I – Sob pena de violação do caso julgado formado com a sentença de condenação genérica, o incidente de liquidação dessa condenação não pode terminar com uma decisão de improcedência que, por falta de prova, deixe por liquidar e por determinar o objecto da prestação que já foi reconhecida e definida pela referida sentença e que o réu já foi condenado a satisfazer; tal incidente tem que terminar, necessariamente, com a liquidação/quantificação (fixação de quantia certa) da obrigação a cujo pagamento o réu já foi condenado.
II – O apuramento dessa quantia será feito, em princípio, em função da prova produzida pelas partes; mas, se essa prova não for suficiente, tal quantia deve ser apurada em função da indagação oficiosa do juiz, designadamente por prova pericial, nos termos previstos no n.º 4 do art.º 360.º do CPC e, se ainda assim, não for possível proceder ao seu exacto apuramento, impõe-se, como último recurso, a sua fixação com recurso à equidade.
(Sumário elaborado pela Relatora)
1.º Adjunto: Chandra Gracias
2.º Adjunto: Maria João Areias
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
No âmbito da acção instaurada pelo Conselho Directivo dos Baldios de ..., ... e ... contra AA e BB, melhor identificados nos autos – onde se pedia, designadamente, que os Réus fossem condenados a indemnizar o Autor pelos danos e prejuízos causados aos moradores e compartes com obras que, alegadamente, os Réus haviam realizado e que privavam os compartes e moradores da água provinda de uma nascente existente no terreno baldio, que era usada, não só para rega dos seus terrenos, mas também para activação de dois moinhos usados pelos mesmos compartes e moradores para moer a farinha – veio a ser proferida sentença – confirmada por Acórdão desta Relação de 28/06/2022 – onde se decidiu:
- Condenar o 1.º Réu a reconhecer e respeitar como terreno baldio de ..., ... e ... o prédio identificado no facto n.º 1 e, bem assim, a água que aí nasce como água comunitária;
- Condenar o 1.º Réu a reconhecer que não tem qualquer direito de propriedade ou posse sobre esta água;
- Condenar o 1.º Réu a reconhecer que não existe constituída, em benefício do seu prédio identificado no facto n.º 6, servidão de presa, captação e orientação desta água e, bem assim, de passagem dela por rego, a onerar o prédio identificado no facto n.º 1;
- Condenar o 1.º Réu a jamais fazer obras na levada identificada no facto n.º 8, que obstaculizem a normal e ancestral posse, orientação e utilização da água pelos moradores e compartes do terreno baldio;
- Condenar o 1.º Réu a indemnizar o Autor pelo valor correspondente à ausência de rega dos terrenos situados a jusante da levada e à circunstância dos moradores e compartes não conseguirem moer os seus cereais no moinho desde 2019, relegando-se a sua quantificação para posterior liquidação de sentença.
Na sequência dessa sentença e acórdão, o Autor veio deduzir incidente de liquidação contra o Réu AA, liquidando a indemnização em causa no valor de 14.800,00€, pedindo que o Réu seja condenado a pagar esse valor e alegando, em resumo, ter sido esse o valor global dos prejuízos resultantes da ausência de rega e de moagem no moinho por força do desvio ilício da água pelo Réu, correspondente ao prejuízo sofrido por cada um dos compartes que identifica resultante do facto de nada terem cultivado e nada terem colhido nos seus terrenos e ao prejuízo de 5.000,00€ pelo facto de terem ficado privados de fabricar a farinha para o pão e que correspondia, no mínimo, a quatrocentos alqueires por ano.
O Réu deduziu oposição, impugnando os prejuízos alegados e dizendo, no essencial: que foi condenado a indemnizar o Autor, Conselho Diretivo dos Baldios de ..., ... e ... e não a indemnizar os Compartes individualmente, o que equivale a dizer que não está obrigado a indemnizar os prejuízos que cada um dos compartes suportou, individual e particularmente, nos seus terrenos; que os prejuízos invocados fundam-se em meras estimativas, sem que se encontrem discriminadas as culturas que eram produzidas, que quantidades deixaram de ser produzidas em cada ano (centeio, trigo, aveia, cevada, etc.) para o pão comunitário, ou seja, quantidades, custos e seus valores de produção, relativos a cada ano, desde 2019; que os compartes da Aldeia de ... com terrenos situados a jusante da levada, nunca deixaram de regar os seus prédios, uma vez que têm acesso á água derivada de um depósito e tanque públicos e que não foi por falta de água que os compartes não produziram cereal para moer no moinho, mas sim por falta de necessidade em o cultivar.
Com esses fundamentos, invoca a ineptidão da petição inicial e conclui pela improcedência do pedido.
Após resposta do Autor às excepções invocadas, foi proferido despacho saneador onde se julgaram improcedentes as excepções invocadas (ineptidão da petição inicial e ilegitimidade).
Foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas da prova.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu liquidar a indemnização devida pelo Réu no valor de 2.000,00€, como ficou expresso no segmento decisório que tem a seguinte redacção:
“... liquidando-se a indemnização pelo valor correspondente à ausência de rega dos terrenos situados a jusante da levada e à circunstância dos moradores e compartes não conseguirem moer os seus cereais no moinho desde 2019 determina-se que o requerido AA deverá efectuar o pagamento da quantia de 2.000,00€ (dois mil euros), absolvendo-o do demais peticionado”.
Inconformado com essa decisão, o Autor veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
O Réu veio também interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
Cada uma das partes respondeu ao recurso interposto pela outra, sustentando a sua improcedência.
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
· Saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos propostos pelos Apelantes (Autor e Réu);
· Saber se, conforme sustenta o Autor, a decisão recorrida viola o caso julgado formado pela sentença anteriormente proferida pelo facto de não ter fixado/liquidado um valor indemnizatório referente à ausência de rega dos terrenos;
· Saber se, conforme pretende o Réu, o presente incidente podia (pode) terminar com uma decisão de improcedência e absolvição do pedido pelo facto de o Autor não ter feito prova dos factos necessários para liquidar a obrigação;
· Apurar – caso se conclua pela necessidade de fixar essas indemnizações – o valor da indemnização devida pela ausência de rega (que não foi fixado na decisão recorrida) e saber se está (ou não) correcto o valor da indemnização fixado com referência à privação da moagem, apurando, designadamente, se era legítimo o recurso à equidade e se, nesta matéria, a sentença está ferida de nulidade.
III.
Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:
1. Por sentença transitada em julgado em 28 de Setembro de 2022 no âmbito dos presentes autos, foi decidido, além do mais, «Condenar o 1.º Réu a indemnizar o Autor pelo valor correspondente à ausência de rega dos terrenos situados a jusante da levada e à circunstância dos moradores e compartes não conseguirem moer os seus cereais no moinho desde 2019, relegando-se a sua quantificação para posterior liquidação de sentença”.
2. O moinho comunitário moia, pelo menos, quatrocentos alqueires por ano, que, em consequência directa e necessária da falta da água identificada no facto provado elencado sob o número 11 da douta sentença, impossibilitando a respectiva moagem.
*
Não se julgaram provados os seguintes factos:
a) O Comparte CC, em consequência directa e necessária da falta dessa água não cultivou nem nada colheu dos seus terrenos ..., ... e ..., arts. matriciais rústicos nºs ...32, ...64, ...00 e ...58 da União de Freguesias ... e ..., não os tendo podido cultivar por isso, nem deles nada colher, tendo tido um prejuízo de 2.000 Euros;
b) A Comparte DD, em consequência directa e necessária da falta dessa água, não cultivou nem colheu no seu terreno ..., artigo da matriz rústica nº ...34 da mesma freguesia, não os tendo podido cultivar por isso nem deles nada colher, tendo tido um prejuízo de 1.500 Euros
c) O Comparte EE, em consequência directa e necessária da falta dessa água, teve um prejuízo, nos seus prédios ... e ... arts. Matriciais rústicos ...40 e ...40 da mesma freguesia, não os tendo podido cultivar por isso, nem deles nada colher, um prejuízo de 600 Euros
d) O Comparte FF, em consequência directa e necessária da falta dessa água nos seus prédios ..., ... e ..., arts. matriciais rústicos nºs ...49, ...74 e ...17 da mesma freguesia, não os tendo podido cultivar por isso nem deles nada colher, teve um prejuízo de 1.300 Euros
e) O Comparte GG, em consequência directa e necessária da falta dessa água, nos seus prédios ..., Sua ..., ..., ..., ..., arts. matriciais rústicos da mesma freguesia nºs 2252,2264,2233,2080, 2047 não os tendo podido cultivar por isso, nem deles nada colher, um prejuízo de 2.100 Euros,
f) O Comparte HH no seu prédio ..., art. matricial rústico da mesma freguesia nº 4612, em consequência directa e necessária da falta dessa água, não o tendo podido cultivar por isso, nem dele nada colher, teve prejuízos no valor de 300 Euros
g) O Comparte II no seu prédio ..., art. matricial rústico da mesma freguesia nº 2276, em consequência directa e necessária da falta dessa água, não o tendo podido cultivar por isso nem dele nele nada colher, teve um prejuízo de 500 Euros,
h) O Comparte JJ no seu prédio ... art. matricial rústico da mesma freguesia nº 2731, em consequência directa e necessária da falta dessa água, não o tendo podido cultivar por isso nem dele nada colher prejuízo de 300 Euros,
i) O Comparte KK no seu terreno ... inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob o nº ...98, em consequência directa e necessária da alta dessa água, não o tendo podido cultivar por isso, nem dele nada colher, prejuízo de 100 Euros
j) O Comparte LL no seu terreno ..., inscrito na matriz rústica da mesma freguesia sob o art. ...82, em consequência directa e necessária da falta dessa água, não o tendo podido cultivar por isso, nem dele nada colher prejuízo de 500 Euros
k) O Comparte MM no seu terreno ..., inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob o art. ...65, em consequência directa e necessária da falta dessa água, não o podendo cultivar por isso nem dele nada colher teve prejuízo no valor de 300 Euros,
l) O Comparte NN no seu terreno ... inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob o art. ...66, como consequência directa e necessária da falta dessa água, não o tendo podido cultivar por isso, nem dele nada colher, tendo tido um prejuízo de 300 Euros
m) Todos estes terrenos são lameiros para pasto de animais, produzindo ainda milho, batata e centeio e por falta desta água o pasto perdeu-se e bem assim nada neles pôde ser cultivado e colhido, tendo ficado de pousio.
n) Que a farinha referida em 2. fosse para produção do pão.
IV.
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
O Autor impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto sustentando dever julgar-se provado que todos os terrenos identificados no pedido se situam a jusante da levada e que, no mínimo, os terrenos deixaram de produzir anualmente 500 fardos de feno, pelo que o prejuízo seria de 7.500,00€ (correspondente aos 500 fardos multiplicado pelos 3 anos e a 5 euros o preço de cada fardo).
Justifica essa pretensão, dizendo – citando excertos dos respectivos depoimentos – que todas as testemunhas, e até o próprio Réu, confirmaram que os prédios em causa se situam a jusante da levada, mais resultando dos depoimentos de OO, II, CC, JJ, CC, PP, QQ e RR – conforme reconhece a própria sentença recorrida – que, no mínimo, os terrenos deixaram de produzir anualmente 500 fardos de feno e que cada fardo tem o valor de cinco euros.
Está aqui em causa, naturalmente – ainda que isso não tenha sido dito de modo expresso –, a matéria de facto que não se julgou provada e que está enunciada sob as alíneas a) a l).
Após audição e apreciação dos depoimentos prestados, é certo poder afirmar-se que todas as testemunhas reconhecem, no essencial, que os compartes referidos nas citadas alíneas têm prédios naquele local que se situam a jusante a levada. Até as testemunhas arroladas pelo Réu SS e TT (filha e genro do Réu) reconhecem esse facto, ainda que se note – sobretudo no depoimento da primeira testemunha – alguma relutância em admitir que eles detenham efectivamente o direito de propriedade por não conhecer os documentos e registos.
É certo – como se diz na decisão recorrida – que, não tendo sido juntas aos autos as respectivas certidões de registo predial (que fariam presumir esse direito), esses depoimentos não seriam, só por si, suficientes para considerar demonstrada a propriedade. A verdade é que esse direito de propriedade não está em discussão nos autos; tal direito não está, sequer, controvertido, sendo certo que o Réu não impugnou que os referidos compartes fossem donos de terrenos naquela zona. Como veremos mais adiante, a existência (ou não) desse direito nem sequer releva para a decisão a proferir e serve, sobretudo, para identificar os prédios aos quais se reporta a indemnização devida ao Autor e que aqui se pretende liquidar, sem qualquer preocupação de definir e decidir a efectiva propriedade (sendo certo que não é esse o objecto dos autos). Tudo isso implica, naturalmente, uma menor exigência na respectiva prova, nada obstando, portanto, a que se aluda na matéria de facto aos “terrenos dos compartes” ali identificados, para o efeito de identificar os terrenos que estão em causa.
