I - Está vedado ao tribunal de recurso conhecer do pedido de alteração não substancial dos factos descritos na acusação feito pelo Ministério Público no recurso, porque a sede onde tal pedido deve ser formulado é a audiência de julgamento em 1ª instância.
II - Para que uma ação possa ser enquadrada no tipo de crime de roubo e quer consista numa subtracção, quer num constrangimento à entrega, terá de evidenciar, nomeadamente, a utilização de violência contra uma pessoa.
III - A violência pode ser violência própria, quando se utiliza a força física; pode ser violência imprópria, quando para o constrangimento da vontade são usados, por exemplo, substâncias psicoactivas ou hipnotismo, gás lacrimogéneo ou privação da visão, que colocam a vítima na impossibilidade de resistir; pode ser directa, quando incide sobre o corpo da vítima; ou indirecta quando incide sobre coisas e só mediatamente afeta a pessoa.
IV - Um gesto surpreendente e praticado de forma rápida não é, forçosamente, agressivo.
V - A retirada de um telemóvel das mãos do ofendido, de forma inesperada, rápida e surpreendente, não se confunde com a impossibilidade de resistir.
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra.
I.
No processo comum com intervenção do tribunal singular que, com o nº 221/23.8PAPNI, corre pelo juízo de Competência Genérica de Peniche foi decidido (transcrição):
Absolver o arguido … da prática de 1 (um) crime Roubo, previsto e punido pelos artigos 210.º, n.º 1 do Código Penal.
Homologar a desistência de queixa formulada pelo ofendido … contra o arguido … e, em consequência, declarar extinto o procedimento criminal instaurado contra o mesmo.
Sem Custas.
1. Vem o presente recurso interposto da sentença que absolveu o arguido AA da prática um crime de roubo, p. e p. no art. 210.º, n.º 1, do CP.
2. A questão decidenda prende-se unicamente com a qualificação jurídica prosseguida pelo tribunal a quo.
3. Deveria o tribunal a quo, por se considerar essencial, ter considerado como provado o seguinte facto na parte do que mais resultou como provado: “Após o arguido já ter o telemóvel do ofendido referido em 2. e 3. no seu poder, este procurou sair do interior do veículo automóvel a fim de o recuperar, tendo aberto a porta e colocado uma perna de fora, momento em que o arguido, mediante o uso de uma das suas pernas e força, desferiu um pontapé na porta do automóvel, a qual, ao fechar-se, embateu contra a canela do ofendido – gravação disponível no sistema citius, sessão de 17-12-2024, minuto 9:00 a 9:20.
4. O caso dos presentes autos comporta precisamente uma das dimensões da violência e de colocar a vítima na impossibilidade de resistir que o tipo objetivo do crime de roubo comporta e que se integrará também por ventura no género do roubo por esticão.
5. A ingerência prosseguida pelo arguido ao retirar o telemóvel do arguido da sua posse de forma brusca, repentina e com força, interfere no corpo do ofendido, porquanto ao atuar desse modo o arguido necessariamente faz uso de violência, mediante o uso da sua força física, rapidez de movimento e surpresa, bem sabendo que perante tal atuação o ofendido era incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz e que tal atuação corta qualquer resistência que a mão do ofendido faça ao segurar o telemóvel.
6. Ainda que ofendido estivesse a exibir mensagens que continha no seu telemóvel ao arguido, a verdade é que detinha o telemóvel em sua posse na sua mão, pelo que tendo o arguido retirado o mesmo sem que nada o fizesse prever e puxando-o com força, é um ato violento que visa consubstanciar uma quebra de resistência por parte do ofendido, aproveitando o elemento surpresa, de molde a que este não tivesse qualquer hipótese de esboçar uma defesa minimamente eficaz.
7. Retirar o objeto da mão do ofendido assim, sem que nada o fizesse prever, de forma brusca e com força, significa que o arguido o fez com um movimento súbito, rápido e forte, que implica necessariamente alguma violência contra a pessoa do ofendido.
