteração contratual de 26/03/2013 e subscreveu o pacto de preenchimento nos termos que aí ficaram vertidos, o que importa agora saber é se tais responsabilidades e esse pacto de preenchimento ainda se mantêm em vigor ou se extinguiram por força do acordo/contrato celebrado em 05/11/2019 (que, conforme referimos, não vincula a Embargante).
Era este, aliás, o fundamento essencial dos embargos deduzidos à execução; a Embargante sustentava que as responsabilidades assumidas no contrato inicial e respectivas alterações – em garantia das quais a livrança havia sido entregue – haviam sido liquidadas pelo mútuo celebrado em 05/11/2019 e, portanto, haviam cessado (estavam extintas).
Será assim?
Importa agora relembrar que o acordo/contrato de 05/11/2019 que está aqui em causa envolveu – conforme resulta do seu teor – uma reestruturação do contrato de abertura do contrato de abertura de crédito que havia sido celebrado inicialmente e objecto de várias alterações e que, à data, apresentava um saldo devedor de 78.000,00€. Essa reestruturação consubstanciou-se na celebração de um contrato de mútuo (ao qual foi atribuído o n.º ...91) de valor equivalente ao saldo devedor da abertura de crédito e destinado – como ali se diz expressamente – à liquidação das responsabilidades anteriormente contraídas e emergentes da aludida operação de crédito, tendo ficado ali estabelecidas as condições contratuais do referido mútuo, designadamente o prazo de amortização do mútuo (53 prestações mensais) e respectiva taxa de juro.
Tendo em conta o teor desse acordo e sendo certo que a “liquidação das responsabilidades anteriormente contraídas” a que ali se aludiu não correspondeu a efectivo pagamento desse valor (como resulta claro dos termos do acordo em causa), a questão de saber se ele implicou a extinção das responsabilidades anteriormente assumidas (designadamente pela Embargante) no contrato inicial e respectivas alterações remete-nos para a figura jurídica da novação – que vem prevista nos artigos 857.º a 862.º do CC – já que, na situação em causa nos autos, é essa a causa de extinção das obrigações (e respectivas garantias) que poderá ser equacionada.
A novação objectiva (única que poderia estar aqui em causa) corresponde a uma causa de extinção das obrigações que, segundo o disposto no citado art.º 857.º, ocorre quando o devedor contrai uma nova obrigação em substituição da antiga e que implica também, por consequência e salvo reserva expressa, a extinção das garantias que asseguravam o cumprimento da obrigação antiga (cfr. art.º 861.º do CC). Em teoria, poderia ser essa a situação dos autos, uma vez que a obrigação emergente do contrato de abertura de crédito que havia sido celebrado foi, formalmente, substituída por uma obrigação emergente de um contrato de mútuo cujo valor correspondia ao valor que estava em débito na abertura de crédito.
Importa notar, no entanto, que, conforme previsto no art.º 859.º do CC, a vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada. Para que exista novação é, portanto, essencial, como nos diz Antunes Varela[6] “...que os interessados queiram realmente extinguir a relação primitiva por meio da contracção de uma nova obrigação (...) Se a ideia das partes é a de manter a obrigação, alterando apenas um ou alguns dos seus elementos, não há novação (...) mas simples modificação ou alteração da obrigação”.
Procurando distinguir as situações de novação (em que ocorre extinção da obrigação anterior e, salvo reserva expressa, das respectivas garantias) e de simples modificação da obrigação (que implica a manutenção de todos os elementos da obrigação antiga que não sejam alterados e das respectivas garantias), continua dizendo o citado autor[7] que o elemento essencial e decisivo para operar essa distinção é a vontade real das partes: saber, portanto, se, com a modificação operada, elas pretenderam (ou não) extinguir a obrigação e as suas garantias e acessórios.