Acrescente-se apenas não ser possível fazer a correspondência entre cada um desses prédios e os artigos matriciais respectivos (designadamente os que foram identificados na petição inicial), tendo em conta que as certidões matriciais juntas não permitem fazer tal correspondência.
Avaliemos agora a prova produzida no que toca às consequências da falta da água nos referidos terrenos.
Resulta da globalidade da prova produzida que os terrenos em causa eram usados, sobretudo, para pasto para animais e produção de feno e que a falta da água determinou uma redução da produção de feno.
No que toca à redução da produção:
- A testemunha OO não sabe – nem seria previsível que soubesse – qual a redução de produção de pasto e feno em cada um dos prédios (vai adiantando uns números mas por meros cálculos e sem certeza), declarando, com maior certeza, que nos seus terrenos produzia antes de 2019 cerca de 250 fardos por ano e agora, por causa da falta de água, produz apenas 140, mais esclarecendo que o feno é para os animais e que, se não o produzirem, têm que comprar, sendo que cada fardo custa 5 ou 6 euros, dependendo do ano; adianta ainda (por meras estimativas e sem certezas) que EE deixou de ter feno, sendo que antes produzia 30 ou 40 fardos, que LL produzia cerca de 35 fardos e agora tira talvez uns 20, que MM produzia cerca de 25 ou 30 de fardos e o ano passado não teve e que NN produziria quando muito 20 e tal fardos e agora produz cerca de 17;
- A testemunha UU estima a redução da produção em cerca de 1/3, não obstante reconheça que os valores são difíceis de calcular e que apenas consegue fazer uma estimativa; esclarece que conseguiria tirar nos seus terrenos cerca de 200 fardos e que, apesar de ter deixado de produzir feno, talvez conseguisse tirar, no máximo, 50 fardos nos seus terrenos; esclarece que toma conta de vários dos terrenos aqui em causa (ainda que pertencentes a outras pessoas) e que, desde 2019, tem que comprar entre 200 a 400 fardos para alimentar os seus animais, sendo que antes produzia nesses terrenos quantidade suficiente de feno para os alimentar, mais referendo que compra os fardos a seis euros cada;
- A testemunha PP (mãe da testemunha anterior) não consegue precisar quantidades ou valores, mas confirma que o seu filho tem agora que comprar feno para os animais o que não acontecia antes de 2019, ouvindo dizer que o fardo custa cinco ou seis euros;
- A testemunha CC (que também tem ali terrenos) também não sabe quantificar a redução da produção do feno (porque agora é o seu filho que enfarda e antes não se usava enfardar), estimando a redução da produção em cerca de metade;
- A testemunha QQ (marido de DD) esteve no estrangeiro entre 2011 e 2022 e por isso não sabe quantificar a redução da produção, sendo que antigamente tirava pelo menos 200 fardos (agora há menos), sendo que o ano passado o fardo custava 5 euros.
Conjugando esses depoimentos – sobretudo os depoimentos de OO e UU, pensamos haver razões para concluir que terá existido uma redução de produção de feno nos terrenos em causa de pelo menos 300 fardos por ano, correspondentes ao mínimo de 200 fardos que a testemunha UU declara ter agora que comprar e que anteriormente conseguia produzir e a cerca de 100 que a testemunha OO declara ter deixado de produzir nos seus terrenos. Nada mais se julga provado porque, no mais, as testemunhas não depõem com certezas e porque, declarando a testemunha UU que toma conta de vários terrenos pertencentes a outros compartes, é possível que os números adiantados pela testemunha DD em relação a outros terrenos já estejam incluídos nos 200 fardos que resultam do depoimento da testemunha UU.
Assim e considerando o custo de 5 euros/fardo – que resulta também dos depoimentos prestados – julgamos provado o seguinte:
Em consequência da falta de água e ausência de rega, os terrenos dos compartes CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM e NN – situados a jusante da levada a que se reporta a sentença referida em 1 – deixaram de produzir anualmente pelo menos 300 fardos de feno, sendo de pelo menos 5,00€ o custo/preço de cada fardo.
O Réu, por seu turno, impugna a decisão que julgou provado – sob o ponto 2 – que “o moinho comunitário moia, pelo menos, quatrocentos alqueires por ano, que, em consequência directa e necessária da falta da água identificada no facto provado elencado sob o número 11 da douta sentença, impossibilitando a respectiva moagem”.
Na perspectiva do Réu/Apelante, o referido facto não pode ser julgado provado, porque aquilo que se retira dos depoimentos de OO e CC é que o moinho apenas moía 350 alqueires por ano e porque, de qualquer forma, o Tribunal não poderia, em sede de liquidação de sentença, pronunciar-se novamente sobre factos que não haviam resultado provados (factos l) e m) da primeira sentença), uma vez que, nesse âmbito, estava limitado a discutir não os danos, mas o valor daqueles que resultaram provados na sentença, invocando, a este propósito, a nulidade da sentença por ter conhecido de questão da qual não podia tomar conhecimento.
No que toca à invocada nulidade da sentença – por alegada apreciação de questão cujo conhecimento estava vedado ao juiz (art.º 615.º, n.º 1, d), do CPC) – importa dizer que ela não pode ser colocada ao nível da decisão proferida sobre a matéria de facto, conforme pretende o Réu/Apelante. E não pode porque as questões relevantes para configuração da apontada nulidade não podem ser confundidas com os argumentos utilizados para fazer valer as respectivas pretensões e os factos, individualmente considerados, correspondem a argumentos (de natureza factual) e não a “questões” para os efeitos referidos; a decisão que julga (ou não) provado determinado facto não está, portanto, a apreciar qualquer questão. Nessas circunstâncias, ainda que, como sustenta o Apelante, esse facto traduzisse um dano que não pudesse ser aqui discutido, a eventual nulidade da sentença não radicaria na decisão que julgou provado esse facto, mas sim na efectiva apreciação do dano que, com fundamento nesse facto, viesse a ser efectuada. Se tal aconteceu (ou não) e se o Tribunal podia (ou não), em sede de liquidação de sentença, considerar factos que não haviam resultado provados na primeira sentença (cfr. factos l) e m)) são questões que serão abordadas mais adiante, se tal se revelar necessário, mas que não relevam, para já, em sede de apreciação da decisão da matéria de facto. Aquilo que agora importa reter é que, independentemente de esse facto poder (ou não) ser considerado para efeitos de apreciação e decisão das questões relevantes, a mera circunstância de ele ter sido julgado provado com base na prova produzida não é susceptível de determinar a nulidade da sentença.
Limitamo-nos, portanto e para já, a verificar se a prova produzida permitia (ou não) que se julgasse provado o apontado facto.
