CIBERCRIME
PESQUISA E APREENSÃO DE MENSAGENS DE CORREIO ELETRÓNICO OU REGISTOS DE NATUREZA SEMELHANTE EM TELEMÓVEL
INTERESSES PÚBLICOS DE COMBATE À CRIMINALIDADE E DA REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA PROSSEGUIDOS PELA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
PODERES DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO DOMÍNIO DA UTILIZAÇÃO DA INFORMÁTICA LIMITADA À CRIMINALIDADE GRAVE
Sumário

I - A pesquisa e posterior apreensão das mensagens de correio eletrónico ou registos de natureza semelhante que se encontrem no telemóvel apreendido pode constituir uma ingerência grave na vida privada, afetando restritivamente os direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e sigilo das comunicações (artigo 34.º, n.ºs 1 e 4, da CRP), e à proteção dos dados pessoais, no domínio da utilização da informática (artigo 35.º, n.ºs 1 e 4 da Lei Fundamental), enquanto manifestações particular e intensamente tuteladas da reserva de intimidade da vida privada (n.º 1 do artigo 26.º da CRP).
II - Não sofre, no entanto, dúvida de que os interesses públicos de combate à criminalidade e da realização da justiça prosseguidos pela investigação criminal constituem razões legítimas para uma afetação restritiva dos direitos fundamentais, que deve limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP).
III - Sem prejuízo, considerar que só a luta contra a criminalidade grave é suscetível de justificar o acesso a dados contidos num telemóvel limitaria indevidamente os poderes de investigação criminal, aumentando o risco de impunidade relativamente às infrações penais em geral.
IV - Considerar que só a luta contra a criminalidade grave é suscetível de justificar o acesso a dados contidos num telemóvel limitaria indevidamente os poderes de investigação criminal, aumentando o risco de impunidade relativamente às infrações penais em geral.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


*

Acordam, em conferência, na 5ª secção, do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. Por despacho judicial datado de 19.12.2024, o Mm.o Juiz de Instrução não autorizou a pesquisa e posterior apreensão das mensagens de correio eletrónico ou registos de natureza semelhante que se encontrem no telemóvel apreendido nos autos, em quaisquer dispositivos de memória a estes ligados (cartões SIM, cartões de memória) e em quaisquer contas (de email, de redes sociais) armazenadas em servidores remotos requerida pelo Ministério Público.

2. Inconformado, recorreu o Ministério extraindo da motivação de recurso as seguintes conclusões:

«1. Vem o presente recurso interposto do despacho do Mmo. Juiz de Instrução Criminal não autorizou a pesquisa e posterior apreensão das mensagens de correio eletrónico ou registos de natureza semelhante que se encontrem no telemóvel apreendido nos autos, em quaisquer dispositivos de memória a estes ligados (cartões SIM, cartões de memória) e em quaisquer contas (de email, de redes sociais) armazenadas em servidores remotos, num caso em que se investiga a prática pelos arguidos de um crime de Tráfico e outras atividades ilícitas, p. e p. no art. 21.º, n.º 1, DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e Tabela anexa I-C.

2. …

3. Perante uma apreensão de substâncias e objetos tipicamente conotados com a atividade de tráfico de estupefacientes, mormente, dentro de uma caixa, 35,10 gramas de canábis resina (haxixe), 4,10 gramas de canábis Liamba, bem como dentro dessa mesma caixa junto com o produto estupefaciente, a quantia global de € 50 (cinquenta euros), composta por duas notas de € 20 (vinte euros) e duas notas de € 5 (cinco euros), e uma balança de precisão digital, tal não permite que se afirme, ab initio sem mais e como transparece do entendimento do Mmo. Juiz de Instrução Criminal, que nos encontramos perante um simples caso de consumo de estupefacientes.

4. A promoção indeferida mostra-se fundamentada quanto ao tipo de crime em investigação, bem como quanto à necessidade e idoneidade da diligência promovida.

