EXECUÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE FACTO NEGATIVO
RECONHECIMENTO DA FALTA DE CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
OPOSIÇÃO POR EMBARGOS
PRINCÍPIO DE ADEQUAÇÃO FORMAL
Sumário

I – Na execução para prestação de facto negativo, o juiz deve reconhecer a falta de cumprimento da obrigação de non facere do executado, caso não esteja ainda previamente reconhecida em ação declarativa, cabendo, nesse caso, ao exequente o ónus da prova da violação dessa obrigação.
II – Tendo presente o princípio de adequação formal, se o executado se opõe à execução por meio de embargos, negando a factualidade que consubstancia a violação que lhe é imputada, poderá tal incidente declarativo ser aproveitada com vista à decisão da questão preliminar de reconhecimento do incumprimento da mencionada obrigação.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Executados/Recorrentes: AA e BB

Exequentes/Recorridos: CC e DD;


I. Relatório

Nos autos de ação sumária 86/96, que correu os seus termos no Tribunal Judicial da extinta Comarca de Cinfães, intentada, entre outros, por AA e BB contra, entre outros, CC e DD, foi proferida sentença, transitada em julgado, que homologou a transação a que os ali autores e réus chegaram, pela qual, além do mais, que para aqui e agora não releva:

- Os Réus reconhecem o direito de propriedade dos Autores do prédio identificado sob o al. a) da especificação (número 2 da Transacção);

- Os Autores permitem que os segundos Réus e quem lhes vier a suceder na titularidade do prédio urbano construído no prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo nº. ...52, passem exclusivamente para esse prédio urbano na parte sul do prédio dos Autores no sentido nascente/poente e poente/nascente, a pé ou de carro, reconhecendo assim os Autores o direito de passagem aos segundos Réus (número 3 da Transacção);

- Em contrapartida do direito de passagem referido na alínea anterior, os segundos Réus comprometem-se ao pagamento de 500.000$00 aos Autores, em duas prestações iguais e sucessivas de 250.000$00, vencendo-se a primeira nesta data e a última dentro de um mês (número 4 da Transacção).


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No dia 14 de março de 2020, tendo por título a mencionada sentença homologatória da transação, DD e CC instauraram execução para prestação de facto negativo contra AA e EE.

Alegaram, em breve síntese, que os executados plantaram videiras e colocaram esteiros de cimento num dos lados do local por onde foi reconhecido o direito de passagem aos exequentes, dessa forma dando origem a uma ramada em forma de túnel cujas dimensões impedem o livre exercício de tal direito de passagem.

Alegam ainda que, em consequência de tal situação, sofreram danos patrimoniais e não patrimoniais, que discriminam.

Concluem, requerendo:

- que seja verificada “a violação da obrigação de non facere por meio de perícia, devendo o Senhor Perito que pelo Tribunal for nomeado (o que se requer) logo indicar também a importância provável que importa a remoção da mesma ramada dos Executados;

- que o Tribunal ordene, subsequentemente: a) A remoção da ramada à custa dos Executados; b) A indemnização dos Exequentes pelos prejuízos sofridos, em montante não inferior a €3.000,00, pelos danos patrimoniais e €5.000,00 por danos não patrimoniais; c) O pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, que se requer seja agora fixada, em montante nunca inferior a € 50,00 (cinquenta euros) diários, desde a notificação da presente execução até integral remoção da ramada e pleno desimpedimento do caminho de passagem.


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Os executados deduziram oposição à execução que, por sentença de 8 de janeiro de 2022, foi julgada totalmente improcedente.

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Não se conformando com tal decisão, dela interpuseram recurso os executados embargantes, sobre o qual recaiu acórdão deste Tribunal da Relação, de 16 de maio de 2023, que julgou o recurso totalmente improcedente, mantendo a decisão recorrida.

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Por despacho de 29 de junho de 2023, foram os exequentes notificados para procederam à liquidação dos danos sofridos, nos termos do artigo 877.º e 867.º do Código de Processo Civil.

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Por apenso à execução, os exequentes deduziram incidente de liquidação de indemnização por prejuízos sofridos, nos termos do preceituado nos artigos 876.º, n.º 1, al. a), 877.º e 867.º, todos do Código de Processo Civil, peticionando que a mesma seja fixada em €18.635,84 (dezoito mil seiscentos e trinta e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos).

Para o efeito, alegam, em suma, o seguinte:

- Desde a construção da ramada têm extrema dificuldade em passar com o seu veículo automóvel e diariamente o mesmo sofre riscos e amassadelas, tendo já sido pintado três vezes e já carecendo se ser pintado novamente, necessitando para tanto de despender o valor de €1.783,50;

- Vêm-se impedidos de transportar cargas no seu trator agrícola, como erva e palha para as ovelhas de que são proprietários, porque, atendendo às limitações aéreas da passagem, tal é totalmente impossível, sob pena de a carga ficar toda presa à ramada e poder até provocar estragos na mesma, tendo necessidade de passar tudo à mão ou através de carros de mão;

- Vêem-se impedidos de ser socorridos pelos bombeiros, na medida em que é totalmente impossível a passagem de uma ambulância no referido local da ramada, tendo que ser transportados de maca, desde casa até ao caminho público mais próximo, denominado Rua ...;

- A descrita situação acarreta um dispêndio acrescido de esforço humano e de tempo, que resultou num prejuízo patrimonial, que suportaram, nunca inferior a € 6.000,00 (seis mil euros);

- Sentiram-se afrontados, gozados, vexados, humilhados, magoados, tristes, abatidos, ofendidos, desgostosos, afrontados, o que lhes causou e continua a causar grande sofrimento moral; Para além do mais, três anos a litigar em Tribunal causou-lhes grande desgaste psicológico, sentiram-se mal com o facto de terem que se socorrer dos tribunais para verem reposto o seu direito de passagem, que já tinha sido objeto de litígio e já lhes tinha ficado muito dispendioso o que deverá ser compensado em valor não inferior a € 5.000,00 (dois mil euros);

- Suportaram despesas e honorários suportados com agente de execução no âmbito da ação executiva, no valor de €501,84 (quinhentos e um euros e oitenta e quatro cêntimos).


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Os executados apresentaram oposição ao incidente, principiando por alegar, em síntese, não ter o tribunal dado cumprimento, na execução ao preceituado nos artigos 868º a 876º do Código de Processo Civil, uma vez que não foi conhecido, na ação própria (o processo executivo), o alegado no requerimento executivo quanto ao incumprimento imputado aos executados e aos danos invocados pelos exequentes, o que implicou a violação dos direitos dos executados e da tutela jurisdicional judicialmente consagrada

Mais sustentam que nada há a liquidar, não tendo aplicação aos autos o disposto no art.º 716º, nºs 4 e 5 do Código de Processo Civil; após o acórdão da Relação de Coimbra que confirmou a sentença que julgou improcedentes os embargos de executado, os executados demoliram a ramada deixando inteiramente livre todo o espaço, à esquerda, em toda a sua extensão, e à direita, também em toda a sua extensão e para além do alinhamento do pilar da entrada para o prédio dos exequentes, atento o sentido de entrada da via pública para os prédios dos executados e dos exequentes; pelo que a passagem se encontra inteiramente livre e desimpedida; os exequentes continuam a litigar de má-fé, devem ser condenados em multa e indemnização a favor dos executados em justa quantia que o Tribunal venha a considerar em seu elevado critério; sabem que não sofreram dano algum; os encargos/despesas com o Agente de execução integram as custas de parte.


