FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO POR REMISSÃO
NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
RECLAMAÇÃO E RECURSO DERIVADOS DA OCORRÊNCIA DE IRREGULARIDADES E NULIDADES
DECLARAÇÃO E REPARAÇÃO OFICIOSA DE IRREGULARIDADES
IRREGULARIDADES QUE AFECTA O VALOR DO ACTO PRATICADO
FIXAÇÃO DAS SANÇÕES E DO REGIME DO SEU CUMPRIMENTO
PAGAMENTO DA MULTA PENAL EM PRESTAÇÕES
Sumário

I - Nem todas as irregularidades merecem tutela legal, sendo unicamente relevantes para o efeito as que podem afectar o acto praticado.
II - O regime regra da declaração da irregularidade é o de que esta seja feita a requerimento do interessado, nos estritos termos e prazos previstos na lei, ficando sanada se não for tempestivamente arguida.
III - Salvo os casos de nulidade da sentença, que são susceptíveis de, por si só, serem fundamento de recurso, todas as demais nulidades e, também, as irregularidades, devem ser previamente suscitadas perante o tribunal que as cometeu, que as apreciará em primeira instância, havendo recurso da decisão que delas conhecer.
IV - O n.º 2 do artigo 123.º do C.P.P. prevê uma válvula de escape, admitindo a declaração e reparação oficiosa de irregularidades que possam afectar o valor do acto praticado, limitadas pelo campo de protecção da norma que deixou de observar-se.
V - Se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente/sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente, mas se estiver em causa uma norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, a irregularidade pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição.
VI - A fundamentação por remissão cumpre o dever de fundamentação, mas ela não dispensa o juízo valorativo próprio e exclusivo do juiz na apreciação dos factos, dos meios de prova e do enquadramento jurídico que aqueles merecem, devendo a fundamentação deixar transparecer a apreciação autónoma levada a cabo pelo juiz, circunstanciada e respaldada nos elementos constantes dos autos, ainda que por remissão para os mesmos.
VII - Num estado de direito democrático como o nosso, o legislador tem uma ampla margem de liberdade na fixação das sanções correspondentes aos comportamentos que decidiu tipificar como crimes, tal como na definição dos moldes do respetivo cumprimento.
VIII - Estando expressamente prevista a possibilidade de pagamento da multa penal em prestações e definido o seu limite temporal máximo, não há que recorrer à analogia, que pressupõe a ausência de previsão legal.
IX - A multa penal carateriza-se por uma enorme elasticidade, perfilando-se várias possibilidades para o condenado.

Texto Integral


*

Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. - RELATÓRIO

1. No processo comum que, sob o n.º 1081/21.9T9PBL, … o condenado apresentou requerimento, peticionando o pagamento da multa que lhe foi irrogada, no valor global de 990,00 € (novecentos e noventa euros), em prestações mensais no valor de 1,00 € (um euro) até integral pagamento.

2. Por despacho datado de 09.04.2025, foi autorizado o pagamento da multa em 15 (quinze) prestações mensais, iguais e sucessivas.

            3. Não se conformando com o assim decidido, o arguido veio interpor recurso, sendo a motivação rematada pelas seguintes conclusões e petitório [transcrição[1]]:
«IV- Das conclusões:


IV.1- Do pagamento em prestações:


1- O arguido veio requerer, que não tem rendimentos, está preso.


2- Pelo que requereu o pagamento em prestações, mensais, sucessivas, de multa e custas, de 1,00€, até integral pagamento, o que foi indevidamente indeferido.


IV-2-Da nulidade do despacho:


3- O despacho não está fundamentado e sofre de nulidade, violando o art. 205.º n.º 1 da CRP  determina que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
4- Violou o dever de fundamentação, o n.º 2 do art. 374.º do CPP e 97, 5 do CPP, que estatui estatui um dever de fundamentação forte.

5- Impedindo-se a busca da verdade material


IV.3- Da inconstitucionalidade do do despacho do meritíssimo Juiz:
        6- O despacho viola claramente regras constitucionais.
7- Os despachos viola claramente regras constitucionais, 12º, 13º, 16º, 17º, 18º, 20º, 21º, 25º, 26º, 27º, 29º, 30º, 32º, 51º, 52º,da CRP.

