I – A construção de uma casa por dois cônjuges, casados num dos regimes de comunhão de bens, em terreno próprio de um deles, constitui benfeitoria e dá lugar a um crédito de compensação – um crédito do património comum sobre o património próprio – com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, pois de outra forma haveria um injustificado enriquecimento sem causa.
II – A partilha efetuada na pendência do casamento é sancionada com a nulidade, quer porque se considere que da sua realização resulta violação do princípio da imutabilidade fixado no art.º 1714.º, quer se entenda que a nulidade decorre da violação das disposições imperativas constantes dos artigos 1688.º, 1689.º e 2101.º.
III – No entanto, será válida a cláusula contratual em que as partes reciprocamente renunciam, em futura partilha, a qualquer direito sobre determinado bem.
IV – É sobre a parte que se opõe a um inventário para divisão do património comum, com fundamento em que a referida benfeitoria foi, por acordo de ambos, excluída do património comum em benefício da filha de ambos, que recai o ónus da prova da factualidade correspondente.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Requerida/Recorrente: AA
Requerente/recorrido: BB
I. Relatório
AA, interessada nos presentes autos de inventário em consequência de divórcio, veio, ao abrigo do disposto no artigo 1104.º n.º 1 alínea a) do Código do Processo Civil, deduzir oposição ao inventário, alegando, em síntese, que:
- A sentença de homologação da conversão do divórcio em mútuo consentimento dos interessados foi proferida em 8 de julho de 2020. Porém a vida do casal entrou em rutura, no mês de novembro de 2019, tendo sido nessa altura que os interessados, de comum acordo, encetaram diligências para se divorciarem por mútuo consentimento e procederem à partilha do património comum.
- A casa de morada de família era um bem próprio da interessada AA, uma vez que foi adquirido por doação dos seus pais, antes do casamento, tendo a construção da dita casa sido iniciada pela interessada AA, com a ajuda dos seus pais, ainda antes do casamento. Em 19 de Fevereiro de 2001, contraído por ambos os interessados um crédito bancário, no valor de €49.879,79 para terminar a casa de habitação.
- O cabeça de casal – BB – deixou definitivamente a casa de morada de família no dia 4 de Janeiro de 2020, tendo, nessa altura, os interessados acordado amortizar o referido crédito bancário, após o que a interessada AA doaria a casa de morada de família, seu bem próprio, à única filha do casal e que juntos doariam à referida filha as benfeitorias realizadas no imóvel e os móveis que integravam o recheio do mesmo, o que fizeram, conforme resulta da escritura de doação junta aos autos.
- À interessada AA, com o acordo do interessado BB, ficou adjudicado o usufruto da referida casa e ao interessado BB foi paga pela interessada AA, a título de tornas, a quantia de 20.500,00 €, dando ambos os interessados, integral quitação, como resulta da declaração. por eles assinada 21 de janeiro de 2020, logo após a realização da escritura de doação, através da qual ambos declararam que nada mais lhes era devido, seja a que título for por partilha de bens resultante de divórcio, nada mais havendo entre ambos a dividir.
-Posteriormente à sentença do divórcio existia ainda no património comum a partilhar as quotas de que eram titulares na sociedade comercial “A..., Lda”, partilha essa que ocorreu a 25 de agosto de 2020.
- Face ao supra exposto nada mais há a partilhar entre os interessados porque a partilha já foi feita, de acordo com a vontade de ambos.
Termina pedindo que seja ordenada a extinção do presente processo de inventário por não existirem bens comuns a partilhar e ainda a condenação do cabeça de casal como litigante de má-fé em multa e no pagamento de indemnização à interessada AA.
- Sempre pensou que a relação conjugal viesse a se reatada.
- Somente a interessada AA decidiu proceder à doação do imóvel que constituía uma benfeitoria de ambos, correspondendo os €20.500,00 a que se refere na oposição, a uma divisão de dinheiro que tinham em comum, correspondente ao saldo de uma conta bancária, no valor de 41.000,00€, no Banco 1....
- A interessada AA conseguiu obter a sua subscrição da declaração referida no ponto 12º do requerimento de oposição ao inventário através da promessa de que o casal se iria reconciliar, e somente a assinou por estar convencido da veracidade de tal promessa.
- É verdade que o casal já procedeu à partilha da sociedade que detinham “B... Ld.ª”, sendo certo que recebeu tornas desta partilha.
- A interessada AA tenta sonegar agora ao acervo a partilhar, o recheio da moradia, que haviam de comum acordo indicado no divórcio.
-Tendo em vista a partilha da benfeitoria, foi acordado por ambos que se mandasse avaliar a mesma. Uma vez realizada tal avaliação foi, pelo perito avaliador, atribuído o valor de 183.000,00€ às benfeitorias/ construções, e valor de 37.500,00€ ao terreno da interessada AA.
Termina pedindo, que a oposição ao inventário seja julgada improcedente prosseguindo processo a sua normal tramitação até à partilha, peticionando ainda a condenação da interessada AA em litigância de má-fé e na sanção prevista no artº 2096º do Código Civil.