5. As asserções do Mmo. Juiz de Instrução Criminal ao indeferir a pesquisa informática e apreensão de dados informáticos, mormente mensagens, dando a entender tratar-se de um meio inidóneo e não necessário, mostram-se desfasadas da realidade e da experiência que decorre de situações de idêntica natureza.

6. Resulta inolvidável que neste tipo de criminalidade os seus autores recorrem amiúde ao uso de telemóvel e respetivas aplicações de comunicações a fim de combinarem encontros para transação de produto estupefaciente, seja com fornecedores ou pessoas a quem o produto estupefaciente se destina.

7. O crime sob investigação é normalmente praticado com recurso às telecomunicações, sendo que cada vez mais se vê o recurso a formas alternativas de comunicações (nomeadamente o uso de redes sociais como o telegram ou o Whatsapp, Signal, que usam tecnologia de encriptação) como alternativa às chamadas telefónicas e mensagens de SMS, para frustrar o recurso as escutas telefónicas. Diga-se até que, por precisamente não pretenderem comunicar às claras, que faze uso destas ferramentas tecnológicas.

8. Uma pesquisa informática pode revelar não só os contactos dos consumidores que contactam com os arguidos fornecedores, como os locais onde se encontram, como também ainda qual a quantidade de produto estupefaciente que visam vender e adquirir, respetivamente, e por qual preço.

9. Revelando as mensagens qual o dia, hora e até local em que os arguidos fornecedores se encontraram com consumidores, bem como qual a quantidade encomendada e preço, o resto infere-se do silogismo judiciário e traz à colação a prova indireta, isto é, se conversaram sobre compra de produto estupefaciente (ainda que através de linguagem codificada) e se se encontraram e combinaram um encontro, então é porque a transação terá ocorrido.

10. Revelando a pesquisa os contactos dos consumidores, é o ponto de partida para apurar a sua identidade e subsequente inquirição como testemunhas acerca da atividade prosseguida pelos arguidos fornecedores.

11. Olhando ao art. 21.º, n.º 1, DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e Tabela anexa I-C, desde logo o arguido não detinha qualquer autorização para receber, nem para transportar (como fez) tamanha quantidade de produto estupefaciente.

12. Não autorizando as pesquisas e apreensão de dados informáticos, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal obsta a que se obtenham mais provas que fortaleçam os indícios de que a quantidade de estupefaciente apreendida se destinava à venda a terceiros.

13. Perante a quantidade de produto estupefaciente apreendida ao arguido, se é certo que ainda não se sabe qual o número de doses para que daria, certamente que será muito superior ao consumo médio individual durante o período de 10 dias, ao que acresce, e não menos importante, o facto de junto do produto estupefaciente ter sido encontrada quantia monetária já atendível e composta por várias notas de baixo valor que correspondem ao preço médio pelo qual são vendidas as doses deste tipo de produto estupefaciente, e tendo o arguido já beneficiado da suspensão provisória do processo por idêntico crime, questiona-se que mais indícios serão exigíveis para que não se considere um simples caso de consumo de estupefacientes.

14. Ainda que o arguido refira que o produto estupefaciente era para seu consumo, não se pode fazer uma aceitação acrítica de tais declarações e desapegada dos demais elementos contantes dos autos, mormente a apreensão de uma balança de precisão digital, a quantia monetária distribuída por notas de baixo valor e o facto de guardar essas notas, precisamente, na mesma caixa onde detinha produto estupefaciente, o que indicia também que tal dinheiro adveio da venda de tal substância.

15. Ao afirmar sem mais que se trata de um caso de consumo, sem autorizar diligências de investigação, está o Mmo. Juiz de Instrução Criminal a efetuar um raciocínio de prognose de conclusões a que se poderá chegar a final, mas que não poderá ser feito ab initio, bem como a coartar a atividade do Ministério Público a quem compete dirigir o inquérito, o qual, nos termos do art. 262.º, n.º 1, do CPP, “compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.”