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Em 30 de outubro de 2023, foi proferido o seguinte despacho:

Ignora-se o fundamento da alegação vertida na contestação no que concerne à violação de normas legais.

O tribunal, em consonância com o preceituado nos artigos 877º, 867º e 869º, todos do Código de Processo Civil, aguardou o momento processual indicado pelo legislador, para solicitar à parte a liquidação da indemnização, ou seja, após o conhecimento e improcedência da oposição à execução (…).


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De seguida, o tribunal a quo ordenou que os autos seguissem os termos do processo declarativo.

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Realizada a audiência final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, o Tribunal, decide liquidar a indemnização a executar em favor dos requerentes no valor total de € 7.283,50 (sete mil duzentos e oitenta e três euros e cinquenta cêntimos), sendo € 4.783,50 a título de danos patrimoniais e o restante a título de danos não patrimoniais, no mais improcedendo o pedido.
Mais se julga improcedente o pedido de condenação em litigantes de má-fé dos requerentes, absolvendo-se os mesmos do pedido.
Custas por ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento.

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Não se conformando com esta decisão, dele vieram interpor recurso os executados que concluem as respetivas alegações da seguinte forma:

(…).


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Os exequentes/apelados apresentaram contra-alegações, as quais concluem da forma que, de seguida se transcreve:

(…).


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II. Questões a decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

No seguimento desta orientação, são as seguintes as questões que importa apreciar no presente recurso, pela ordem que reputamos mais conveniente:
a) A nulidade processual por inobservância pelo Tribunal a quo do preceituado nos arts. 876º e 877º do Código de Processo Civil..
b) A impugnação da matéria de facto;
c) Se os executados/requeridos devem ser absolvidos dos pedidos por falta de prova de danos e pelo recurso indevido à indemnização por equidade;


