I - A Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, que estabelece o regime de acesso ao direito e aos tribunais, visa possibilitar aos cidadãos economicamente débeis o exercício ou defesa dos seus direitos em tribunal, aplica-se em todos os tribunais, qualquer que seja a forma do processo, nos julgados de paz e noutras estruturas de resolução alternativa de litígios a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
II - O procedimento de protecção jurídica na modalidade de apoio judiciário é autónomo relativamente à causa a que respeite, é processado pela entidade administrativa com competência legal para o efeito, é autónomo relativamente à causa a que respeite e a decisão sobre a sua concessão compete ao dirigente máximo dos serviços de segurança social da área de residência ou sede do requerente.
III - Só há acto tácito positivo nos casos expressamente previstos por lei.
IV - O deferimento tácito do pedido de protecção jurídica é um acto constitutivo de direito.
V - O cancelamento é um incidente do procedimento de protecção jurídica, é um acto expresso, proferido posteriormente a um acto tácito e é, nesta medida, um acto revogatório, que compete aos serviços da segurança social que atribuíram o benefício.
VI - A prática de acto de indeferimento expresso, para além do prazo regularmente fixado, equivale a revogação do deferimento tácito entretanto ocorrido.
VII - No âmbito do apoio judiciário tem-se entendido que o acto tácito de deferimento do pedido formulado pode ser revogado, mesmo implicitamente, ou seja, por decisão de indeferimento do apoio judiciário que recai directamente sobre o requerimento inicial, como se não tivesse ocorrido aquele deferimento tácito e sem a este fazer menção, desde que se verifique algum dos pressupostos do cancelamento.
VIII - No âmbito do apoio judiciário, para obter a anulação do acto de indeferimento expresso, revogatório do acto de deferimento tácito constitutivo de direitos, o interessado tem que o impugnar, nos termos previstos nos artigos 27.º e 28.º da LAD, também aplicáveis à decisão de cancelamento.
I. - RELATÓRIO
1. No processo comum … a arguida … apresentou requerimento (referência Citius 11433435/50801023) com o seguinte teor [transcrição[1]]:
«1. Em 04.10.2023, foi a arguida condenada na multa processual de 2 UC´s (duas unidades de conta), por falta injustificada de comparecimento no julgamento - art.º 116.º, n.º 1 do Cód. proc. Penal;
2. Por douta sentença, já transitada em julgado, foi a arguida condenada no pagamento das custas do processo em 2 UC’s (duas unidades de conta) - artºs. 513º, nºs. 1 e 3, 514º, n.º 1, ambos do Cód, Proc. Penal e artº. 8º, n.º 9 do RCP;
3. Sucede que, em 23.10.2023, a arguida requereu junto da Segurança Social proteção jurídica, além do mais, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento da compensação de defensor oficioso (cfr. requerimento com a refª. 46885163;
4. Da informação junta aos autos com a refª. 11206488 de 09.10.2024, decorre que “a audiência prévia enviada em 04.03.2024, com o registo ...64..., converteu-se na decisão de indeferimento por falta de resposta por parte da requerente”;
5. Da pesquisa junto dos CTT resulta a informação “Devolvido – O envio foi entregue ao remetente. Processo de devolução terminado” – cfr. print que ora se junta como doc. n.º 1.
6. Pelo que a arguida não se encontra notificada de qualquer decisão relativa à requerida proteção jurídica, nem recebeu qualquer notificação anterior;
7. Assim, salvo o devido respeito, essa informação não corresponde à realidade;
8. Por outro lado, salvo melhor entendimento, não atento o lapso de tempo decorrido entre o pedido (23.10.2023), a alegada audiência previa (04.03.2024) já decorreram mais de 30 (trinta) dias sem que tenha sido proferida a decisão sobre o pedido de proteção jurídica, pelos referidos serviços da segurança social;
9. Pelo que, nos termos do disposto no n.º 2 do artº. 25, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, considera-se o benefício tacitamente deferido.
10. Requer, assim a V. Exª., que seja considerada totalmente deferida a dispensa do pagamento da taxa de justiça e custas processuais (artº. 25º, n.º 3 do citado diploma).
11. Porém, caso assim não se entenda, sempre se dirá que o valor global da conta ascende a € 660,00 € (seiscentos e sessenta euros), pelo que a arguida não consegue fazer face a tal pagamento numa única prestação;
12. Pois não dispõe de meios financeiros que lhe permitam liquidar o montante da aludida quantia de uma só vez, uma vez que como decorre da douta sentença, a arguida é solteira, encontra-se desempregada, subsiste com o rendimento social de inserção no valor mensal de € 200,00 (duzentos euros);
13. Sendo que é com tal valor que custeia as despesas de alimentação, vestuário, saúde e demais encargos inerentes à vida de hoje;
14. Não possuindo qualquer outra fonte de rendimento;
15. É pois manifestamente impossível fazer face ao pagamento da sobredita quantia de € 660,00 (seiscentos e sessenta euros) numa prestação única;
16. Pelo que, requer a V. Exª. se dignem admitir o pagamento do referido montante em prestações mensais, iguais e sucessivas.»