Face a todo o exposto decide-se:
1.Julgar improcedente o incidente de oposição ao inventário e determinar o prosseguimento dos autos para efetiva partilha dos bens móveis (verbas nºs 1 a 12 da relação de bens) e da benfeitoria relacionada sob a verba nº 13 (da relação de bens), como direito de crédito do cabeça de casal BB por benfeitorias úteis efetuadas em prédio que era bem próprio da interessada AA.
2. Custas do incidente pela interessada AA.
3. Julgar improcedente o pedido de condenação da interessada AA na sanção a que alude o artº 2096º do CC.
4. Julgar improcedente o incidente de litigância de má-fé deduzidos por ambos os interessados.
5.Custas do incidente de litigância de má-fé por ambos os interessados.
(…).
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1.O requerente e cabeça de casal BB e a interessada AA contraíram casamento um com o outro no dia ../../2001 sem convenção antenupcial.
2.Por sentença proferida em 8/7/2020 transitada em julgado foi decretado o divórcio entre os aqui interessados.
3. A ação de divórcio foi proposta em 10/3/2020.
4. Por escritura pública lavrada no dia 2/8/1999 no Cartório Notarial ..., CC e mulher DD, casados sob o regime da comunhão geral declararam doar pelas forças das suas quotas disponíveis a AA, solteira, maior, sua filha, um prédio rústico composto por terra de semeadura, com a área de 1490 m2, no sítio da ..., limite da ..., dita freguesia ..., inscrito na matriz respetiva da dita freguesia ..., sob o artigo ...65, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...70, tendo pela segunda outorgante, AA, sido declarado aceitar a doação.
5.Por escritura pública lavrada no dia 21/1/2020 no Cartório Notarial a cargo de EE, a interessada AA declarou doar à sua filha FF, solteira, menor, por conta da quota disponível e reservando para ela doadora o usufruto vitalício, o prédio urbano, composto de casa de habitação de rés-do-chão e sótão para arrumos com logradouro, sito na Rua ..., ..., união das freguesias ..., ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...45, da freguesia ..., com registo de aquisição a seu favor pela apresentação 19 de 6/10/1999, inscrito na matriz sob o artigo ...28, com o valor patrimonial tributário de 88.051,25 euros, atribuindo a esta doação o valor de €39.623,06, tendo pelo outorgante marido, BB, sido declarado que presta à sua referida mulher o necessário consentimento para a plena validade deste ato.
6.No prédio descrito em 4 foi edificada a casa de morada de família dos aqui interessados.
7. No dia 19/2/2001 entre os aqui interessados, no estado de solteiros, e o Banco 1... SA foi celebrado um contrato de mútuo com hipoteca no montante de 10.000$00, ou seja, €49.879,79, o qual se destinou à construção de um imóvel para habitação própria permanente a implantar no lote de terreno descrito na CRP com o número ...45.
8. O prédio descrito no ponto 5, composto de casa de habitação de rés do chão e sótão para arrumos com logradouro, sito em ..., que se encontra inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., ... e ... com o artigo ...28 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...45 apresenta as seguintes inscrições:
- ap. 19 de 1999/10/6 - constando como causa de aquisição doação a favor de AA, solteira.
-ap. ...64 de 2020/2/03 – usufruto e como causa reserva em doação a favor de AA.
- ap. ...65 de 2020/2/03 -constando como causa de aquisição doação a favor de FF.
9.Encontra-se junto aos autos um escrito denominado “Declaração”, com data de 21/1/2020, assinada por ambos os interessados, no qual consta que: « Eu BB, declaro para os devidos efeitos que recebi de AA, a quantia de €20.500,00 nada mais me sendo devido, a que titulo seja, designadamente por partilha de bens resultante de divórcio por mutuo consentimento.
Mais declaro que tomei conhecimento de que por AA foi dito nada lhe ser devido, a que titulo for, por BB, por força do divórcio por mútuo consentimento, nada mais havendo entre ambos a dividir».
10.A vida do casal entrou em rutura no mês de Novembro de 2019.
11.O cabeça de casal, BB, saiu da casa de morada de família, no mês de Janeiro de 2020.
12.O interessado BB sempre pensou que a relação conjugal viesse a ser reatada.
13.Acordaram ambos os interessados na amortização do crédito comum em dívida, com dinheiro comum, requerendo-o ao Banco a 18.11.2019, contraído para a realização de parte das benfeitorias e aquisição de móveis para a casa de morada de família, amortização essa que se concretizou em 11.12.2019.
14.O valor de 20.500,00€ a que se refere a declaração descrita no ponto 9 corresponde a uma divisão de dinheiro que os interessados tinham em comum no valor de 41.000,00€ no Banco 1....
15.Acordaram os interessados que, a interessada AA doaria a casa de morada de família (uma vez que a mesma era bem próprio desta), à única filha do casal.