8. Se o arguido retirou o telemóvel com força e de modo repentino é porque já tinha a intenção de se apropriar do telemóvel e a consciência de que ao retirá-lo de forma brusca e com força coartava qualquer hipótese de resistência ao ofendido.
9. Dos factos provados conclui-se, imediatamente, que se provaram os elementos objetivos e subjetivos deste tipo legal de crime, pois ao arrancar o telemóvel da mão do ofendido, apropriando-se do mesmo contra a vontade deste e agindo de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, o arguido exerceu a violência estritamente necessária para se apoderar do objeto do roubo, arrancando o telemóvel da mão que o estava a segurar, vencendo assim a sua resistência.
10. Caso o arguido não tivesse ab initio a intenção de subtração e apropriação do bem, não necessitava de retirar o telemóvel da mão do ofendido da forma que o fez – sem que nada o fizesse prever, de forma brusca e repentina e com força, aproveitando o elemento surpresa para lhe coartar qualquer hipótese de resistência, e considerando que o ofendido se encontrava dentro do seu automóvel e com uma barreira física (porta do automóvel) entre ambos – pois bastar-lhe ia pegar no telemóvel e continuar a analisar o mesmo. Ademais, caso também não tivesse ab initio essa intenção, quando o ofendido insistiu por mais do que uma vez para lhe devolver o telemóvel, o arguido devolvê-lo-ia imediatamente, pelo que se não o fez, é porque já estava imbuído da intenção de se apropriar do mesmo.
11. Ainda que se possa argumentar que o arguido não fugiu de imediato do local após a retirada do telemóvel, a verdade é que não o fez porque estava ciente que o ofendido se encontrava sentado no interior do seu automóvel e, assim, existia uma barreira física entre ambos (porta) que o impedia de ir logo de imediato atrás de si, bem como quando este tentou efetivamente sair o impediu fechando a porta com recurso à força. Ademais, sempre se dirá que a fuga imediata não é elemento do tipo objetivo de crime.
12. …
…
*
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP).
*
Após os vistos, foram os autos à conferência.
II.
Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que são as conclusões do recurso que delimitam a apreciação a fazer por este tribunal – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – e que, analisando a síntese conclusiva, temos como matéria a apreciar:
- se deve ser aditado à factualidade provada o facto referido na conclusão 3ª;
- se o arguido deveria ter sido condenado por um crime de roubo p.p. artigo 210º nº 1 do Código Penal, com as legais consequências ao nível da imposição da pena.
*
É a seguinte a matéria de facto e subsequente fundamentação fixada em primeira instância (transcrição):
(…)
3.1. Factos provados
(…)
1.No dia 18 de Julho de 2023, cerca da 1 hora, o arguido encontrava-se na Travessa …, junto à Escola de Surf, …, onde também estava …, o qual lhe estava a mostrar algumas mensagens que tinha no seu telemóvel.
2.De repente, e sem que nada o fizesse prever, o arguido agarrou no telemóvel de … e puxou-o com força.
3.Na posse do mencionado objecto (da marca Oppo, modelo A53S, com o valor atribuído de € 189,99), o arguido fugiu do local.
4.O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado de fazer seu o referido telemóvel, apesar de saber que o mesmo não lhe pertencia e de que actuava contra a vontade do respectivo dono, causando-lhe os inerentes prejuízos patrimoniais.
5.Actuou de modo consciente e voluntário, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Mais resultou demonstrado que:
6.Após o arguido puxar o telemóvel da mão do ofendido, conforme descrito em 2., o arguido permaneceu no local por tempo não concretamente determinado, apenas fugindo do local, na posse do mencionado objecto, depois de … exigir que o mesmo lho restituísse.
7.O arguido restituiu o telemóvel do ofendido, designadamente tendo-o entregue, no dia 20 de Julho de 2023, na esquadra da PSP ....
…
*
3.2. Factos não provados
Com interesse para a boa decisão da causa, inexiste factualidade não provada.