Em relação a essa matéria, declarou a testemunha OO que, até 2019, usava o moinho para moer o milho que produzia, calculando em cerca de 200 alqueires a quantidade de milho que ali moía anualmente. A testemunha VV declarou que o moinho era usado, sobretudo, pela sua família e pela testemunha DD, calculando em cerca de 400 alqueires a quantidade total de milho que ali era moída anualmente (200 alqueires pela sua família e 200 alqueires pelas restantes pessoas, designadamente a DD), importando notar, no entanto, que a razão de ciência desta testemunha está comprometida pela circunstância de ter estado emigrado durante uns anos e até final de 2018 (não estando, por isso, em condições de se pronunciar, com um mínimo de segurança, sobre a quantidade de milho que ali era moída nos anos imediatamente anteriores a 2019). Em todo o caso, os seus pais CC e PP declaram que moíam cerca de 150 alqueires por ano (MM refere 150 a 200). Sendo certo que nada mais de concreto resultou da prova produzida, é certo que – conforme sustenta o Réu/Apelante – apenas será possível concluir, com alguma segurança, pela moagem de 350 alqueires de milho.
Assim, altera-se o ponto 2 da matéria de facto que passará a ter a seguinte redacção:
O moinho comunitário moia, pelo menos, trezentos e cinquenta alqueires por ano, moagem que ficou impossibilitada em consequência directa e necessária da falta da água identificada no facto provado elencado sob o número 11 da sentença.
A MATÉRIA DE FACTO PROVADA – consolidada após as alterações efectuadas – é a seguinte:
1. Por sentença transitada em julgado em 28 de Setembro de 2022 no âmbito dos presentes autos, foi decidido, além do mais, «Condenar o 1.º Réu a indemnizar o Autor pelo valor correspondente à ausência de rega dos terrenos situados a jusante da levada e à circunstância dos moradores e compartes não conseguirem moer os seus cereais no moinho desde 2019, relegando-se a sua quantificação para posterior liquidação de sentença”.
2. O moinho comunitário moia, pelo menos, trezentos e cinquenta alqueires por ano, moagem que ficou impossibilitada em consequência directa e necessária da falta da água identificada no facto provado elencado sob o número 11 da sentença.
3. Em consequência da falta de água e ausência de rega, os terrenos dos compartes CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM e NN – situados a jusante da levada a que se reporta a sentença referida em 1 – deixaram de produzir anualmente pelo menos 300 fardos de feno, sendo de pelo menos 5,00€ o custo/preço de cada fardo.
V.
DIREITO
Resolvidas as questões atinentes à matéria de facto, resta aplicar o Direito e dar resposta às concretas questões jurídicas que são suscitadas pelos Apelantes.
Estamos no âmbito de um incidente de liquidação que foi deduzido ao abrigo do disposto no art.º 358.º, n.º 2, do CPC e por via do qual se pretendem liquidar os danos a cuja indemnização o Réu foi condenado – em termos genéricos nos termos previstos no n.º 2 do art.º 609.º do CPC – pela sentença que havia sido proferida nos autos e que, como acima se referiu, condenou o 1.º Réu a indemnizar o Autor pelo valor (a liquidar posteriormente) correspondente à ausência de rega dos terrenos situados a jusante da levada e à circunstância dos moradores e compartes não conseguirem moer os seus cereais no moinho desde 2019.
A decisão recorrida liquidou, com recurso à equidade, o valor a pagar pelo Réu em 2.000,00€, sendo certo, no entanto, que, como se extrai da respectiva fundamentação, esse valor reporta-se apenas à impossibilidade de moer os cereais no moinho, conforme resulta claro do seguinte segmento da fundamentação:
“...tendo em conta o período de tempo que estiverem privados da moagem (desde, pelo menos, 2017) até ao presente, e considerando que, por ano, o moinho moia, pelo menos, a quantidade de 400 alqueires, afigura-se prudente e adequado fixar a título de indemnização a quantia de 2.000,00€”.
Não foi, portanto, fixado qualquer valor no que toca, especificamente, à ausência de rega.
Em desacordo com a decisão, o Autor sustenta, em resumo, que, tendo existido condenação referente aos prejuízos resultantes da ausência de rega, a liquidação não poderia terminar sem efectiva liquidação desse prejuízo porque isso implica a negação de um direito anteriormente firmado e reconhecido pela sentença já transitada e, nessa medida, viola o caso julgado por ela firmado. Mais sustenta que, com base na prova produzida, a indemnização referente à ausência de rega deve ser liquidada em 7.500,00€ e a indemnização referente à privação de moagem deve ser fixada em 9.000,00€, devendo, caso assim não se entenda, ser fixado qualquer outro valor em equidade.
O Réu, por seu turno, além de invocar a nulidade da sentença ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC – porque, na sua perspectiva, o Tribunal não podia, em sede de liquidação de sentença, pronunciar-se novamente sobre os factos constantes do ponto 2 que não haviam resultado provados (cfr. factos l) e m) da primeira sentença) – sustenta que, não tendo sido feita a prova dos danos (que era ónus do Autor), não podia o Recorrente ter sido condenado com recurso à equidade e devia ter sido absolvido.
Em face da posição assumida pelos Recorrentes (Autor e Réu), suscitam-se, desde logo, as seguintes questões:
Podia o presente incidente ter terminado com uma decisão de improcedência e absolvição do pedido, conforme pretende o Réu?
E podia a decisão recorrida ter-se abstido de fixar/liquidar o valor da indemnização referente à ausência de rega dos terrenos?
A resposta a ambas as questões é negativa.
Vejamos.
Conforme resulta do disposto no art.º 358.º do CPC, o incidente de liquidação que é deduzido depois de proferida sentença condenatória genérica (proferida nos termos previstos no n.º 2 do art.º 609.º do mesmo diploma) destina-se apenas a concretizar e tornar líquido o valor contido na condenação já proferida, não cabendo no seu âmbito qualquer possibilidade de se contestar ou pôr em causa a efectiva existência da obrigação ou dano já reconhecidos e de, por essa via, se eliminar a condenação proferida.
A sentença de condenação genérica – prevista no citado art.º 609.º, n.º 2 – é a sentença que reconhece e tem como demonstrada a existência de uma determinada obrigação/prestação a cargo do réu (por isso o condena a realizá-la) mas não tem elementos para fixar o exacto objecto ou quantidade dessa prestação (por isso, condena no objecto ou quantidade que venha a ser apurado em sede de liquidação). Nessas circunstâncias, uma vez transitada em julgado, essa sentença fica a coberto do caso julgado (cfr. art.º 619.º, n.º 1, do CPC) e, portanto, fica definitivamente assente – com a força obrigatória e vinculativa que é inerente ao caso julgado – que aquela prestação existe e que o réu está obrigado a satisfazê-la; o que fica indeterminado é apenas o concreto objecto ou a quantidade dessa prestação e é isso – apenas isso – que terá que ser apurado por via do incidente de liquidação.