2. Em 16.01.2025, foi proferido despacho judicial (referência Citius 109534402) debruçando-se sobre o predito requerimento, que, na parte que ora importa, tem o seguinte teor [transcrição]:
«Requerimento sob a ref. citius 11433435, de 17.12.2024:
Nos termos do disposto no artigo 27.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho (acesso ao direito e aos tribunais), a impugnação judicial da decisão final sobre o pedido de protecção jurídica é intentada directamente pelo interessado e deve ser entregue no serviço de segurança social que apreciou o pedido de protecção jurídica, no prazo de 15 dias após o conhecimento da decisão, após o que o serviço de segurança social dispõe de 10 dias para revogar a decisão sobre o pedido de protecção jurídica ou, mantendo-a, enviar aquela e cópia autenticada do processo administrativo ao tribunal competente.
Perante o que antecede, nada compete a este Tribunal decidir quanto ao pedido de protecção jurídica efectuado pela arguida ….”»
3. Inconformada, a arguida veio interpor recurso, sendo a motivação rematada pelas seguintes conclusões e petitório [transcrição[2]]:
«1ª- Vem o presente recurso interposto da douta decisão/despacho (refª. 109534402) proferida pela Mmª. Juiz do Tribunal a quo nos autos à margem identificados, na parte da mesma que indeferiu o pedido de reconhecimento da formação de ato tácito de deferimento da proteção jurídica, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
2ª- Entende a recorrente, que o Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação da Lei n.º 34/2004, de 29/09, incorrendo em erro de julgamento.
3ª- Consta dos autos, o pedido de apoio judiciário ocorreu 23.10.2023, e que a arguida não foi notificada para qualquer audiência prévia, da mesma forma que não foi relativamente à decisão final proferida pela Segurança Social, pelo que não poderia responder à proposta de indeferimento em sede de audiência prévia, nem tão pouco impugnar judicialmente a decisão final sobre o pedido de proteção jurídica.
4ª- E o Tribunal a quo deveria conhecer os factos supra.
5ª- O artigo 25º, nº 1 da Lei 34/2004 de 29/07, dispõe que, decorrido o prazo de 30 dias, sem que tenha sido proferida decisão, considera-se tacitamente deferido e concedido o pedido de proteção jurídica, sendo suficiente para a formação do ato tácito a mera menção em Tribunal.
6ª- Constata-se nos autos, que a Segurança Social ultrapassou o prazo de 30 dias consagrado no artigo 25º da Lei 34/2004 de 29/07, o qual é contínuo, pelo que deveria ser reconhecida a formação do ato tácito de deferimento da proteção jurídica de pessoa singular.
7ª- Sem conceder, ainda que o prazo para entregar a impugnação judicial se conte a partir do conhecimento da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário, o certo é que, decorrido mais de um ano desde o início do pedido, a arguida continua sem poder tomar qualquer decisão sobre o que nunca recebeu.
8ª- Pelo que, ressalvando o devido respeito e melhor opinião, no presente caso, tinha o Tribunal a quo competência para apreciar as questões da formação de ato tácito e da possibilidade de revogação de ato tácito sem ser apenas em sede de impugnação judicial, pelo que a decisão proferida não acautela devidamente o direito de acesso aos Tribunais, violando o artº. 20º da CRP.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso, anulando-se em consequência a decisão recorrida, e substituída por outra que reconheça a formação do ato tácito, como se propugna nas conclusões supra, assim se fazendo a necessária e costumada
JUSTIÇA!»
4. O Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta ao recurso, pugnando pela manutenção do despacho recorrido.
5. Neste Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentado parecer no sentido de que o recurso interposto pela arguida deve ser julgado improcedente, …
6. A arguida não apresentou resposta ao sobredito parecer.
7. Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
II. – FUNDAMENTAÇÃO
…
2. Apreciação do recurso
…[3].
2.2. Mediante o recurso em análise insurge-se a ora recorrente contra o despacho proferido pelo tribunal a quo que indeferiu o seu pedido de reconhecimento da formação de ato tácito de deferimento do pedido de proteção jurídica que havia formulado junto dos serviços da Segurança Social.
Alega a recorrente, em síntese: o pedido de apoio judiciário ocorreu 23.10.2023, não foi notificada para qualquer audiência prévia, da mesma forma que não foi relativamente à decisão final proferida pela Segurança Social, pelo que não poderia responder à proposta de indeferimento em sede de audiência prévia, nem tão pouco impugnar judicialmente a decisão final sobre o pedido de proteção jurídica, factos que o tribunal a quo deveria conhecer; a Segurança Social ultrapassou o prazo de 30 dias consagrado no artigo 25º da Lei 34/2004, de 29/07, pelo que deveria ser reconhecida a formação do ato tácito de deferimento da proteção jurídica de pessoa singular, bastando a mera menção em Tribunal; ainda que o prazo para entregar a impugnação judicial se conte a partir do conhecimento da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário, o certo é que, decorrido mais de um ano desde o início do pedido, continua sem poder tomar qualquer decisão sobre o que nunca recebeu, pelo que tinha o tribunal a quo competência para apreciar as questões da formação de ato tácito e da possibilidade de revogação de ato tácito sem ser apenas em sede de impugnação judicial; a decisão proferida não acautela devidamente o direito de acesso aos Tribunais, violando o artigo 20º da CRP.