*
3.3. Motivação da matéria de facto
…
Ora, importa começar por referir que o arguido não prestou declarações …
No que respeita aos factos descritos na acusação pública propriamente dita, o Tribunal começou por valorar o depoimento de aqui ofendido, …, que prestou um depoimento em tudo credível, porque espontâneo, suficientemente isento, seguro e sério. …
4.1. Enquadramento jurídico-penal
…
Tal como nota Conceição Ferreira da Cunha, “[o] roubo é um crime complexo que ofende quer bens jurídicos patrimoniais - o direito de propriedade e de detenção de coisas moveis – quer bens jurídicos pessoais -- a liberdade individual de decisão e acção (em certos casos, a própria liberdade de movimentos) e a integridade física (…). Saliente-se, no entanto, que a ofensa aos bens pessoais surge como o meio de lesão dos bens patrimoniais (…). - Vide: Comentário ao Artigo 210.º do Código Penal, in: AA.VV, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, artigos 202.º a 307.º, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 160.
Na mesma senda, o crime de roubo é ainda comummente classificado como um crime de natureza mista e pluriofensivo, pois visa proteger bens jurídicos patrimoniais – direito de propriedade e de detenção de coisas móveis –, bem como, e sobretudo, bens pessoais – direito à liberdade individual de decisão e acção, à própria liberdade de movimentos, à segurança, à saúde, à integridade física e mesmo à própria vida alheia – Vide acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13/12/2007 (processo n.º 07P3210), relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro, Sr. Dr. Raúl Borges, e de 05/12/2007 (processo n.º 07P3864), relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro, Sr. Dr. Armando Monteiro, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
…
Por sua vez a subtracção traduz-se, tal como na situação de crime de furto, “(…) em uma conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor. Implica, por consequência, a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa” – …
…
No caso vertente resulta que o arguido subtraiu um telemóvel ao aqui ofendido que, não lhe pertencendo, correspondia a coisa móvel alheia, estando, assim, parcialmente verificado o elemento objectivo do crime de roubo do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, cuja prática é imputada ao arguido. Com efeito, o arguido logrou passar para o seu domínio o referido telemóvel, fazendo-o em contravenção com a vontade do seu proprietário.
Prosseguindo, resulta também inequívoco que a referida subtracção não terá ocorrido mediante ameaça contra a vida ou integridade física, nem que tenha sido lograda através de colocação da vítima na impossibilidade de resistir, também não resultando que esta tenha sido constrangida a entregar o supramencionado telemóvel.
Neste seguimento, as questões primordiais que se colocam no presente caso concreto são se o arguido empregou violência com exclusiva intenção a conseguir apropriar-se do referido telemóvel mediante tal subtracção e, na afirmativa, aquilatar se a sua conduta consubstancia uma actuação violenta, conforme preceituada no tipo incriminador.
…
É também de registar que a jurisprudência consensualmente admite o chamado “roubo por esticão”, referindo que a intervenção sobre o corpo de outrem, independentemente da correspondente intensidade, configura ainda violência enquanto forma de execução da subtracção (entre muitos, o Acórdão do Tribunal da Relação do Coimbra de 27.04.2011, relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador, Dr. José Eduardo Martins, processo n.º 133/09.8GAOHP.C1, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
…
Afigura-se que a situação dos autos parece evocar as supramencionadas situações de roubo por esticão, o que determinaria a conclusão de que o arguido actuou com violência e, por conseguinte, concluir-se-ia pela verificação integral do elemento objecto do crime previsto no artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal.
Afigura-se, todavia, e em primeiro lugar, que o acontecimento que resultou sedimentado e que é agora objecto de julgamento, pese embora uma aparente semelhança com o chamado roubo por esticão, não configura ainda uma interferência por banda do arguido, ainda que indirecta, no corpo de ….
Com efeito, não é indiferente para a conclusão ora mencionada a natureza do objecto por referência ao qual o arguido actuou, ou seja, um telemóvel, como ainda a circunstância de que o ofendido o segurava na mão enquanto o mostrava ao arguido voluntariamente, o que significa que se trata de um objecto de dimensões que, tendo o arguido puxado o mesmo enquanto era exibido pelo ofendido, estando assim à vista, não influiu directa ou sequer indirectamente no corpo do seu interlocutor, não se perspectivando que o mero puxar do telemóvel determine uma interferência no corpo de quem o exibe numa mão, antes se aferindo que o mesmo deslizará entre os dedos ao ser puxado, mas sem que o corpo da pessoa que o tem na mão venha atrás ou sofra algum tipo de interferência, num caso como o dos autos (salienta-se, em que o ofendido o exibia ao arguido), não existindo, ante o puxão, qualquer movimento que se repercuta no corpo de tal pessoa.