16.À interessada AA com o acordo do interessado BB ficou adjudicado o usufruto vitalício da referida casa.
17.Para tanto, ficou a interessada AA a habitar a casa que constituía uma benfeitoria comum implantada em terreno próprio daquela.
18.Ainda no estado de solteiros os interessados começaram as obras de edificação da casa de morada de família, e para tanto recorreram ao crédito no montante de 49.879,79€.
19. A mão-de-obra foi prestada pelo interessado BB e ajuda de seus amigos a quem também ajudava na construção das suas casas.
20.Este prédio urbano, edificado sobre o terreno da interessada AA, cuja construção começou antes do casamento, apenas ficou concluído já no estado de casados.
21.Tendo em vista a partilha da benfeitoria, foi acordado pela interessada AA e o cabeça de casal que se mandasse avaliar a mesma, tendo para tanto sido contratado os serviços do Sr. Eng. GG.
22.Tendo em vista a realização do relatório de avaliação que lhe foi encomendado, a 05/05/2020, o Eng. GG, acompanhado do interessado BB, deslocaram-se à referida moradia, tendo-os a interessada AA recebido sem qualquer oposição, (apenas a interessada AA possuía a chaves de acesso à habitação) e colocado a casa na disponibilidade de ser avaliada.
23.Do relatório de avaliação elaborado pelo Eng. GG, resulta que foi atribuído o valor de 183.000,00€ para as benfeitorias/ construções, e 37.500,00€ para o terreno da interessada AA.
24. Posteriormente à sentença divórcio os interessados procederam à partilha e cessão de quota da sociedade comercial por quotas denominada A... Lda, partilha essa que ocorreu a 25 de Agosto de 2020.
1.Que a partilha dos bens móveis relacionados como verbas nºs 1 a 12 da relação de bens já tenha sido feita.
2.Que a partilha do valor da benfeitoria relacionada na verba nº 13 da relação de bens já tenha sido efetuada.
Impugnação da matéria de facto
A recorrente manifesta a sua discordância em relação aos factos que integram os pontos 9), 11), 12), 14), 18), 20) e 21) dos factos provados e o ponto n.º 2 do elenco dos factos não provados.
No caso vertente, a recorrente indica de forma expressa e discriminada os pontos de facto que considera incorretamente julgados, fundamenta esta discordância na análise dos concretos meios de prova que menciona nas suas alegações, que correlaciona com cada um dos factos impugnados, transcrevendo as passagens das gravações que entende ser determinantes e concluiu indicando a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre aqueles pontos.
Cumpridos, de forma suficiente, os supra aludidos ónus, nada obsta ao conhecimento da impugnação deduzida.
A propósito da reapreciação da matéria de facto, dispõe o art.º 662º, n.º 1, do Código de Processo Civil que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”.
A Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos que resultam do n.º 5 do art.º 607º do Código de Processo Civil. Assim, após análise conjugada de todos os meios de prova produzidos, a Relação deve proceder à reapreciação da prova, de acordo com a própria convicção que sobre eles forma, sem quaisquer limitações, a não ser as impostas pelas regras de direito material.
A propósito refere também Abrantes Geraldes[1]:"(…) a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”. E ainda que (…) “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daquelas que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”[2].
Porém, não está em causa proceder-se a novo e global julgamento, não sendo exigido nem permitido à Relação que de motu proprio se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo Tribunal de 1ª instância, para deles se extrair uma decisão inteiramente nova[3].
Assim, a Relação irá examinar a decisão da primeira instância e seus fundamentos, analisar as provas gravadas e proceder ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, pronunciando-se apenas quanto aos concretos pontos impugnados.
O Tribunal da Relação, nesta sua função de reapreciação da decisão de facto, não opera apenas em casos de erros manifestos de apreciação, mas também pode formar uma convicção diversa da 1ª instância sobre os pontos de facto impugnados, o que deve levar a nova decisão que contenha esse resultado, fundamentadamente, ou seja, com base bastante para alterar aquela que foi a convicção (errada) do juiz de 1ª instância (erro de julgamento - error in iudicando, concretamente error facti).
Partindo do princípio do dispositivo, deve o recorrente indicar os meios de prova que no seu entender deviam ter feito o Tribunal a quo trilhar caminho diverso no seu juízo probatório; contudo, o Tribunal ad quem não está limitado a essa indicação – que será seu ponto de partida e pode até ser o bastante - podendo e devendo se tal se impuser (além dos demais poderes conferidos em termos de retorno à primeira instância ou de oficiosidade) socorrer-se de todos os meios de prova produzidos nos autos para confirmar ou rebater a argumentação do recorrente.
Todavia, (….) não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação[4].
Por esta razão, Ana Luísa Geraldes[5] salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
Feito este enquadramento, tendo este Tribunal ouvido na íntegra o registo da prova gravada, impõe-se agora a apreciação, à luz dos princípios atrás expendidos, das concretas questões que nos coloca impugnação da matéria de facto pela recorrente:
Antes de apreciar se assiste ou não razão à recorrente ter-se-á de aferir da relevância jurídica da pretendida alteração do aludido facto para a sorte do litígio.
