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USO INDEVIDO DE PROVA INDIRECTA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
CRIME DE FURTO QUALIFICADO
TENTATIVA E CONSUMAÇÃO
CIRCUNSTÂNCIAS QUALIFICATIVAS DO CRIME DE FURTO
INTRODUÇÃO ILEGÍTIMA EM «ESTABELECIMENTO … INDUSTRIAL OU ESPAÇO FECHADO»
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEDIDA DA PENA
EXTENSÃO DOS EFEITOS DE UM RECURSO A ARGUIDO NÃO RECORRENTE
Sumário
I - O uso indevido da chamada prova indirecta configura o vício do erro notório na apreciação da prova, do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do C.P.P. e já não um erro de julgamento. II - Atendendo ao disposto nos artigos 23.º e 24.º do Código Penal resulta que na punibilidade da tentativa está em causa, essencialmente, a circunstância da consumação ou da verificação do resultado serem impedidos por facto independente da vontade do agente. III - A tentativa não é punível se o agente desistir e se a desistência for relevante, sendo elemento fundamental da figura que a consumação não chegue a ocorrer ou que se evite o resultado, no domínio da tentativa acabada. IV - Para ser relevante a desistência tem de ser espontânea e a sua voluntariedade é excluída se as desvantagens ou os perigos ligados à continuação da execução se revelarem, de acordo com a perspectiva do agente, desproporcionadamente grandes à luz das vantagens esperadas, de tal modo que seria desrazoável suportá-los. V - O esforço do agente para seriamente evitar a consumação, para os casos da consumação ou da verificação do resultado serem impedidas por facto independente da conduta do desistente, tem de ser avaliado segundo um critério objectivo segundo a teoria da causalidade adequada, e considerando, designadamente, as especiais qualidades ou conhecimentos do agente, conduta traduzida em actos idóneos, segundo a experiência comum e tendo em conta as especiais possibilidades concretas do agente. VI - A agravação do crime de furto derivada da introdução ilegítima em «estabelecimento … industrial ou espaço fechado», referida nas alíneas f) do n.º 1 e e) do n.º 2 do artigo 204.º do Código Penal, assenta não no facto de o agente se introduzir num espaço fechado, mas por tal espaço fechado estar conexionado com a habitação ou com o estabelecimento comercial ou industrial. VII - O que reclama uma tutela penal reforçada é a habitação e o estabelecimento comercial ou industrial, conceitos que, para este efeito, incluem os espaços fechados limítrofes, anexos ou a eles agregados. VIII - Quando há comparticipação criminosa a procedência do recurso interposto por alguns dos comparticipantes relativamente à qualificativa do crime aproveita aos não recorrentes se a qualificação do crime de furto cometido por todos não se fundar em motivos estritamente pessoais de cada um deles.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra: I - RELATÓRIO
1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA
No processo comum colectivo nº 10/22.7GBLRA … por acórdão datado de 13 de Fevereiro de 2025[1], foidecidido:
· «Condenar cada um dos arguidos C…,P…, e B…, pela prática em co-autoria material e na forma consumada de um crime de furto qualificado p. e p. pelo artº 203º nº 1, 204º nº 1 al. a) e nº 2 al. e) por referência ao artº 202º als. a) e d) todos do Código Penal napena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se não suspende».
2. Surge este acórdão da anulação que esta Relação, por acórdão datado de 20.11.2024, fez do primitivo aresto do JCC de Leiria, datado de 20.7.2024.
A anulação teve esta envolvência: «Deve, pois, o processo baixar de novo à 1.ª instância para que esta venha suprir as omissões assim detectadas e que são, em resumo: 1. Fazer uma mais rigorosa e completa análise crítica da prova produzida de forma a explicitar melhor a razão pela qual decidiu CONDENAR OS ARGUIDOS pela prática dos factos provados nºs 1 a 5, explicando se recorreu a prova indirecta e em que moldes; 2. Explicitar de que forma os documentos[2] que invoca na sua motivação contribuíram para a prova dos factos; 3. Descrever minuciosamente e de forma completa e legível os antecedentes criminais dos 3 arguidos».
A nossa decisão de Novembro de 2024 foi então esta, para além de outra que se tomou sobre uma nulidade invocada:
· «anular o acórdão recorrido por razões não invocadas nos recursos, aresto esse que deverá ser substituído por outro que colmate as lacunas apontadas em 3.1.2.4., decidindo em conformidade».
3. OS RECURSOS 3.1. Inconformado, o arguido C… recorreu do acórdão condenatório, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«…
2ª- O facto descrito em 7 do douto acórdão em crise “encontravam-se os arguidos com componentes em metal das máquinas” constitui uma mera conclusão e, sobretudo, não foi alegada na douta acusação ou, sequer, na audiência de discussão e julgamento.