Vejamos, antes de mais, o quadro processual em que nos movemos:
- Em 23.10.2023, a arguida formulou o pedido de concessão de proteção jurídica junto dos Serviços de Segurança Social;
- Em 09.10.2024, a Segurança Social remeteu aos autos a seguinte informação:
«A audiência previa enviada em 04/03/2024, com o registo RFf ...64 PT, converteu se na decisão
de indeferimento por falta de resposta por parte da requerente.
(…) o pedido de proteção jurídica à margem referido, formulado em 23-10-2023 por …, foi objeto de proposta de indeferimento em sede de audiência prévia, sem que tenha sido apresentada resposta, pelo que aquela proposta se converteu em decisão definitiva de INDEFERIDO sem resposta após decorrido prazo legal, nos termos do art. 23.º, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, pela Lei n.º 40/2018, de 08 de Agosto e pelo Decreto-Lei n.º 120/2018, de 27 de Dezembro.
Mais se informa V. Ex.ª que a referida decisão não foi objeto de impugnação.»
- Do documento junto pela ora recorrente com o seu requerimento de 17.12.2024 consta que o registo RFf ...64 PT não foi levantado no ponto de levantamento dos CTT, razão pela qual foi devolvido ao remetente.
Posto isto, atentemos no quadro legal em que se inscreve a questão objeto de recurso.
O espírito do instituto do apoio judiciário, consagrado, quer na lei constitucional, quer na lei ordinária – cfr. artigos 20º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 1º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29.07 [que estabelece o regime de acesso ao direito e aos tribunais, doravante abreviadamente designada LAD (Lei do Acesso ao Direito)] –, é de possibilitar aos cidadãos economicamente débeis que exerçam ou defendam os seus direitos em Tribunal sem que se vejam, de algum modo, coartados pela sua condição financeira deficitária, e não desonerar todo e qualquer cidadão das despesas judiciais a que dê origem.
Dispõe o artigo 17º, n.º 1, da LAD que o regime do apoio judiciário se aplica em todos os tribunais, qualquer que seja a forma do processo, nos julgados de paz e noutras estruturas de resolução alternativa de litígios a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
Nos termos daquele regime, o procedimento de proteção jurídica na modalidade de apoio judiciário é autónomo relativamente à causa a que respeite (artigo 24.º) e a decisão sobre a concessão de proteção jurídica compete ao dirigente máximo dos serviços de segurança social da área de residência ou sede do requerente (artigo 20.º).
O apoio judiciário não é, assim, um incidente de um processo judicial, estatuindo o artigo 37º que “são aplicáveis ao procedimento de concessão de protecção jurídica as disposições do Código do Procedimento Administrativo em tudo o que não esteja especialmente regulado na presente lei”.
Estamos, assim, perante um procedimento administrativo, processado e decidido por uma entidade administrativa dotada de competência legal para ambos os efeitos. Como tal, os atos praticados nesse procedimento não são atos de um processo judicial, não são atos judiciais, são atos de um procedimento administrativo, no qual o pedido é tramitado, apreciado e decidido[4].
Dispõe o artigo 25º, nos seus n.ºs 1 e 2, da LAD: “1. O prazo para a conclusão do procedimento administrativo e decisão sobre o pedido de protecção jurídica é de 30 dias, é contínuo, não se suspende durante as férias judiciais (…)”. 2. Decorrido o prazo referido no número anterior sem que tenha sido proferida uma decisão, considera-se tacitamente deferido e concedido o pedido de protecção jurídica. (…)”.
Por seu turno, o artigo 130º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código de Procedimento Administrativo vigente – aprovado pelo Decreto-Lei 4/2015, de 07.01, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 72/2020, de 16.11 e pelo DL n.º 11/23, de 10.02, doravante referido abreviadamente como CPA – estabelece: “1 - Existe deferimento tácito quando a lei ou regulamento determine que a ausência de notificação da decisão final sobre pretensão dirigida a órgão competente dentro do prazo legal tem o valor de deferimento. 2 - Considera-se que há deferimento tácito se a notificação do ato não for expedida até ao primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo da decisão. 3 - O prazo legal de produção de deferimento tácito suspende-se se o procedimento estiver parado por motivo imputável ao interessado e só se interrompe com a notificação de decisão expressa.”
Como decorre com clareza da expressão normativa enunciada, atualmente[5] a regra é a de que só há ato tácito positivo e este só existe nos casos expressamente previstos por lei.
A lei atribui ao silêncio da Administração sobre o pedido perante esta formulado o significado de ato tácito positivo. O pressuposto essencial da formação do ato tácito é, pois, o silêncio ou abstenção da entidade administrativa de decidir no prazo fixado pela lei, sendo, por isso, também denominado de ato silente.
Mas a caraterização da natureza de tal ato não é pacífica, perfilando-se, essencialmente, duas correntes.