Nessas circunstâncias, surge com naturalidade a conclusão de que o incidente de liquidação não pode terminar com uma decisão de improcedência/absolvição do pedido que deixe por liquidar o objecto da prestação – uma situação de non liquet – porque isso equivalia a negar a existência da obrigação e a eliminar a condenação que já havia sido proferida, em clara violação e desrespeito pelo caso julgado que se havia formado.
Conforme se refere no Acórdão do STJ de 10/05/2021 (processo n.º 35505/12.1YIPRT.P1.S1)[1] a partir do momento em que foi reconhecida (na sentença de condenação genérica) a existência de uma obrigação de pagamento, essa obrigação “...a partir daí, deixou de ser questionável, não podendo voltar a ser objecto de apreciação (e muito menos de contradição), sob pena de directa, frontal e grosseira violação do caso julgado material (cfr. art. 619.º, n.º 1, do CPC) (...) Não é juridicamente aceitável que o julgador do incidente de liquidação chegue à conclusão de que tal obrigação – reconhecida através de sentença judicial transitada em julgado – afinal não existia; não tinha base factual, ou correspondia à quantificação zero (o que equivaleria a dizer que não deveria ter sido reconhecido na acção anterior)”.
No mesmo sentido, afirma-se no Acórdão do STJ de 04/07/2019 (processo n.º 5071/12.4TBVNG.1.P1.S1)[2]: “Mesmo nos casos em que, no incidente de liquidação, não foi possível fazer a prova do valor exato dos créditos em causa, tal falta de prova não pode conduzir à improcedência da liquidação, na medida em isso violaria o caso julgado formado com a decisão definitiva que reconheceu a existência de um direito de crédito, apenas não quantificado”.
Aliás, os termos em que o incidente está legalmente estruturado também apontam, de forma inequívoca, nesse sentido quando se impõe ao juiz – cfr. n.º 4 do art.º 360.º do CPC – o dever de indagação oficiosa, designadamente através de prova pericial, no sentido de colher os elementos necessários para fixar a quantia devida sempre que a prova produzida pelas partes seja insuficiente para o efeito. Ou seja, a necessidade de respeitar o caso julgado já formado (ao nível da condenação do réu a determinada prestação) impõe a necessidade absoluta de fixar o seu objecto e/ou quantitativo e daí que não haja lugar ao normal funcionamento das regras do ónus de prova, cabendo ao juiz o dever de suprir as omissões probatórias das partes mediante indagação oficiosa dos elementos necessários para fixar a obrigação.
É certo, portanto, que, sob pena de violação do caso julgado formado com a sentença de condenação genérica, a decisão do incidente de liquidação dessa condenação há de corresponder necessariamente, à fixação de uma quantia certa. Tal quantia será, em princípio, apurada em função da prova produzida pelas partes; se essa prova não for suficiente ela deverá ser apurada em função da indagação oficiosa do juiz, designadamente por prova pericial e, se ainda assim, não for possível proceder ao seu exacto apuramento, não restará outra solução que não seja a sua fixação mediante recurso à equidade (que, podendo ser de aplicação discutível noutras situações, estará sempre legitimada pelo n.º 3 do art.º 566.º do CC quando, como acontece no caso, está em causa o apuramento de danos). O que não poderá suceder é que o incidente seja julgado improcedente, por falta de prova, deixando por liquidar e por determinar o objecto de uma prestação em relação à qual já está definido por sentença transitada em julgado que o autor tem direito a receber e que o réu está obrigado a prestar.
É neste sentido, aliás, que a nossa jurisprudência se tem pronunciado, como se pode ver, designadamente, pelos Acórdãos do STJ já citados, bem como pelos Acórdãos do STJ de 29/05/2014 (processo n.º 130/09.3TBCBC.G1.S1), 29/06/2017 (processo n.º 4081/14.1TCLRS.L1.S1), e 02/07/2024 (processo n.º 768/21.0T8VIS.C2.S1); os Acórdãos da Relação de Coimbra de 04/12/2007 (processo n.º 249/2000.C1), 12/07/2022 (processo n.º 4046/17.1T8VIS.C2) e 18/12/2013 (processo n.º 362/07.9TBVGS.C2); o Acórdão da Relação de Lisboa de 15/04/2015 (processo n.º 30324/11.5T2SNT.L1-4); os Acórdãos da Relação do Porto de 01/07/2014 (processo n.º 1673/09.4TBVCD.P2) e de 09/12/2020 (processo n.º 4585/11.8TBSTS.P2) e o Acórdão da Relação de Guimarães de 25/01/2024 (processo n.º 6111/20.9T8VNF-A.G1)[3]
À luz do exposto, é certo poder afirmar-se – em resposta à primeira questão acima formulada – que não assiste razão ao Réu (Apelante) quando pretende obter uma decisão de improcedência ou absolvição do pedido no presente incidente. Ainda que o Autor não tenha feito a prova necessária (mais adiante veremos se a fez ou não), tal não poderia implicar a improcedência do incidente e a sua absolvição, na medida em que isso implicaria violação do caso julgado formado pela decisão anterior. O presente incidente tem que terminar, necessariamente, com a liquidação/quantificação da obrigação a cujo pagamento o Réu já foi condenado, ainda que, caso seja necessário, mediante indagação oficiosa do tribunal nos termos do n.º 4 do art.º 360.º ou, em última instância, mediante recurso à equidade.
Vejamos agora, à luz das mesmas considerações, se a decisão recorrida se podia ter abstido de fixar/liquidar o valor da indemnização referente à ausência de rega dos terrenos (já que, conforme se referiu, o valor que fixou foi reportado apenas à privação da moagem no moinho).
Recordamos que a sentença (à qual se reporta o presente incidente de liquidação) condenou o 1.º Réu a indemnizar o Autor pelo valor (a liquidar posteriormente) correspondente à ausência de rega dos terrenos situados a jusante da levada e à circunstância dos moradores e compartes não conseguirem moer os seus cereais no moinho desde 2019.
