LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
FALTA DE FUNDAMENTO DA PRETENSÃO
INOBSERVÂNCIA DE DEVERES DE CUIDADO
NEGLIGÊNCIA GRAVE
Sumário

Litiga com má-fé, nos termos da al. a) do art. 542º, nº 2, do Código de Processo Civil, a parte que tenha consciência da falta de fundamento da sua pretensão, ou aquela que, embora não a tendo, devê-la-ia ter se tivesse cumprido os deveres de cuidado que lhe eram impostos.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Recorrente/autor: AA;

Recorrido/réu: BB;

I. Relatório

AA apresentou requerimento de injunção, em 02.11.2022, contra BB, solicitando o pagamento da quantia de €14.168,33 (catorze mil cento e sessenta e oito euros e trinta e três cêntimos), sendo €11.548,97 a título de capital, € 2.517,36 a título de juros de mora, e € 102,00 de taxa de justiça paga.

Para sustentar a sua pretensão alegou o seguinte: foi procurado pelo requerido que solicitou os seus serviços e patrocínio nos seguintes processos: processo nº...3-D/2000 que correu termos no Tribunal de Trabalho de Lamego - Secção Única; processo nº 276/14.... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu- Instância Central- 2º Secção Trabalho de Lamego- Juízo 1; processo nº263/13.... que correu termos no Tribunal Judicial de Lamego - 2º Juízo e processo nº 438/13.... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu- Instância Local – Secção Cível de Lamego – Juízo 1; assumiu a defesa do requerido nos referidos processos, a quem prestou os serviços que indica; terminado o patrocínio dos referidos processos, enviou ao requerido a nota discriminativa de honorários e despesas que ascende a  11.548,97 (IVA incluído), solicitando o respetivo pagamento; o mesmo não procedeu ao pagamento, nem revelou qualquer intenção de o fazer; acrescem juros vencidos desde que se contabilizam em 2.517,36 € e juros vincendos ate efetivo e integral pagamento.


«»

Por dedução de oposição, os autos foram remetidos à distribuição, tendo o requerido alegado, em suma, o seguinte: liquidou todo os valores, apesar de não lhe ter sido entregue recibo; o objeto da presente injunção já foi apreciado em 2017 no processo 111726/17...., que correu como apenso B dos autos 438/13....; no âmbito de tal processo, foi solicitado um laudo; acabaram por fazer transação no valor de €2.250,00, de que se declarou devedor e que liquidou em 27.02.2019; ficou sobressaltado com a notificação para os presentes autos; invoca o caso julgado; apesar de ter recebido o pagamento dos seus serviços, o requerente não se inibiu de intentar nova injunção; sabendo que nada era devido e que a ação não tinha condições para prosseguir; solicita a condenação do requerente, como litigante de má-fé, em multa e indemnização pelos danos sofridos, nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros); o requerido foi citado estando o assunto já resolvido, o que lhe causou ansiedade e preocupação; invocou ainda a prescrição do crédito reclamado.

*

Por requerimento datado de 7.12.2022, veio o requerente referir nos autos que, por lapso ocorrido na contabilidade do escritório, só agora percebeu que o requerido pagou a totalidade dos serviços jurídicos prestados. Mais solicitou a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide. Refuta a má-fé processual, uma vez que o impulso processual teve origem num erro contabilístico, tendo agido convicto de que o valor pedido ainda não estava liquidado.

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Foi proferida decisão a absolver o requerido do pedido.

Os autos prosseguiram para apreciação do incidente de má-fé processual.

Produzida a prova indicada pelas partes, a 6 de agosto de 2024, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo;

Pelo exposto, o tribunal julgo procedente por provado o pedido de condenação do requerente como litigante de má fé e, em consequência, condena-se o mesmo como tal, a pagar ao Requerido uma indemnização no valor total de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), bem como em multa no valor de € 1.000,00 (mil euros). 

Custas a cargo do requerente.

Valor do incidente: o dos autos.


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Não se conformando com esta decisão, dela veio interpor recurso o autor/requerido, terminando as suas alegações com as conclusões que, de seguida, se transcrevem:

(…).


*

Não foram apresentadas contra-alegações por parte do réu/requerente.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II. Objeto do recurso:

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado - são as seguintes as questões que se colocam se coloca à apreciação deste Tribunal:

A) A nulidade da sentença;

B) A impugnação da matéria de facto;

C) A falta de verificação dos pressupostos para a condenação do recorrente como litigante de má-fé.