IV.4 - Das disposições legais violadas:
8- Foram violados os artigos 609º, 615º do CPC; artigos 116º, 1 e 117-B, 1 e 2 do CRP, 2078º do C. C., art.30, 3 do CPC, 12º, 13º, 16º, 17º, 18º, 20º, 21º, 25º, 26º, 27º, 29º, 30º, 32º, 51º, 52º, da CRP, e , artigos 8º, 311, 3 a) do CPP, 302, 1, 292, 299, do CPP. 47º 3 e 4 do Código Penal, ex vi do artigo 10º do Código Civil, artigo 1º, 13º 1 e 2, 25º 1, da Constituição da República Portuguesa, artigo 10º do Código Civil.


Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente nos termos legais.


Assim se fará a devida justiça!»

4. O Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta ao recurso, concluindo que o despacho recorrido não merece qualquer reparo, pelo que deve ser mantido, negando-se provimento ao recurso interposto pelo recorrente.

5. Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, além de aludir, a título de questão prévia, à desconformidade das colusões deduzidas pelo recorrente ao disposto no artigo 412º do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido da ausência de qualquer base legal para a pretensão daquele, da inexistência da alegada invalidade do despacho por falta de fundamentação ou de qualquer inconstitucionalidade na regulamentação legal do pagamento de multa penal em prestações.

6. Não houve resposta ao sobredito parecer.

7. Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.


*

            II. – FUNDAMENTAÇÃO

             1. Despacho alvo do recurso

                «Requerimento apresentado pelo arguido, datado de 14/02/2025:

                Estatui o artigo 47º nº 3 do C.Penal que “sempre que a situação económica e financeira do condenado o justificar, o Tribunal pode autorizar o pagamento da multa dentro de um prazo que não exceda um ano, ou permitir o pagamento em prestações, não podendo a última delas ir além dos dois anos subsequentes à data do trânsito em julgado da condenação”. – nosso negrito.

In casu, atento o montante da pena de multa em concreto (€ 990,00) e as condições económicas do arguido, dadas como provadas em sede de sentença condenatória, bem como e ainda a sua actual situação pessoal (em cumprimento de uma pena de 22 anos de prisão), entende o Tribunal estarem reunidos todos os pressupostos para a autorização do pagamento da pena de multa em prestações.

Todavia, face ao limite máximo fixado no preceito legal ora transcrito, torna-se manifesto que pretensão do arguido de pagar prestações mensais de € 1,00 é legal e manifestamente inadmissível, razão pela qual se indefere o pagamento dessa forma.

Outrossim, atento o montante da pena de multa em concreto e as aludidas condições económicas do arguido não se autoriza o pagamento em mais do que 15 (quinze) prestações mensais, iguais e sucessivas para não desvirtuar o sentido da pena.

Efectivamente, o arguido tem que sentir que está a cumprir uma sanção criminal, pois só assim a condenação o fará repensar a sua conduta e não voltar a praticar outros ilícitos. A este propósito, Figueiredo Dias refere que a multa terá sempre que representar algum significado e sacrifício económico para os arguidos, sob pena de, assim não sendo, se desprestigiar tal pena, que acabará por perder validade e deixará de assegurar a vigência da norma violada (cfr. Figueiredo Dias in Direito Penal 2 – Parte Geral, Edição da Secção de textos da Faculdade de Direito de Coimbra, 1988, págs. 121 e ss).

 Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 47º nº 3 do CP, autoriza-se o pagamento da pena de multa em apreço em 15 (quinze) prestações mensais, iguais e sucessivas, sendo que a primeira prestação deverá ser paga até ao dia 8 do mês subsequente à sua notificação ou no primeiro dia útil seguinte, quando aquele o não for, e as seguintes até ao correspondente dia dos meses seguintes, com a cominação de que a falta de pagamento de uma delas importa o vencimento de todas (nº 5 do citado artigo).