Entende-se, aliás, que o puxão do telemóvel terá sido levado a cabo pelo arguido de molde a poder observar o teor das mensagens que estavam a ser-lhe exibidas, e no seguimento dessa exibição.
Nesta medida, trata-se de um caso que, pese embora revista semelhança aparente, se distingue do roubo por esticão na medida em que acaba por não acontecer qualquer interferência no corpo da vítima, contrariamente ao que acontece, a título de exemplo e que constitui o caso paradigmático, o roubo que é cometido mediante o puxão de uma alça de uma mala que é transportada ao ombro da vítima, puxão esse que, devido a essa forma de transporte do objecto, determina necessariamente um movimento do corpo da vítima, havendo assim uma interferência a seu respeito de natureza indirecta (ou seja, mediante o movimento do próprio objecto que se repercute no corpo da vítima).
…
Por sua vez, e em acrescendo, não se ignorando que resultou como provado que o arguido puxou o mesmo telemóvel com força e, segundo relatado pelo ofendido, com agressividade, importa ter em consideração que depois dessa conduta o arguido não fugiu de imediato, mas sim, e contrariamente, permaneceu no mesmo local, mexendo no telemóvel do ofendido (sem para tal estar autorizado, é certo), apenas fugindo do local num momento posterior, quando o ofendido exigiu que o arguido o devolvesse.
…
Nesta medida, impõe-se julgar como não preenchidos todos os elementos objectivos do tipo de ilícito criminal de roubo, conforme consagrado no artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal.
…
Esse tipo incriminador, in casu, corresponde ao que resulta consignado no artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, ou seja, a actuação do arguido integra antes a prática de um crime de furto, precisamente devido à circunstância de a subtracção de coisa móvel alheia, contra a vontade do respectivo dono, ter ocorrido sem que tenha ocorrido violência, e/ou que a mesma tenha sido exercida exclusivamente e propositadamente para permitir a subtracção e apropriação.
Acontece, todavia, que a prossecução de procedimento criminal a respeito do crime de furto depende da apresentação de queixa nesse sentido (cfr. artigo 203.º, n.º 2, do Código Penal), sucedendo que o ofendido declarou pretender desistir da queixa.
Assim, desde já se impõe concluir que deve o arguido dos presentes autos ser absolvido da prática de um crime de Roubo, conforme lhe vem imputado, devendo antes, em circunstâncias habituais, ser apreciado se se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivo do crime de Furto Simples, previsto e punido pelo também referido artigo 203.º do Código Penal, sem prejuízo do que se passa a expor infra.
(…)
Começa o recorrente por entender que devia ser aditado à matéria assente um facto do seguinte teor: “Após o arguido já ter o telemóvel do ofendido referido em 2. e 3. no seu poder, este procurou sair do interior do veículo automóvel a fim de o recuperar, tendo aberto a porta e colocado uma perna de fora, momento em que o arguido, mediante o uso de uma das suas pernas e força, desferiu um pontapé na porta do automóvel, a qual, ao fechar-se, embateu contra a canela do ofendido. …
O facto cujo aditamento agora é pretendido não constava da acusação, terá resultado, no entender do recorrente, da discussão da causa. Só que a fase central e determinante de qualquer processo penal é a audiência de julgamento em 1ª instância, pelo que é nela que deve incidir o principal esforço dos sujeitos processuais, assumindo aí plenamente o direito e o dever de contribuir para a conformação da decisão (ac. cit). Assim, se o Ministério Público entendia dever ter lugar uma alteração de factos constantes da acusação, com novos contornos até de subsunção jurídica (v.g. identificando na atuação do arguido um crime de violência após a subtração que não constava da acusação), tinha ao seu dispor a possibilidade de o requerer no julgamento em 1ª instância, ao abrigo dos art.s 358º/359º do CPP, - normas que, contrariamente ao que na prática ocorre, não são de uso privativo dos juízes - o que não fez. Tal omissão impede esta Relação de se pronunciar sobre factos novos e respetiva qualificação jurídica cujo aditamento não foi requerido e decidido em 1ª instância, tanto mais quanto não se constata a existência de um vício ou de uma verdadeira impugnação da matéria de facto que o permita.