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III. Factos provados

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1- No dia 14.03.2020, DD e CC requereram execução contra AA e EE;
2- No processo referido em 1, os exequentes alegam e peticionam o seguinte no respetivo requerimento executivo:Os Exequentes construíram um prédio urbano no prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...52, da freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...80, da dita freguesia ..., propriedade dos pais do Exequente CC, já falecidos FF e GG. Os Exequentes são donos e legítimos possuidores do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...72, da freguesia .... Os Executados são donos e legítimos possuidores do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...41 e do prédio rústico inscrito na matriz sob o ...48, ambos da freguesia ... e ambos descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...27, da dita freguesia. Conforme consta do título executivo – sentença -, os Executados foram Autores na acção sumária 86/96, que correu os seus termos no Tribunal Judicial da extinta Comarca de Cinfães, intentada contra, entre outros, os ora Exequentes, ali na qualidade de Réus. Por força da sentença ditada no referido processo, transitada em julgado, que homologou a Transacção a que Autores e Réus chegaram, ficou decidido, além do mais, que para aqui e agora não releva: - Os Réus reconhecem o direito de propriedade dos Autores do prédio identificado sob o al. a) da especificação (número 2 da Transacção); - Os Autores permitem que os segundos Réus e quem lhes vier a suceder na titularidade do prédio urbano construído no prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo nº. ...52, passem exclusivamente para esse prédio urbano na parte sul do prédio dos Autores no sentido nascente/poente e poente/nascente, a pé ou de carro, reconhecendo assim os Autores o direito de passagem aos segundos Réus (número 3 da Transacção); - Em contrapartida do direito de passagem referido na alínea anterior, os segundos Réus comprometem-se ao pagamento de 500.000$00 aos Autores, em duas prestações iguais e sucessivas de 250.000$00, vencendo-se a primeira nesta data e a última dentro de um mês (número 4 da Transacção). À data da homologação da Transacção por Sentença, o local por onde foi reconhecido o direito de passagem aos Exequentes, era exclusivamente ladeado pelo lado esquerdo, no sentido Rua ... - casa dos Exequentes, por videiras, constituindo um bardo com esteios em cimento. Do lado oposto, bem como em termos de altura, o local de passagem encontrava-se livre, sem nada de dificultasse ou impedisse a passagem de qualquer pessoa ou veículo. Sucede que, posteriormente à prolação e trânsito em julgado da sentença e do reconhecimento do direito de passagem dos Exequentes na parte sul do prédio dos Autores no sentido nascente/poente e poente/nascente, a pé ou de carro, ignorando a sobredita sentença proferida, os Executados plantaram videiras do outro lado do local de passagem, ou seja, já existiam videiras do lado esquerdo, no sentido Rua ... - casa dos Exequentes, e os Executados decidiram plantar também do lado direito, bem como colocar também esteios em cimentos desse mesmo lado e por cima, bem como arames, e formar uma ramada em forma de túnel ao longo do local onde foi reconhecido o direitos de Exequentes passarem a pé e de carro, conforme se pode verificar pelos fotografias do local que se juntam sob os números 1, 2 e 3.  Ao longo dos anos as videiras começaram a crescer, a engrossar, a ficarem imperfeitas, no sentido de que cresceram com espécie de “cotovelos” para fora e para dentro, para cima e para baixo, e o local de passagem foi ficando cada vez mais apertado. Sendo ainda de acrescentar que com o peso a devido à idade das videiras a ramada em causa, designadamente na altura das vindimas, fica inclinada, o que faz com que o espaço de passagem seja ainda mais reduzido. Neste momento, no mesmo sentido de quem vai entrar para a casa dos Exequentes, isto é no sentido Rua ... - casa dos Exequentes, o local de passagem “por dentro do túnel”, na zona mais inferior, começa por ter 2,67 metros de largura mas imediatamente fica reduzido a 2,45 metros e depois a 2,40 metros e, por fim, a 2,39 metros. Sucede que todas as mencionadas medidas, com os “cotovelos” das videiras a partir de cerca de 0,50 metros do chão, tornam-se muito mais reduzidas, o que faz com que um veículo ao passar além de ir a embarrar com os pneus e as jantes nas videiras e nos esteios em cimento, os espelhos vão constantemente a bater nesse apelidados “cotovelos” das videiras, bem como nos esteios em cimento. De extrema gravidade é também o facto de o “túnel” impossibilitar totalmente a passagem de uma ambulância. O que de facto já veio mesmo a acontecer, pois que em 09-07-2019, por volta das 12/13h, foi solicitada a ambulância dos Bombeiros Voluntários ..., uma vez que a filha do Exequentes HH, que se encontrava grávida do primeiro filho, não se estava a sentir bem, estando até já a entrar em trabalhos de parto. (…) Chegados os bombeiros ao local, não conseguiram passar com a ambulância pelo local onde os Exequentes têm reconhecido por sentença o direito de passagem a pé e de carro, os dois bombeiros de serviço tiveram que recuar, parar a ambulância no caminho público (Rua ...), trazer a maca e todos os instrumentos necessários para prestar auxílio à grávida fora da ambulância e posteriormente tiveram que a trazer na maca até à ambulância. O veículo do Exequentes encontra-se totalmente riscado e com mossas de ambos os lados, bem como nos espelhos, tudo se devendo a esta realidade supra transcrita. O filho dos Exequentes deixa sempre o seu veículo em casa de um familiar, uma vez que tem perfeito conhecimento que é impossível passar por aquele “túnel” sem estragar o veículo. O Exequente marido vê-se também impedido de passar com o seu tractor agrícola com carga uma vez que a altura do túnel não permite a passagem do mesmo nessas circunstâncias. A referida ramada/”túnel” foi construída/o sem autorização dos Exequentes e contra a vontade dos mesmos, violando a prestação de facto negativa que decorre do título executivo, pois que os Executados ao reconhecerem o direito dos Exequentes passarem na parte sul do prédio de sua propriedade, no sentido nascente/poente e poente/nascente, a pé ou de carro, implica necessariamente que os Executados não impeçam, estorvem ou dificultem a passagem dos Exequentes seja a pé, seja de carro. A ramada provoca um notório estrangulamento do local de passagem dos Exequentes. A ramada, estorva e dificulta muito a passagem de um veículo, mesmo que seja de pequenas dimensões, além de que, inevitavelmente, irá sempre ocorrer algum toque com o espelho ou com os pneus e/ou jantes em alguma videira, arames e/ou esteio em cimento. Sendo de acrescentar que acarreta a necessidade de que uma pessoa, a pé, fora do veículo, auxilie com indicações o condutor, para minimizar os embates dos espelhos e jantes/pneus. Porém, acha-se já totalmente impossibilitada a passagem, em caso de automóvel ligeiro de passageiros de maior porte e, mais ainda, em caso de veículo de mercadorias, a partir de um de dimensões médias, ambulâncias, autotanques, tractores agrícolas com carga, entre muito outros. É ainda de mencionar que as videiras à medida que vão ficando mais velhas vão ficando cada vez com mais “cotovelos” e mais grossas, o que cada vez impede mais a passagem. Além disso importa referir que a partir do momento em que as videiras começam a ficar cheias de folhas e posteriormente cheias de uvas, a ramada fica inclinada, tornando ainda mais difícil a passagem, além de que com a folhagem é muito difícil ver os paus das videiras, os arames e os esteios em cimento, o que faz com que o veículo acabe por roçar e embater muitas mais vezes ao longo de todo o direito de passagem. Tudo isto viola o direito de passagem, reconhecido no título executivo, considerando este com a ampla abrangência com que foi constituído. Interpelados que foram os Executados, por diversas vezes, pessoalmente, pelos Exequentes, para retirar a dita ramada, até à presente data ainda não o fizeram. A Mandatária Judicial dos Exequentes em Setembro de 2019 mandou uma carta registada com aviso de recepção aos Executados, tendo entrado em contacto com a mesma, após a correcta recepção, a filha dos Executados, em ordem a encontrar uma solução consensual para o caso, a qual todavia se não logrou alcançar. E, na verdade, ao arrepio do que lhes garantia a douta sentença proferida, estão os ali segundos Réus, e aqui Exequentes, compelidos, desde a edificação da ramada, e até à presente data, por via da permanência indevida no local da aludida ramada, a não acederem ao seu prédio, por meio do local por onde têm direito de passagem, com quaisquer veículos, pela grande dificuldade ou mesmo impossibilidade de o fazerem, causada pela existência no local da dita ramada com videiras, arames e esteios em cimentos de ambos os lados do local de passagem, bem como por cima, apenas o podendo fazer com facilidade a pé, uma vez que a mesma ramada bloqueia boa parte da largura do referido local de passagem de acesso à casa dos Exequentes e torna muito difíceis e pouco práticas as manobras básicas de passagem com veículos, ainda que muito pequeno, pois que ambulâncias e veículos maiores, ainda que sejam ligeiros de passageiros, é totalmente impossível. Assim sendo, e porque a obrigação dos devedores – Executados -, com respeito ao direito de passagem de que são titulares os credores – Exequentes – consiste em respeitarem tal direito e a absterem-se de praticar actos que impeçam, estorvem ou dificultem o exercício do mesmo direito, a respectiva violação, aliás flagrante, o é de uma obrigação que tem por objecto um facto negativo, Requerem os Exequentes, nos termos, entre outros preceitos, do disposto no nº 1 do artigo 876.º, do Código do Processo Civil, que a violação da obrigação de non facere seja verificada por meio de perícia, devendo o Senhor Perito que pelo Tribunal for nomeado (o que se requer) logo indicar também a importância provável que importa a remoção da mesma ramada dos Executados. (Cfr. nº 3 do citado preceito). Deverá o Tribunal ordenar, subsequentemente, e nos termos da segunda parte do dito número 1 do citado preceito e nos do artigo 877.