3ª- O referido “facto” dado por assente pelas Mmªs. Juízes a quo foi relevante para a decisão da causa, tendo sido considerados para o efeito no acórdão para a decisão aí proferida, e não havendo sido dado cumprimento ao disposto no artº. 359º, nºs. 2 e 3, ou, sequer, no artº. 358º, nº 1, ambos do Cód. Proc. Penal, violado foi o disposto nos nºs. 1 a 3, ambos do Cód. Proc. Penal, ou se assim se não entender, nos nºs 2 e 3 deste, pelo que padece o referido acórdão de nulidade a que se reporta o artº. 379º, nº 1, al. b) do mesmo Código, o que desde já se invoca para todos os legais efeitos.
4ª- O recorrente desde já se opõe frontalmente ao resultado interpretativo da prova produzida em julgamento pelo douto Tribunal, pelos motivos que em seguida se invocará.
5ª- Conforme resulta do douto acórdão, a convicção das Mmªs. Juizes a quo assentou, essencialmente nos depoimentos das testemunhas …, militar da GNR, do legal representante da sociedade … e nas regras da experiência, porém, salvo o devido respeito, não resulta das mesmas, nem se poderá ter por segura, atenta os depoimentos que se encontram registados, por meio de gravação magnetofónica, de onde não resulta, salvo melhor opinião, nem se poderá extrair tais factos.
6ª- Pois, a matéria que o Tribunal a quo deu como provada na decisão recorrida e os fundamentos que para tanto invocou não são, de todo, suficientes, para se decidir como se decidiu, pela condenação dos arguidos “tourt court”.
7ª-Salvo o devido respeito, analisados os depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, que supra se transcreveram e aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, e demais prova carreada para os autos resulta ausência de prova direta produzida no sentido da atribuição da autoria dos factos dados como provados aos arguidos e insuficiência dos factos suscetíveis de ser retirados da prova indireta.
8ª- Com efeito, da prova produzida não se pode conseguir apurar a identificação de quem ou quantas pessoas procederam ao assalto prévio à referida fábrica, sendo que, no dia 28.04.2022, na posse dos arguidos, apenas foram encontradas ferramentas, quando surpreendidos pelas autoridades. Pelo que não se apurou com a segurança necessária para afirmar, designadamente da sua correspondência com os arguidos.
9ª- Sendo que quanto à prova direta, é notório a sua inexistência, já que nenhuma das testemunhas inquiridas presenciou os factos descrito nos pontos 1. a 5., 7. dos factos provados. E no que à prova indireta concerne, a mesma aponta apenas para o auto de revista e apreensão de fls. 52 a 53, no auto de apreensão de fls. 54 a 55, no auto de busca e apreensão de fls. 94 a 95.
10ª- Ora, com o devido respeito, do expendido permite-nos, apenas, concluir que os arguidos, no dia 28.04.2022, cerca das 17h40m, encontravam-se no interior da fábrica em causa, e que efetuada a revista tinham na sua posse e junto a si os objetos referidos nos pontos 8 a 10 e efetuada a busca ao veículo com a matrícula …, foram apreendidos os objetos constantes do ponto 12 dos factos dados como provados pelas Mmªs. Juizes a quo, ou seja, temos (apenas) que os arguidos foram encontrados dentro das instalações da dita fábrica, formam apreendidos os objetos constantes dos autos de revista e busca acima referidos, porém, analisados tais indícios, ainda que conjugadamente, cremos manifestamente não poder retirar-se dos mesmos que foram os arguidos quem perpetraram os factos em apreço, sendo insuficiente para lhes imputar a participação e autoria da factualidade vertida na acusação pública.
11ª- Como tem vindo a ser defendido por toda a jurisprudência, na formação da convicção, não está o juiz impedido de usar presunções baseadas em regras da experiência, ou seja, nos ensinamentos retirados da observação empírica dos factos. Ensina Vaz Serra (in “Direito Probatório Material - BMJ 112/190). Mas “a ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável. Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios, ou a falta de um ponto de ancoragem, no percurso lógico de congruência segundo as regras da experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitraria ou dominada por impressões” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/03/04, processo nº 265/03, publicado em www.dgsi.pt/jstj.