16. Ao fazer a antecipação de conclusões a que se podem chegar ao final da investigação, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal dá a entender que somente interessa investigar os casos “grandes”, descurando todos os demais, bem como até olvidando a existência do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. no art. 25.º do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e em relação ao qual também são necessárias as diligências promovidas.

17. Destarte, afigura-se-nos que a diligência promovida se afigura adequada, idónea, necessária e proporcional aos fins visados, não se mostrando excessivamente lesiva da vida privada do arguido.

18. Durante uma pesquisa informática, os dados sensíveis e direitos dos fundamentais dos arguidos estão sempre salvaguardados, porquanto têm sempre de passar pelo controlo do Mmo. Juiz de Instrução Criminal, enquanto juiz dos direitos, liberdades e garantias, sendo este o  primeiro a tomar contacto com os mesmos e a deles tomar conhecimento, nos termos do art. 16.º 3, e 17.º da Lei do Cibercrime.

».

3. Notificado, o arguido recorrido em resposta concluiu nos seguintes termos:

«…

O direito à prova não é um direito absoluto e pode ser restringido ou limitado quando esteja em causa a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagradas, como é o caso.

Razão pela qual, na escolha dos meios de prova tem de ser respeitado o princípio da proporcionalidade, no seu sentido amplo, que se desdobra nos subprincípios de: (i) adequação, (ii) necessidade e (iii) proporcionalidade.

Assim, antes da autorização de um meio de prova, será necessário fazer uma análise e verificar entre os meios de obtenção de prova disponíveis, qual atingiria a finalidade almejada (princípio da adequação), com menor ingerência possível (princípio da necessidade), e aquele cuja vantagens da sua utilização superariam as desvantagens advindas (princípio da proporcionalidade).

No caso sub judice, o meio de obtenção de prova que o Dignissimo Ministério Público pretende utilizar não respeita o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, na medida em que, ainda que se admitisse que a aprensão de comunicações do telemóvel do Arguido fosse um meio idóneo para a descoberta da verdade material – o que apenas se faz à cautela e por mero dever de patrocínio -, o certo é que este não é o único meio, nem é o meio menos oneroso para o Arguido.

No caso sub judice não existe nenhum indício, nenhuma suspeita, de que o Arguido utilizava o telemóvel para a alegada prática do crime em investigação.

O Dignissimo Ministério Público fundamenta o seu pedido - de autorização para apreender as comunicações do telemóvel do Arguido -, com base, única e exclusivamente, em premissas e presunções, de que nos crimes em investigação “mais das vezes implica a troca de mensagens, para cedência e transação de produto estupefaciente…”.

Assim admitir-se, sem mais – ou seja, sem fundamento, e sem esgotar todos os outros meios idóneos mas menos intrusivos da privacidade do Arguido - , a apreensão das comunicações do Arguido, constituiria uma violação abusiva dos seus direitos constitucionais.

4. Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto emitiu parecer …

5. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido exercido o contraditório.

6. Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.


II. FUNDAMENTAÇÃO

1.

De acordo com as conclusões da motivação do recurso interposto nestes autos, é a seguinte a QUESTÃO a que cabe dar resposta:

- Dever ser autorizada a pesquisa e posterior apreensão das mensagens de correio eletrónico ou registos de natureza semelhante que se encontrem no telemóvel apreendido nos autos, em quaisquer dispositivos de memória a estes ligados (cartões SIM, cartões de memória) e em quaisquer contas (de email, de redes sociais) armazenadas em servidores remotos requerida pelo Ministério Público?


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2. Promoção e subsequente despacho recorrido (transcritos na parte ora relevante)

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- promoção do Ministério Público -


«Da pesquisa informática

Remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal, junto do qual se promove:

Nos presentes autos encontra-se em investigação a prática pelo arguido de um crime de Tráfico e outras atividades ilícitas, p. e p. no art. 21.º, n.º 1, DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e Tabela anexa I-C, eventualmente enquanto tráfico de menor gravidade, p. e p. no art. 25.º, al. a), do mesmo diploma legal.