A novação não se bastará, em princípio, com a alteração de elementos acessórios da relação creditória (prorrogação, encurtamento, aditamento ou supressão dum prazo, mudança do lugar de cumprimento, modificação ou supressão de juros, agravamento ou atenuação da cláusula penal), implicando, por princípio, a alteração de elementos essenciais da relação obrigacional (o objecto, a causa, os sujeitos) e, ainda assim, não quer dizer que seja, necessariamente, uma novação[8]. O elemento essencial para distinguir as referidas situações, corresponderá, como se disse, à vontade real das partes, sendo que, nos termos previstos no citado art.º 859.º a vontade de novar tem que ser expressamente manifestada.
Em conformidade com o exposto, vejam-se os seguintes Acórdãos[9]:
- Acórdão do STJ 28/06/2018 (processo n.º 2198/12.6TBPBL.C1.S1), onde se lê “O “animus novandi” tem de ser exteriorizado pelas partes de forma expressa, não podendo ser presumido nem extraído, tacitamente, de outras declarações contratuais”;
- Acórdão do STJ 18/10/2007 (processo n.º 07A2773) onde se lê: “O animus novandi não se presume, tendo de ser expressamente manifestado”;
- Acórdão do STJ de 27/04/99 (processo n.º 99A261) onde se lê: “A vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada, não bastando, assim, os simples "facte concludentia" em que as declarações tácitas se apoiam”;
- Acórdão do STJ de 11/05/1995 (processo n.º 086410), onde se lê: “Para que exista novação, a lei (artigo 859 do Código Civil) exige que a intenção de novar seja expressamente declarada; ou seja, a vontade de substituir a antiga obrigação, mediante a contracção de novo vínculo, há-de resultar de declaração expressa, não bastando uma declaração clara do "animus novandi" inferida da fisionomia económica da relação obrigacional, antes ou depois da alteração convencionada pelas partes (...) A palavra "expressamente", inserta no artigo 859, significa que a vontade novar não se presume, mas deve manifestar-se inequivocamente”.
Acórdão da Relação de Coimbra de 14/09/2020 (processo n.º 13190/18.7T8LSB.C1), onde se lê: “Quer se trate de uma novação objetiva, quer se trate de uma novação subjetiva, exige a lei que a substituição das obrigações (da antiga pela nova) se exteriorize através de uma manifestação/declaração expressa da vontade das partes nesse sentido, o que impede, assim, que esse animus novandi possa ser presumido ou sequer mesmo extraído tacitamente de outras declarações contratuais”.
Transpondo essas considerações para o caso em análise, impõe-se concluir que não existiu aqui qualquer novação; o acordo/contrato de 05/11/2019 não extinguiu (por novação) a obrigação anterior.
E tal novação não existiu porque, além de não ter existido qualquer declaração expressa que manifestasse a vontade de novar (como seria necessário, à luz do disposto no art.º 859.º, para que tal novação ocorresse), os outorgantes declararam precisamente o contrário, dizendo, de forma expressa, que as alterações efectuadas não implicavam novação do crédito e que subsistiam na integra as cláusulas e condições constantes do Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente celebrado em 20/01/2011, com as alterações que lhe sobrevierem, que não fossem modificadas ou contrárias ao ora estipulado, incluindo as garantias prestadas (cfr. cláusula 3.ª).
É certo, portanto, que não ocorreu novação, tendo ocorrido apenas – por força do acordo de 05/11/2019 – uma simples modificação ou alteração da obrigação anterior. O crédito (que, à data, era de 78.000,00€) foi apenas reconfigurado e reestruturado, deixando de vigorar como conta corrente (como acontecia até aí) e passando a vigorar como mútuo (em que o capital mutuado correspondia ao valor que estava em dívida na conta corrente) a amortizar nas condições aí descritas, destinando-se essa reconfiguração a superar as dificuldades de reembolso do valor devido que estavam a ser sentidas pela devedora. O crédito continuava, contudo, a ser o mesmo, por expressa vontade das partes.