12ª- …
13ª- …
14ª- Ora, vistos os indícios com ligação direta aos factos, obtidos por via da prova produzida (sendo os demais inócuos para tanto – que os arguidos se conhecem, estavam conotados com idêntica criminalidade na zona da residência e estavam no interior da aludida fábrica no dia 28.04.2022 pelas 17h40m), temos, Venerandos Desembargadores, de concluir que são insuficientes para se concluir que foram quem levaram a cabo os factos em análise.
15ª- O facto dos arguidos terem sido surpreendidos no interior das instalações no dia em questão, pouco nos diz, a não ser tal concreta presença. Desconhece-se, inclusive, se as ferramentas/objetos apreendidas junto aos arguidos e dentro do veículo com a matrícula … são pertença de quem, sendo que as mesmas não apresentavam quaisquer marcas/sinais distintivos e, ditam as regras da normalidade e experiência, de que está ao acesso de qualquer pessoa que os pretenda adquirir numa drogaria, pelo que nada, sem mais, nos permite concluir que tenham sido os usados ou destinavam-se a auxiliar os arguidos na prática dos factos.
16ª- Já relativamente aos objetos furtados entre as 14h do dia 10.04.2022 e as 14h do dia 28.04.2022, cremos que pela dilação temporal não permite tirar a ilação da subtração pelos arguidos, nem que os mesmos se tenham deslocado às instalações uma primeira vez nem que foram reunindo os diversos bens que pretendiam furtar e selecionando para a viatura quando foram surpreendidos quando a GNR entrou nessas instalações.
17ª- Ainda que considerando que os arguidos estavam nas instalações e terem sido apreendidos os mencionados objetos, não se mostra consentâneo com terem os arguidos sido os autores dos factos.
18ª- No caso, nos arguidos não tinham na sua posse qualquer objeto furtado, assim, teria de ser entendimento do Tribunal de primeira instância ser tão plausível que tenham sido os arguidos os autores do assalto como que tenham sido terceiros, não já que os arguidos o terão sido com a segurança exigível nesta fase processual.
19ª- Desta feita, conjugada toda a prova, resulta, que ficou por determinar com a certeza que é exigível para uma condenação penal que tenham sido os arguidos a praticar os factos dos autos, já que a prova indiciária existente é muito ténue e não conduz à responsabilização criminal dos arguidos, em obediência ao princípio in dubio pro reo.
20ª- Face à prova e os indícios recolhidos, outra conclusão não se podemos retirar que não a da insuficiência para determinar uma conexão causal que confira consistente concordância entre a factualidade demonstrada por via de prova direta e os factos indiretamente provados, não permitindo, assim, confirmar que aqueles foram os autores das condutas descritas nos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 12, 13, 14 dos factos dados como assentes, e como tal existe um non liquet na prova, por força do princípio in dúbio pro reo, que tem de favorecer os arguidos , tendo portanto o douto acórdão recorrido violado esse princípio ao dar como provados esses os factos, os quais, em consequência, devem ser considerados não provados, devendo esse acórdão ser revogado e o arguido absolvido, por não se encontrar preenchido o tipo legal de crime p. e p. pelos artºs. 203º, nº 1 e 204º, nº 1 al. a) e nº 2 al. e) por referência ao artº. 202º, als. a) e d) todos do Cód. Penal.
21ª- Ainda por mera cautela e sem conceder, ao arguido vem imputada a prática do crime de furto qualificado, em co-autoria material e na forma consumada, porém face à factualidade apurada, importa averiguar se o crime foi cometido de forma consumada ou não. Importa averiguar se o crime de furto em causa é (ou não) qualificado, isto é, se é inequívoco o preenchimento da qualificativa mencionada no nº 1 al. a) e nº 2 al. e) do artº. 204º do Cód. Penal.
22ª- Ora, em nosso entender, a resposta não pode deixar de ser negativa, pois no caso vertente, tendo presente a os depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, e demais prova junta aos autos, mostra-se, em nosso entender, inequívoco não se demonstrou qualquer atuação dos arguidos que preencham os elementos da qualificativa mencionada na al. a) do nº 1 do artigo 204.º do Código Penal, porquanto das declarações prestadas em audiência de julgamento pela testemunha …, legal representante da fábrica em causa, resulta que que relativamente não conseguir precisar o valor “Não posso precisar, vinte, trinta eles levaram depois é o que estragaram, foi mais grave o que estragaram do que o que levaram”, sendo que questionado pela Digna Procuradora da República referiu “Mais de mil euros”, não conseguindo, portanto, dizer sem qualquer dúvida o valor exato do que foi furtado e dos estragos existentes na dita fábrica. Da mesma forma que, a qualificativa da al. e) do nº 2 do artigo 204.º do Cód. Penal, por referência à al. d) do artigo 202.º do Cód. Penal, constata-se, com o devido respeito, nos termos que dos depoimentos das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento, que ninguém presenciou ou descreveu com a certeza exigida as circunstâncias de tempo e modo operacional em que terá ocorrido o arrombamento da porta metálica das traseiras da fábrica em causa, e quem foi o autor de tal conduta.