Há quem sustente que se trata de um ato administrativo voluntário, com manifestação tácita de vontade, ou relativamente ao qual a lei presume a existência de uma vontade da Administração. Marcello Caetano[6] ensinava que essa manifestação resulta de uma presunção legal iuris et de iure: a lei, em certas circunstâncias, manda interpretar a passividade ou o silêncio de um órgão administrativo como significando o deferimento do pedido sobre o qual ele tinha obrigação de se pronunciar.
E há quem defenda que o deferimento tácito traduz uma ficção legal de ato administrativo, ao qual é aplicado o regime jurídico dos atos administrativos. Esta posição é, atualmente, maioritária e mostra-se consonante com a própria evolução legislativa na matéria. Neste sentido, entre outros, Diogo Freitas do Amaral[7], Luís Cabral de Moncada[8] e João Tiago Silveira[9], explicando este último: «[o] deferimento tácito é o ato ficcionado através do qual se concede ao particular, nos casos e condições legalmente previstas, o correspondente à sua pretensão, na sequência do decurso de um lapso temporal sem que a Administração se tenha pronunciado sobre a mesma. (…) não será um verdadeiro ato administrativo, mas antes um facto jurídico [o silêncio] ao qual, por meio de uma ficção legal, é aplicado o regime jurídico desse ato administrativo».
Independentemente da sobredita caraterização dogmática, o que é essencial é que se verifiquem os pressupostos preconizados na lei. Assim, à luz do atual CPA, são as seguintes as condições gerais de produção do ato tácito[10]:
- Que o órgão da Administração competente seja legalmente solicitado por um interessado a pronunciar-se num caso concreto (CPA, art.º 130.º, n.º 1);
- Que o órgão tenha, sobre a matéria em causa, o dever legal de decidir através de um ato administrativo (v. n.º 2 do art.º 13.º do CPA);
- Que tenha decorrido o prazo legal (contado nos termos do art.º 87.º do CPA) sem que haja sido tomada uma decisão expressa sobre o pedido (CPA, art.ºs 128.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, e 130.º, n.ºs 2 e 3); e
- Que a lei (ou um regulamento) atribua ao silêncio da Administração, durante esse prazo, o significado jurídico de deferimento.
Porém, a formulação do n.º 1 do artigo 130.º do CPC não estabelece uma regra única sobre a formação do ato tácito, limitando-se a esclarecer que cada caso de deferimento tácito depende de específica previsão legal[11], variando, assim, o respetivo regime consoante os concretos termos dessa previsão, nomeadamente, no que respeita ao prazo para a Administração decidir.
Daí que o prazo será “contado nos termos do art.º 87.º do CPA”, sem prejuízo, naturalmente, de determinação de lei especial em contrário, como sucede no caso em apreço, em que artigo 25.º, n.º 1, da LAD refere expressamente que “[o] prazo para a conclusão do procedimento administrativo e decisão sobre o pedido de proteção jurídica é de 30 dias, é contínuo, não se suspende durante as férias judiciais”.
No caso vertente, a ora recorrente formulou o pedido de proteção jurídica em 23.10.2023, pelo que não se tendo os serviços de segurança social pronunciado no predito prazo legal de 30 (trinta) dias previsto para o efeito, e não emergindo dos autos qualquer circunstância com virtualidade suspensiva [cfr. artigos 8º-B, n.º 3, da LAD e 130º, n.º 3, do CPA], ocorreu o deferimento tácito do mesmo, em consonância com o estabelecido nos artigos 25º, n.º 2, da LAD e 130º, n.º 2, do CPA.
Nos termos do n.º 3 do artigo 25º da LAD, “é suficiente a menção em tribunal da formação do acto tácito”. Pretendendo o interessado prevalecer-se do mesmo, deve fazer menção do facto junto do tribunal com vista à sua verificação e reconhecimento. Por seu turno, não cumprindo os serviços da Segurança Social o dever de informação a que alude o n.º 5 do artigo 25º, deve o tribunal confirmar junto daqueles serviços a formação do ato tácito, devendo tais serviços responder no prazo máximo de dois dias úteis, nos termos preconizados no n.º 4.
Porém, a ora recorrente não fez então menção junto do tribunal da formação do ato tácito de deferimento, só vindo a efetuá-la aproximadamente um ano mais tarde, em 17.12.2024, no requerimento sobre o qual recaiu o despacho recorrido.
Ocorre que, entretanto, foi comunicada aos autos decisão de sentido contrário.
Efetivamente, em 09.10.2024, o Instituto de Segurança Social informou o tribunal que em 04.03.2024 expediu o ofício com o registo postal RFf ...64 PT, com vista à audiência prévia sobre a proposta de indeferimento do pedido formulado pela ora recorrente, que não foi levantado no ponto de levantamento dos CTT, razão pela qual foi devolvido ao remetente.