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II- Factualidade

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1- No dia 02.11.2022, o requerente AA deu entrada de requerimento de injunção contra o requerido BB, com vista ao pagamento da quantia de €14.168,33 (catorze mil cento e sessenta e oito euros e trinta e três cêntimos), sendo €11.548,97 a título de capital, €2.517,36 a título de juros de mora, e €102,00 de taxa de justiça paga;
2- No requerimento em causa, AA legou o seguinte: “1 - No exercício da sua atividade profissional, o Requerente foi procurado pelo requerido que solicitou os seus serviços e patrocínio nos seguintes processos: processo nº...3-D/2000 que correu termos no Tribunal de Trabalho ..., processo nº 276/14.... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu- Instância Central- 2º Secção Trabalho de Lamego- Juízo 1, processo nº263/13.... que correu termos no Tribunal Judicial de Lamego - 2ºJuízo e processo nº 438/13.... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu- Instância Local – Secção Cível de Lamego – Juízo 1. 2- Aceite o patrocínio, o requerente assumiu a defesa do requerido nos referidos processos, tendo prestado os seguintes serviços respetivamente: (processo nº...3-D/2000) • Análise de requerimento da Agente de Execução – 25/02/2013 • Elaboração de requerimento a favor da anulação da venda e sua apresentação em juízo – 23/09/2013 • Análise de despacho de junção de requerimento apresentado pela parte contrária de anulação de venda e indemnização do comprador – 02/10/2013 • Análise de requerimento apresentado pela parte contrária – 03/10/2013 • Elaboração de requerimento e sua apresentação em juízo – 07/10/2013 • Elaboração de requerimento de pretensão de indeferimento do requerimento apresentado pela parte contrária da caducidade do contrato – 08/10/2013 • Análise de requerimento da parte contrária – 01/11/2013 • Análise de despacho proferido – 28/11/2013 • Análise de notificação da Agente de Execução – 10/01/2014 • Análise de requerimento e documentos apresentado pela parte contrária – 14/05/2014 • Análise de despacho proferido – 26/06/2014 • Análise de despacho proferido com marcação de inquirição de testemunhas – 04/07/2014 (Processo nº 276/14....) • Análise da Sentença preferida em 28/10/2014 • Análise de requerimento apresentado pela parte contrária – 28/11/2014 • Análise de requerimento apresentado pela parte contrária – 24/03/2015 • Análise de despacho proferido – 13/04/2015 • Analise de requerimento apresentado pela parte contrária – 20/04/2015 • Analise de requerimento apresentado pela parte contrária – 22/04/2015 • Análise de despacho preferido – 28/04/2015 • Analise de requerimento apresentado pela parte contrária – 29/04/2015 • Analise de requerimento apresentado pela parte contrária – 13/05/2015 • Análise de despacho proferido – 17/06/2015 • Analise de requerimento apresentado pela parte contrária – 25/06/2015 • Analise de requerimento apresentado pela parte contrária – 22/09/2015 (Processo nº263/13....) • Estudo do assunto; • Elaboração da petição inicial, organização dos documentos e sua apresentação em juízo – 04/04/2013 • Análise de despacho com marcação de audiência – 09/04/2013 • Elaboração de requerimento e sua apresentação em juízo – 12/04/2013 • Elaboração de requerimento de pronuncia quanto ao contrato de comodato e sua apresentação em juízo – 14/05/2013 • Análise da oposição com documentos apresentada pela parte contrária – 07/05/2013 • Análise de despacho proferido – 28/05/2013 • Análise de despacho proferido – 18/06/2013 • Elaboração de requerimento e sua apresentação em juízo – 21/06/2013 • Análise de requerimento apresentado pela parte contrária – 26/06/2013 • Análise de requerimento apresentado pela parte contrária – 16/09/2013 (Processo nº438/13....) • Análise de despacho proferido com procedimento cautelar e documentos apresentado pela parte contrária – 28/06/2013 • Elaboração de requerimento com junção de resposta remetida aos autos principais e sua apresentação em juízo – 23/09/2013 • Análise de ata de audiência final – 26/08/2013 • Análise de despacho proferido com indicação de audiência final. • Análise de despacho proferido – 16/10/2013 • Elaboração de requerimento e sua apresentação em juízo – 28/10/2013 • Elaboração de requerimento com pretensão de indeferimento de requerimento apresentado pela parte contrária da entrada da re no predio para cultivo e sua apresentação em juízo –04/07/2013 • Análise de despacho proferido – 07/11/2013 • Elaboração de requerimento para prosseguimento dos autos e sua apresentação em juízo – 15/11/2013 • Análise de despacho proferido com agendamento de data para audiência – 29/11/2013 • Análise de notificação de conta – 04/06/2015 3-Terminado o patrocínio dos referidos processos, o Requerente enviou ao Requerido, a nota discriminativa de honorários e despesas que ascende a € 11.548,97 (IVA incluído), solicitando o respetivo pagamento. 4- Decorrido o envio da nota ao Requerido, o mesmo não procedeu ao pagamento, nem revelou qualquer intenção de o fazer. 5- Ao valor devido a título de honorários acrescem juros vencidos desde que se contabilizam em 2.517,36 € e juros vincendos ate efetivo e integral pagamento. II- O montante e certo, líquido e legítimo. Capital Inicial: 11.548,97 € Total de Juro: 2.517,36 € Capital Acumulado: 14.066,33 €”;
3- O objeto da presente injunção já foi apreciado em 2017 no processo 111726/17...., que correu como apenso B dos presentes autos, onde o requerente e o requerido acabaram por fazer acordo, tendo o requerido liquidado o valor acordado entre ambos, em transação homologada por sentença, em 27.02.2019;
4- Facto que o requerido alegou em sede de oposição deduzida em 24.10.2022;
5- Por requerimento datado de 07.12.2022, veio o requerente referir nos autos que por lapso ocorrido na contabilidade do escritório, só agora percebeu que o requerido pagou a totalidade dos serviços jurídicos prestados. Mais solicitou a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide;
6- O requerido ficou sobressaltado com a notificação para os presentes autos;
7- Ficou ansioso e preocupado, uma vez que o assunto já estava resolvido;
8- Apesar de ter recebido o pagamento dos seus serviços, o requerente não se inibiu de intentar nova injunção, sabendo da transação efetuada no âmbito do processo nascido com o requerimento injuntivo anterior;
9- O requerido tinha obrigação de saber do pagamento dos referidos valores.