Assim sendo está vedado a este tribunal ad quem proceder às requeridas (na 1ª e na 2ª instância) alterações da matéria de facto.
A questão nuclear trazida à apreciação deste tribunal é a de aferir da existência, ou não, de violência na atuação do arguido por forma a que se possa subsumir a conduta à prática de um crime de roubo e não apenas de um crime de furto.
Efetivamente é, essencialmente, o emprego de violência na apropriação que permite fazer a destrinça entre os dois tipos legais.
A sentença de primeira instância tratou bem a questão sob o ponto de vista doutrinário, não havendo que repetir considerações, até porque a divergência do recorrente se centra, fundamentalmente, na interpretação e subsunção dos factos ao tipo incriminador feita pelo tribunal a quo.
Não é controverso que o arguido subtraiu um telemóvel pertença do ofendido sem que para tal estivesse autorizado, apropriando-se dele. A controvérsia centra-se na consideração sobre se a atuação do arguido se pode considerar violenta, v.g. se se está perante o habitualmente designado roubo por esticão.
Entendeu o tribunal a quo que “pese embora numa aparente semelhança com o chamado roubo por “esticão” o acontecimento que resultou sedimentado “não configura ainda uma interferência por banda do arguido, ainda que indireta, no corpo de BB”.
E explica “Com efeito, não é indiferente para a conclusão ora mencionada a natureza do objecto por referência ao qual o arguido actuou, ou seja, um telemóvel, como ainda a circunstância de que o ofendido o segurava na mão enquanto o mostrava ao arguido voluntariamente, o que significa que se trata de um objecto de dimensões que, tendo o arguido puxado o mesmo enquanto era exibido pelo ofendido, estando assim à vista, não influiu directa ou sequer indirectamente no corpo do seu interlocutor, não se perspectivando que o mero puxar do telemóvel determine uma interferência no corpo de quem o exibe numa mão, antes se aferindo que o mesmo deslizará entre os dedos ao ser puxado, mas sem que o corpo da pessoa que o tem na mão venha atrás ou sofra algum tipo de interferência, num caso como o dos autos (salienta-se, em que o ofendido o exibia ao arguido), não existindo, ante o puxão, qualquer movimento que se repercuta no corpo de tal pessoa.
Entende-se, aliás, que o puxão do telemóvel terá sido levado a cabo pelo arguido de molde a poder observar o teor das mensagens que estavam a ser-lhe exibidas, e no seguimento dessa exibição.
Nesta medida, trata-se de um caso que, pese embora revista semelhança aparente, se distingue do roubo por esticão na medida em que acaba por não acontecer qualquer interferência no corpo da vítima, contrariamente ao que acontece, a título de exemplo e que constitui o caso paradigmático, o roubo que é cometido mediante o puxão de uma alça de uma mala que é transportada ao ombro da vítima, puxão esse que, devido a essa forma de transporte do objecto, determina necessariamente um movimento do corpo da vítima, havendo assim uma interferência a seu respeito de natureza indirecta (ou seja, mediante o movimento do próprio objecto que se repercute no corpo da vítima).
Do que se vem dizendo é de concluir que os factos praticados pelo arguido no caso concreto dos presentes autos, porquanto tendo-o sido sem que tenha sido evidenciada violência de sua banda, não permitem concluir pela verificação do elemento objectivo do tipo incriminador previsto no artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal”.
Ao entendimento expresso opõe-se o Ministério Público pela consideração de que “retirar o objeto da mão do ofendido assim, sem que nada o fizesse prever, de forma brusca e com força, significa que o arguido o fez com um movimento súbito, rápido e forte, que implica, necessariamente, alguma violência contra a pessoa do ofendido”.