º do mesmo diploma: a) A remoção da ramada à custa dos Executados; b) A indemnização dos Exequentes pelos prejuízos sofridos; c) O pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, que se requer seja agora fixada, em montante nunca inferior a € 50,00 (cinquenta euros) diários, desde a notificação da presente execução até integral remoção da ramada e pleno desimpedimento do caminho de passagem. Seguir-se-ão, com as necessárias adaptações, os termos prescritos no nº 2 do artigo 870.º, entre outros preceitos. Para efeito da fixação da pedida indemnização, deverão ter-se em conta os factos seguintes: 1º Os Exequentes desde a construção da ramada em causa têm extrema dificuldade em passar com o seu veículo automóvel e diariamente o mesmo sofre mais um risco ou mais uma amassadela. 2º Os Exequentes vêm-se impedidos de transportar cargas no seu tractor agrícola, designadamente, erva e palha para as ovelhas de que são proprietários, porque atendendo às limitações aéreas da passagem é totalmente impossível, sob pena de a carga ficar toda presa à ramada e poder até provocar estragos na mesma, tendo necessidade de passar tudo à mão ou através de carros de mão. 3º Os Exequentes vêem-se impedidos de serem socorridos pelos bombeiros, na medida em que é totalmente impossível a passagem de uma ambulância no referido local da ramada, tendo que ser transportados de maca, desde casa até ao caminho público mais próximo, denominado Rua .... 4º Tudo isto acarreta um dispêndio acrescido de esforço humano e de tempo, que resultou num prejuízo patrimonial, que suportaram, nunca inferior a € 3.000,00 (três mil euros), danos emergentes esses que os mesmos Exequentes sofreram em consequência directa e necessária do desrespeito e da violação do seu direito de passagem, propositadamente caudados pelos Executados, sendo que tal direito de passagem “já custou dinheiro aos Exequentes” conforme consta do nº 4 da Transacção homologada pela sentença que é título executivo na presente execução. 5º Por outro lado, com o comportamento injustificado, abusivo e incompreensível dos Executados, os Exequentes sentiram-se afrontados, gozados, vexados, humilhados, magoados, tristes, abatidos, ofendidos, desgostosos, o que lhes causou e continua a causar grande sofrimento moral. 6º Para compensação de tais danos não patrimoniais deverá ser arbitrado um montante, a título de indemnização, nunca inferior a € 2.000,00 (dois mil euros), cujo pagamento deverá impender sobre os Executados e a favor dos Exequentes (sublinhado nosso). Pelo exposto e nos melhores termos de direito, requerem que a indemnização a versar pelos Executados e a seu favor, deles Exequentes, seja fixada em montante global não inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a abranger danos patrimoniais e não patrimoniais, montante que os mesmos deverão ser condenados a pagar, para além de tudo o mais requerido na presente execução. ”;
3- Como título os exequentes deram à execução transação homologada no âmbito do processo com o n.º 86/96, que correu termos no então Tribunal Judicial da Comarca de Cinfães, datada de 19.10.1998, com o seguinte teor: “(…) 1 Os AA. reduzem o pedido principal e os RR. reduzem o pedido reconvencional, transacionando nos seguintes termos: 2 Os RR. reconhecem o direito de propriedade dos AA. do prédio identificado sob a al. a) da especificação. 3 Os AA. permitem que os segundos RR. e quem lhes vier a suceder na titularidade do prédio urbano construído no prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo nº. ...52, passem exclusivamente para esse prédio urbano na parte sul do prédio dos AA. no sentido nascente/poente e poente/nascente, a pé ou de carro, reconhecendo assim os AA. o direito de passagem aos segundos RR. 4 Em contrapartida do direito de passagem referido na alínea anterior, os segundos RR. comprometem-se ao pagamento de 500.000$00 aos AA., em duas prestações iguais e sucessivas de 250.000$00, vencendo-se a primeira nesta data e a última dentro de um mês. 5 Tal quantia será paga através de cheques nominativos a entregar no escritório do ilustre mandatário dos AA., contra quitação. (…)”;
4- Na sentença proferida no âmbito do apenso A, de embargos de executado, confirmada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, foi decidido, além do mais, o seguinte: “(…)  4-À data da homologação da transação, o local por onde foi reconhecido o direito de passagem era exclusivamente ladeado pelo lado esquerdo, no sentido Rua .../casa dos exequentes, por videiras, constituídas em bardo e com esteios de cimento; 5- Do lado oposto, bem como em altura, o local da passagem estava livre, inclusivamente de videiras e esteios; 6-Posteriormente à prolação da decisão, os Executados plantaram videiras também do outro lado do local de passagem, bem como colocar esteios em cimentos desse mesmo lado e por cima, bem como arames, e formar uma ramada em forma de túnel ao longo do local onde foi reconhecido o direito de Exequentes passarem a pé e de carro; 7-Ao longo dos anos as videiras cresceram, engrossaram e ficaram, em alguns locais, com formato de cotovelos, para fora e para dentro, e o local de passagem foi ficando cada vez mais apertado; 8- Atualmente, o local de passagem, por dentro do “túnel”, tem uma largura máxima entre esteios de 2,70 m, sendo em quem determinados locais a largura reduz para 2,40 m e 2,46 m. A altura do local, varia entre 3,01 e 2,92 metros; 9- Em função de tais medidas, pelo facto de junto ao solo a largura se tornar ainda mais reduzida por causa da elevação causada pela implementação dos esteios, e pelas já descritas características descritas do local, o veículo dos exequentes, ao passar toca frequentemente com os pneus e jantes nas videiras e esteios em cimento e os espelhos batem nas videiras e também nos esteios; 10- No local não passa uma ambulância de assistência em urgência, o que já sucedeu em 09.07.2019, com a ambulância dos Bombeiros Voluntários ... que ali se deslocou, para assistir a filha dos exequentes, HH, que entrara em trabalho de parto, ambulância essa que teve de ficar parada no caminho púbico, enquanto a assistência foi feita de maca; 11- Em função do referido em 9, o veículo dos exequentes fica frequentemente riscado; 12- Para evitar danos, o filho dos exequentes deixa o seu veículo em casa de um familiar; 13- O exequente marido vê-se também impedido de passar com o trator agrícola com carga, sempre que a mesma excede a altura do local; 14- A ramada em forma de “túnel” foi construída sem a autorização dos exequentes e contra a vontade dos mesmos; 15- A passagem no local com alguns veículos e em algumas alturas do ano – em função do estado de desenvolvimento das videiras – acarreta a necessidade de que uma pessoa, a pé, fora do veículo, auxilie com indicações o condutor, para evitar/minimizar os embates dos espelhos, jantes e pneus; 16- A partir do momento em que as videiras começam a ficar cheias de folhas e, posteriormente, de frutos, torna-se ainda mais difícil a passagem, além de que com a folhagem é difícil ver os paus das videiras, os arames e os esteios de cimento, o que faz com que o veículo acabe por roçar e embater mais vezes ao longo da passagem; 17-A Mandatária dos Exequentes, em setembro de 2019, enviou uma carta registada com aviso de receção aos Executados, solicitando a remoção da ramada, altura em que a filha dos executados entrou em contacto com a primeira em ordem a encontrar uma solução consensual para o caso, o que, todavia, se não logrou alcançar; 18- Os exequentes vêem-se impedidos de transportar carga no seu trator agrícola, como erva e palha para as ovelhas que possuem, atendendo às limitações da área de passagem e ao facto da carga ficar presa na ramada e poder provocar estragos na mesma; 19-Os exequentes sentem-se afrontados, vexados e tristes com a situação; 20- Em 2019 a ramada ficou inclinada e, em consequência, os executados tiveram de a reparar; (…) B) Factos não provados (…)Com relevo para a decisão a proferir, ficaram por apurar os seguintes factos: a) Com o peso e devido à idade das videiras, a ramada em causa, designadamente na altura das vindimas, fica inclinada; b) Em função do referido em 9, o veículo dos exequentes fica com mossas de ambos os lados; c) Os executados foram diversas vezes interpelados pelos exequentes para removerem a ramada do local; d) A pretensão executiva dos exequentes foi apenas motivada pelas desavenças existentes entre II e os executados e pela queixa-crime apresentada pelos últimos contra o primeiro; e) O acesso ao prédio urbano dos exequentes, tal como se encontra desde o dia da homologação do acordo, sempre permitiu o acesso nos moldes acordados; f) A ramada que os executados construíram e as videiras que plantaram já existiam no local há mais de vinte anos; g) O referido em 20 tenha sido causado pelo corte das arriotas e dos arames por II; h) A ramada não dificulta a passagem dos exequentes para o seu prédio urbano; i) A largura da passagem permite-lhes que acedam ao seu prédio sem qualquer dificuldade; j) Permitindo a passagem de ambulâncias; k)Os exequentes litigam com falta de fundamento, conhecendo tal facto e adulterando a verdade. (…) Ante o exposto, julgo totalmente improcedentes os embargos deduzidos, em consequência, determinando o prosseguimento da ação executiva nos seus exatos termos. Mais julgo improcedente o pedido de condenação dos embargados/exequentes como litigantes de má-fé, do mesmo se absolvendo os demandados. (…)”;
5- Em função dos riscos provocados pela passagem na ramada, o veículo dos requerentes necessita de uma pintura com um custo de € 1.783,50 (mil setecentos e oitenta e três euros e cinquenta cêntimos);
6- Os requerentes sentem-se afrontados, gozados, vexados e abatidos com o facto de terem de recorrer ao tribunal para exercerem a passagem nos moldes acordados;
7- Os requerentes despenderam € 501,84 (quinhentos e um euros e oitenta e quatro cêntimos) com o Agente de Execução no âmbito dos autos principais;