Como se diz no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de dezembro 2024[9], “a reapreciação da decisão matéria de facto não é um exercício dirigido a todo o custo ao apuramento da verdade afirmada pelo recorrente mas antes e apenas um meio de o recorrente poder reverter a seu favor uma decisão jurídica fundada numa certa realidade de facto que lhe é desfavorável e que o recorrente pretende ver reapreciada de modo a que a realidade factual por si sustentada seja acolhida judicialmente”.
Quando o facto concreto objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância, importância ou suficiência jurídica para a solução de direito e mérito do recurso, não haverá lugar à reapreciação da matéria de facto, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente e inútil.
No caso em apreço, percebe-se que a intenção da recorrente é concretizar a data em que ocorreu a separação de facto do casal formado por ela e pelo recorrido, de forma a tornar inequívoca que tal separação ocorreu antes da assinatura da supra mencionada declaração e da outorga da escritura pública de doação, ambas datadas de 21 de janeiro de 2020 (e, portanto, antes da instauração da ação de divórcio).
Contudo, independentemente do fundamento da visada impugnação, a alteração da redação do ponto 11 dos factos nos termos pretendidos pela recorrente, ademais da sua natureza conclusiva, de nenhum interesse se revela para a sorte do presente recurso.
É que a retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio à data da separação de facto, sendo esta anterior à data da instauração da ação de divórcio, tem como pressuposto que a data da separação de facto esteja provada no processo (de divórcio), e seja fixada na sentença respetiva a requerimento de qualquer das partes (cf. art.º 1789º, n.º 2 do Código Civil), situação que não se extrai da sentença de divórcio junta aos autos com o requerimento inicial deste processo de inventário[10].
Em face do exposto, por se mostrar desnecessária ou inútil a visada alteração da redação do ponto 11 dos factos provados, não será de atender à mesma.
Quer isto dizer que o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar todos os ónus previstos no art.º 640.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final [11].
O facto em causa foi alegado pelo recorrido, na sua reposta ao incidente de oposição ao inventário, como a explicação para ter anuído a subscrever a declaração mencionada no ponto 9 dos factos provados.
Sucede que, não tendo invocado a invalidade de tal declaração escrita por vício de vontade, o facto n.º 12 supra transcrito afigura-se-nos totalmente irrelevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito que a esma comporta.
Entendemos, assim, que também não há que proceder à reapreciação daquela matéria de facto impugnada.
Para impugnar estes concretos facto, defende a recorrente, em síntese, não ter resultado do julgamento prova cabal que permita concluir que a avaliação teve por objetivo a partilha da benfeitoria, tendo sido indevidamente valorizado o depoimento da testemunha GG, pessoa contratada pelo recorrido, para realizar a avaliação em causa. Ao mesmo tempo, não foram atendidas, como deveriam ter sido, as declarações de parte da recorrente a propósito do objetivo de tal avaliação. Insiste, assim, que a doação da casa de morada de família, com o acordo do recorrido, e a receção por este, da quantia de €20.500,00, impõe que se considere não provado o facto n.º 21 e provado o facto n.º 2 do elenco dos factos não provados.
Vejamos.
O tribunal recorrido fundamenta o juízo probatório relativo à concreta factualidade ora impugnada nos seguintes termos: (…) Assim, no que concerne à partilha do valor da benfeitoria, pese embora a interessada AA tenha declarado, relativamente à declaração constante do ponto 9, que a mesma resultou do facto, de após a amortização do empréstimo bancário e depois de pagos os custos do notário e da conservatória do registo predial com a doação à filha, terem sobrado €20.500,00 dos €41.000,00 que o ex casal tinha no banco e de ambos terem acordado que o cabeça de casal ficava com €20.500,00 como compensação, por terem doado a casa à filha FF, tal versão apresenta demasiadas fragilidades e não se mostra corroborada por qualquer outro elemento de prova, seja documental ou testemunhal.
Já a versão do cabeça de casal de que tal quantia corresponde a uma divisão do montante de €41.000,00 que tinham no banco (ponto 14), não só se mostra compatível com a referida declaração, mas também com o facto de a partilha da sociedade apenas ter sido feita depois do divórcio, conforme resulta do ponto 24 dos factos provados, a significar que a partilha dos bens do casal não foi efetuada de uma só vez, ao contrário do que a interessada AA defende.
Por outro lado, se é certo que a declaração da partilha da sociedade concretiza o respetivo objeto, já a declaração descrita no ponto 9, nada refere quanto ao valor da benfeitoria, que permita concluir no sentido pretendido pela interessada AA.
Também a versão da interessada AA de que a avaliação levada a cabo pelo Eng. GG, se destinou à avaliação dos bens móveis que constituem o recheio da casa, foi contrariada pelo depoimento do perito, que prestou um depoimento frontal, livre e esclarecido, não demonstrando qualquer interesse na causa, contribuindo para o apuramento da correspondente matéria de facto, que assim permitiu dar como provados os pontos 21 a 23.