Notifique.»

2. Delimitação do objeto do recurso

            …

            …[2]

            …[3]

[4].

[5].

            … é possível identificar com suficiente segurança as seguintes questões recursivas a apreciar:

            - O despacho recorrido é inválido por falta de fundamentação?

            - O tribunal a quo errou ao não deferir o pagamento da pena de multa em prestações nos moldes requeridos pelo ora recorrente?

           



3. Apreciação do recurso

            3.1 - O despacho recorrido é inválido por falta de fundamentação?

O recorrente começa por invocar a nulidade do despacho recorrido por considerar que o mesmo não se encontra fundamentado, violando o disposto nos artigos 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 374º, n.º 2, e 97º, n.º 5, do Código de Processo Penal.

Vejamos se lhe assiste razão.

Estatui, efetivamente, o artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que “[a]s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

Densificando tal princípio em matéria processual penal, dispõe o artigo 97º, n.º 5, do Código de Processo Penal que “[o]s atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

Esclarece o n.º 1 do referido normativo que “[o]s atos decisórios dos juízes tomam a forma de: a) Sentenças, quando conhecerem a final do objeto do processo; b) Despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior”.

É, pois, inquestionável que, quer se trate de sentenças, quer de despachos [interlocutórios ou finais], os atos decisórios dos juízes têm que conter os respetivos motivos, de facto e de direito.

A inobservância do dever de fundamentação é cominada de nulidade no caso da sentença, como decorre das disposições conjugadas dos artigos 374º e 379º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal e, tratando-se de despacho, apenas em casos pontuais, como é o caso do despacho de aplicação de medida de coação com exceção do termo de identidade e residência, que a lei também comina de nulidade quando não contenha todos os elementos ali discriminados [cfr. artigo 194º, n.º 6, do Código de Processo Penal].

Em face do exposto, conclui-se que o invocado vício de falta de fundamentação do despacho recorrido – que apreciou o pedido de pagamento da pena de multa em prestações – não pode configurar uma nulidade, sanável ou insanável, uma vez que não se encontra elencada nos artigos 119º e 120º do Código de Processo Penal nem é expressamente cominada como tal em qualquer outra disposição legal.

Com efeito, atento o princípio da tipicidade ou da legalidade consagrado em matéria de nulidades no artigo 118º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “a violação ou infração das leis de processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei”, dispondo o n.º 2 que “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular”.

Significa isto que só constituem nulidades as expressamente previstas na lei como tal, ficando submetidas ao regime previsto nos artigos 119º a 122º do Código de Processo Penal, sendo os demais casos de violação ou inobservância das normas processuais meras irregularidades, sujeitas ao regime previsto no artigo 123º do mesmo código, que assim dispõe:

“1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.

2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado.”

Nesta conformidade, conclui-se que nem todas as irregularidades merecem tutela legal, sendo unicamente relevantes para o efeito aquelas que possam afetar o ato praticado.

Por seu turno, o regime regra da declaração da irregularidade é o de que esta seja feita a requerimento do interessado, nos estritos termos e prazos previstos na lei, ficando sanada se não for tempestivamente arguida.

A arguição da irregularidade está sujeita ao apertado regime de tempestividade previsto no n.º 1 do citado artigo 123º: assistindo o interessado à prática do ato a que se refere a irregularidade, terá de a invocar no próprio ato; se a irregularidade se reportar a ato a que o interessado não assista – como sucede no caso em apreço, uma vez que o despacho recorrido foi proferido por escrito nos autos e posteriormente notificado aos sujeitos processuais –, aquele dispõe do prazo de três dias após o conhecimento efetivo ou presumido da prática da irregularidade que, na segunda hipótese, poderá ser extraído da notificação para qualquer termo do processo ou da intervenção no primeiro ato que tenha lugar após a ação ou omissão e em que ele se aperceba da mesma.

Caso a irregularidade não seja arguida nos sobreditos moldes, o ato produzirá todos os seus efeitos jurídicos como se fosse perfeito.