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A mesma decisão considerou não provados os seguintes factos:

a. O veículo dos Requerentes ficou com amassadelas resultantes da passagem pela ramada;

b. Os requerentes tiveram prejuízos de € 3.000,00 (três mil euros) e de € 6.000,00 (seis mil euros) com o impedimento de transporte de cargas no trator e com a impossibilidade de aceso de ambulância;

c. O veículo dos requerentes já foi pintado três vezes em função dos riscos causados pela passagem na ramada;

d. Os requerentes solicitaram a presente liquidação, sabendo que não sofreram quaisquer danos.


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IV. Do mérito do recurso
a) Da nulidade processual

A iniciar o seu recurso, os recorrentes sustentam, em suma, que o Tribunal a quo não poderia ter determinado a liquidação dos danos invocados pelos exequentes, defendendo que não poderá haver lugar a qualquer liquidação de danos sem que antes se dê cumprimento ao estabelecido nos referidos artigos 876º e 877º do Código de Processo Civil, visto que, como estabelece esta última disposição, no seu nº 2, só depois de cumprido o que ali vem estabelecido, se seguem, com as necessárias adaptações, os termos prescritos nos artigo 869º a 873º.

Há que reconhecer que tal alegação configura invocação tácita de uma nulidade processual, em conformidade com o disposto no art.º 195º, n.º 1 do Código de Processo Civil, no caso (e na perspetiva dos recorrentes), a omissão de atos que a lei prescreve, relacionados com a sequência ou tramitação processual, que entendem ter sido desrespeitada.

Esta pretensão havia já sido invocada na contestação, pelo que temos de concluir que tal nulidade foi, como se impunha, invocada perante o juiz da causa (e não somente em sede de recurso), tendo merecido decisão de indeferimento de 30 de outubro de 2023, acima transcrita.

Esta última decisão (de indeferimento da nulidade tacitamente arguida) é, no caso, passível de recurso, por via do n.º 2 do art.º 630º do Código de Processo Civil, mais concretamente, porque, em abstrato, a invocada nulidade contende com o princípio do contraditório, devendo, por isso, ser impugnada com a decisão final do incidente de liquidação (arts, 644º, n.º 3, 853º, n.º 1 e 551º, n.º 4, todos o Código de Processo Civil).

Assim, a nosso ver, não existe impedimento a que se conheça deste fundamento de recurso.

Contudo, desde já adiantamos que não nos parece que o mesmo deva merecer provimento.

No caso em apreço, a sentença que constitui o título executivo reconheceu aos exequentes o direito de passagem pelo prédio dos executados, donde decorre a obrigação destes se absterem de praticar futuros atos que ponham em causa, dificultem ou diminuam aquele direito de passagem dos exequentes.

No requerimento executivo, os exequentes alegam que os executados não cumpriram essa obrigação de respeito pelo seu direito de passagem, na medida em que edificaram uma ramada, em forma de túnel, ao longo do local por onde tal direito se exercia, dificultando a passagem do veículo automóvel dos exequentes e familiares e impossibilitando mesmo a passagem de tratores e ambulâncias

Por esse motivo, requerem seja ordenada

a) A remoção da ramada à custa dos Executados;

b) A indemnização dos Exequentes pelos prejuízos sofridos, em montante não inferior a €3.000,00, pelos danos patrimoniais e €5.000,00 por danos não patrimoniais;

c) O pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, que se requer seja agora fixada, em montante nunca inferior a € 50,00 (cinquenta euros) diários, desde a notificação da presente execução até integral remoção da ramada e pleno desimpedimento do caminho de passagem;

Estamos, assim, perante uma execução para a prestação de facto negativo.

Ao contrário da prestação de facto que envolve uma conduta positiva (obrigação de facere), a prestação de facto negativa ora pode ser representada por um puro não fazer ou abstenção (obrigação de non facere), ora por um não fazer associado a um consentir ou tolerar atos do credor ou titular do direito (obrigação de pati)[1] .

Em bom rigor, a factualidade alegada pelos exequentes no requerimento executivo é nova por não ter sido discutida na prévia ação declarativa, já que terá ocorrido após o trânsito em julgado da sentença homologatória da transação que serve de título à execução.

Em conformidade com a lógica inerente ao preceituado nos artigos 876.º e 877.º do Código de Processo Civil, e uma vez que a nova factualidade alegada pelos exequentes não se encontra abrangida pela força de caso julgado, será necessário, através da produção de meios de prova, demonstrar se efetivamente os executados não cumpriram ou continuam a não cumprir a obrigação de abstenção, sob pena de violação do direito de defesa e do princípio do contraditório.

Como afirmam  António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires de Sousa (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, págs. 310 e 311) : Na execução para prestação de facto negativo, sendo o título diverso da sentença, ou o facto ilícito posterior à prolação da sentença (pois se for anterior, dizemos nós, a sentença terá de contemplá-lo, ou então excluí-lo e isso não pode voltar a ser discutido), a execução comporta um incidente de natureza declarativa que visa comprovar liminarmente o incumprimento da obrigação de facto negativo, o qual terá de ser reconhecido pelo juiz conforme se infere do art.º 877º, n.º 1.

Por conseguinte, na execução é enxertada uma atividade processual de vertente declarativa, ou seja, um incidente declarativo destinado justamente a comprovar o incumprimento da obrigação de facto negativo (non facere)[2]

É que o juiz só poderá ordenar o prosseguimento da execução para demolição/remoção daquela ramada e para determinação dos prejuízos invocados[3] se concluir que os executados não cumpriram a obrigação de abstenção a que se encontram adstritos.

É a conclusão que se extrai das disposições legais conjugadas dos art.ºs 877º, 869º e 867º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Ora, para esse efeito, os exequentes terão de convencer o tribunal, através da produção de meios de prova, que o por si alegado no requerimento executivo, quanto à violação da obrigação a cargo dos executados, corresponde a realidade.

Em resumo, na execução para prestação de facto negativo, o juiz deve reconhecer a falta de cumprimento da obrigação de non facere do executado, caso não esteja ainda previamente reconhecida em ação declarativa[4].

Significa isto também que na situação da execução prevista no art.º 876º do Código de Processo Civil, cabe ao exequente o ónus da prova da violação (art.º 342º, n.º 1, do Código Civil).

Já quanto à oportunidade de verificação da violação da obrigação de prestação de facto negativo (quando a mesma não resulta de prévia ação declarativa), “ou a mesma tem de ser feita na fase liminar da execução, por aplicação analógica do art.º 715º, n.ºs 2 e 3, do C.P.C., ou, havendo contestação, nos embargos à execução[5].

Com efeito, tendo presente o princípio de adequação formal, a oposição apresentada pelos executados, na parte que nega os atos que lhes são imputados pelos exequentes e os prejuízos por estes invocados, deverá ser aproveitada com vista à decisão da questão preliminar de reconhecimento do incumprimento da mencionada obrigação.

Foi isso que sucedeu no caso em apreço, na medida em que, tendo os recorrentes instaurado embargos de executado, nos quais negavam a atuação que lhe era imputada e os prejuízos invocados pelos exequentes, a sentença que, com trânsito em julgado, decidiu pela improcedência total desses embargos, fixou como provados os factos alegados pelos exequentes relativos à violação da obrigação de non facere a cargo dos executados, bem como os prejuízos sofridos por aqueles em consequência da atuação destes.

Fixada, dessa forma, em incidente de natureza declarativa – sem qualquer diminuição das garantias de contraditório e defesa dos executados - a factualidade demonstrativa do incumprimento da obrigação de facto negativo, determinou o tribunal a quo a notificação dos executados para instaurarem incidente de liquidação dos prejuízos que invocam, o que deu origem à instauração do presente incidente de liquidação e à decisão recorrida[6]

Não observamos, assim, a violação das disposições legais supracitadas, pelo que improcede este fundamento de recurso.