23ª- …
24ª- Por outro lado, importa averiguar se, face à factualidade apurada, se o crime foi cometido sob a forma de tentativa ou não, sendo que a nosso ver entendemos que estamos perante um crime de furto na forma tentada.
25ª- Uma vez mais, e por mera cautela, no caso sub judice, conforme consta da declaração de voto propugnada pela Mmª. Juiz Adjunta, que votou vencida a decisão, posição a que, nessa parte o recorrente adere, não se fez prova da prática pelos arguidos do crime de furto qualificado de que se encontram acusados.
26ª- A prova produzida nos autos e em audiência permite, em nosso entender, tão só julgar verificada a prática, pelos arguidos, no dia 28.04.2022, de um crime de furto na forma tentada, pelo qual deveriam ser condenados. Desconhecendo-se mesmo, porque a prova não se produziu nesse sentido, quantas pessoas que procederam ao assalto prévio à referida fábrica e a identidade das mesmas e o autor do arrombamento, sendo que, no dia 28.04.2022, na posse dos arguidos, apenas foram encontradas ferramentas, necessárias ao trabalho da retirada de cabos quando surpreendidos pelas autoridades. Os arguidos não lograram retirar nenhum objeto ou coisa móvel alheia para fora das instalações. Ou seja, em termos práticos e objetivos, não chegaram a apoderar-se efetivamente do que quer que fosse.
27ª- Logo, podemos concluir que a sua conduta preenche os elementos subjetivos do tipo legal, mas não os objetivos.
28ª- …
29ª- …
30ª- …
31ª- Ora, também do ponto de vista desta tese intermédia, devem as condutas dos arguidos ser consideradas no âmbito da tentativa, pois não ficou o proprietário das coisas móveis em causa nos autos privado das mesmas.
32ª- Assim sendo, no caso concreto, as condutas protagonizadas não denunciam a prática de factos que revelem a existência de condições para uma “tendencial estabilidade” da efetiva transferência do domínio de facto da coisa do anterior fruidor para o agente, inscrevendo-se a sua atuação no âmbito do crime de furto tentado, p. e p. pelos arts. 203º, nºs 1 e 2, 22º, 23º, nº 2 e 73º do Cód. Penal, tendo que extrair-se as devidas consequências de tal modificação.
33ª- Por outro lado foi o arguido não se conforma com a condenação na pena de 2 (dois) anos e 6(seis) meses de prisão efetiva, dado que as circunstâncias do caso concreto, nunca potenciariam uma condenação tão elevada e distante do limite mínimo da pena aplicável.
34ª- Também por cautela e sem conceder, sempre se aduz que, atentos os factos apurados e os critérios estabelecidos nos artºs. 40º e 71º, todos do Cód. Penal, é manifestamente desproporcionada a pena aplicada em concreto ao arguido, a qual nunca deverá ultrapassar 1 (um) ano de prisão., sob pena de violação das normas constitucionais, designadamente as contidas nos artºs. 1º, 13º, 18º da CRP.
35º- Em face do todo o supra exposto, deve ser reformulado o douto acórdão recorrido, no sentido de se aplicar ao arguido uma pena substancialmente inferior, e, sempre, atenuada.
36ª- De resto, nos termos do disposto no artº. 50º, nº 1, do Cód. Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, ás condições da sua vida, á sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
37ª- Conforme consta do acórdão recorrido, no pontos18, dos factos provados, além do mais, o arguido no presente, tal como há data dos factos e desde 2019 exerce funções “como servente na empresa …. O arguido revela gosto por trabalhar naquela empresa, por reconhecer suporte pessoal que usufrui por parte do gerente da empresa …”, “tem suporte emocional e pessoal de duas irmãs, que residem na mesma localidade”.
38ª- Atendendo ao que foi dado por provado no acórdão ora recorrido (quanto à personalidade do arguido, às suas condições de vida atuais e futuro próximo, bem como às circunstâncias do crime em referência), as regras norteadoras da aplicação da pena de prisão, e as necessidades de prevenção geral e especial, tudo será respeitado e devidamente acautelado com a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado, subordinada às condições de intervenção especializada, tanto à problemática de consumo de substâncias etílicas e de estupefacientes enquanto factor criminógeno relevante, como uma avaliação especializada às capacidades intelectuais do arguido e submeter-se à fiscalização dos Serviços de Reinserção Social, nos termos do artºs. 51º, nºs. 1 e 4, e 52º, do Cód. Penal, desta forma se realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a proteção dos bens jurídicos ofendidos e a reintegração do agente na sociedade.