Segundo o artigo 111º do CPA, as notificações são efetuadas na pessoa do interessado, salvo quando este tenha constituído mandatário no procedimento, caso em que devem ser efetuadas a este, devendo, num caso e noutro, os interessados ou os mandatários comunicar ao responsável pelo procedimento quaisquer alterações dos respetivos domicílios que venham a acorrer na pendência do procedimento. Podem ser efetuadas, além do mais, por carta registada, dirigida para o domicílio do notificando ou, no caso de este o ter escolhido para o efeito, para outro domicílio por si indicado [art.º 112.º, n.º 1 al. a)], a qual se presume efetuada no terceiro dia útil posterior ao registo ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando esse dia não seja útil [art.º 113º].
Volvendo ao caso em apreço, tendo-se verificado a devolução da correspondência com a indicação de não ter sido entregue por falta de levantamento no posto de entrega dos CTT, a notificação dirigida à ora recorrente presume-se efetuada no terceiro dia posterior ao do registo, não tendo sido ilidida tal presunção.
Estatui o artigo 23º da Lei n.º 34/2004: “1 - A audiência prévia do requerente de protecção jurídica tem obrigatoriamente lugar, por escrito, nos casos em que está proposta uma decisão de indeferimento, total ou parcial, do pedido formulado, nos termos do Código do Procedimento Administrativo. 2 - Se o requerente de protecção jurídica, devidamente notificado para efeitos de audiência prévia, não se pronunciar no prazo que lhe for concedido, a proposta de decisão converte-se em decisão definitiva, não havendo lugar a nova notificação. 3 - A notificação para efeitos de audiência prévia contém expressa referência à cominação prevista no número anterior, sob pena de esta não poder ser aplicada”.
Sendo de considerar notificada a ora recorrente para efeito de audiência prévia, sobre a proposta de decisão de indeferimento, com a advertência de que se não se pronunciasse no prazo concedido aquela proposta se convertia em decisão definitiva, sem que se tenha efetivamente pronunciado, tal proposta converteu-se em decisão definitiva, não havendo lugar a nova notificação.
Houve, assim, uma manifestação expressa por parte da Segurança Social quanto ao sentido substancial, ao mérito, da decisão, que se cristalizou como definitiva em virtude da inércia da ora recorrente quanto ao exercício do contraditório, em consonância com o estabelecido no citado artigo 23º da LAD.
Esta decisão expressa de indeferimento do pedido de proteção jurídica é muito posterior à formação do ato tácito de deferimento da mesma pretensão e é de sentido antagónico.
Note-se que tal decisão, proferida a destempo, recaiu sobre a pretensão formulada no requerimento inicial, como se não tivesse ocorrido deferimento tácito, desconsiderando por completo as anteditas normas que preveem a formação e as consequências daquele ato, que nem sequer foram mencionados.
Ora, quer se entenda o deferimento tácito como ato administrativo voluntário ou como ficção legal, aplicam-se-lhe as normas do ato expresso (ressalvadas aquelas que se tornam de aplicação impossível, como as relativas à forma, formalidades e consequências da falta de observância das mesmas) que permitem a sua revogação ou anulação.
Dispõe o artigo 165º, n.º 1, do CPA: “1 - A revogação é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade. 2 - A anulação administrativa é o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”.
Por conseguinte, a revogação consiste na extinção de todos ou parte dos efeitos de um ato administrativo, provocada por um novo ato administrativo que se pratica, explicita ou implicitamente, com fundamento em inoportunidade ou inconveniência do primeiro ou dos seus efeitos[12]. Especificamente, com interesse para o caso em observação, o ato de indeferimento tem um conteúdo revogatório do ato tácito anterior já que produz, para a mesma situação concreta, efeitos incompatíveis com os do ato administrativo anterior, não podendo subsistir os dois no ordenamento jurídico e produzir, em simultâneo, os seus efeitos. Há aqui uma contrariedade relativa à mesma situação concreta, revelando-se a contradição no próprio conteúdo da segunda decisão e sendo ambas fruto da mesma competência.
Porém, o artigo 167º estipula:
“1 - Os atos administrativos não podem ser revogados quando a sua irrevogabilidade resulte de vinculação legal ou quando deles resultem, para a Administração, obrigações legais ou direitos irrenunciáveis.
2 - Os atos constitutivos de direitos só podem ser revogados:
a) Na parte em que sejam desfavoráveis aos interesses dos beneficiários;
b) Quando todos os beneficiários manifestem a sua concordância e não estejam em causa direitos indisponíveis;
c) Com fundamento na superveniência de conhecimentos técnicos e científicos ou em alteração objetiva das circunstâncias de facto, em face das quais, num ou noutro caso, não poderiam ter sido praticados;
d) Com fundamento em reserva de revogação, na medida em que o quadro normativo aplicável consinta a precarização do ato em causa e se verifique o circunstancialismo específico previsto na própria cláusula.
3 - Para efeitos do disposto na presente secção, consideram-se constitutivos de direitos os atos administrativos que atribuam ou reconheçam situações jurídicas de vantagem ou eliminem ou limitem deveres, ónus, encargos ou sujeições, salvo quando a sua precariedade decorra da lei ou da natureza do ato.”