Veja-se, a propósito e num caso com algumas semelhanças com o dos autos – onde também estava em causa um contrato de mútuo celebrado na sequência de outros mútuos e em que também se dizia (como aqui acontece) que o mútuo se destinava à liquidação do mútuo anterior –, o Acórdão da Relação de Coimbra de 14/11/2017 (processo n.º 2198/12.6TBPBL.C1)[10], onde se considerou não estar em causa uma novação, aí se considerando que não havia existido manifestação expressa, inequívoca e concludente de ambas as partes nesse sentido e que a mera circunstância de se referir que o empréstimo se destinava à liquidação do anterior não valia com esse sentido.
Registe-se que esse Acórdão veio a ser revogado pelo STJ (cfr. Acórdão de 28/06/2018, acima citado) onde se considerou – indo de encontro à posição assumida pela Embargante na petição de embargos – que, por aplicação do regime instituído nos nºs 1 e 2 do art.º 236º, e na falta de conhecimento da vontade real, a “liquidação” anunciada nos contratos não é mais do que o pagamento da dívida existente, ou seja, a restituição da quantia mutuada através do contrato anterior, considerando, por isso, que cada um dos mútuos era independente dos restantes e que, nessa medida, não se comunicavam aos posteriores as garantias eventualmente convencionadas no âmbito dos anteriores.
Todavia, ainda que se considerasse como válida a posição assumida pelo STJ no referido Acórdão, existe uma diferença assinalável que impede a sua transposição e aplicação ao caso dos autos; é que ali desconhecia-se a vontade real das partes e, no nosso caso (agora em apreciação) os outorgantes declararam, de forma expressa, que as alterações efectuadas (apesar de se terem traduzido na celebração de um mútuo em substituição da abertura de crédito que anteriormente vigorava) não implicavam novação, ou seja, o crédito, apesar de reconfigurado, na sua natureza e nas condições de pagamento, continuava a ser o mesmo que existia anteriormente e, perante essas declarações expressas e à luz do disposto no art.º 859.º do CC, não é possível concluir pela existência de novação e, consequentemente, pela extinção da obrigação anterior e das garantias que asseguravam o seu cumprimento.
Concluímos, portanto, à luz do exposto, que se mantém – porque não se extinguiu – a obrigação que existia antes de 05/11/2019 e que a Embargante assumiu, na qualidade de avalista, em 03/07/2012 e nas posteriores alterações de 10/10/2012 e 26/03/2013. A obrigação actualmente existente – na sequência do acordo/contrato de 05/11/2019 – continua a ser a mesma que existia anteriormente (não existindo, sequer, indícios de que esse acordo tivesse agravado as condições do seu pagamento), mantendo-se, por isso, as garantias que asseguravam o seu cumprimento e, designadamente, a que resulta do aval da Embargante na livrança que foi entregue à Embargada.
Não concordamos, portanto, com a decisão recorrida quando nela se afirma que, ocorrendo uma alteração da relação fundamental, o pacto de preenchimento só passa a valer para essa “nova” ou reconfigurada relação fundamental se o subscritor em branco o declarar. Pensamos não ser assim. Se, não obstante a sua alteração ou reconfiguração, a obrigação ou relação fundamental se mantiver, a subscrição em branco e o respectivo pacto de preenchimento continuam, independentemente de declaração do subscritor, a ser válidos e a produzir os seus efeitos, ainda que apenas nos exactos termos que emergem do seu teor e dentro dos limites por ele estabelecidos. É claro que se o pacto de preenchimento foi estabelecido para determinado valor, não estará autorizado – sem alteração do pacto de preenchimento e aceitação do respectivo subscritor – o preenchimento do título por valor superior, mas continuará a estar autorizado o seu preenchimento até ao valor que está pressuposto e contido no pacto de preenchimento e com observância das restantes condições por ele exigidas.