Ora, cotejando o auto de apreensão, verifica-se que para além do produto estupefaciente, foram apreendidos outros objetos conotados com a prática de tráfico de estupefacientes, nomeadamente um moinho, uma balança de precisão, quantias monetárias em notas de baixo valor e correspondentes ao preço médio da dose de produto estupefaciente apreendido nos autos, bem como um telemóvel.

É consabido e resulta da experiência adquirida em inquéritos de semelhante natureza que neste tipo de criminalidade os seus autores recorrem amiúde ao uso de telemóvel e respetivas aplicações de comunicações a fim de combinarem encontros para transação de produto estupefaciente, seja com fornecedores ou pessoas a quem o produto estupefaciente apreendido se destinava e que possam ser identificados.

Note-se que o crime sob investigação é normalmente praticado com recurso às telecomunicações, sendo que cada vez mais se vê o recurso a formas alternativas de comunicações (nomeadamente o uso de redes sociais como o telegram ou o Whatsapp, Signal, que usam tecnologia de encriptação) como alternativa às chamadas telefónicas e mensagens de SMS, para frustrar o recurso as escutas telefónicas.

Dispõe o artigo 15º da Lei do Cibercrime que, quando no decurso do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência.

Por sua vez, dispõe o artigo 16º, nº 1, da Lei do Cibercrime, que quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos.

Estipula ainda o nº 3 do mesmo preceito que, caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos que possam por em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiros, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.

Acresce o disposto no artigo 17º, nº 1, da Lei do Cibercrime, que, estando em causa mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante encontrados, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.

Aqui chegados, reconhecemos que a prática jurisprudencial ainda não firmou cabal orientação acerca de qual a autoridade judiciária que detém competência para autorizar a pesquisa de dados informáticos em equipamentos como telemóveis, contudo, uma vez que nestes, inevitavelmente acabará por, durante a pesquisa, haver contacto com mensagens e troca de correspondência de semelhante teor, e atenta a nota que saiu da Rede Cibercrime - Reunião de Pontos de Contacto de 7 de dezembro de 2023, “ANEXO D - APREENSÃO DE CORREIO ELETRÓNICO”, bem como entendimentos jurisprudenciais mais recentes, de que se refere o Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2023, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/10-2023-224081976 e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/07/2023, Processo n.º 54/22.9TELSB-F.L1-5, do Tribunal da Relação de Évora de 29/04/2024, processo 37/21.1PESTR-E.E1, de 07/05/20244, processo 338/23.9JAFAR-B.E1 e, também de 07/05/2024, processo 60/23.6SULSB-C.E1, e do Tribunal da Relação do Porto de 08/05/2024, processo 1300/22.4KRPRT-A.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt, promovo nos termos do previsto no artigo 11.º, n.º 1, al. c), 15.º, n.º 1, 16.º, n.º 1 e 17.º n.º 1, da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, e nos artigos 179.º e 269.º, n.º 1, alínea d) do CPP:

- se autorize a pesquisa e posterior apreensão das mensagens de correio eletrónico ou registos de natureza semelhante que se encontrem no telemóvel apreendido, em quaisquer dispositivos de memória a este ligado (cartões SIM, cartões de memória) e em quaisquer contas (de email, de redes sociais) armazenadas em servidores remotos, cujos dados de acesso estejam registados nesse aparelho, sem prejuízo de ser observado o disposto no artigo 179.º do CPP com extração dos dados sem visualização prévia para apresentação em juízo, a fim de se aferir da sua junção aos autos em concreto)».


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Despacho recorrido (transcrito na parte ora relevante)

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«O MP promove, no que importa, a apreensão das comunicações do telemóvel do arguido, nos termos do art. 17 da LC.