No caso vertente, o despacho objeto de recurso foi proferido em 09.04.2025 e foi efetuada a notificação, nessa mesma data, via Citius, ao recorrente

Contudo, o recorrente não invocou a irregularidade do despacho perante o tribunal que o proferiu, no prazo de três dias após essa notificação, como se impunha que fizesse, antes tendo optado por interpor o presente recurso em 14.04.2025, com fundamento, além do mais, em vício que qualificou como nulidade.

Ora, salvo os casos de nulidade da sentença, que são suscetíveis de, por si só, serem fundamento de recurso (artigo 379º, n.º 2, do Código de Processo Penal), todas as demais nulidades e, também, as irregularidades devem ser previamente suscitadas perante o tribunal que as cometeu, que as apreciará em primeira instância, só havendo recurso da decisão que delas conhecer[6].

Não tendo assim procedido, não pode agora o recorrente, em sede de recurso, vir suscitar a invalidade do despacho com fundamento na falta de fundamentação, sobre a qual não há qualquer decisão do tribunal de primeira instância.

No entanto, o n.º 2 do citado artigo 123º prevê uma válvula de escape, admitindo a declaração e reparação oficiosa de irregularidades que possam afetar o valor do ato praticado, obviamente limitadas pelo campo de proteção da norma que deixou de observar-se.

Assim, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente/sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente.

Porém, se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já a irregularidade pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição.

Conforme refere Maia Gonçalves, apesar de as irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na prática se podem deparar impõe que se não exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo suscetíveis de afetar direitos fundamentais dos sujeitos processuais[7].

Daí a grande margem de apreciação que se confere ao julgador, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 123º, que vai desde considerar a irregularidade inócua e inoperante, até à invalidade do ato inquinado pela irregularidade e dos atos subsequentes que possa afetar, passando pela reparação oficiosa da irregularidade.

Trata-se de questões a decidir pontualmente pelo julgador, com muita ponderação pelos interesses em equação, maxime as premências de celeridade e de economia processual e os direitos dos interessados.

Conforme resulta do anteriormente exposto, no caso em apreço a irregularidade, a existir, traduzir-se-á na alegada falta de fundamentação do despacho recorrido.

 Assim sendo, cumpre aquilatar se tal irregularidade foi efetivamente cometida e, em caso afirmativo, se é de molde a demandar a sua reparação oficiosa.

É inquestionável que a fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extra processual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinam a decisão; em outra perspetiva (intra processual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2007[8]].

Outrossim se afigura de meridiana clareza que o ónus de fundamentação não se impõe em todos os casos da mesma maneira. Defendem Jorge Miranda e Rui Medeiros[9] que a fundamentação das decisões judiciais, além de ser expressa, clara, coerente e suficiente, deve também ser adequada à importância e circunstância da decisão. Quer isto dizer que as decisões judiciais, ainda que tenham que ser sempre fundamentadas, podem sê-lo de forma mais ou menos aprofundada (de acordo com critérios de razoabilidade) consoante a função dessa mesma decisão, perspetivada nas vertentes endo processual e extra processual.

Ocorre que, não raras vezes, motivada por compreensíveis e desejáveis razões de economia e celeridade processual, a fundamentação da decisão judicial é efetuada por remissão para peças processuais, incluindo atos decisórios, elaborados pelos diversos intervenientes processuais, e/ou documentos que constam dos autos, da autoria de diversas entidades.

O Tribunal Constitucional já se pronunciou várias vezes sobre a conformidade da fundamentação de determinadas decisões proferidas no âmbito do processo penal por simples remissão, nomeadamente para o conteúdo de promoções do Ministério Público, à luz dos princípios constitucionais da fundamentação e da reserva de juiz, consagrados, respetivamente, nos artigos 205º, n.º 1, e 32º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 97º, n.º 5, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual tal forma de fundamentação pode ser adotada[10].

Também os Tribunais da Relação têm entendido que a fundamentação por remissão cumpre o dever imposto no referido normativo e é admissível[11].