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E considerou como não provada a seguinte factualidade:

a) O requerente estava impedido de saber do recebimento dos valores, em virtude de lapso na contabilidade do escritório;

b) O programa informático para gestão dos honorários pagos no escritório do requerente sofreu problema e esteve sem funcionar alguns dias;

c) Nessa altura perderam-se registos que nunca foram recuperados;

d) A funcionária responsável pelo recebimento e gestão de honorários reformou-se em 2019 e foi substituída por outra colega;

e) O dossier físico referente ao requerido já não se encontrava no escritório, não havendo registo do acordo alcançado.


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IV. Do mérito do recurso

A) Da nulidade da sentença

Sustenta o recorrente que a sentença é nula porquanto os factos constantes dos pontos 6), 7), 8) e 9) não foram oportunamente alegados pela recorrido.

Vejamos.

As nulidades da sentença são vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, taxativamente consagrados no nº1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, sendo tipificados como vícios do silogismo judiciário, inerentes à sua formação e à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito[1]

De acordo com a al. d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, temos que a sentença é nula “[q]uando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»; tal normativo está em consonância com o comando do nº 2 do art.º 608º do Código de Processo Civil, no qual se prescreve que «[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.».

Por outro lado, como é jurisprudência unânime, não há que confundir questões colocadas pelas partes, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido[2]. Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.

Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art.º 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil. Donde, se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este se não pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.

Assim, os vícios de omissão ou de excesso de pronúncia incidem sobre as “questões” a resolver, nos termos e para os efeitos dos art.ºs 608º e 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil, com as quais se não devem confundir os “argumentos” expendidos no seu âmbito.

No que respeita à decisão de facto, «o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. Reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, (…)»[3]

Na verdade, e como já ensinava Alberto dos Reis [4]: «(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão. (…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.».

Por conseguinte, o eventual atendimento de factos não oportunamente invocados pelas partes nos respetivos articulados pode eventualmente constituir uma patologia da decisão da matéria de facto, mas não implica a nulidade da sentença.
Improcede, assim, a nulidade da sentença invocada.


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B) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

O apelante pretende seja alterada a matéria de facto fixada em primeira instância, devendo considerados não provados os pontos 6) e 7) e 8) e 9).

Quanto aos primeiros (factos 6 e 7) sustenta, em síntese, tratar-se de factos conclusivos, não estarem suportados em prova credível, para além de excederam o que foi alegado pelo recorrido.