Antes as declarações do cabeça de casal, de que a deslocação do perito à casa se destinou a avaliação da mesma e dos anexos e não aos bens móveis, foram cabalmente confirmadas pelo depoimento do perito, que com conhecimento direto, referiu ter sido contratado pelo cabeça de casal e que no dia em que se deslocou à casa, a interessada encontrava-se presente, tendo sido ela a abrir a porta, facultando a avaliação à casa sem qualquer oposição, nada perguntando sobre os móveis, e que quando lá chegou e lhe disse que ia avaliar a casa, ela não ficou admirada, confirmando ainda a data da deslocação e a data da elaboração do relatório.
Tudo para concluir, que o valor da benfeitoria não tinha ainda sido partilhado, aquando da realização da avaliação em 5/5/2020, pois se estivesse, não faria sentido a referida avaliação, o que retira credibilidade à versão da interessada AA e permite confirmar a versão do cabeça de casal, de que tal bem não se encontrava ainda partilhado aquando da avaliação.
Ouvidos as declarações de ambas as partes e o depoimento da referida testemunha, tendemos a concordar com a recorrente no que concerne à falta de prova de que a avaliação acima referida tenha resultado de um acordo entre as partes com vista à partilha de tal crédito comum.
É certo que dos referidos elementos de prova se extrai que a avaliação em causa, realizada em momento ulterior à doação do imóvel à filha dos autores, e que teve por objetivo determinar o valor da construção e do terreno, era do conhecimento da recorrente e foi por ela facilitada. No seu depoimento, a testemunha GG, perito avaliador, não deixou dúvidas a esse respeito, referindo que a recorrente foi colaborante na realização da diligência, respondendo a questões relacionadas com o imóvel, não podendo, portanto, deixar de saber do objetivo da vistoria (que, segundo a mesma testemunha, nunca se debruçou sobre quaisquer bens móveis). Contudo, esta testemunha foi também clara ao referir que quem o contratou para fazer a avaliação foi o cabeça de casal, através do seu advogado, e que desconhecida o específico propósito da mesma.
Perante as versões contraditórias das partes, que também resultaram das respetivas declarações, e a ausência de qualquer outro meio de prova a respeito do invocado acordo entre as partes, parece-nos que a atitude colaborante da recorrente na realização da mencionado avaliação (com conhecimento de que a mesma se destinava a avaliar o imóvel) por si só não permite fundar um juízo de prova seguro acerca do invocado acordo de ambas as partes com vista à futura partilha da mencionada benfeitoria.
Em face do exposto, entendemos que o facto n,º 21 supra não poderá manter-se no elenco dos factos provados, procedendo assim, nesta parte, a impugnação da recorrente.
Reconheceu a recorrente, nas suas declarações de parte, que o valor de €20.500,00 que o recorrido confessa ter recebido, correspondia a metade do saldo de uma conta comum de ambos.
É igualmente certo que, pelas razões acima expostas aquando da apreciação da impugnação do facto n.º 14, a amortização do crédito hipotecário (dívida de ambos), que precedeu a doação do imóvel, terá sido efetuada através da metade do saldo da conta bancária comum que caberia à aqui recorrente.
Tal circunstância, contudo, afigura-se-nos insuficiente para concluir que as partes procederam à partilha do mencionado crédito integrante do património comum (por benfeitorias edificadas, na pendência do casamento, no imóvel da requerida), nos moldes por descritos pela recorrente, ou que o cabeça de casal/recorrido, por contrapartida do recebimento do mencionado valor de €20.500,00, haja renunciado à partilha desse crédito, assim o declarando do documento aludido no ponto 9 supra.
Note-se que a própria recorrente reconhece que, não obstante o teor desse documento, após a assinatura do mesmo, procederam as partes à partilha extrajudicial de outros bens (no caso, uma quota social)
Também a mencionada atitude colaborativa da recorrente perante a avaliação acima referida, se bem que insuficiente para considerar provado o supra mencionado facto n.º 21, não deixa de ser incongruente com a alegada partilha anterior de tal benfeitoria.
Por outro lado, ainda que a recorrente tenha suportado, com a parte do dinheiro que lhe tocava na divisão do saldo da mencionada conta bancária, a totalidade dos encargos referentes à amortização daquele empréstimo, não podemos olvidar que a ela própria, com a doação à filha do imóvel em causa (para a qual necessitou da autorização do recorrido), reservou para si o usufruto do imóvel que era casa de morada de família do casal, sem qualquer outra “contrapartida” para o recorrido que não aquela que decorre do facto de ter liquidado a totalidade de uma dívida comum que, na altura, se cifrava em €16.015,96.
Isto posto, à luz de uma apreciação objetiva, equidistante e crítica da prova produzida relativamente à factualidade objeto da impugnação, não vemos razões, segundo um juízo de normalidade e de acordo com as regras da experiência, para divergir da convicção evidenciada pelo Tribunal de 1ª instância quanto à falta de prova de que da alegada partilha extrajudicial do mencionado crédito por benfeitorias.