…» 3.2. Inconformado, o arguido B… recorreu do acórdão condenatório, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«Da prova produzida não resultou por provado que o arguido tenha praticado o crime de que vem acusado;
A douta sentença não poderia, salvo melhor opinião, dar como provado que o arguido tivesse praticado tal crime;
Nenhuma das testemunhas afirmou ter visto o arguido recorrente a furtar seja o que fosse, ninguém viu e o mesmo não levou nada consigo.
Pelo exposto, é entendimento do recorrente que o Tribunal A Quo na apreciação que fez das provas desrespeitou o princípio da livre apreciação da prova a que se encontra vinculada por força do disposto no artigo 1272 do CPP.
Tal vício resulta, claramente do texto da decisão recorrida, não por si só, como também das regras do senso comum, pois não ouviu bem e com atenção o relato das testemunhas da acusação, nomeadamente da testemunha …
…
Importa averiguar se, face a factualidade apurada, se o crime foi cometido sob a forma tentada ou não, sendo que a nosso ver entendemos que estamos perante um crime de furto na forma tentada.
As condutas dos arguidos devem ser consideradas no âmbito da tentativa, pois não ficou o proprietário das coisas móveis em causa nos autos privado das mesmas.
Não existindo, em processo penal, qualquer ónus de prova, e havendo no espírito do julgador uma dúvida, é de aplicar o principio fundamental in dúbio pró reo.
O tribunal a quo não aplicou o referido princípio, violando assim um preceito consagrado constitucionalmente, o qual é caracterizador do nosso estado de direito.
…». 4.O Ministério Público em 1ª instância respondeu aos recursos, opinando que eles não merecem provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância. 5. Admitidos os recursos e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, pedindo a sua improcedência.
6. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, após resposta do arguido AA, foram colhidos os vistos, tendo ido os autos à conferência, por deverem ser os recursos aí julgados, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso
…
Desta forma, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, são estas as questões a decidir por este Tribunal:
1. Há alguma nulidade de acórdão?
2. Há algum vício do artigo 410º/2 do CPP?
3. Há erro de julgamento?
4. Houve violação do princípio da livre apreciação da prova e do princípio do in dubio por reo?
5. Encontram-se perfectibilizados os elementos objectivos e subjectivos do crime de furto qualificado?
6. As penas aplicadas aos dois arguidos foram excessivas e deveriam ter sido suspensas na sua execução?
2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO 2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):
«1. Em data não concretamente apurada, compreendida entre as 14h do dia 10-04-2022 e as 14h do dia 28-04-2022, de comum acordo, em comunhão de esforços e mediante um plano previamente combinado entre todos, C…, P… e B…, dirigiram-se às instalações onde operou a fábrica … sita na Rua …;
2. Os arguidos fizeram-se transportar no veículo ligeiro de passageiros, …, que deixaram estacionado, numa estrada de terra batida, nas imediações das instalações fabris acima identificadas;
3. Aí chegados, de forma não concretamente apurada, partiram as componentes da fechadura da porta metálica, sita nas traseiras do edifício, que dava acesso ao 2.º andar, logrando por essa via introduzir-se no interior do mesmo;
4. Já dentro do edifício, arrancaram, cortaram e subtraíram os cabos, em cobre, do quadro eléctrico das instalações da identificada fábrica, bem como parte da estrutura metálica das máquinas, que compunham a linha de montagem da dita fábrica;
5. Objectos de valor não concretamente apurado mas não inferior a €5100,00 (cinco mil e cem euros), que levaram consigo e fizeram seus, como se lhes pertencessem, bem sabendo que os mesmos pertenciam ao proprietário das ditas instalações e que agiam contra a vontade deste;
6. No dia 28-04-2022, quando os militares da G.N.R. …, se deslocaram às referidas instalações a fim de proceder à inspecção judiciária ao local, cerca das 17h40m, depararam-se com os arguidos C…, P… e B… dentro das instalações da dita fábrica, mais concretamente no primeiro andar;
7. Nestas circunstâncias de tempo e lugar encontravam-se os arguidos com componentes em metal das máquinas, bem como a juntá-los no chão, perfazendo os já reunidos valor não inferior a €102,00 (cento e dois euros), com vista a levarem-nos consigo e fazê-los seus, contra a vontade do seu legítimo proprietário, o que só não conseguiram por terem sido detidos em flagrante delito pela G.N.R.;
8. Em face do descrito foi efectuada revista ao arguido C…, tendo o mesmo na sua posse:
a) Uma navalha multiusos, com pega em madeira, com a inscrição “Fátima - Portugal”, com lâmina numa ponta e garfo na outra;
b) Uma navalha, com pega em metal e madeira;
c) Um par de luvas de trabalho, de cor pretas, marca “Ante”;
9. Efectuada revista ao arguido P…, tinha o mesmo na sua posse:
a) Um telemóvel de marca …
10. Foram, ainda, apreendidos os seguintes objectos pertença dos arguidos, que se encontravam junto a si, nas supra identificadas instalações fabris:
…;
11. Efectuada busca ao veículo acima identificado, de matrícula …, foram apreendidos os seguintes objectos, pertença dos arguidos:
…
12. Tais objectos apreendidos aos arguidos destinavam-se a auxiliar os arguidos na prática dos factos acima descritos.
13. Os arguidos actuaram em concertação de esforços e intentos, com uma divisão previamente acordada das tarefas, no intuito concretizado de se apropriarem daqueles objectos, que sabiam não lhes pertencerem, querendo e conseguindo remover obstáculos materiais a tal desiderato;
14. Agiram os arguidos de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
*
15. Do certificado de registo criminal do arguido P…[3] consta o seguinte:
(…) 16. Do certificado de registo criminal do arguido B… constam as seguintes condenações:
No âmbito do Processo nº 62/07.... do 1º Juízo de Benavente o arguido foi … 17. Do certificado de registo criminal do arguido C… constam as seguintes condenações:
…
18. Do relatório social do arguido C… consta o seguinte:
…
19. Do relatório social do arguido B… consta o seguinte:
…
20. Do relatório social do arguido P…o consta o seguinte:
(…)»
2.2. Quanto a FACTOS NÃO PROVADOS, escreveu-se (transcrição):
«Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa, nomeadamente que os arguidos no dia 28.4.2022 se encontravam a desinstalar os componentes em metal das máquinas». 2.3. Motivou-se a matéria dada como provada da seguinte forma (transcrição):
«A convicção do Tribunal, quanto aos factos provados, alicerçou-se na articulação de todos os meios de prova disponibilizados nos autos, devidamente combinados com as regras de experiência comum e a livre convicção do Tribunal e uma vez que o único arguido que compareceu em julgamento usou, validamente, o seu direito ao silêncio de molde que foi sopesado o depoimento da testemunha B…, militar da GNR que se deslocou ao local no dia 28 de abril por terem sido alertados para a existência de um furto naquelas instalações ocorrido entre o dia 10 e o dia 28 de abril e apurou que os arguidos entraram pelas traseiras por uma porta metálica que dava acesso ao andar de cima e já tinha sinais de arrombamento e constatou a existência de cabos metálicos da parte elétrica já arrancados; realizada inspeção ao local, aguardaram a chegada do NAC e quando esta patrulha chegou voltaram a entrar nas instalações e ao entrar no edifício foram surpreendidos com a presença dos três arguidos, os quais reconheceu e identificou uma vez que já era conhecidos, dentro do edifício que se puseram em fuga, já tinham a cabelagem acumulada, que não estava anteriormente, conseguiram alcança-los e constataram que já tinham coisas acumuladas e estavam de luvas e dentro da viatura estavam já alguns bens; J…, legal representante da sociedade … esclareceu que a fabrica foi assaltada e levaram cobre das instalações elétrica, quadros elétricos e tiveram um prejuízo de mais de 1000€; referiu que acompanhou os militares da GNR e encontraram lá os três indivíduos e identificou o P… em audiência; referiu que os arguidos entraram pela porta traseira que estava trancada e rebentaram o pingo da solda que estava a fechar; na análise da prova documental junta aos autos, nomeadamente: auto de notícia de fls. 39 a 42 de onde decorre que os autores o furto se introduziram no interior das instalações através de arrombamento da porta metálica existente nas traseiras do edifício; relatório tático fotográfico de fls. 43 a 46; relatório táctico de inspecção judiciária de fls. 47 a 48; relatório tático fotográfico de fls. 49 a 51 onde são visíveis os artigos já preparados, o balde e saco para transporte, chave de fendas e luvas que ali foram abandonadas pelos arguidos, uma cisalha para corte dos cabos, entre outros; e onde se pode verificar a zona por onde os arguidos entraram e a porta arrombada; auto de revista e apreensão de fls. 52 a 53; auto de apreensão de fls. 54 a 55; auto de busca e apreensão de fls. 94 a 95; destes autos de revista e apreensão constata-se que foram apreendidas luvas e navalhas utilizadas pelo arguido C… e ainda apreensão de várias ferramentas , sacos e mais dois pares de luvas que auxiliaram e foram utilizadas pelos arguidos para arrobar a porta e cortar os cabos; certidão permanente de fls. 120 a 126 da empresa …; pesquisa das bases de dados do registo automóvel de fls. 127 cujo proprietário é o P… e trata-se da viatura que foi usada para a prática dos