Na verdade, o direito a um processo justo e equitativo, consagrado no artigo 20º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, implica que se conciliem o princípio da fundamentação das decisões judiciais com o princípio da economia e celeridade processuais, que pressupõe decisões em tempo útil, sobretudo num quadro de maior complexidade processual, seja esta aferida em função do espectro factual e do universo probatório, seja em função da panóplia de interpretações doutrinais e jurisprudenciais que se perfilam no âmbito do enquadramento jurídico penal.

… o recurso a técnica remissiva não dispensa o juízo valorativo próprio e exclusivo do juiz na apreciação dos factos, dos meios de prova e do enquadramento jurídico que aqueles merecem. A fundamentação deve deixar transparecer a apreciação autónoma levada a cabo pelo juiz, circunstanciada e respaldada nos elementos constantes dos autos, ainda que por remissão para os mesmos.

No caso em apreço, no despacho recorrido, o tribunal a quo enunciou o preceito legal [artigo 47º, n.º 3, do Código Penal] que prevê, e disciplina, a faculdade de pagamento da pena de multa em prestações, enunciou as condições económicas – ainda que por remissão para o exarado na sentença – e as condições pessoais do recorrente à data – nomeadamente, o facto de se encontrar detido em cumprimento de uma pena de 22 anos de prisão – e efetuou um juízo valorativo de tais circunstâncias à luz do sobredito normativo legal, com apoio na doutrina dominante na matéria.

Ressuma, assim, à evidência que o despacho recorrido se mostra devidamente fundamentado, quer em termos de facto, quer em termos de direito, sendo perfeitamente apreensíveis os motivos da decisão.

Mas, ainda que assim não se entendesse, a insuficiência da fundamentação afetaria, unicamente, o interesse do recorrente e a irregularidade seria de diminuta gravidade, não justificando a declaração oficiosa de reparação nos termos do n.º 2 do artigo 123º, pelo que, não tendo aquela sido tempestivamente invocada, sempre estaria definitivamente sanada.

Improcede, pois, esta primeira questão.

            3.2 - O tribunal a quo errou ao não deferir o pagamento da pena de multa em prestações nos moldes requeridos pelo ora recorrente?

Num estado de direito democrático como o nosso, o legislador tem uma ampla margem de liberdade na fixação das sanções correspondentes aos comportamentos que decidiu tipificar como crimes, tal como na definição dos moldes do respetivo cumprimento, embora respeitando os princípios constitucionais, entre os quais se destacam o da necessidade das penas, o da proporcionalidade e o da igualdade[12].

            A aplicação e a execução das penas terão sempre em perspetiva as finalidades primordiais da punição – a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade [cfr. artigo 40º, n.º 1, do Código Penal].

No que tange concretamente à pena de multa, com interesse para o caso que nos ocupa, o legislador previu, além do mais que para aqui não releva, a faculdade de pagamento diferido no tempo ou em prestações, nos termos preconizados no artigo 47º, n.º 3, do Código Penal – “[s]empre que a situação económica e financeira do condenado o justificar, o tribunal pode autorizar o pagamento da multa dentro de um prazo que não exceda um ano, ou permitir o pagamento em prestações, não podendo a última delas ir além dos dois anos subsequentes à data do trânsito em julgado da condenação”.

Como sobressai do enunciado preceito legal, o legislador definiu o período temporal máximo pelo qual pode perdurar o pagamento em prestações, visando impedir que o pagamento da multa se prolongue de tal modo no tempo que o efeito preventivo da sanção se perca. Porém, não estabeleceu qualquer periodicidade mínima, deixando esta tarefa para o tribunal, que deverá decidir consoante as circunstâncias concretas do caso e não perdendo de vista o apontado desiderato das finalidades punitivas.

Posto isto, estando expressamente prevista a possibilidade de pagamento da multa penal em prestações e definido o limite temporal máximo, não se compreende a alegada necessidade de recorrer à analogia [cfr. artigo 10º do Código Civil] invocada pelo recorrente, uma vez que esta pressupõe a ausência de previsão legal, além de ser de aplicação excecional em direito penal [cfr. artigo 1º, n.º 3, do Código Penal]. Mas nem sequer se percebe o que é que, segundo a confusa alegação do recorrente, deve ser aplicado por analogia, supondo-se que se pretende reportar à dilatação do período temporal máximo do pagamento em prestações, mas que aquele não explicita.