Pelo que, também no que concerne ao facto não provado sob o n.º 2, terá de improceder a impugnação da recorrente.
De forma subsidiária, para a hipótese de não proceder a impugnação dos restantes factos, pretende a recorrente que os factos provados sob os n.º 18 e 22, sejam reunidos num único item, com a seguinte redação: O prédio urbano, edificado sobre o terreno da interessada AA, estava pronto a habitar antes do casamento, tendo os interessados recorrido ao crédito no montante de 48.879,79€, antes do casamento, apenas para os acabamentos.
Para tanto, sustenta resultar quer das declarações de parte da requerente e o requerido, quer do depoimento da testemunha HH, que “a casa estava praticamente pronta antes do casamento de ambos”.
É manifesto que a relevância da visada alteração se prende com a pretensão subsidiária formulada pela recorrente de que este Tribunal - na hipótese de vir a entender que o crédito por benfeitorias se deve manter relacionado como crédito dos do património do extinto casal sobre a recorrente - altere a decisão recorrida no sentido de que apensas devem ser relacionadas as benfeitorias correspondentes aos acabamentos e não á totalidade da edificação, como ficou provado.
Acontece que, como nos diz o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de julho de 2017,[12], “(a)pesar de a instância recursiva ter alguma autonomia – manifestada, por exemplo, nos pressupostos específicos de admissibilidade do recurso –, os recursos ordinários são uma continuação da instância, iniciada com a propositura da acção e que se extingue com o trânsito em julgado da decisão que lhe põe fim (artigos 259º e 628º, do Código de Processo Civil) e não uma nova instância”. “O objecto do recurso não coincide necessariamente com o objecto da acção; mas não pode ser construído, seja qual for a parte recorrente, em desrespeito dos limites ou das balizas que o conjunto formado pelo pedido e pela causa de pedir significam para toda a acção”. “Os recursos destinam-se a apreciar a decisão recorrida (sistema de revisão ou de reponderação da decisão) e não a uma nova apreciação da causa (sistema de reexame da causa). Isto significa, por entre mais, que não têm por objectivo o conhecimento de questões novas, não colocadas ao tribunal recorrido, salvo se forem do conhecimento oficioso”.
Ora, o fundamento da oposição ao inventário assenta na inexistência de quaisquer bens ou direitos de crédito a partilhar, mormente a benfeitoria sob o n.º 13, por haver sido já efetuada a partilha de todo o ativo património comum, através de um acordo entre as partes, pelo qual o recorrido teria autorizado a doação do imóvel em causa à sua filha e a adjudicação do usufruto do mesma à recorrente, mediante a contrapartida do valor do €20.500,00.
Ou seja, após ter sido citado no processo, nos termos do art.º 1.100º, n.º 2, al. a), a recorrente veio deduzir oposição ao inventário com fundamento no disposto no art.º 1.104º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil, questionando a utilidade do inventário por, na sua perspetiva, se mostrar plenamente consumada a sua finalidade, em consequência de anteriores partilhas extrajudiciais.
Mas não apresentou, a título subsidiário, reclamação contra a relação de bens – como poderia ter feito ao abrigo do disposto da al. d) do mesmo artigo - sustentando a inexatidão da descrição do crédito por benfeitorias, designadamente quanto à extensão daquelas.
Assim sendo, a questão da extensão das benfeitorias não foi suscitada no tribunal a quo e, por isso mesmo, este não se pronunciou sobre ela.
Não se tratando de questão de conhecimento oficioso, não pode agora, por via do recurso, este tribunal da Relação conhecer tal matéria.
Se assim é, na parte referente aos pontos 18 e 20 dos factos provados, a visada reapreciação da matéria de facto configura um ato inútil, pelo que, em face do já exposto, não se apreciará, também nesta parte, a impugnação da matéria de facto.
14. O valor de 20.500,00, a que se refere a declaração descrita no ponto 9 corresponde a metade do saldo da conta que os interessados tinham em comum no valor de €41.000,00€, no Banco 1...”.
- O ponto 21) deverá ser eliminado dos factos provados, passando a constar dos factos não provados.
Está em causa, como se disse, apurar se o Tribunal a quo decidiu corretamente quando negou provimento à oposição ao inventário, decidindo que o mesmo deveria prosseguir (também) quando para partilha da benfeitoria relacionada como verba n.º 13 do ativo do património comum.