Mais entende que o arguido agiu com a “consciência de que ao retirá-lo de forma brusca e com força coartava qualquer hipótese de resistência ao ofendido”.
E continua o seu entendimento afirmando: “Ainda que se possa argumentar que o arguido não fugiu de imediato do local após a retirada do telemóvel, a verdade é que não o fez porque estava ciente de que o ofendido se encontrava sentado no interior do seu automóvel e, assim, existia uma barreira física entre ambos (porta) que o impedia de ir logo de imediato atrás de si, bem como quando este tentou efetivamente sair o impediu fechado a porta com recurso à força. Ademais, sempre se dirá que a fuga imediata não é elemento do tipo objetivo do crime”.
Vejamos, então, de que lado está a razão.
Para que uma ação possa ser enquadrada no tipo de crime de roubo p.p. art. 210º do Código Penal, quer consista numa subtração, quer num constrangimento à entrega, terá de evidenciar pelo menos uma de três caraterísticas (Cfr. Ac. RL de 13.04.2011 proferido no processo 276/09.8PEOER.L1-3):
- Utilização de violência contra uma pessoa;
- Utilização da ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física;
- Colocação da vítima na impossibilidade de resistir.
Interessa-nos a primeira e a última das vertentes, isto é, a utilização de violência contra uma pessoa e a sua colocação na impossibilidade de resistir.
Como é referido no acórdão acima indicado a violência pode assumir diversas configurações: está-se perante violência própria quando se utiliza a força física; já estaremos perante violência imprópria quando para o constrangimento da vontade são, por exemplo, usados meios como substâncias psicoativas ou hipnotismo, ou ainda gás lacrimogéneo ou privação da visão, que colocam a vítima na impossibilidade de resistir; por outro lado, a violência é direta quando incide sobre o corpo da vítima e é indireta quando incide sobre coisas e só mediatamente afeta a pessoa.
No caso sub iudice, estaria em causa, primacialmente, a violência própria e direta na medida em que pressupõe uma atuação física sobre a vítima e não se percebe na factualidade apurada qualquer tipo de ameaça com o objetivo de intimidar a vítima e/ou perturbar a liberdade de atuação.
Ora, analisando a factualidade não se descortina que tenha coexistido com o gesto de retirar o telemóvel das mãos do ofendido, qualquer tipo de ação sobre o corpo da vítima, com uso de força. O que se constata é que, de forma repentina, inesperada, surpreendente, o telemóvel é retirado ao ofendido. Só que a surpresa do gesto, contrariamente ao que parece ser defendido pelo recorrente, não se confunde com a impossibilidade de resistir, que é, como acima ficou dito, uma forma de violência imprópria (Cfr. Ac. cit.). De facto, como diz Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal à luz da CRP e da CEDH, 3ª edição, pág. 826, citando diversos autores, a colocação da pessoa na situação de impossibilidade de resistir “não inclui o ardil e a surpresa”.
É ainda certo que, jurisprudencialmente, como diz o recorrente e sublinha o Ministério Público nesta Relação, já foi entendido que não há que mensurar a violência e que não tem esta que ter especial intensidade, bastando que seja idónea a alcançar o objetivo de apoderamento do bem. Veja-se neste sentido, com amplas referências doutrinárias, por exemplo, o Ac. STJ de 11.03.1998, proferido no processo 20/98 in BMJ, 475, 217, mas tal não invalida que se tenha de perceber na atitude do autor um gesto minimamente agressivo e com consequências na vítima que vão além da surpresa. (No caso em análise no referido Ac. STJ, a vítima de 86 anos foi surpreendida pelo arguido que, aproximando-se por trás, lhe retirou um saco que levava na mão, tendo ela ido embater contra um muro e ficado ferida na mão).