No que concerne aos segundos 8 e 9), para além de os reputar como conclusivos, sustenta que também não foram alegados pelo recorrido

Vejamos.

A modificação da decisão de facto não só é legalmente permitida, como é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão, conforme decorre do disposto no art.º 662º, nº 1 do Código de Processo Civil.

Deste modo, a alteração da decisão de facto impõe-se, desde logo, quando se detete ter ocorrido erro de julgamento ou de apreciação da prova produzida.

Note-se, porém, que a decisão de matéria de facto pode ainda sofrer de outras patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação da prova e que podem e devem ser conhecidas e solucionadas oficiosamente pela Relação.

Sucede, designadamente, quando a decisão de facto inclua asserções conclusivas, genéricas ou matéria de direito; se revele excessiva; seja deficiente, obscura ou contraditória; careça de ampliação; e não esteja devidamente fundamentada[5].

No caso em apreço, atento o alegado pelo recorrente importa, desde logo, verificar se a decisão da matéria de facto se revela excessiva, nomeadamente por incluir factos (essenciais) não alegados pelo réu/recorrido e relativamente aos quais não pôde exercer o competente contraditório.

Na verdade, e como refere Abrantes Geraldes[6]: “O conteúdo da decisão pode revelar-se excessivo, por envolver a consideração de factos essenciais [não alegados] para a integração da causa de pedir ou das exceções (art.º 5º, n.º 1), ou mesmo de factos complementares ou concretizadores fora das condições de admissibilidade previstas no art.º 5º, n.º 2, alínea b).”.

Deste modo, “[n]ão podendo tais factos ser considerados, a consequência só pode ser a sua eliminação do elenco dos factos provados.”; sendo que “(…) esta questão pode ser conhecida oficiosamente por envolver a interpretação e aplicação de regras processuais de cariz imperativo, concretamente do art.º 5º, n.º 1 e 2 do CPC.[7]

Com efeito, em conformidade com o disposto no art.º 5º do Código de Processo Civil, o nosso ordenamento processual só admite a atendibilidade, na decisão da causa, de matéria não alegada pelas partes quando a mesma não consubstancie factualidade essencial (que identifique ou individualize a causa de pedir e/ou a exceção alegadas).

Assim, apenas podem ser considerados na sentença (com referência, sempre, aos limites de cognição do tribunal traçados pela causa de pedir e/ou exceção individualizadas e identificadas nos factos essenciais alegados pelo autor e pelo réu – art.º 5º, nº 1 e 615º, nº 1, al. d) do Código de Processo Civil) os factos complementares e instrumentais – estes, quando resultem da instrução da causa (art.º 5º, nº 2, a) do Código de Processo Civil); aqueles, quando resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido as partes possibilidade de se pronunciar (art.º 5º, nº 2, b) do Código de Processo Civil).

Isto posto, vejamos se, na situação vertente, foram ou não incluídos factos essenciais que careciam de ser alegados pelos réus recorridos, como fundamento da sua pretensão de condenação do recorrente como litigante de má-fé.

Ora, independentemente da classificação que lhes possa ser atribuída, os factos constantes dos pontos 6) e 7) correspondem a factos – e, ao contrário do que pretende o recorrente, não a meras conclusões – que foram efetivamente alegados pelo recorrido na sua contestação, mais concretamente no artigo 21º (Ao receber a notificação para o presente requerimento de injunção, o requerente ficou inevitavelmente bastante sobressaltado por estar convicto de que este assunto se encontra resolvido há sensivelmente 4 anos atrás – sublinhado nosso) e artigo 39º (Não podemos ignorar que o requerido foi citado para um processo judicial sobre um assunto já decidido, sempre penoso e dispendioso que pensava já se encontrar resolvido há 4 anos, causando-lhe episódios de ansiedade e extrema preocupação – sublinhado nosso).

A mesma conclusão se alcança relativamente ponto 8) dos factos provados que corresponde, em parte, aos factos alegados no artigo 30º da mesma contestação (Apesar de ter recebido o pagamento dos seus serviços, o requerente não se inibiu de intentar nova injunção).

Ainda no que diz respeito ao mesmo ponto 8) dos factos provados, impõe-se notar que a expressão “sabendo da transação efetuada no âmbito do processo nascido com o requerimento injuntivo anterior”, dele constante, não corresponde a alegação que o recorrido haja concretamente efetuado na sua contestação (na parte referente ao pedido de condenação do ora recorrente como litigante de má-fé).