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b) Da reapreciação da matéria de facto

Os recorrentes impugnam a decisão de facto quanto aos pontos 2) 5), 6) e 7) do elenco dos factos provados.

Começam por sustentar, concretamente quanto à factualidade constante do ponto 2, que a mesma deve ser excluída por dizer respeito a factos alegados no requerimento executivo e não propriamente a factos que estejam provados.

É certo que a descrição factual que consta ponto n.º 2 do elenco dos factos provados não corresponde a factos provados, mas tão só aqueles que foram alegados no requerimento executivo.

A questão que se pode colocar é, então, saber se justifica a manutenção do referido ponto 2.

Entendemos que sim. É que, no requerimento executivo, os exequentes concretizam os danos que alegadamente sofreram e indicam o valor que, em seu entender, deve ser quantificada a respetiva indemnização. Assim sendo, a nosso ver, a liquidação deve ser apenas por objeto os danos que foram ali invocados, salvo a hipótese de ocorrência superveniente de outros.

Ora, se assim é, será seguramente pelo confronto e ponderação do que que consta do ponto de facto “provado” sob “2” que se poderá balizar a decisão sobre os danos que devem ser indemnizados e o próprio valor da indemnização (que não poderá ser superior ao peticionado naquele requerimento executivo).

Nestes termos improcede a impugnação quanto a este particular.


*

Quanto a todos os demais pontos de facto “provados” indicados como objeto da impugnação, sustentam os recorrentes que os todos eles são conclusivos e não concretizam qualquer dano.

Em particular, quanto ao facto n.º 5 – Em função dos riscos provocados pela passagem da ramada, o veículo dos requerentes necessita de uma pintura com um custo de €1.783,50 (mil, setecentos e oitenta e três euros) – afirmam que tal facto não foi alegado pelos exequentes no requerimento inicial e que o documento (orçamento) junto com o requerimento inicial é insuficiente para a prova do mesmo.

No que diz respeito ao facto n.º 6 – Os requerentes sentem-se afrontados, gozado, vezado e abatido por exercer esse seu direito – sustentam que, para além de tratar de um facto conclusivo, o mesmo “contraria a realidade”, não devendo ser considerado provado “sob pena de se considerar que o exercício do direito é um mal”.

Finalmente, quanto ao ponto n.º 7 – Os requerentes despenderam €510,84 (quinhentos e um euros e oitenta e quatro cêntimos) com o agente de execução no âmbito dos autos principais – entende a recorrente que tal facto não deve ser considerado como provado uma vez que os executados “não deram causa  qualquer necessidade de suportar quaisquer despesas com o agente de execução, além de que os encargos e despesas com  agente de execução integram as custas de parte”.

Vejamos.

O art.º 640º do Código de Processo Civil estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:

“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3. […]”

O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
No que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.”[7]
Assim, o que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art.º 640º do Código de Processo Civil.
A saber:
- A concretização dos pontos de facto incorretamente julgados;
- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;
- E a decisão alternativa que é pretendida.
Nos termos deste preceito resultam dois ónus principais e um secundário, consistente os primeiros na indicação concreta da matéria de facto impugnada, dos meios de prova que sustentam decisão diversa e da decisão que deveria ter sido tomada; o segundo, “na indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC”[8].
No que concerne à impugnação do facto 5, afiguram-se-nos suficientemente observadas as exigências legais previstas no art.º 640º do Código de Processo Civil, ou seja, os pressupostos de ordem formal exigidos para que se proceda à reapreciação de tal facto. Com efeito, nas conclusões o seu recurso, os recorrentes identificam o facto impugnado, indicam a também a redação que, em alternativa, lhe deverá ser dada (considerando-o como não provado), indicando ainda o(s) concreto(s) meio(s) de prova que impõe(m) as alterações que os recorrentes preconizam, defendendo a irrelevância probatória do documento em que a baseou a sentença para considerar demonstrado o valor necessário à reparação dos riscos do automóvel dos exequentes.
Já não será assim no que concerne aos pontos 6) e 7) dos factos provados.

Salvo o devido respeito, no que a estes dois pontos da matéria de facto concerne, a forma como os recorrentes impugnam a decisão respetiva conduz necessariamente à sua improcedência.

Na verdade, nesta parte, as exigências legais constantes do art.º 640º do Código de processo Civil não se mostram minimamente observadas,  posto que os recorrentes não fundam as razões da sua discordância em concretos meios de prova cuja apreciação crítica imponha uma decisão diversa daquela que tomou o tribunal a quo quando considerou tais factos provados. Sempre salvo o devido respeito, no fundo, os recorrentes limitam-se - numa aparente confusão entre prova e relevância jurídica do facto - a afirmar que os danos em causa não podem ser imputados à sua atuação.

Entendemos, assim, que não há que proceder à reapreciação daquela matéria de facto impugnada.


*

Tal como dispõe o nº 1 do art.º 662.º do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.

No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida.

Segundo Abrantes Geraldes[9], a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.

Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

Cabe, ainda, referir que neste âmbito da reapreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art.º 396.º do Código Civil.

E é por isso que o art.º 607.º, nº 4 do Código de Processo Civil impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova.
De todo o modo, (….) não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação[10].
Por esta razão, Ana Luísa Geraldes[11] salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».

*

Posto isto, uma vez analisada a documentação que consta dos autos e ouvida a prova gravada, cabe decidir se assiste razão aos autores/recorrentes, na parte da impugnação da matéria de facto.

Como vimos, o facto que podemos considerar validamente impugnado pelos recorrentes é unicamente o constante do ponto 5.

É neste facto que a sentença recorrida se baseia para liquidar o dano patrimonial correspondente aos danos no veículo dos exequentes.

Defendem os recorrentes que este facto foi considerado como provado unicamente com base no orçamento junto como documento n.º 1 da petição inicial, não tendo o tribunal a quo feito dele uma análise crítica, como devia, nos termos do art. 607º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Na fundamentação da sentença, a propósito deste facto concreto escreveu-se: “Produzida a prova do presente incidente, e no que à pintura do veículo respeita, o tribunal entendeu que o documento junto é demonstrativo do gasto a efetuar, pese embora o mesmo e os depoimentos e declarações colhidas não se tenham mostrado suficientes para demonstrar que já existiram outras pinturas anteriores causadas pela passagem e qual o custo das mesmas. Na verdade, nesta matéria, as declarações e os depoimentos mostraram-se pouco credíveis, por vagos, limitando-se a afirmar a pintura por três vezes, mas sem qualquer sustentação documental e de valores exatos, que fizeram equivaler ao orçamento atual, mas que também não mereceu credibilidade, uma vez que o custo dos serviços está longe de se ter mantido igual ao longo dos anos.”

Ouvida a prova gravada, confirmamos o caráter vago e impreciso dos depoimentos das testemunhas JJ e HH – únicas que se referiram aos mencionados nos no veículo – quer no que concerne à sua extensão, quer quanto ao alegado facto de os mesmos terem sido objeto de anteriores reparações suportadas pelos executados.