Por plenamente pertinentes para a apreciação de tal questão, permitimo-nos transcrever o seguinte trecho do acórdão desta Relação de 10 de janeiro de 2023, proferido nos apenso A[13]: “Perante os elementos disponíveis é irrecusável que o prédio rústico em causa pertencia à requerida/recorrida (imóvel adquirido antes do casamento); o prédio urbano nele implantado, casa de morada da família do casal do requerente/recorrente e da recorrida, foi construído (pelo menos, parcialmente) e pago (porventura também em parte) na constância do casamento - cf., sobretudo, II. 1. 1), 2), 3) e 5), supra e as posições assumidas pelos interessados, mormente na sequência da oposição deduzida ao inventário
Assim, porque o casamento considera-se celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos (cf. art.º 1717º do CC e facto 1), supra), dúvidas não restam de que o mencionado prédio urbano constituiu uma benfeitoria (art.º 216º, n.ºs 1 e 3 do CC) que integrou o património comum do ex-casal; constituiu coisa comum, integrando-se na comunhão, por efeito do regime de bens do casamento”.
Como tal, segundo o Acórdão da Relação de Évora de 11 de abril de 2024[14]. “dará lugar a um crédito de compensação (um crédito do património comum sobre o património próprio da requerida/recorrente), com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, pois de outra forma haveria um injustificado enriquecimento sem causa”.
Como fundamento da oposição ao inventário que deduz, defende a recorrente que tal benfeitoria, à data da instauração deste processo, (já) não integrava o património comum a partilhar, na medida em que havia sido objeto de anterior partilha extrajudicial.
Alegou, para o efeito, que tal partilha “foi efetuada e acordada entre ambos, no âmbito das negociações do divórcio por mútuo consentimento”, tendo as partes “previamente definido os termos da divisão do património comum para depois efetivar o divórcio por mútuo consentimento”.
Terão assim acordado, na versão da recorrente, que esta doaria à única filha do casal, com o consentimento do recorrido, o identificado imóvel que constituiu a casa de morada de família (uma vez que era seu bem próprio), e que juntos doariam as benfeitorias e os móveis à referida filha. Por outro lado, à ora recorrente, com o acordo do cabeça de casal recorrido, ficou adjudicado o usufruto da referida casa e a este foi pago, pela interessada AA, a título de tornas, a quantia de €20.500,00, dando ambos os interessados, integral quitação, como resulta da declaração assinada por ambos os interessados em 21 de janeiro de 2020, logo após a realização da escritura de doação. Através de tal documento, recorrente e recorrido declararam que “nada mais lhes era devido, seja a que título for por partilha de bens resultante de divórcio, nada mais havendo entre ambos a dividir”.
Sucede que a referida partilha extrajudicial que alegadamente teve por objeto a mencionada benfeitoria não se provou. E se se tivesse demonstrado, ter-se-ia de considerar um negócio jurídico nulo.
Como se afirma Acórdão do Tribunal desta Relação de 21 de abril de 2015[15], “a partilha efetuada na pendência do casamento, ainda que instaurado o processo de divórcio, seja ele consensual ou não, é sancionada com a nulidade, quer porque se considere que da sua realização resulta violação do princípio da imutabilidade fixado no art.º 1714.º, quer se entenda que a nulidade decorre da violação das disposições imperativas constantes dos artigos 1688.º, 1689.º e 2101.º”.
Não obstante, cremos que os fundamentos fáticos invocados pela ora recorrente como suporte da sua pretensão - de exclusão do supra mencionado crédito por benfeitorias relacionado pelo cabeça de casal do âmbito da partilha do património comum - são também suscetíveis de, em abstrato, configurar uma “renúncia” do cabeça de casal ao alegado crédito pela benfeitoria realizada na pendência do casamento.
De facto, de acordo com o entendimento propugnado pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de outubro de 2007[16] - que também acolhemos: «I – O artigo 2101º, n.º 2 do Código Civil impede a renúncia ao direito de partilhar, mas não a renúncia a entrar na partilha de um dado bem integrante da herança; II – O artigo 2028º do Código Civil não proíbe a renúncia ao direito de receber um concreto bem integrante da herança. III – É válida a cláusula contratual em que as partes reciprocamente renunciam, em futura partilha, a qualquer direito sobre determinado bem. IV – A lei fundamental e a ordinária impedem que as pessoas se vinculem, face a outrem, em geral, a não defender os seus interesses em tribunal, mas não obstam a que alguém assuma o compromisso de não introduzir em juízo ação referente a uma dada relação jurídica.».
Perante os factos provados, é possível concluir, como faz o já mencionado acórdão desta Relação, de 10 de janeiro de 2023, proferido no apenso A), que, (n)a situação em análise, o bem imóvel foi doado, pela recorrida/requerida, por conta da quota disponível, à filha dos interessados, a quem foi assim transmitida a propriedade sobre o mesmo (art.ºs 940º, n.º 1 e 954º, n.º 1, alínea a), do CC), reservando a doadora, para si, o usufruto vitalício (art.º 958º, n.º 1 do CC).
À data, o requerente/recorrente, enquanto outorgante no contrato de doação, declarou prestar à sua referida mulher o necessário consentimento para a plena validade deste ato.
O recorrente, pai da donatária e (então) marido da doadora, prestou o seu consentimento para a plena validade do ato [quanto às exigências de forma, veja-se o disposto no art.º 947º, n.º 1 do CC; atente-se que aquele era herdeiro legitimário da doadora - cf., v. g., art.ºs 2029º ; 2133º, n.ºs 1, alínea a) e 3, a contrario, e 2157º, do CC].