furtos; certificados de registo criminal de fls. 520 e ss que atestam o largo passado criminal dos arguidos; pesquisas das bases de dados da segurança social de fls. 172 a 174 e relatórios sociais de fls. 495 e ss, 505 e ss, 509 e ss que atestam e suportaram a convicção do Tribunal quanto às respetivas condutas sociais; Com efeito da prova produzida, nomeadamente das declarações credíveis do militar da GNR B… é possível concluir, que os arguidos entraram pela mesma porta que já anteriormente tinha sido arrombada e se preparavam para levar os cabos elétricos que tinham arrancado do quadro elétrico e os iam fazer seus; quanto à segunda situação, obviamente, foram apanhados em flagrante e é obvio que ninguém presenciou os factos, mas que estavam os arguidos ali a fazer de luvas? E porque foram direitinhos à porta que já tinha sido, previamente, arrombada? E por quem? A resposta a estas perguntas só pode levar a concluir que os arguidos se deslocaram uma primeira vez às instalações da fábrica, fazendo-se transportar na viatura …”, partiram as componentes da fechadura da porta metálica sita nas traseiras (local exatamente por onde entraram pela segunda vez) e ai foram preparando (arrancaram e cortaram) os cabos em cobre do quadro elétrico das instalações fabris que se preparavam para fazer seus, não fora serem surpreendidos pelos militares da GNR; ademais sujeitos os arguidos a revista e a viatura a busca foi encontrado material compatível com as acções por eles perpetradas, v.g. luvas, chaves de bocas, de fendas, de roquete, x-ato um saco e uma cisalha entre muitos outros, que só se justifica a sua posse para que pudessem desmontar as máquinas e cortas os fios e proceder ao necessário arrombamento da porta por onde entraram pela primeira e pela segunda vez; tudo conjugado com o depoimento do representante da sociedade que descreveu a forma como aporta estava trancada – tinha um pingo de solda - e foi rebentada pelos arguidos, descreveu a cabelagem, cobre e cabos que levaram e que já tinham reunidas as peças para serem levadas para a viatura que se encontrava num caminho de terra batida; o Tribunal não teve, assim, duvidas de que foram os arguidos que se deslocaram ás instalações uma primeira vez, entre o dia 10 e o dia 28.4.2022 – período de tempo em que o legal representante não se deslocou ás instalações – e que foram reunindo os diversos bens que pretendiam furtar e seleccionando para transportar para a viatura e foram surpreendidos quando a GNR voltou a entrar nas instalações após a chegada do NAC para recolha de vestígios lofoscópicos. Aliás, são as regras da experiência comum e da normalidade que levam o Tribunal a concluir como concluiu. Se assim não fosse que estavam os arguidos ali a fazer? E porque haveriam eles de recolher as peças? E porque haveriam outras pessoas de ter ido desmontar e desmantelar os cabos e as máquinas para eles depois irem buscar? E porque traziam com eles ferramentas que todos nós sabemos que se destinam a atuar através do “modus operandi” dos arguidos? E por fim, porque iriam estes arguidos entrar exatamente pela porta que já tinha sido previamente arrombada? Ora, a prova indireta (lógica, por presunção ou por indícios) consiste em dar como provado um facto sem que sobre ele exista qualquer meio (direto) de prova, chegando-se ao “factum probandum” a partir da prova de outros factos que a ele se ligam com segurança, segundo as regras da lógica e da experiência comum. Com efeito, essa experiência comum diz-nos que não é assim que as coisas funcionam, e por isso a resposta, ainda que por forma indireta, mas razoável, só pode conduzir à conclusão de que foram os arguidos que foram duas vezes ao local do crime e por isso, deverão ser condenados por tais ilícitos criminais». 3.APRECIAÇÃO DOS RECURSOS 3.1. NULIDADES DE ACÓRDÃO 3.1.1. De forma explícita, é arguida pelas duas defesas uma nulidade de Acórdão reconduzível, na sua óptica, ao artigo 379º, nº 1, alínea b) do CPP. 3.1.2. Entendem os 2 recorrentes que foram condenados com base em factualidade não constante da pronúncia/acusação, sem que tivesse sido dado cumprimento ao disposto nos artigos 358º e 359º do CPP, o que configura uma nulidade de sentença nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea b) do CPP.