Assim sendo, a mera junção de um documento designado orçamento, de onde consta apenas a indicação de um valor para a reparação, com serviço e chapa e pintura, de veículo com a matrícula ..-AO-.., sem que de tal documento conste a descrição dos concretos danos reparar, afigura-se-nos manifestamente insuficiente para se considerar que tal valor corresponde àquele que é (ou foi) necessário à reparação dos danos do veículo dos exequentes (riscos) que são imputáveis a violação da obrigação exequenda por parte dos executados. Cremos, assim, sempre salvo o devido respeito, que a Mmª Juiz a quo não poderia, unicamente com base naquele documento, considerar demonstrado o supra mencionado facto n.º 5.

Dessa forma, nessa parte, procede a impugnação dos recorrentes, devendo o ponto da matéria de facto ser eliminado do elenco dos factos provados, passando a figurar nos factos não provados.


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c) Enquadramento jurídico

Uma vez reconhecida a falta de cumprimento da obrigação a cargo dos executados, porque os exequentes peticionaram a indemnização pelos prejuízos que daí lhes advieram, cumpre aferir do acerto da decisão que liquidou o valor daquela indemnização.

A decisão recorrida procedeu à liquidação de tais danos tendo por base os factos atinentes aos danos decorrentes daquela violação que foram considerados assentes na sentença, já transitada em julgado, proferida nos embargos de executado.

São esses factos os seguintes:

- Em função de tais medidas (da ramada em forma de túnel edificada pelos executados ao longo da passagem), pelo facto de junto ao solo a largura se tornar ainda mais reduzida por causa da elevação causada pela implementação dos esteios, e pelas já descritas características descritas do local, o veículo dos exequentes, ao passar toca frequentemente com os pneus e jantes nas videiras e esteios em cimento e os espelhos batem nas videiras e também nos esteios (facto n.º 9 da referida sentença);

- No local não passa uma ambulância de assistência em urgência, o que já sucedeu em 09.07.2019, com a ambulância dos Bombeiros Voluntários ... que ali se deslocou, para assistir a filha dos exequentes, HH, que entrara em trabalho de parto, ambulância essa que teve de ficar parada no caminho púbico, enquanto a assistência foi feita de maca (facto n.º 10 da sentença de embargos);

- Em função do referido em 9, o veículo dos exequentes fica frequentemente riscado; (facto n.º 11 da sentença de embargos)

- Para evitar danos, o filho dos exequentes deixa o seu veículo em casa de um familiar; (facto n.º 12 da sentença de embargos)

- O exequente marido vê-se também impedido de passar com o trator agrícola com carga, sempre que a mesma excede a altura do local; (facto n.º 13 da sentença de embargos);

- A passagem no local com alguns veículos e em algumas alturas do ano – em função do estado de desenvolvimento das videiras – acarreta a necessidade de que uma pessoa, a pé, fora do veículo, auxilie com indicações o condutor, para evitar/minimizar os embates dos espelhos, jantes e pneus; (facto n.º 15 da sentença de embargos);

- A partir do momento em que as videiras começam a ficar cheias de folhas e, posteriormente, de frutos, torna-se ainda mais difícil a passagem, além de que com a folhagem é difícil ver os paus das videiras, os arames e os esteios de cimento, o que faz com que o veículo acabe por roçar e embater mais vezes ao longo da passagem; (facto n.º 16 da sentença de embargos)

- Os exequentes vêem-se impedidos de transportar carga no seu trator agrícola, como erva e palha para as ovelhas que possuem, atendendo às limitações da área de passagem e ao facto da carga ficar presa na ramada e poder provocar estragos na mesma; (facto n.º 18 da sentença de embargos);

- Os exequentes sentem-se afrontados, vexados e tristes com a situação; (facto n.º 19 da sentença de embargos);
Os recorrentes defendem que não se provaram os danos patrimoniais e não patrimoniais considerados na sentença recorrida.
Contudo, não podemos deixar de reconhecer, face aos factos acima elencados (que resultaram provados na sentença que proferida em sede de embargos de executado) que tais danos deveriam ter sido considerados, como foram, na sentença recorrida.
Desde logo, independentemente da qualificação jurídica operada por esta última decisão, que não vincula este tribunal, a factualidade acima elencada, evidencia que a atuação violadora do direito de passagem reconhecido aos exequentes os privou do uso e da totalidade dos cómodos que tal direito de passagem lhes conferia.
A questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso tem sofrido ao longo do tempo uma evolução jurisprudencial que aponta num sentido de maior abertura na reparação de tal dano.
Para uns, a indemnização pela privação do uso de certo bem depende da prova do dano concreto, ou seja, da concretização e demonstração dos prejuízos decorrentes diretamente da não utilização do bem.
Outra corrente jurisprudencial, mais favorável ao lesado, basta-se com a prova de que o lesado usaria normalmente a coisa danificada para que o dano da privação do uso seja indemnizado.
Finalmente, numa posição ainda mais favorável ao lesado, defende-se a ressarcibilidade do dano da privação do uso mesmo que não seja feita prova de uma utilização quotidiana do bem, indemnização a fixar com recurso à equidade e com ponderação das concretas circunstâncias de cada caso[12] .
Da nossa parte, seguimos o entendimento daqueles que, partindo do princípio de que a privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obri­gação de indemnizar - uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem nos termos genericamente consentidos pelo art.º 1305º, do Código Civil, consideram, no entanto, que a privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano corres­pondente a essa realidade de facto, porquanto “podem...configurar-se situações da vida real em que o titular da coisa não tenha interesse algum em usá-la, não pretenda dela retirar as utilidades que aquele bem normalmente lhe podia proporcionar (o que até constitui uma faculdade inerente ao direito de propriedade), ou pura e sim­plesmente não usa a coisa; (…) se o titular se não aproveita das vantagens que o uso normal da coisa lhe proporcionaria, também não poderá falar-se de prejuízo ou dano decorrente da privação do uso, visto que, na circunstância, não existe uso, e, não havendo dano, não há, evidentemente, obrigação de indemnizar; (…) competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver ressarcido, não chega alegar e provar a privação da coisa, pura e simplesmente, mostrando-se ainda necessário, que o A. alegue e demonstre que pretendia usar a coisa, ou seja, que dela pretendia retirar as utilidades (ou algumas delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante”.[13].
Para efeito de atribuição de indemnização pela privação do uso não será de exigir a prova de danos efetivos e concretos, mas a ressarcibilidade também não pode ser apreciada e resolvida em abstrato, aferida pela mera impossibilidade objetiva de utilização da coisa (independentemente de que a utilização tenha ou não lugar durante o período de privação), emergindo como critério de atribuição do direito à indemnização a demonstração no processo que, não fora a privação, o lesado usaria normalmente a coisa, vendo frustrado esse propósito.
No caso, como se viu, demonstrou-se que, mercê da atuação dos executados:
- Para evitar danos, o filho dos exequentes deixa o seu veículo em casa de um familiar;
- O exequente marido vê-se também impedido de passar com o trator agrícola com carga, sempre que a mesma excede a altura do local;
- A passagem no local com alguns veículos e em algumas alturas do ano – em função do estado de desenvolvimento das videiras – acarreta a necessidade de que uma pessoa, a pé, fora do veículo, auxilie com indicações o condutor, para evitar/minimizar os embates dos espelhos, jantes e pneus; -
- Os exequentes vêem-se impedidos de transportar carga no seu trator agrícola, como erva e palha para as ovelhas que possuem, atendendo às limitações da área de passagem e ao facto da carga ficar presa na ramada e poder provocar estragos na mesma
Assim, ainda que não se tenham alegado os concretos prejuízos (danos emergentes ou lucros cessantes) que suportaram por não por não poderem utilizar a referida passagem com veículos e tratores de carga, a verdade é que da factualidade descrita decorre que os exequentes, pretendendo utilizar a mencionada passagem para aceder ao seu terreno com tratores de carga, não o puderam fazer em consequência da atuação dos executados, violadora daquele seu direito.
Está, por isso, em causa o ressarcimento do dano causado pela impossibilidade de retirar todas as utilidades do referido direito de passagem, como dano patrimonial autónomo que, nos termos gerais do artigo 562º do Código Civil, deve ser reparado pelo lesante, entendendo-se não ser necessário o apuramento concreto de danos resultantes dessa privação do uso.