Como bem observa Freitas do Amaral[13], «o legislador considera que são de revogação condicionada – isto é, só possível dentro de certas condições – os “atos constitutivos de direitos”. (…) Para este efeito, consideram-se «constitutivos de direitos» os atos administrativos que atribuam ou reconheçam situações jurídicas de vantagem ou eliminem ou limitem deveres, ónus, encargos as sujeições, salvo quando a sua precariedade decorra da lei ou da natureza do ato (CPA, art.º 167.º, n.º 3).
Assim, de acordo com a lei, esses atos atribuíram posições jurídicas subjetivas de vantagem a particulares (direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos). A partir desse momento, as pessoas a quem tais posições jurídicas foram conferidas têm o direito de poder confiar na palavra dada pelos órgãos administrativos e têm o poder de desenvolver a sua vida jurídica com base nas posições jurídicas de que são legitimamente titulares. Efetivamente, e como sublinha Gomes Canotilho, o princípio da confiança (que se filia, em última análise, no princípio do Estado de Direito, consagrado, genericamente no art.º 2.º da Constituição de 1976), postula que os cidadãos têm o direito de poder confiar em que às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos ou posições jurídicas, alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas, se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos por essas normas».
A irrevogabilidade dos atos constitutivos de direitos é, nas palavras de José Robin de Andrade[14], “o corolário lógico do princípio da intangibilidade da esfera dos direitos individuais”.
Ora, o deferimento tácito do pedido de proteção jurídica integra, inquestionavelmente, a previsão legal, assim densificada, de ato constitutivo de direito, favorável ao interesse da interessada, ora recorrente.
Percorrendo o elenco taxativo[15] de situações previstas no enunciado n.º 2 do artigo 167º em que pode ocorrer a revogação de atos constitutivos de direitos, nenhuma contempla a supra descrita.
Contudo, a LAD prevê regras especiais para a revogação da proteção jurídica, que se encontram plasmadas nos artigos 10º e 13º.
Com efeito, nos termos do artigo 10º, n.º 1, a proteção jurídica é cancelada se ocorrer algumas das situações ali descriminadas, que podem ser agrupadas do seguinte modo: alteração das circunstâncias (de insuficiência económica) que fundamentaram a concessão do benefício [alíneas a) e e)]; conhecimento superveniente, por novos documentos ou pela declaração de falsidade dos que fundamentaram a concessão do benefício, da falta de fundamento (insuficiência económica) da concessão do benefício [alíneas b) e c)]; razões externas ao fundamento de concessão do benefício (insuficiência económica), relacionadas com ato censurável do beneficiário (litigância de má fé e incumprimento do benefício concedido).
O cancelamento é um incidente do procedimento de proteção jurídica, competindo, como tal, aos serviços da segurança social que atribuíram o benefício – pode ser determinado oficiosamente ou por requerimento do Ministério Público, da Ordem dos Advogados, da parte contrária, do patrono nomeado ou do agente de execução atribuído [n.º 3 do artigo 10.º], e o requerente de proteção jurídica é sempre ouvido [n.º 4 do mesmo artigo e diploma].
Trata-se, nas palavras de Salvador da Costa[16], de «um incidente cujo objeto é a revogação da proteção jurídica».
Retornando ao acaso dos autos, não houve nenhum incidente de cancelamento da proteção jurídica que havia sido deferida tacitamente, nem a decisão de indeferimento a este deferimento tácito faz referência.
Não obstante, é inquestionável que a decisão de indeferimento proferida posteriormente revogou implicitamente o deferimento tácito do pedido de apoio judiciário.
Com efeito, um ato expresso de sentido contrário, proferido posteriormente a um ato tácito é, nesta medida, um ato revogatório. Concretamente, a prática de ato de indeferimento expresso, para além do prazo regularmente fixado, equivale a revogação do deferimento tácito entretanto ocorrido.
A doutrina[17] e a jurisprudência[18] admitem a possibilidade de revogação implícita de atos administrativos – nomeadamente, de atos tácitos positivos –, a qual ocorre quando o ato revogatório, não fazendo referência ao ato revogado, gera efeitos incompatíveis com este.
Explicita-se no acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 21.01.2021, processo 11726/14:
«Quando a destruição ou cessação dos efeitos resultar de um novo acto relativo à mesma situação concreta, de conteúdo ou efeitos incompatíveis com o conteúdo ou efeitos de outro acto anterior, sem declaração revogatória ou explícita referência ao acto revogado, estamos perante uma revogação implícita. O que caracteriza o acto revogatório implícito é precisamente a falta de declaração expressa da intenção de revogar - isto é, o mesmo não contém qualquer referência ao acto anterior -, a qual, no entanto, é implícita, resultando da incompatibilidade com o acto anterior, ou seja, na revogação implícita existe a intenção de revogar acto anterior, mas tal vontade é implícita.
A admissibilidade da revogação implícita, por incompatibilidade, impõe-se por si como um modo de assegurar a harmonia, a coerência e a eficiência do sistema, que não pode consentir a vigência de duas decisões administrativas que se chocam entre si, mormente quando esteja em causa a definição de situações jurídicas individuais.»