Na concreta situação em apreço - que este tribunal analisou por recurso também à audição do depoimento do ofendido para melhor poder apreciar a matéria controversa - o telemóvel estava nas mãos do ofendido que se encontrava sentado dentro de um veículo, com a janela aberta, à procura de uma mensagem para mostrar ao arguido, quando lhe foi retirado por este que começou, ele próprio e ali mesmo, a ver as mensagens. Não houve qualquer tipo de violência, não se impondo sequer equacionar se foi mais ou menos intensa. Isto é, a atuação não seria diferente se o telemóvel estivesse no tablier ou num assento do veículo e dele se apropriasse o arguido sem que nada o fizesse prever e sem que a vítima, surpreendida com o comportamento, tal como ocorreu, sequer o impedisse ou tentasse impedir. É evidente que a surpresa do gesto, em tese, implica rapidez e até, poderá admitir-se, alguma força, mas um gesto, por ser rápido e inesperado, não tem, necessariamente, de ser violento. Isto é, um gesto surpreendente e praticado de forma rápida não é, forçosamente, agressivo. Aliás, pode mesmo reconhecer-se que é precisamente o inesperado da atuação que acaba por retirar o caráter violento ao gesto de desapossamento, conferindo-lhe apenas contornos de falta de educação, porque o ofendido apanhado de surpresa não chega, num primeiro momento, a sequer esboçar uma qualquer reação perante o arguido que permaneceu no local, a não ser dizer-lhe “isto é uma falta de respeito”, enquanto o arguido continuava a ver o telemóvel.
Foi, portanto, isto que o tribunal a quo percebeu e que determinou a conclusão de que o crime praticado não foi um roubo, mas acabou por ser apenas um furto, consumado a partir do momento em que o arguido, continuando a ver o telemóvel, se afastou do local e acabou por fugir sem o devolver ao ofendido, não obstante o pedido deste para que o fizesse.
Da consideração de se estar perante um furto retirou o tribunal a quo as legais consequências decorrentes da desistência da queixa, conclusão que, pelo exposto, não merece censura.
DECISÃO.
Em face do exposto decide-se julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e confirmar a sentença recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente (artigo 522º, do Código de Processo Penal).
Notifique.
Coimbra, 8 de julho de 2025
Maria Teresa Coimbra
Maria José Guerra
Votei vencida por entender que está verificado o elemento típico violência do crime de roubo, face à seguinte factualidade provada:
2.De repente, e sem que nada o fizesse prever, o arguido agarrou no telemóvel de BB e puxou-o com força.
O arguido exerceu a violência estritamente necessária para se apoderar do objeto do roubo, puxando o telemóvel com força das mãos do ofendido, vencendo assim a sua resistência.
Neste sentido, veja-se a seguinte jurisprudência que se acompanha:
Ac. da RP de 16.12.2020, in www.dgsi.pt, segundo qual:
“O crime de roubo encontra-se previsto no art. 210º, 1, do Código Penal, que estatui: "Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física (...)".
Conforme refere Maia Gonçalves (Código Penal Português, Anotado e Comentado, 10ª edição, Coimbra, a págs. 641.), “O crime de roubo distingue-se do de furto porque no primeiro há violência (...) ou a colocação da vítima na impossibilidade de resistir, o que não acontece no furto”.
Segundo Conceição Ferreira da Cunha (Conceição Ferreira da Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, tomo II, a págs. 160.), "O roubo é um crime complexo que ofende quer bens jurídicos patrimoniais – o direito de propriedade e a detenção de coisas móveis – quer bens jurídicos pessoais – a liberdade individual de decisão e acção (...) e a integridade física”.
Trata-se de uma infração que é de execução vinculada: quer a subtração, quer o constrangimento devem ser executados por meio de violência, ameaça ou colocação na impossibilidade de resistir, o que também caracteriza o tipo objetivo.
O crime de roubo é essencialmente doloso.
Ao arrancar as notas bancárias da mão do motorista de táxi, apropriando-se das mesmas contra a vontade do ofendido e agindo de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, o arguido exerceu a violência estritamente necessária para se apoderar do objeto, cometendo um crime de roubo e não apenas de furto”.
Como se pode ler no corpo deste aresto, “é certo que o arguido não agrediu o ofendido, mas o tipo legal de crime não exige tal intensidade e modalidade de violência para o preenchimento do tipo legal de crime”.