Tratando-se de um facto essencial à determinação do grau de culpa da atuação do recorrente, na medida em que dele resultaria uma atuação dolosa a este imputável, porque não concretamente alegado por qualquer das partes, deve ser o mesmo ser eliminado do elenco dos factos provados

Também a redação do ponto 9), não corresponde a expressa alegação do recorrido no mesmo articulado.

Como que que seja, a redação deste concreto ponto da matéria de facto configura mera uma conclusão que a Mmª Juiz a quo retira da demais factualidade provada, designadamente do ponto 3º desses mesmos factos provados.

Com é sabido, na seleção dos factos em sede decisão da matéria de facto (art.º 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil) deve o Juiz atender à distinção entre factos, direito e conclusão, e acolher apenas o facto simples e afastar de tal decisão os conceitos de direito e as conclusões que mais não são que a lógica ilação de premissas, atendendo a todos os factos relevantes, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.

Como se decidiu no Ac. do STJ de 28/09/2017[8], “Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”.

Releva também aqui o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães 11/11/2021[9], segundo o qual: “Não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir «factos provados» para esse efeito as afirmações que «numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido».

Afigura-se-nos, assim, que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor[10]
Isto posto, a utilização da expressão “o requerido tinha obrigação de saber do pagamento dos referidos valores”, configura, no caso, em que precisamente se discute a censurabilidade da atuação do recorrente (ou seja o saber se este agiu com dolo ou negligência), que é pressuposto da sua condenação como litigante que má-fé, uma valoração jurídico-substantiva a extrair dos factos concretos que resultaram provados
Dessa forma, tratando-se de uma mera conclusão, deverá o ponto n.º 9 ser eliminado dos factos assentes.


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Não podemos esquecer, contudo, que o recorrente fundamenta ainda a impugnação da matéria de facto considerada provada nos pontos 6) e 7) em suposto erro na apreciação da prova, alegando que tais factos não se encontram suportados em prova credível.

O art.º 640º do Código de Processo Civil estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:

“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3. […]”
No que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.”[11]
Assim, o que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art.º 640º do Código de Processo Civil.
A saber:
- A concretização dos pontos de facto incorretamente julgados;
- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;
- E a decisão alternativa que é pretendida.
Por outro lado, não basta fazer uma impugnação genérica da matéria de facto, com remissão para meios de prova igualmente genéricos e sem os delimitar em relação a cada facto. As exigências contidas neste preceito impõem que “esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos[12].
Do supra transcrito preceito resultam dois ónus principais e um secundário, consistente os primeiros na indicação concreta da matéria de facto impugnada, dos meios de prova que sustentam decisão diversa e da decisão que deveria ter sido tomada; o segundo, “na indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC”[13].
Descendo ao caso vertente, dir-se-á, relativamente à impugnação dos factos provados com pontos 6) e 7) – que o recorrente pretende que sejam considerados não provados – ser evidente não terem sido indicados, nem das conclusões das alegações de recurso, nem da respetiva motivação, os meios probatórios que impõe uma decisão diversa quanto aos factos impugnados.
Embora a jurisprudência ainda oscile quanto ao alcance do ónus de impugnação, não há discordância sobre a necessidade de especificação dos pontos concretos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, nem também do também do teor do elenco factual que, no seu entender, deve ficar a constar e da indicação dos meios probatórios que impõe a decisão diversa, o que, in casu, não se verifica.

O recorrente não cumpre, assim, nem os ónus primários previstos nas diversas alíneas do nº1 do artº 640º do Código de Processo Civil, nem os ónus secundários constantes do seu nº2, porque não indica qualquer meio de prova que sustente o seu pedido de reapreciação desta matéria de facto[14].

Não sendo cumprido este ónus, imposto pelo artº 640º do Código de Processo Civil, para a admissibilidade do recurso quanto à matéria de facto, não é esta omissão passível de despacho de aperfeiçoamento.


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Em resumo, apenas em parte procede a impugnação da matéria de facto, devendo eliminar-se o ponto 9 dos factos provados e alterar-se a redação do ponto 8) para a seguinte: Apesar de ter recebido o pagamento dos seus serviços, o requerente não se inibiu de intentar nova injunção

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C) A falta de verificação dos pressupostos para a condenação do recorrente em multa e indemnização como litigante de má-fé.