Com suficiente clareza apenas se extrai do arrazoado recursivo que o recorrente entende que o quantitativo mensal que recebe a título de pensão é o seu único meio de subsistência, pelo que o valor das prestações fixado [implicitamente] pelo tribunal a quo é desproporcionado às suas necessidades, lançando-o numa situação de indignidade e violando os vários comandos constitucionais que indica.

Convém, antes de mais, esclarecer que o recorrente se encontra em cumprimento de uma pena de 22 anos de prisão, o que mitiga substancialmente as suas despesas de subsistência, que são asseguradas pelos serviços prisionais. Outrossim, importa sinalizar que o recorrente não quantifica as despesas que, ainda assim, suporta e também não indica qual o valor da pensão que recebe mensalmente.

De todo o modo, as despesas e o rendimento mencionados pelo recorrente não constam do despacho recorrido nem estão comprovadas nos autos, pelo que não podem ser consideradas por este tribunal de recurso.

Pugna o recorrente pela revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que autorize o pagamento nos moldes requeridos, ou seja, prestações mensais no valor de 1,00 € (um euro).

Ora, ascendendo a multa ao valor global de 990,00 € (novecentos e noventa euros), seriam necessários 990 meses, ou seja, mais de 80 anos para o seu pagamento, o que per se é bem demonstrativo do quão absurda é a pretensão do ora recorrente.

Ademais, como se viu, a lei estabelece que a última prestação não pode ir além dos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da condenação, que, in casu, ocorreu em 06.06.2024 [cfr. certidão datada de 10.02.2025 (referência 109865559) do processo principal, consultado eletronicamente].

Posto isto, importa aferir da correção do número de prestações fixado pelo tribunal a quo.

Baseando-se nas condições económicas do recorrente dadas como provadas na sentença e na sua situação pessoal à data da prolação do despacho – em cumprimento de uma pena de 22 anos de prisão –, atento o montante da pena de multa [990,00 €], entendeu tribunal a quo «não autorizar o pagamento em mais do que 15 (quinze) prestações mensais, iguais e sucessivas, para não desvirtuar o sentido da pena».

Efetivamente, “a multa enquanto sanção penal não pode deixar de ter um efeito preventivo e, portanto, não pode deixar de ter uma natureza de pena ou sofrimento, isto é, por outras palavras, não pode o condenado deixar de a «sentir na pele»”[13], regra que preside ao critério de determinação e de execução da mesma, nomeadamente, quando autorizado o pagamento em prestações. Este não pode deixar de constituir um sacrifício para o condenado, só assim dando cumprimento ao «princípio da igualdade de ónus e de sacrifícios, e promovendo, consequentemente, a eficácia preventiva da multa»[14], sob pena de se desvirtuarem as suas finalidades.

Como refere Figueiredo Dias, «… o único limite inultrapassável é constituído, em nome da preservação da dignidade da pessoa, pelo asseguramento ao condenado do nível existencial mínimo adequado às suas condições sócio económicas; tanto mais que o condenado tem sempre a possibilidade (em todo o caso político-criminalmente indesejável, e na verdade indesejada pela ordem jurídica) de não pagar a multa, sofrendo, todavia, nesse caso, os efeitos ou as sanções subsidiariamente cominados»[15].