A decisão recorrida não fixou qualquer quantia com referência à ausência de rega dos terrenos e fê-lo com base nas seguintes considerações:
“E aqui, desde já se diga, que ao contrário do pugnado pela requerente não entende o Tribunal que a indemnização tem por fito indemnizar cada um dos proprietários dos terrenos situados a jusante ante a ausência de rega. Desde logo porque isso significaria em primeiro lugar, definir quem são esses proprietários, o que não se coaduna com um incidente de liquidação. A que acresce que a requerente jamais teria legitimidade para deduzir esses pedidos, impondo-se que aqueles fossem parte na causa. O que a sentença quer tão só indemnizar são os prejuízos causados devido à ausência de rega dos terrenos situados a jusante da levada e à circunstância dos moradores e compartes não conseguirem moer os seus cereais no moinho desde 2019”.
Salvo o devido respeito, não entendemos muito bem o raciocínio em causa e entendemos, sobretudo, que não está correcto, desde logo porque se baseia numa interpretação da sentença que nunca se poderia ter como correcta na medida em que equivale a retirar todo e qualquer efeito útil a um segmento da decisão. Na verdade, a sentença em questão fixou uma indemnização correspondente à ausência de rega dos terrenos situados a jusante da levada e à circunstância dos moradores e compartes não conseguirem moer os seus cereais no moinho desde 2019. Nessas circunstâncias, sendo óbvio que estão em causa dois factos distintos e autónomos, não poderá ser consentida qualquer interpretação da sentença que conduza ao resultado – adoptado pela decisão recorrida – de que apenas se pretendeu fixar uma indemnização pela privação de moagem no moinho, deixando sem qualquer sentido e conteúdo útil o segmento da decisão que expressamente aludiu a uma indemnização com fundamento num facto totalmente diferente desse: a ausência de rega dos referidos terrenos.
Refira-se, por outro lado, que, ao contrário do que se parece dizer na decisão recorrida, não está aqui em causa uma qualquer indemnização aos proprietários dos terrenos e não faz sentido dizer que a Requerente não tem legitimidade para deduzir esses pedidos; tão pouco releva – ao contrário do que se diz – definir quem são esses proprietários.
Na verdade, a indemnização em questão é devida ao Autor e não aos proprietários dos prédios, sendo certo que foi nesses termos que a indemnização foi definida e que o Réu foi condenado. É certo, por outro lado, que, conforme resulta da sentença, essa indemnização reportava-se à ausência de rega dos terrenos situado a jusante da levada, ou seja, à ausência de rega dos terrenos dos moradores e compartes do baldio situados a jusante da levada, como expressamente se diz no ponto 15 da matéria de facto que esteve na origem daquela condenação, resultando claramente de outros pontos de facto que eram esses terrenos (ou seja, os terrenos particulares dos moradores e compartes e não os terrenos do baldio) que eram regados pela água referida e que foram precisamente esses moradores e compartes que ficaram privados da rega dos sus terrenos (cfr. designadamente ponto 19 da matéria de facto).
Além do mais, no segmento (da 1.ª sentença) referente à apreciação da indemnização são feitas as seguintes afirmações:
“Tendo o comportamento do 1.º Réu, que é ilícito, porque perturbador e violador do direito à utilização da água pelos moradores e compartes do baldio em causa nos autos, aqui representados pelo Autor, gerado danos, nomeadamente, os moradores e compartes do baldio, situado a jusante da levada, ficaram impossibilitados de regar os seus terrenos e de moer os cereais no moinho num período de dois anos (factos n.os 15 e 21), torna-se imperioso concluir que, ao abrigo do disposto no artigo 562.º do Código Civil, está obrigado a repará-los” (pags. 33 e 34) – sublinhado e negrito nossos.
“...julgando-se provado que, efetivamente, entre 2019 e a propositura da ação os moradores e compartes do baldio, com terrenos situados a jusante da levada, ficaram sem poder regar os seus terrenos e sem poder moer os respetivos cereais, não se afiguraria justo a não fixação de um montante indemnizatório” (pag. 35) – sublinhado e negrito nossos.
É certo, portanto, que a indemnização em causa – a cujo pagamento o Réu foi condenado – tem como objecto o prejuízo sofrido pelos terrenos dos moradores e compartes do baldio, situados a jusante da levada, em resultado da falta de rega.
Não há, portanto, o menor indício, ao contrário do que sugere o Réu (sugestão que parece ter sido acolhida pela decisão recorrida), de que a indemnização em causa (fixada na sentença) se reportasse apenas a terrenos baldios situados a jusante da levada, com exclusão, portanto, dos terrenos particulares dos moradores e compartes. Como resulta da decisão recorrida e dos excertos em causa, o que está – e sempre esteve em causa – é a ausência de rega dos terrenos dos moradores e compartes do baldio (particulares, portanto) e não os terrenos do baldio, sendo certo que, em momento algum (designadamente na petição inicial ou na matéria de facto provada), se faz alusão à ausência de rega de terrenos baldios. Era esse, aliás, o prejuízo invocado pelo Autor na petição inicial (sendo certo que nunca alegou qualquer prejuízo emergente da ausência de rega de terrenos baldios) e, portanto, só a esse prejuízo se poderia reportar a decisão que veio a ser proferida.
É irrelevante agora saber se o Autor teria legitimidade para formular esse pedido porque essa questão está ultrapassada pela sentença (transitada em julgado) onde se decidiu que era o Autor que tinha direito a tal indemnização. A sentença – reafirma-se – transitou em julgado e decidiu condenar o Réu a pagar ao Autor aquela indemnização, não podendo tal decisão ser agora questionada e/ou revertida com fundamento em qualquer pretensa ilegitimidade (processual ou substantiva) que, no momento próprio, não foi invocada e não obstou à decisão.
Ao contrário do que se disse na decisão recorrida, também não releva saber quem são os proprietários dos terrenos em causa, uma vez que não são eles os titulares da indemnização aqui em causa; o titular da indemnização– nos termos definidos na sentença – é o Autor e o apuramento do seu valor pressupõe apenas a determinação dos prédios situados a jusante da levada que eram regados pela água em causa (independentemente de quem sejam os seus proprietários) e o prejuízo que esses prédios sofreram pela ausência de rega.
A sentença (à qual se reporta o presente incidente) condenou o 1.º Réu a indemnizar o Autor pelo valor (a liquidar posteriormente) correspondente à ausência de rega dos terrenos situados a jusante da levada e à circunstância dos moradores e compartes não conseguirem moer os seus cereais no moinho desde 2019.
Não há dúvida, portanto, que a indemnização fixada se reporta a dois factos autónomos: a ausência de rega dos terrenos referidos e privação de moagem no moinho.
Nessas circunstâncias, à luz do que acima se expôs, é inquestionável que, sob pena de violação do caso julgado, impunha-se a liquidação da indemnização com referência a cada um desses factos; a decisão recorrida não podia, portanto, limitar-se – como aconteceu – a fixar a indemnização referente à privação de moagem, abstendo-se de fixar/liquidar o valor da indemnização referente à ausência de rega dos terrenos.