Em nenhum momento se alega o “ grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova”.

Impunha-se, ou talvez não porque o caso não dá razões concretas para tanto.

Importa adiantar que no tráfico de estupefacientes, as mensagens podem individualizar contactos, mas não se provam entregas nalguma data, aquisições noutra, sendo algo do mundo físico. Importaria um esforço suplementar que não sabemos o resultado.

Aliás, como bem sabem os opc durante anos provaram-se centenas de processos de tráfico de estupefaciente sem qualquer ingerência direta nos conteúdos dos telemóveis, não se percebendo a acrítica recepção pelo MP nestes autos.

*

Numa cultura de respeito por direitos fundamentais, antes da ingerência, importaria que a acção penal se esforçasse por saber algo mais que comprovasse a sua conjectura (tráfico de estupefacientes), nomeadamente no local assinalado pelo próprio arguido “AA”.

O que se indicia seriamente é tão somente um caso de consumo, e que tem um determinado regime legal, e que não passa por crime.

Assim sendo como é, indefere-se a apreensão de comunicações do telemóvel a que se alude no art. 17 do LC.

Uma vez que mostra-se requerida a devolução do telemóvel, e que não mereceu qualquer resposta, nem tramitação legal, notifique-se o arguido (morada do tir, nos autos nem sequer paginados) outrossim deste despacho».


3. Conhecimento do recurso

Como dissemos é a seguinte questão a que cabe dar resposta:

- Deve ser autorizada a pesquisa e posterior apreensão das mensagens de correio eletrónico ou registos de natureza semelhante que se encontrem no telemóvel apreendido nos autos, em quaisquer dispositivos de memória a estes ligados (cartões SIM, cartões de memória) e em quaisquer contas (de email, de redes sociais) armazenadas em servidores remotos requerida pelo Ministério Público?

Vejamos.

Diz-nos o artigo 17.º da Lei do Cibercrime o seguinte:

«Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurarem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.».

Está bom de ver que a pretendida diligência pode constituir uma ingerência grave  na vida privada, afetando restritivamente os direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e sigilo das comunicações (artigo 34.º, n.ºs 1 e 4, da CRP), e à proteção dos dados pessoais, no domínio da utilização da informática (artigo 35.º, n.ºs 1 e 4 da Lei Fundamental), enquanto manifestações particular e intensamente tuteladas da reserva de intimidade da vida privada (n.º 1 do artigo 26.º da CRP).

Com efeito, os dados pretendidos podem incluir mensagens, fotografias e o histórico da navegação na Internet, os quais se for o caso, eventualmente permitirão tirar conclusões muito precisas sobre a vida privada desse titular. Além disso, podem incluir dados particularmente sensíveis.

Não sofre, no entanto,  dúvida de que os interesses públicos de combate à criminalidade e da realização da justiça prosseguidos pela investigação criminal constituem razões legítimas para uma afetação restritiva dos direitos fundamentais.

Certo é, que tal restrição deve limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP).

Ou seja, deve observar o princípio da proporcionalidade, sem sentido amplo, por constituir uma medida idónea para realizar o fim invocado (princípio da adequação), não podendo ser substituída por outra medida idónea menos onerosa (princípio da necessidade), havendo proporcionalidade entre os meios utilizados e os fins que se protendem atingir (princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou de proibição do excesso).

Sem prejuízo, considerar que só a luta contra a criminalidade grave é suscetível de justificar o acesso a dados contidos num telemóvel limitaria indevidamente os poderes de investigação criminal, aumentando o risco de impunidade relativamente às infrações penais em geral.

Dito isto.