Aqui chegados, cumpre apreciar o mérito da decisão que condenou o apelante como litigante de má-fé, o que se fará à luz das conclusões sexta e sétima das alegações de recurso, segundo as quais os factos considerados provados não permitem o enquadramento da conduta do recorrente n instituto da litigância de má-fé, designadamente por não resultar demonstrada que houve uma atuação dolosa ou sequer gravemente negligente.

Nos termos do disposto no art.º 542.º n.º 2 do Código de Processo Civil, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

A atual redação do preceito, introduzida no anterior Código de Processo Civil pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12 (onde era o art.º 456.º), visou, conforme resulta do seu texto e se explicita no preâmbulo daquele diploma, como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.

Como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.5.2019[15], a litigância de má fé é um instituto que visa sancionar e, portanto, combater a “má conduta processual”.

A conduta sancionada consubstancia-se na dedução de pretensão ou oposição cuja falta ou fundamento não podia ser ignorada, na alteração ou omissão da verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, na omissão grave do dever de cooperação ou no uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Os fins aí perseguidos são a boa administração da justiça, o respeito pelo tribunal, a credibilidade da atividade jurisdicional[16] .

Quanto à alínea a) do n.º 2 do art.º 542.º, exige-se a dedução de pretensão ou a apresentação de oposição sem fundamento, tout court, isto é, ao fim e ao cabo, pretensão ou defesa que sejam, em concreto, absolutamente infundadas[17].

Daí, também, que a falta de verdade (al. b) do n.º 2 do art.º 542.º do Código de Processo Civil) deva recair sobre “factos relevantes para a decisão da causa”, ou seja, factos essenciais ou principais, suscetíveis de influenciar a decisão por determinação da matéria de facto[18].

Por outro lado, a violação do dever de cooperação pressupõe uma omissão grave (al. c) do n.º 2 do art.º 542.º). Haverá que analisar o art.º 7.º n.º 1 do Código de Processo Civil: “Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.” A cooperação está ordenada à breve e justa composição do litígio[19], pelo que a omissão de cooperação, do lado da parte, deverá ser suscetível de afetar esse desiderato.

Por fim, as modalidades de má-fé instrumental previstas na al. d) do n.º 2 do art.º 542.º reportam-se à utilização disfuncional dos meios processuais, que seja manifestamente reprovável, tendo em vista conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça, protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Aqui exige-se um elemento subjetivo específico, uma intencionalidade, na atuação do agente processual, dirigida ou orientada para aqueles efeitos[20].

Contudo, como salientam António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa[21], em comentário ao referido preceito legal, “[…] não deve confundir-se a litigância de má-fé com:
a) A mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a juízo;
b) A eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
c) A discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor (RP 02-03-10, 615/09)”.

De facto, pese embora o alargamento do tipo subjetivo da conduta sancionável, que, além do dolo, abarca atualmente comportamentos gravemente negligentes, o comportamento em causa deve, obviamente, acarretar, face aos objetivos do processo, seriedade relevante.

O instituto da litigância de má-fé que efetivamente visa sancionar comportamentos contrários ao princípio da boa-fé processual exige que tais comportamentos sejam acompanhados por um específico animus da parte do agente.

“A presença do elemento subjetivo será então considerada não apenas ao nível da culpa, mas também em sede de tipicidade. Só quando o comportamento descrito nas diversas alíneas tenha sido praticado com dolo ou negligência grave, se poderá considerar que o sujeito processual praticou um ilícito típico[22].

Se tal elemento subjetivo se ausentar, a conduta não poderá sequer ser considerada ilícita e o sujeito não poderá ser considerado como litigante de má-fé.
Para que o facto ilícito gere responsabilidade, é necessário que o autor tenha agido com culpa.

Agir com culpa significa atuar em termos de a conduta merecer a reprovação ou censura do direito. (...) E a conduta é reprovável, quando se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo[23]

É um juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor, e pode revestir duas formas distintas: o dolo e a negligência ou a mera culpa.

O dolo, para efeitos de responsabilidade civil, corresponde à intenção do agente de praticar o facto.

Relativamente ao dolo civil, não é essencial a intenção de causar um dano a outrem (animus nocendi), bastando a consciência do prejuízo, do carácter danoso do facto (o dolo genérico)[24].