Especificamente no âmbito do apoio judiciário, tem-se entendido que o ato tácito de deferimento do pedido formulado pode ser revogado, mesmo implicitamente – ou seja, por decisão de indeferimento do apoio judiciário que recai diretamente sobre o requerimento inicial, como se não tivesse ocorrido aquele deferimento tácito e sem a este fazer menção –, desde que se verifique algum dos pressupostos do cancelamento.
Porém, a revogação implícita apenas será válida se respeitar os requisitos da revogação explícita, preconizados no artigo 167.º do CPA.
A este respeito, assinala Salvador da Costa[19] «essa ficção em que se traduz o deferimento tácito do pedido de proteção jurídica não se sobrepõe em regra, à concreta decisão dos serviços de segurança social no sentido do seu indeferimento».
Em idêntico sentido se decidiu no recente acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 14.01.2025, proferido no processo 2491/23.2T8ACB-B.C1, no qual se afirma «[e]xistiu, pois, uma decisão expressa de indeferimento. Esta decisão constitui uma revogação implícita do deferimento tácito apenas decorrente do decurso do tempo. (…) esta decisão ulterior deve, em abono da verdade material e da realização da justiça, relevar e sobrepor-se ao deferimento tácito oriundo do mero decurso do tempo». E no sumário consignou-se o seguinte: «No domínio da proteção jurídica, e em abono da verdade e da justiça material, a decisão tácita oriunda do mero decurso do tempo – artº 25º nº2 da Lei 34/2004, de 29.07 - pode ser revogada, expressa ou implicitamente, por ulterior decisão adrede proferida, nos termos do artºs 167º nº 2 al. b) do CPA aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 07.1. e do artº 10º nº1 als. a) e b) Lei 34/2004, aplicáveis a acervo factual análogo».
A situação analisada neste acórdão é idêntica à retratada nos presentes autos – já depois de decorrido o prazo legal para se pronunciar sobre o requerimento de apoio judiciário, a Segurança Social formulou um juízo de improcedência do pedido e notificou a requerente para a audiência prévia, a que esta faltou, pelo que aquela entidade converteu a sua proposta de indeferimento em indeferimento definitivo.
Concordamos que o deferimento tácito pode ser revogado, ainda que implicitamente, pela decisão expressa de indeferimento, mas afigura-se-nos que tal não pode ocorrer sem mais.
Com efeito, focando-nos no caso vertente, o ato [expresso] de indeferimento do requerimento de apoio judiciário não faz qualquer referência ao ato tácito de deferimento que se havia validamente formado. Tal ato de indeferimento implicitamente revogou o benefício tacitamente concedido – já que sobre o mesmo pedido produziu uma decisão contrária e incompatível –, mas foi proferido sem que se verificasse qualquer das situações tipificadas na lei como pressuposto da revogação ou cancelamento, que nem sequer menciona, e sem observar o procedimento próprio para o efeito, fazendo tábua rasa daquele e, por isso, viola a lei.
A violação de lei é «o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objeto do ato e as normas jurídicas que lhes são aplicáveis»; «configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei»; falta «correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age»[20].
Estipula o artigo 153º, n.º 1, do CPA que “são anuláveis os atos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção”. Por seu turno, estabelece o artigo 161º, n.º 1, que “são nulos os atos para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade”, designadamente, os elencados nas diversas alíneas do n.º 2 do mesmo preceito.
O antedito ato de indeferimento expresso que implicitamente revogou o deferimento tácito fora das condições legais para o efeito não integra a previsão de nenhuma das referidas alíneas, nem está cominado de nulidade em qualquer outro normativo legal.
Ensinava Freitas do Amaral[21]: «a regra no Direito Administrativo português é de que um ato administrativo inválido é anulável; só excecionalmente – isto é, nos casos expressamente previstos na lei – é que o ato inválido é nulo»; «se ao fim de um certo prazo ninguém pedir a sua anulação, nem o mesmo for anulado por iniciativa da própria Administração, ele converte-se num ato válido, isto é, fica sanado».
Portanto, a destruição dos efeitos do ato administrativo anulável exige a anulação do ato por decisão proferida pelos tribunais administrativos ou pela própria Administração, na sequência de impugnação perante a própria Administração ou perante o tribunal administrativo competente, dentro dos prazos legalmente estabelecidos (sem prejuízo da possibilidade de anulação oficiosa pela Administração) – n.ºs 2 e 3 do artigo 163.º do CPA.
Ainda seguindo os ensinamentos do citado autor, sendo o ato anulável, o mesmo produz efeitos jurídicos como se fosse válido até ao momento em que seja anulado; a anulabilidade é sanável; o ato anulável é obrigatório enquanto não for anulado; apenas pode ser impugnado dentro de certo prazo, normalmente curto; o pedido de anulação só pode ser feito perante um tribunal administrativo. Diferente seria se o ato fosse nulo, pois nesse caso não produziria quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade (n.º 1 do artigo 162.º do CPA); e a nulidade seria invocável a todo o tempo por qualquer interessado e poderia, também a todo o tempo, ser conhecida por qualquer autoridade ou tribunal (e não apenas pelos tribunais administrativos ou pelos órgãos administrativos competentes para a anulação) – n.º 2 do artigo 162.º do CPA. Quando conhecido por qualquer autoridade ou tribunal, «está em causa um conhecimento incidental da nulidade do ato, que tem como consequência a desconsideração dos seus efeitos numa dada situação e apenas com referência a essa situação».