Questão diversa consiste no valor de privação, ou melhor, da perturbação do uso da referida passagem pelo terreno dos executados.

Este valor terá de ser obtido com base no recurso à equidade, tal como entendeu a sentença recorrida.
A sentença sob recurso entendeu por adequado fixar a indemnização de tal dano, com base na equidade, em €3.000,00, considerando a “atuação ilícita dos requeridos que optaram por obstaculizar a passagem, o que fizeram ao longo de vários anos”.
Como se refere no Acórdão desta Relação de 12 de julho de 2022[14], “perante decisões fundadas na equidade, é adequado um critério de revogação apenas das soluções que excedam manifestamente determinada margem de liberdade decisória, sendo então de verificar o padrão de equidade aplicado em concreto, pelo que a situar-se a indemnização no quadro de um exercício razoável e equilibrado do juízo de equidade, não se justificará, em regra, a revogação”.
E o certo é que, no caso, considerados os factos demonstrados, não se nos afigura que o sobredito valor se €3.000,00 seja exorbitante ou manifestamente excessivo, pelo que, nesta parte, se decide manter a decisão recorrida.
 Quanto a dano emergente que consiste nos riscos no veículo dos exequentes provocados pela remada colocada no local por onde foi reconhecido o seu direito de passagem, é evidente a falta de razão dos recorrentes quando afirmam que tal dano não se provou.
O que não ficou demonstrado, em face da parcial procedência da impugnação da matéria de facto, foi o valor em que orçará a reparação de tal dano.
Sendo certo que se trata de um dano indemnizável, não tendo sido possível determinar, em incidente de liquidação, o quantitativo exato concreto deste dano, deverá, também aqui, a equidade funcionar como último critério.
Neste contexto, considerando não ter sido possível apurar, em concreto, a  extensão desse tipo de  danos, bem como a circunstância de a “reiteração” dos mesmos ser também imputável aos próprios exequentes – na medida em que persistiram em circular com o seu veículo por aquele local de passagem, não podendo ignorar que o obstáculo nele colocado pelos executados é suscetível de causar aqueles danos -  entende-se ajustado fixar a indemnização de tal dano em €200,00 (duzentos euros).
No que diz respeito à compensação por danos não patrimoniais, o recurso apenas visou a impugnação do facto n.º 6 supra.
Apesar de tal impugnação não ter sido atendida, por inobservância dos necessários ónus legais, a verdade é que o facto correspondente não foi alegado pelos exequentes no requerimento executivo, e tampouco resultou dos factos provados da sentença proferida nos embargos de executado, pelo que em bom rigor, a discussão sobre a verificação deste dano deve considerar-se excluída do objeto do incidente de liquidação.
A decisão recorrida, entendeu ser “inegável o relevo do danos não patrimoniais demonstrados, impondo-se ressarcir o desgosto, vexame, em suma, o sofrimento causado aos requerentes, quer pela limitação da passagem, quer pelo que sentiram em função do constrangimento ao recurso aos meios judiciais”, fixando a compensação por tais danos em €2.500,00.
Porque na determinação do valor desta compensação, a Mmª Juiz a quo entrou (indevidamente) em linha de conta com a factualidade provada no ponto n.º 6, impõe-se reduzir o valor da compensação por danos não patrimoniais, considerando apenas o que, a propósito dos mesmos, resultou provado na sentença de embargos de executado, ou seja, os exequentes sentem-se afrontados, vexados e tristes com a situação – considerando-se, em face dos factos provados, ajustada, por equitativa, a compensação de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) por danos não patrimoniais.

Sumário:

(…).


*

V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar apenas parcialmente procedente a apelação dos executados e, em consequência, revogar a parte do dispositivo da sentença recorrida que liquidou a indemnização a executar em favor dos requerentes na quantia de €4.783,50, a título de danos patrimoniais, e no valor de €2.500,00, a título de danos não patrimoniais que se substituiu pela liquidação da indemnização a executar a favor dos requerentes no valor de €3.200,00,  título de danos patrimoniais e em €1.500,00, a título de danos não patrimoniais.
Custas por apelantes e apelados, na proporção do respetivo decaimento.
Coimbra, 24 de junho de 2025

Assinado eletronicamente por:
Hugo Meireles
Francisco Costeira da Rochas
Luís Miguel Carvalho Ricardo

(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)

[1] Cfr. Antunes Varela, un, “Das Obrigações”, págs. 53 e 54 e Anselmo de Castro, in, “A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, 3ª ed., pág. 383.
[2] Neste sentido, confronte-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal da relação de Guimarães, de 29-06-2016, processo n.º 77/14.1TBAVV-C.G1 (Relatora Anabela Tenreiro), in www.dgsi.pt.
[3] Sendo que, na situação, já foi decidido, com trânsito em julgado, não haver lugar ``a fixação da peticionada sanção pecuniária compulsória
[4] Neste sentido, cf. Rui Pinto, Acção Executiva, 2023, pag. 1029º a 1031.
[5] José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, 3º Vol., pág. 915 da 3ª edição e o recente acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24 de abril de 2025, processo n.º 1825/21.9T8CHV-A.G2 (Relatora Lígia Venade), in https//jurisprudência.pt.  
[6] Concomitantemente, tendo os recorrentes alegado que posteriormente ao trânsito em julgado da decisão que julgou improcedentes aqueles embargos de terceiro, removeram a referida ramada (facto que foi impugnado pelos exequentes) ordenou o tribunal a quo, no próprio processo executivo, a realização de uma perícia para verificar tal situação e, sendo o caso, determinar o custo de tal remoção
[7] Assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, (Relator Tomé Gomes), in www.dgsi.pt.
[8] Ac. do STJ de 16/12/20, processo nº 8640/18.5YIPRT.C1.S1 (Relator Bernardo Domingos), disponível in www.dgsi.pt.
[9] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª Edição, pag. 331 e segs.
[10] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720),
[11] Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 609.
[12] Como se defende, entre outros, no Ac. do TRP de 08.03.2021, proc. 3822/19.5T8MAI.P1 (Relator Carlos Gil), in www.dgsi.pt.
[13] Cf. entre outros o Acórdão do STJ de 08.5.2013 (processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1, Relatora Maria dos Prazeres Beleza), e o Ac. desta Relação de 20.04.2021 (processo n.º 747/17.2T8LRA.C1), ambs in www.dgsi.pt. Cf. ainda Abrantes Geraldes, in Temas da Responsabilidade Civil, Vol. I, “Indemnização do Dano da Privação do Uso”.
[14] Processo n.º 4046/17.1T8VIS.C2 (Relator Vítor Amaral), in www.dgsi.pt