Ora, também ao nível processual não se afigura necessária a intenção de prejudicar a contraparte, bastando-se o dolo processual com a consciência da falta de fundamento da sua pretensão ou do caráter dilatório dos atos processuais que pratica[25]

Como nos diz Antunes Varela[26], “a mera culpa ou negligência consiste na omissão da diligência exigível do agente”. Segundo este autor, no âmbito da mera culpa cabem os casos em que o autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação (negligência consciente), e casos em que o agente não chega sequer, por imprevidência, descuido, imperícia ou ineptidão, a conceber a possibilidade de o facto se verifica, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse a diligência devida (negligência inconsciente).

“Deste modo, também ao nível da responsabilidade processual, o grau de diligência exigível ao litigante deverá partir da diligência do bom pai de família, ou seja, da diligência que um homem medianamente prudente e cuidadoso teria empregado previamente à propositura de uma ação judicial. Deverá, porém, atender-se ainda às particularidades do caso concreto, designadamente às qualidades e qualificações do agente e às circunstâncias em que se encontrava, desde logo porque a diligência exigida a um profissional qualificado na sua atividade, não poderá ser a mesma que se exige a um cidadão não qualificado na matéria[27].

O parâmetro de aferição do dever de diligência consubstancia-se assim: “a generalidade das pessoas ou todas as pessoas, pertencentes à categoria social e intelectual da parte real, colocadas naquela situação em concreto, ter-se-iam abstido de litigar, uma vez que, cumprindo os seus deveres de indagação, teriam concluído não terem, quer a pretensão, quer a defesa, fundamento. Só um sujeito extraordinariamente desleixado age como agiu a parte”[28].

“Definido o padrão por que se deverá medir o grau de diligência exigível ao litigante, cumpre referir que o seu grau de culpabilidade será tanto maior quanto mais intenso o dever de ter agido de outro modo, podendo, em consequência, a negligência com que atua ser considerada simples ou grave. Assim, teremos negligência simples sempre que o sujeito processual omita a diligência do bonus pater famílias. Por seu turno, atuará com negligência grave aquele que não obedeça às mais elementares regras de prudência, omitindo o mínimo de diligência que lhe teria permitido aperceber-se da falta de fundamento da sua pretensão ou da reprovabilidade do uso que faz do processo e dos meios processuais” [29].

A negligência grave é entendida como em que só uma pessoa excecionalmente descuidada e incauta teria incorrido.

Feitas estas considerações, vejamos então se a conduta processual do apelante/requerido que ficou demonstrada é subsumível ao conceito de litigância de má-fé.

A resposta a esta questão passa tão somente por determinar se, ao instaurar o requerimento de injunção contra o réu/recorrido, pedindo a condenação deste em valores que já anteriormente havia peticionado em anterior ação judicial anterior e que se devem considerar integralmente pagos, o recorrente atuou dolosamente ou, no mínimo, com negligência grave, deduzindo uma pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar.

O tribunal a quo entendeu que sim, sustentando que “(o) Requerente, ao propor a presente ação não podia deixar de saber que já tinha proposto a ação anterior. Também não podia ignorar que fez a transação, aceitando o pagamento de determinado valor pelo requerido, não fazendo sentido algum aceitar a sua conduta vertida nos presentes autos.

Mesmo no que concerne ao pagamento, as razões que apresentou, não demonstradas, também em nada justificariam a sua conduta, pois, ainda que existisse dúvida sobre a cobrança, o caminho normal seria contactar os clientes e esclarecer a dúvida e não recorrer, de forma leviana, a um processo judicial, imputando ao requerido uma conduta que não teve.

Nesta medida, ainda que se afaste o dolo, verifica-se, sem qualquer dúvida, a negligência grave.”.

Subscrevemos, na íntegra, esta posição.

Com efeito, ainda que a factualidade demonstrada não permita extrair a intensidade dolosa da atuação do recorrente quando propôs a nova injunção, sempre haverá que concluir que não atuou, previamente à propositura da dita ação judicial, com a diligência que um homem medianamente prudente e cuidadoso teria empregado.

Um homem medianamente prudente e cuidadoso, sabendo que havia já instaurado ação peticionando de outrem quantia que entendia lhe ser devida e sendo conhecedor de que, na sequência de transação homologada por sentença nesse mesmo processo, recebeu o montante que foi ali definido como o sendo o devido, não teria intentado nova ação contra a mesma pessoa, peticionando o crédito que havia reclamado na primeira ação, pois tinha obrigação de saber que tal crédito se encontrava extinto pelo  pagamento.

Assim sendo, há que concluir que, previamente à propositura desta nova ação, o recorrente não empregou a diligência devida e que qualquer homem medianamente prudente e cuidadoso teria empregado.