Mantendo-se a garantia em causa, resta agora saber se existiu (ou não) preenchimento abusivo da livrança, à luz do pacto de preenchimento que havia ficado estabelecido em 26/03/2013, tendo em conta que, como se disse, o pacto de preenchimento firmado no acordo/contrato de 05/11/2019 não é oponível à Embargante, tendo em conta que não teve intervenção nesse acordo e não subscreveu nem aceitou esse pacto.
Ora, nada permite concluir pela existência desse preenchimento abusivo, importando notar que era a Embargante que tinha o ónus de fazer a respectiva prova.
Na verdade, de acordo com o pacto de preenchimento firmado, a credora (Embargada/Apelante) estava autorizada a preencher a livrança em caso de incumprimento do Cliente e pelo valor total que estivesse em dívida (capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança), sendo que, à data (26/03/2013) o limite máximo do crédito (que estava, por isso, abrangido pela garantia) era de 162.500,00€.
Ora, a livrança foi preenchida pelo valor de 53.532,60€, ou seja, por valor que é substancialmente inferior ao limite máximo de capital que estava garantido pelo aval e que é também inferior ao valor do crédito que subsistia á data do acordo de 05/11/2019 que era de 78.000,00€, nada tendo sido alegado – e provado – que permita concluir que o valor do crédito fosse, na verdade, inferior ao valor aposto na livrança.
Também não se alegou – nem provou – que não estivessem reunidos os pressupostos que, segundo o pacto, legitimavam o preenchimento da livrança e, mais concretamente, que não existisse incumprimento do Cliente (já que era esse o pressuposto que legitimava o preenchimento) e também não foi alegado qualquer outro facto que permita concluir pela existência de qualquer outra desconformidade do preenchimento da livrança com o respectivo pacto que a Embargante havia subscrito em 26/03/2013.
Não subscrevemos, portanto, a conclusão da sentença recorrida quando considera verificado o preenchimento abusivo pelo facto de a livrança ter sido preenchida em conformidade com as responsabilidades emergentes do empréstimo cujo conteúdo contratual e pacto de preenchimento constam do documento outorgado em 05/11/2019 e que não foi subscrito nem aceite pela Embargante. Conforme se referiu, a obrigação emergente do aludido empréstimo é a mesma obrigação que existia anteriormente e em relação à qual a Embargante havia dado o seu aval, aval que se mantém na medida em que também se mantém – porque não foi extinta – a obrigação em relação ao qual foi prestada. E ainda que o pacto de preenchimento de 05/11/2019 não a vincule, a Embargante está, no entanto, vinculada ao pacto de preenchimento que havia sido firmado anteriormente (designadamente em 26/03/2013) e nada resultou provado que permita concluir pela existência de qualquer desconformidade concreta entre esse pacto e os termos em que a livrança veio a ser preenchida e apresentada à execução.
Procede, portanto, o recurso com a consequente revogação da sentença recorrida e improcedência dos embargos.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
V.
Em face do exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida e julgam-se improcedentes os embargos deduzidos com o consequente prosseguimento da execução em relação à Embargante
Custas a cargo da Embargante/Apelada.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Anabela Marques Ferreira)
(Chandra Gracias)
[1] Cfr. Manuel Pita, Código Civil Anotado (Coordenação Ana Prata), Vol. I, 2017, pág. 270.
[2] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, pág. 425
[3] Cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto, ob. cit., pág. 425.
[4] Vejam-se, a propósito, e entre outros, os Acórdãos do STJ de 24/05/2007 (processo n.º 07A988) e de 29/09/2022 (processo n.º 19/20.5T8ETR.P1.S1), disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Mota Pinto, ob. cit., pág. 426.
[6] Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição, pág. 231.
[7] Ob. cit., pág. 233 a 235.
[8] Cfr. Antunes Varela, ob. cit., pág. 233.
[9] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[10] Disponível em http://www.dgsi.pt.