No caso, o Mm.º JIC por entender que, em nenhum momento se alega o “ grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova», que, «no tráfico de estupefacientes, as mensagens podem individualizar contactos, mas não se provam entregas nalguma data, aquisições noutra, sendo algo do mundo físico», que «numa cultura de respeito por direitos fundamentais, antes da ingerência, importaria que a acção penal se esforçasse por saber algo mais que comprovasse a sua conjectura (tráfico de estupefacientes), nomeadamente no local assinalado pelo próprio arguido “AA”», e que «o que se indicia seriamente é tão somente um caso de consumo, e que tem um determinado regime legal, e que não passa por crime», indeferiu a apreensão de comunicações do telemóvel a que se alude no art. 17 do LC.

Vejamos.

Compulsados os autos – designadamente auto de notícia, auto de apreensão e teste rápido/pesagem - verificamos que se mostra indiciado que o arguido transportava consigo uma caixa contendo no seu interior 35,10 gramas de canábis resina (haxixe), 4,10 gramas de canábis Liamba, bem como a quantia global de € 50 (cinquenta euros), composta por duas notas de € 20 (vinte euros) e duas notas de € 5 (cinco euros), e uma balança de precisão digital.

Não apenas o arguido não detinha qualquer autorização para receber, nem para transportar (como fez) tamanha quantidade de produto estupefaciente, como a quantidade de produto estupefaciente indiciariamente detido excede o consumo médio individual durante o período de 10 dias (art.º 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26 de março e mapa anexo).

Assim, pese embora as declarações do arguido (no sentido de que destinava o produto estupefaciente a consumo), existem, ao momento, indícios que a quantidade de estupefaciente apreendida se destinava à venda a terceiros, preenchendo um crime de tráfico de menor gravidade, nos termos do art.º 25.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro.

Ora, são elevadas as exigências de mobilização do sistema de prevenção e repressão criminal quanto ao crime de tráfico de estupefacientes.

E, como salienta o recorrente, não sofre qualquer dúvida a utilização frequente de telemóvel  e respetivas aplicações, neste tipo de criminalidade, para serem combinados encontros para transação de produto estupefaciente, seja com fornecedores, seja com consumidores.

Uma pesquisa informática poderá revelar não só os eventuais contactos do arguido, com os fornecedores e consumidores, como os o dia, hora, locais onde se encontram, como também ainda qual a quantidade de produto estupefaciente que visam vender e adquirir, respetivamente, e por qual preço.

Das possíveis conversas sobre a compra do produto (ainda que em linguagem codificada) poderá inferir-se que terá ocorrido a transação.

A pesquisa pretendida poderá ser o ponto de partida para apurar a identidade de eventuais consumidores e subsequente inquirição como testemunhas acerca da atividade prosseguida.

Não há, pois, dúvida que o meio de obtenção de prova requerido poderá ser útil e necessário para a investigação, não se logrando alcançar como poderá, de outro modo, a investigação avançar, em tempo útil e com a possibilidade de evitar a prática de ilícitos de natureza similar pelo suspeito do crime.

Acresce que o meio utilizado é proporcional sopesando os valores constitucionais conflituantes, que são por um lado o interesse público na descoberta do crime, a eficiência penal, a segurança, a pacificação social e a justiça, e, por outro, os direitos de fundamentais do arguido em respeito pelo disposto no artigo 18.º n.º 2 da CRP.

Aliás, o Tribunal, sempre, poderá determinar a destruição dos dados, sendo certo que na maioria das vezes, muito simples discernir entre os comportamentos relevantes para a investigação e aqueles que são inócuos, e logo sem relação com os factos sob investigação.

Tudo visto, procede o recurso.


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III. DISPOSITIVO

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Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que defira a pretensão do Ministério Público.

Sem tributação.


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(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeira signatária, sendo ainda revisto pela segunda e pela terceira signatárias – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09).

Coimbra, 08.07.2025

Alexandra Guiné (Juíza Desembargadora relatora)

Sandra Ferreira (Juiz Desembargador 1.º adjunto)

Maria da Conceição Miranda (Juíza Desembargadora 2.ª adjunta)