Estando definido que é necessário fixar/liquidar a indemnização devida com referência a cada um desses dois factos, colocam-se agora, em face da posição assumida pelos Recorrentes (Autor e Réu) as seguintes questões:
Apurar o valor da indemnização devida pela ausência de rega (que não foi fixada na decisão recorrida);
Saber se está (ou não) correcto o valor da indemnização fixado com referência à privação da moagem, apurando, designadamente, se era legítimo o recurso à equidade e se, nesta matéria, a sentença está ferida de nulidade.
Como resulta das considerações já efectuadas, temos como indiscutível que, sob pena de violação do caso julgado formado com a referida sentença, é necessário fixar um valor indemnizatório com referência a cada um desses factos.
Essas quantias são apuradas, em princípio, em função da prova produzida pelas partes; se essa prova não for suficiente ela deverá ser apurada em função da indagação oficiosa do juiz, designadamente por prova pericial, nos termos previstos no art.º 360.º, n.º 4, do CPC e, se ainda assim, não for possível proceder ao seu exacto apuramento, não restará outra solução que não seja a sua fixação mediante recurso à equidade. O que não poderá suceder – reafirmamos – é que o incidente seja julgado improcedente, por falta de prova, deixando por liquidar e por determinar o objecto de uma prestação em relação à qual já está definido por sentença transitada em julgado que o autor tem direito a receber e que o réu está obrigado a prestar.
Tendo presentes essas considerações, analisemos a situação referente a cada um dos factos em causa.
Ausência de rega dos terrenos
Em consequência da falta de água e ausência de rega, os terrenos dos compartes CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM e NN – situados a jusante da levada a que se reporta a sentença referida em 1 – deixaram de produzir anualmente pelo menos 300 fardos de feno, sendo de pelo menos 5,00€ o custo/preço de cada fardo.
Com base nesses factos, é possível concluir que o prejuízo em causa ascende, pelo menos, ao valor anual de 1.500,00€.
A matéria de facto provada – seja a que foi fixada no âmbito do incidente, seja a que foi fixada no âmbito da acção principal – não fornece elementos para apurar se o ano de 2019 está (ou não) integrado na indemnização, sendo certo que não se refere a data concreta em que os terrenos foram privados da água. Sabemos apenas: que a primeira conduta do Réu foi revertida pelo Autor em 15/11/2019, que existiu uma segunda conduta do Réu no início de 2020 que foi também revertida pelo Autor e que existiu de seguida uma terceira acção do Réu que impediu a utilização da água pelos compartes e moradores (cfr. pontos 12 a 20 da matéria de facto provada constante da sentença).
Nessas circunstâncias e tendo em conta a data em que foi deduzido este incidente (13/02/2023), consideramos um período de três anos (2020, 2021 e 2022) e, consequentemente, concluímos pela verificação de um prejuízo no valor de 4.500,00€.
Será esse, portanto, o valor da indemnização relacionada com a ausência de rega dos terrenos.
Privação da moagem no moinho
A decisão recorrida fixou, a este título, a indemnização de 2.000,00€, o que fez, mediante recurso à equidade e considerando o período de tempo de privação e o facto de o moinho moer por ano pelo menos 400 alqueires (era este o valor que constava da matéria de facto, ainda que agora tenha sido alterado para 350).
O Autor insurge-se contra o valor fixado dizendo que é injusto, ainda que se considerem apenas 3 anos de falta de moagem, na medida em que o homem médio tem conhecimento que o valor de 1 kg de moagem vale 0,50 Euros e que o alqueire de milho é de 15kgs. Sustenta, por isso, que a indemnização em causa deve ser fixada em 9.000,00€.
O Réu, por seu turno, sustenta que o facto constante do ponto 2 da matéria de facto – que serviu de base ao cálculo da indemnização – não podia ser considerado, na medida em que, no âmbito deste incidente, o Tribunal estava limitado a discutir o valor dos danos e não se podia pronunciar sobre os danos em causa, uma vez que estes não haviam sido julgados provados (alíneas l) e m) da matéria de facto não provada constante da sentença). Mais sustenta que, tendo considerado esses factos e esses danos, a sentença recorrida incorreu em nulidade nos termos previstos na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.
Por essa razão e porque o Autor não logrou provar – como era seu ónus – o valor dos prejuízos, conclui o Réu que o Tribunal não o podia condenar com recurso à equidade, devendo, por isso, ser absolvido.
Apreciemos.
Como ponto de partida, importa reafirmar, na sequência do que já dissemos, que, com recurso ao facto constante do ponto 2 ou sem recurso a esse facto, é ponto assente que tem que ser fixado um valor para esta indemnização. Em caso algum, o Réu poderia ser absolvido do pedido e como também já se disse, as regras do ónus da prova não operam aqui em termos normais, porquanto, ainda que o Autor não faça prova do valor em causa, sempre caberia ao juiz o dever de suprir as omissões probatórias das partes mediante indagação oficiosa dos elementos necessários para fixar a obrigação e, em último caso e não restando outra solução, sempre esse valor teria que ser fixado com recurso à equidade.
Vejamos, no entanto, se o facto em questão podia (ou não) ser utilizado e se a sentença está (ou não) ferida de nulidade.
A questão em análise prende-se com o facto constante da alínea m) da matéria de facto não provada da sentença da acção que tem o seguinte teor: Por ano moem-se 190 alqueires de milho em cada moinho, sendo que cada alqueire fica € 5,00 e a cada assalariado aufere cerca de € 5,00 por hora.
Importa salientar que, apesar de se ter condenado o Réu a indemnizar o Autor pelo valor (a quantificar posteriormente em liquidação) correspondente à circunstância dos moradores e compartes não conseguirem moer os seus cereais no moinho desde 2019, afirmou-se na fundamentação jurídica da sentença o seguinte: quanto aos danos alegados pelo Autor que resultaram não provados (factos l) e m)) o Tribunal não poderá pronunciar-se novamente em sede de liquidação de sentença, uma vez que, nesse âmbito, não se irá discutir quais os danos, mas sim o valor daqueles que resultaram provados na sentença.
Pensamos, porém, que tal não obsta a que o facto constante do ponto 2 da matéria de facto (do presente incidente) possa ser considerado para efeitos de liquidação do dano aqui em causa.
É certo que aquilo que está em causa no incidente de liquidação de sentença de condenação genérica não é a existência de qualquer outra obrigação ou qualquer outro dano além daqueles que já foram reconhecidos na sentença e em relação aos quais se relegou para momento posterior a respectiva liquidação; o que está em causa no referido incidente é apenas a quantificação desse dano ou obrigação.