Acresce que, por se tratar de um profissional forense (advogado), o recorrente tinha até um dever de diligência acrescido, que, no caso, lhe exigia um nível de cuidado e atenção superior ao normal

Por outro lado, a sua atuação configura-se como grave, pois não obedeceu às mais elementares regras de prudência, omitindo o mínimo de diligência que lhe teria permitido aperceber-se da falta de fundamento da sua pretensão, pelo facto de o seu crédito já se encontrar extinto pelo pagamento à data em que instaurou o novo requerimento de injunção.

Ora, se tivesse usado do mínimo de diligência facilmente dar-se-ia conta da desrazão do seu comportamento, que era manifesta aos olhos de qualquer pessoa,

Concluindo, tendo o apelante/autor deduzido pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, a sua conduta processual é subsumível ao conceito de litigância de má-fé (art.º 542º, nº 2, als. a) do Código de Processo Civil), devendo por isso, ser sancionado, como o foi, em multa e indemnização à parte contrária (art.º 542º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Não tendo o recorrente questionado, no seu recurso, a medida da multa e indemnização que lhe foi aplicada, tratando-se essa de matéria subtraída ao conhecimento oficioso deste Tribunal (posto que não se mostram violados os limites que, em abstrato, o artigo 27.º, n.º 3 do Regulamento das Custas processuais estabelece para a referida multa), entendemos que a sentença recorrida se deve manter inalterada.


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Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663º, n.º 7 do CPC):

(…).


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V. Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente por não provada a apelação e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida


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Custas pelo recorrente
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Coimbra, 24 de junho de 2025

Assinado eletronicamente por:

Hugo Meireles

Luís Manuel Carvalho Ricardo

Cristina Neves

(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)


[1] Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 1/4/2014, Processo 360/09: Sumários, Abril /2014, p1 e Ac. da RE de 3/11/2016, Processo 1070/13: in dgsi.Net.)
[2] Cfr., entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.04.2024, processo nº 1610/19.8T8VNG.P1.S1, acessível in www.dgsi.pt.

[3] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2017, processo nº 7095/10.7TBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[4] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 144 a 146
[5] Neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, p. 354 e seguintes e ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de março de 2024, (Processo n.º 172/20.8T8VVD.G1, Relator José Carlos Pereira Duarte, acessível in www.dgsi.pt
[6] Obra e local supra citados.

[7] Cf. o supra citado Acórdão da Relação de Guimarães de 14.03.2024.

[8] Proc. nº809/10.7TBLMG.C1.S1 (Relatora Fernanda Isabel Pereira), disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[9] Proc. nº671/20.1T8BGC.G1 (Relatora Raquel Baptista Tavares, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[10] Ac. do STJ de 23/09/2009 (Relator Bravo Serra), proc. nº238/06.7TTBGR.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[11] Assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, (Relator Tomé Gomes), in www.dgsi.pt.
[12] Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05/09/18 (Relator Gonçalves Rocha), proc. nº 15787/15.8T8PRT.P1.S2
[13] Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 16/12/20, processo nº 8640/18.5YIPRT.C1.S1 (Relator Bernardo Domingos), disponível in www.dgsi.pt.
[14] Neste sentido Abrantes Geraldes, op. cit. pag. 199 e segs.

[15] Processo nº 6646/04.0TBCSC.L1.S2 (in www.dgsi.pt)

[16] Cf. Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, pags. 442 a 454.

[17] Paula Costa e Silva, op. cit., pags. 393 a 398.

[18] Paula Costa e Silva, op. cit., pags. 354, 355 e 399.

[19] Paula Costa e Silva, op. cit., oags.  408 a 410.
[20] Paula Costa e Silva, ob. cit., pags. 411 a 420
[21] Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, Almedina, 2020, 2ª edição atualizada, pag. 616.
[22] Marta Alexandra Frias Borges, Algumas reflexões em matéria de litigância de má-fé, Coimbra, 2014, pag. 42, disponível em https://estudogeral.uc.pt.
[23] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, p. 562.
[24] Antunes Varela, Op. Cit, pag. 572.
[25] Marta Alexandra Frias Borges, Op. Cit. pag. 77.
[26] Op. Cit, pag. 533.
[27] Marta Alexandra Frias Borges, Op. cot, +pags. 79 e 80.
[28] Paula Costa e Silva, Op. Cit, pag. 395.
[29] Marta Alexandra Frias Borges, Op. cit. pag.81