Mas, como sublinha o mesmo aresto, tal factualidade, por si só, não permite concluir que o recorrido haja, por essa forma, “renunciado” ao direito de crédito pela benfeitoria levada a cabo na constância do casamento.
Há que ter presente que recaía sobre a recorrente o ónus da prova da demonstração de que tal renúncia ocorreu (art.º 340º, n.º 2 do Código Civil).
A renúncia é uma forma de extinção do direito que ocorre por mera declaração unilateral de vontade emitida pelo respetivo titular.
Como se explica no acórdão do STJ de 24.2.2002[17] “, [r]enúncia, em sentido técnico-jurídico, significa (...) o renunciante declarar que, voluntariamente, abdica ou desiste definitivamente do direito (...), o que também corresponde, no essencial, ao sentido do termo, em linguagem comum, em que "renúncia" significa "desistência espontânea ou convencional, que alguém faz de um direito adquirido".
Trata-se de uma declaração de vontade unilateral, para a qual a lei não exige qualquer formalidade especial, em obediência ao princípio da liberdade de forma ou da consensualidade consagrado no art. 219º do Cód. Civil, podendo essa declaração ser expressa ou tácita (art. 217º do mesmo Código). Costuma, no entanto, exigir-se que a renúncia seja feita de maneira clara e inequívoca” (sublinhado nosso).”.
Da factualidade provada adquirida nos autos não se extrai qualquer declaração expressa do recorrido no sentido de que abdicou daquele direito a benfeitorias.
Do mesmo modo, os factos provados afiguram-se-nos insuficientes para concluir, de forma clara e inequívoca, que o recorrido abdicou, ou renunciou, de forma tácita, a tal direito a benfeitorias.
Pese embora exista o documento referido no ponto 9, subscrito na mesma data em que foi celebrada escritura pública de doação, a verdade é que se demonstrou que o valor de €20.500,00 ali mencionado como recebido pelo cabeça de casal correspondia a metade do saldo de uma conta titulada por ambos os cônjuges, além de que, pela referida escritura pública de doação com reserva de usufruto, a recorrente passou a beneficiar do usufruto vitalício sobre todo o imóvel doado (que compreende, no que aqui importa, a casa de morada de família, benfeitoria realizada, na totalidade ou parcialmente, pelo casal).
Não demonstrando a requerida/recorrente, como era seu ónus, os pressupostos factuais em que poderia assentar a referida renúncia do direito de crédito por benfeitorias, terá de manter-se a decisão recorrida.
Como acima se explicou, não cabe a este tribunal pronunciar-se sobre a pretensão que subsidiariamente a recorrente formulou no seu recurso – ou seja, de determinar que apenas sejam relacionadas as benfeitorias correspondentes aos acabamentos da casa de habitação – por se tratar de questão nova, não colocada na primeira instância, que, não sendo de conhecimento oficioso, extravasa o objeto do recurso.
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente por não provada a apelação e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
[1] Recursos em processo Civil, Almedina, 7ª Edição, pag. 333.
[2] Op. cit., pag. 334.
[3] Abrantes Geraldes, op. cit. pag. 340.
[4] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720),
[5] Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 609.
[6] Proc. nº809/10.7TBLMG.C1.S1 (Relatora Fernanda Isabel Pereira), disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[7] Proc. nº671/20.1T8BGC.G1 (Relatora Raquel Baptista Tavares, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[8] Ac. do STJ de 23/09/2009 (Relator Bravo Serra), proc. nº238/06.7TTBGR.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[9] Processo n.º 105508/22.1YIPRT.P1 (Relator Carlos Gil), in www.dgsi.pt
[10] Neste sentido, cf. Paula Távora Vítor, in Código Civil Anotado, Livra IV Direito da Família, Almedida, 2ª Edição, pag. 558 (em anotação ao art. 1789º do Código Civil).
[11] Neste sentido, v.g., os Acs. do STJ de 19.05.2021, Proc. n.º 1429/18.3T8VLG.P1.S1 e de 09.02.2021, Proc. n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt,
[12] Processo n.º 2118/10.2TVLSB.L1.S1No mesmo sentido, confronte-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Junho de 2017 (relatora Maria dos Prazeres Beleza), publicado in www.dgsi.pt.: No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Op. Cit, pag. 30.
”
[13] Processo 853/206T8PBL-A.C1 (Relator Fonte Ramos), in www.dgsi.pt.
[14] Ac. do RE de 11-04.2024 (proc. 1077/20.8T8STR-A.E1, in www.dgsi.pt)
[15]Processo n.º 288/13.7TBANS.C1 (Relatora: Maria Domingas Simões)
[16] Processo 6284/2007-2, (Relator: Jorge Leal), in www.dgsi.pt.
[17] Processo n.º 01B4190 (Relator Eduardo batista) in www.dgsi.pt