Na situação em análise o ato é meramente anulável, e não nulo.
No âmbito do apoio judiciário, para obter a anulação do ato de indeferimento expresso, revogatório daqueloutro [de deferimento tácito] constitutivo de direitos, o interessado tem que o impugnar, nos termos previstos nos artigos 27º e 28º da LAD, também aplicáveis à decisão de cancelamento, por via do preceituado no artigo 12.º da mesma lei.[22]
Sucede, porém, que a ora recorrente não lançou mão da impugnação judicial, junto do serviço de Segurança Social, no prazo de 15 dias a contar da data em que se considera notificada da decisão de indeferimento, resultante da conversão da proposta nesse sentido em definitiva nos moldes supra explicitados. Preterindo esta formalidade, impediu aquele serviço administrativo de a reapreciar, revogando-a ou mantendo-a, e, neste caso, enviando a impugnação e cópia autenticada do processo administrativo ao tribunal competente para apreciação (art. 27º, nºs 1 e 3, da LAD).
Largamente ultrapassado aquele prazo, a ora recorrente suscitou indevidamente, por forma imprópria, a questão perante o tribunal recorrido. Não reagiu à posição daqueles serviços pela forma processual adequada e chamou diretamente a decidir sobre a questão o tribunal, entidade com competência apenas para apreciar, de forma irrecorrível, tal matéria através da impugnação judicial (artigo 28º, n.º 5, da LAD).
E, nessa medida, o despacho judicial recorrido é correto.
Cumpre, finalmente, referir que o sobredito entendimento não viola qualquer normativo constitucional, designadamente, o invocado pela recorrente [artigo 20º da Constituição da República Portuguesa], nem esta, aliás, explicita de que forma.
Como decorrência, improcede a pretensão recursiva da recorrente.
Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pela arguida …, confirmando o despacho recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta [artigos 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma].
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(Elaborado pela relatora, sendo revisto e assinado eletronicamente pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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Coimbra, 08 de julho de 2025
Isabel Gaio Ferreira de Castro
[Relatora]
Helena Lamas
[1.ª Adjunta]
Fátima Sanches
[2.º Adjunta]
[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e, nalguns casos, da ortografia utilizada, da responsabilidade da relatora.
[2] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e, nalguns casos, da ortografia utilizada, da responsabilidade da relatora.
[3] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061.
[4] Neste sentido, cfr. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.03.2025, disponível in www.dgsi.pt, tal como os demais doravante citados sem expressa menção de fonte de consulta.
[5] Ao contrário do que sucedia no anterior Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo DL n.º 442/91, de 15.11, que contemplava o ato tácito de efeito negativo
[6] Vide Manual de Direito Administrativo, Vol. I (10ª ed.), pág. 474
[7] In Curso de Direito Administrativo, II, 3.ª edição, Almedina, 2016, pág. 300 a 302
[8] In Código do Procedimento Administrativo Anotado, 4.ª ed. Revista e Atualizada, Quid Juris, 2022, págs.458-459
[9] In O deferimento tácito, Coimbra Editora, 2004, págs. 94-102
[10] Cfr. Diogo Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, loc. citado
[11] Vide João Caupers e Vera Eiró, Introdução ao Direito Administrativo, 12.ª ed., Âncora, 2016, pág. 369.
[12] Vide Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, “Código do Procedimento Administrativo”, Comentado, 2.ª edição, pág. 667
[13] Ob. e loc. citados
[14] In “A Revogação dos Actos Administrativos”, pág. 92
[15] Neste sentido, vide Fernando Gonçalves et al., Novo Código do Procedimento Administrativo Anotado e Comentado, 8.ª ed., Almedina, 2023, p. 470; Cabral de Moncada, Código do Procedimento Administrativo Anotado, cit., pág. 621
[16] In Apoio Judiciário, 10.ª ed., Almedina, 2021, pág. 42
[17] Vide Cabral Moncada, ob. cit., p. 611; José Osvaldo Gomes, Revogação implícita de actos tácitos positivos, Lisboa, Sep. BMJ 294, 1980, do mesmo autor, «Acto Tácito de Deferimento - Revogação Implícita», Revista da Ordem dos Advogados, A. 46, I, abril 1986), Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, cit., págs. 667 a 669, Robin de Andrade, A Revogação dos Actos Administrativos, 2.ª ed., 1985, págs. 37 a 40
[18] Cfr., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 04.10.2021, do Tribunal Central Administrativo do Norte de 07.05.2021, processo 00643/17.3BEPNF e do Tribunal Central Administrativo do Sul de 21.01.2021, processo 1512/20.5BELSB, e de 05.07.2017, processo 10240/13.7BCLSB-A.
[19] Obra citada, pág. 89
[20] Freitas do Amaral, Manual…, cit., págs. 345-346
[21] Ob. cit., pág. 357 e segs.
[22] Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.12.2023, processo 6113/19.8T8LRS-B.L1-2, e demais jurisprudência aí citada.