Mas, naquilo que interessa à liquidação e quantificação da obrigação, nada obsta a que possam ser considerados factos que já haviam sido alegados e não foram julgados provados na acção principal. Veja-se, a propósito, o Acórdão da Relação do Porto de 26/01/2023 (processo n.º 805/16.0T8VLG.1.P1)[4], em cujo sumário se lê: “No incidente da liquidação o autor pode fazer a demonstração de todos os factos que importem para a liquidação do seu dano, ainda que entre eles se contem aspectos que até já foram alegados na acção e foram julgados não provados na sentença que determinou a ulterior liquidação da indemnização”.
Ora, salvo o devido respeito, foi apenas para esse efeito que o citado facto foi aqui utilizado e não como dano autónomo e diferente daquele que estava reconhecido e que aqui importava liquidar.
Tentando compreender a afirmação da sentença da acção, quando afirmou que o Tribunal não poderia pronunciar-se, em sede de liquidação, quanto ao dano alegado pelo Autor que não havia resultado provado – no que aqui releva o dano constante da alínea m) – importará esclarecer que a matéria em questão se reportava a um dano patrimonial que havia sido alegado pelo Autor (cujo cálculo, em bom rigor, nem sequer conseguimos perceber) e que levava em conta a quantidade de milho que ali era moída, o custo de cada alqueire e o custo da respectiva mão de obra. Foi esse dano concreto que não se julgou provado e foi em relação a ele que se disse que não poderia ser novamente apreciado em sede de liquidação de sentença.
Ora, não será exactamente esse dano que está aqui em causa; o que está aqui em causa é apenas a efectiva liquidação do dano expressamente reconhecido na sentença (o dano resultante da circunstância de os moradores e compartes não conseguirem moer os seus cereais no moinho desde 2019) e cujo apuramento expressamente se relegou para posterior liquidação; e foi exclusivamente para este efeito que o facto constante do ponto 2 foi utilizado, já que, como é evidente, o tipo e a frequência do uso que era dado ao moinho é um facto relevante para efeitos de apuramento do valor da indemnização do dano correspondente à privação desse uso que foi reconhecido na sentença e que está agora em liquidação.
Não se configura, portanto, qualquer nulidade da sentença.
Resta, portanto, fixar o valor da indemnização em causa.
É seguro afirmar que a matéria de facto provada – especificamente o ponto 2 – não fornece elementos para apurar o valor exacto e real do dano que aqui em está em causa resultante da privação de uso do moinho.
Não tendo sido feita prova do valor do dano, caberia ao juiz o dever de suprir essa omissão ou insuficiência probatória, mediante indagação oficiosa dos elementos necessários para fixar a obrigação, sendo certo, no entanto, que não vislumbramos que outras diligências poderiam ser feitas que pudessem ter uma real utilidade na fixação desta indemnização.
Nessas circunstâncias e na sequência do que dissemos supra, não resta alternativa: a indemnização tem que ser fixada com recurso à equidade e dentro dos limites que se tenham por provados (cfr. n.º 3 do art.º 566.º do CC), conforme se fez na decisão recorrida.
Resta saber se tal foi feito correctamente.
Julgar segundo a equidade significa, em linhas gerais, julgar e decidir de acordo com razões de conveniência e oportunidade de forma a alcançar a justiça do caso concreto. Tal não significa, naturalmente, que o julgamento se guie por critérios arbitrários ou subjectivos, significando apenas que o juiz não está adstrito e vinculado a critérios de estrita legalidade (rigoroso respeito pelos critérios normativos), julgando em função de um juízo prudencial e casuístico que pondere as circunstâncias particulares do caso concreto e que seja apto a alcançar uma solução que seja adequada e justa ao caso particular que está em julgamento. Não equivalendo, como se disse, a arbitrariedade ou subjectividade, é certo, apesar de tudo, que o julgamento segundo a equidade não radica em critérios objectivos, envolvendo, por isso e inevitavelmente, alguma margem de discricionariedade do julgador.
No caso, a decisão recorrida fixou a indemnização em causa em 2.000,00€, tendo em conta o período de tempo que estiveram privados da moagem e considerando que, por ano, o moinho moia, pelo menos, a quantidade de 400 alqueires.
Ora, na verdade, não encontramos razões para discordar desse valor (ainda que a quantidade em causa tenha sido agora fixada em 350 alqueires).
Ao contrário do que sustenta o Autor, não encontramos razões – nem dispomos de elementos – que nos permitam concluir que o valor de 9.000,00€ que propõe (ou qualquer outro que exceda os 2.000,00€) seja um valor justo e adequado ao caso concreto, até porque, na verdade, nem sequer percebemos o critério e os cálculos que faz para chegar a esse valor. Com efeito, não havendo indícios que o Autor cobrasse qualquer valor pela moagem, não encontramos razões para considerar que a indemnização deva ser calculada tendo como referência a quantidade da moagem que poderia ser efectuada e o valor (0,50€) de cada Kg de moagem. O que está em causa, em bom rigor, é uma compensação pela privação de uma utilidade que era proporcionada pelo moinho que perdura desde 2019 (alguns anos, portanto) e que até 2019 era efectivamente usufruída para moer pelo menos 350 alqueires, privação que não pode ser contabilizada em termos matemáticos e objectivos.
Consideramos, portanto, que o valor fixado em 1.ª instância se contém dentro da margem de discricionariedade que é consentido ao julgador no âmbito de um julgamento orientado em função da equidade, sem que existam quaisquer elementos concretos que nos permitam discordar desse valor.
Confirma-se, portanto, o valor em causa.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
VI.
Pelo exposto, concedendo-se parcial provimento ao recurso do Autor e negando-se provimento ao recurso do Réu, decide-se:
Ø Liquidar a indemnização referente à ausência de rega dos terrenos situados a jusante da levada no valor de 4.500,00€ (quatro mil e quinhentos euros), revogando-se a decisão recorrida na parte em que se absteve de fixar esta indemnização e absolveu do pedido respectivo;
Ø Liquidar a indemnização referente à circunstância de os moradores e compartes não conseguirem moer os seus cereais no moinho desde 2019 em 2.000,00€ (dois mil euros), confirmando-se nesta parte a decisão recorrida.
As custas do recurso do Réu são por ele suportadas.
As custas do recurso do Autor serão suportadas por ambas as partes na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Chandra Gracias)
(Maria João Areias)
[1] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[3] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[4] Disponível em http://www.dgsi.pt.