Ac. da RC de 27.4.2011, in www.dgsi.pt, onde se afirma que:
“Configura o crime de roubo e não o crime de furto a conduta de quem se abeira da vítima, que transporta uma carteira, debaixo de um braço e, de surpresa, com um esticão, agarra a mesma carteira e retira-a desse local, pondo-se em fuga, com a dita carteira em seu poder, o que foi de imediato sentido pela vítima.
Retirar algo assim de alguém, de forma brusca, só pode ser considerado um acto violento, pois trata-se da intromissão no corpo de uma pessoa por meio de uma conduta que visa quebrar ou impedir a resistência da vítima (aproximação de surpresa, puxão, fuga subsequente imediata)”.
O crime de roubo por esticão não requer que a carteira esteja colocada ao ombro ou a tiracolo, de forma a provocar lesão no corpo do ofendido.
Questão distinta e relevante nos presentes autos é a de saber se a resolução criminosa de apropriação se deu quando o arguido agarrou no telemóvel nos termos supra descritos, ou instantes depois quando o ofendido exigiu a sua restituição.
Acontece que, neste particular, a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão – artigo 410º, nº2, alínea b), do Código de Processo Penal.
Há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada.
Isto é, quando os factos provados, ou mesmo os não provados, colidem com a fundamentação da decisão. A decisão assenta em premissas distintas das que se deram como provadas.
Concretizando.
Diz-se na fundamentação de direito o seguinte:
Entende-se, aliás, que o puxão do telemóvel terá sido levado a cabo pelo arguido de molde a poder observar o teor das mensagens que estavam a ser-lhe exibidas, e no seguimento dessa exibição. …
Por sua vez, e em acrescendo, não se ignorando que resultou como provado que o arguido puxou o mesmo telemóvel com força e, segundo relatado pelo ofendido, com agressividade, importa ter em consideração que depois dessa conduta o arguido não fugiu de imediato, mas sim, e contrariamente, permaneceu no mesmo local, mexendo no telemóvel do ofendido (sem para tal estar autorizado, é certo), apenas fugindo do local num momento posterior, quando o ofendido exigiu que o arguido o devolvesse.
Nesta medida, mesmo que se entendesse que a conduta do arguido consubstanciou violência sobre a pessoa do ofendido, importa ainda ter em consideração que tal puxão do telemóvel, nesse mesmo momento, não evidencia ter sido levado a cabo pelo arguido com intenção de subtracção e/para apropriação do mesmo objecto, pois o mesmo permaneceu no local a consultar o seu teor, apenas se colocando em fuga na posse do mesmo num momento posterior. Assim, tudo indica que a resolução criminosa do arguido, de subtracção e apropriação do bem, surgiu num segundo momento, posterior e autónomo ao puxão mediante o qual o arguido passou a ter o telemóvel na sua disposição”.
Porém, não é isso que consta da factualidade provada. O que aí consta é que:
2.De repente, e sem que nada o fizesse prever, o arguido agarrou no telemóvel de BB e puxou-o com força.
3.Na posse do mencionado objecto (da marca Oppo, modelo A53S, com o valor atribuído de € 189,99), o arguido fugiu do local.
4.O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado de fazer seu o referido telemóvel, apesar de saber que o mesmo não lhe pertencia e de que actuava contra a vontade do respectivo dono, causando-lhe os inerentes prejuízos patrimoniais.
Nos termos da factualidade provada, a resolução criminosa de apropriação existia quando o arguido agarrou o telemóvel, puxando-o.
O que o facto 6 não infirma (Após o arguido puxar o telemóvel da mão do ofendido, conforme descrito em 2., o arguido permaneceu no local por tempo não concretamente determinado, apenas fugindo do local, na posse do mencionado objecto, depois de BB exigir que o mesmo lho restituísse) tanto mais que o ofendido encontrava-se dentro do carro.
Concluindo, entendo que está verificado o elemento típico violência, mas a sentença padece do vício de contradição insanável nos termos acabados de referir, que sempre cumpriria sanar.
Rosa Pinto.