Com efeito, a multa penal carateriza-se por uma enorme elasticidade, perfilando-se várias possibilidades para o condenado e etapas a percorrer, abrindo caminho a distintos desfechos, a saber:

- Sempre que a situação económica e financeira do condenado o justificar, o tribunal pode autorizar o pagamento da multa dentro de um prazo que não exceda um ano ou permitir o pagamento em prestações, em conformidade com o disposto no artigo 47º, n.º 3, do Código Penal;

- A requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por trabalho, nos termos previstos no artigo 48º, n.º 1, do Código Penal;

- Se a multa que não tenha sido substituída por trabalho não for paga voluntária ou coercivamente será cumprida prisão subsidiária, nos termos estabelecidos no artigo 49º, n.º 1, do Código Penal;

- Se o condenado culposamente não cumprir os dias de trabalho será cumprida prisão subsidiária, nos termos estipulados no artigo 49º, n.ºs 1 e 4 [1.ª parte], do Código Penal;

- Mas, se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa ou o não cumprimento dos dias de trabalho lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro, nos termos artigo 49º, n.ºs 3 e 4 [2.ª parte], do Código Penal.

Volvendo ao caso vertente, tendo a sentença transitado em julgado em 06.06.2024, a última prestação não podia ultrapassar os dois anos sobre aquela data, ou seja, 06.06.2026. Se o despacho recorrido foi proferido em 09.04.2025 e ali foi autorizado o «pagamento da pena de multa em apreço em 15 (quinze) prestações mensais, iguais e sucessivas, sendo que a primeira prestação deverá ser paga até ao dia 8 do mês subsequente à sua notificação ou no primeiro dia útil seguinte, quando aquele o não for, e as seguintes até ao correspondente dia dos meses seguintes», inevitavelmente será ultrapassado aquele limite temporal [06.06.2026].

Efetuada a imediata notificação do despacho ao condenado, a primeira prestação vencer-se-ia em maio de 2025 e a última teria que ser paga até 06.06.2026, não podendo, por isso, o número de prestações mensais autorizadas ir além das 14 (catorze).

O tribunal a quo violou, assim, o limite temporal máximo imposto pelo artigo 47º, n.º 3, do Código Penal para o pagamento da multa em prestações.

Todavia, por força do princípio da proibição da reformatio in pejus consagrado no artigo 409º do Código de Processo Penal, não pode este tribunal ad quem alterar o decidido, por ser prejudicial ao interesse do recorrente.

Aqui chegados, forçoso é concluir que, com exceção do predito n.º 3 do artigo 47º – no segmento referente ao limite temporal da última prestação –, o despacho recorrido não violou qualquer outro normativo legal ou qualquer princípio constitucional, maxime, os invocados pelo ora recorrente.

E, como se disse, o erro em que incorreu o tribunal a quo em nada prejudicou o recorrente, antes tendo redundado num indevido benefício.

Improcede, pois, também esta questão.


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            III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pelo condenado, ….


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            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta [artigos 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma].

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            Notifique.

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(Elaborado pela relatora, sendo revisto e assinado eletronicamente pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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Coimbra, 08 de julho de 2025

 Isabel Gaio Ferreira de Castro

[Relatora]

Fátima Calvo

[1.ª Adjunta]

Helena Lamas

 [2.º Adjunta]



[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e, nalguns casos, da ortografia utilizada, da responsabilidade da relatora.
[2] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 359
[3] In “Processo Penal - quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº 10, 2010, pág. 23
[4] Neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336.
[5] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
[6] Neste sentido, cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03.05.2016, acessível em http://www.dgsi.pt
[7] In Código de Processo Penal Anotado, 9ª Edição Revista e Atualizada, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 312
[8] Disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[9] Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, págs. 72 e 73
[10] Cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 223/98, 189/99, 396/2003, 391/2015 e 684/15, acessíveis in http://www.tribunalconstitucional.pt
[11] Neste sentido, veja-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.09.2017 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.10.2020, disponíveis para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[12] Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 197, para quem 'resta um amplo campo à discricionariedade legislativa em matéria de definição das penas'.
[13] Américo Taipa de Carvalho, in “As Penas no Direito Português após a Revisão de 1995”, Jornadas de Direito Criminal, Vol. II, Lisboa: CEJ, 1998, p. 24
[14] Vide Maria João Antunes, “Penas e Medidas de Segurança”, Coimbra: Almedina, 2018, pág. 48 e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04-02-2015 (Relator Vasques Osório, Processo n.º 194/13.5IDLRA.C1), disponível em www.dgsi.pt.
[15] In “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”,  págs. 119-120