Reiteramos o que decidimos no 1º aresto que anulou o 1º acórdão de Leiria.
De acordo com o princípio acusatório, a acusação deduzida define e fixa o objecto do processo, exigindo-se uma necessária correlação entre a acusação e a decisão., traduzindo-se tal correlação na exigência de que, definido o objecto do processo, o tribunal não possa, como regra, atender a factos que não foram objecto da acusação, estando, por conseguinte, limitada a sua actividade cognitiva e decisória, o que constitui a chamada vinculação temática do tribunal.
Depois de fixado na acusação, o objecto do processo deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da sentença – é o chamado princípio da identidade.
A observância destes princípios constitui uma exigência da salvaguarda de um efectivo direito de defesa do arguido. Compreende-se que, se ao tribunal fosse permitido modificar o objecto do processo e conhecer para além dele, o arguido poderia ser confrontado com novos factos e novas incriminações que não tomara em conta aquando da preparação da sua defesa, não sendo de exigir ao arguido – que se presume inocente – que antecipe e preveja todas as imputações possíveis, independentemente da concreta acusação que contra si foi deduzida.
Quer isto dizer que a acusação (ou a pronúncia, tendo havido instrução) define e delimita o objecto do processo, fixando o thema decidendum, sendo o elemento estruturante de definição desse objecto, não podendo o tribunal promovê-lo para além dos limites daquela, nem condenar para além desses limites, o que constitui uma consequência da estrutura acusatória do processo penal.
Contudo, como refere Germano Marques da Silva, “por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo” (Curso de Processo Penal, Lisboa, Verbo, III, 2.ª edição, p. 273). «O processo penal não é um processo acusatório puro e o legislador não deixou o juiz na completa dependência dos sujeitos processuais relativamente ao esclarecimento dos factos. Ao processo penal estão subjacentes preocupações de justiça que impõem uma mais completa indagação da verdade permitindo que a versão dos factos construída no processo e a realidade se aproximem. O que aponta para a necessidade de ser encontrado um ponto de equilíbrio que resolva a tensão entre princípios aparentemente em litígio, remetendo-nos para a magna questão da definição do objecto do processo e das condições em que a conformação dos factos constantes da acusação pode ser alterada» (Acórdão da Relação de Coimbra de 17/6/2009, in Pº 122/07.7GCACB.C1).
O CPP de 1987 distingue, no âmbito da alteração dos factos, as situações em que a alteração é substancial daquelas em que não é substancial.
O artigo 1º, nº 1, alínea f), do CPP de 1987, define “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
As disposições fundamentais a considerar, na fase do julgamento, no tocante a esta matéria, são os artigos 358º e 359º do CPP.
Ouçamos a lei.
Estatui o artigo 358º, relativo à alteração não substancial de factos descritos na acusação ou na pronúncia:
«1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente para a preparação da defesa.
2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. 3. O disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia».
Por seu lado, o artigo 359º reporta-se à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, tendo sofrido relevantes alterações com a revisão introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, estabelecendo a distinção entre factos novos autonomizáveis e não autonomizáveis.
Salienta o STJ, em acórdão de 21 de Março de 2007 (processo 07P024, www.dgsi.pt):
«Alteração substancial dos factos significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa.
É este o sentido da definição constante do artigo 1º, nº 1, alínea f), do CPP para “alteração substancial dos factos”, que se apresenta, assim, como um conceito normativamente formatado: “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.»
Sobre o alcance do conceito de “alteração substancial dos factos” pronunciou-se também a Relação do Porto, em acórdão de 23 de Maio de 2007 (processo 0513936, www.dgsi.pt), nos seguintes moldes: «Fixemo-nos na imputação de crime diverso. Como se referiu, o objecto do processo, melhor diríamos, da acusação, que vincula tematicamente o tribunal, é constituído por aquele facto naturalístico que se discute, situado no passado, com a sua identidade, imagem e valoração social, que viola bens jurídicos penalmente tutelados, e por cuja prática o agente é alvo de censura. No conceito há uma relação dialéctica entre facto e crime. Por outro lado, nos termos do nº 4 do artº 339º, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação; os factos alegados pela defesa; os factos que resultarem da prova produzida em audiência; as soluções jurídicas pertinentes, em obediência ao princípio da verdade material. Tendo a discussão da causa esta amplitude, pode acontecer que: a) Da discussão da causa resulte adição ou modificação dos factos constantes da acusação, sem intervenção da entidade acusadora; b) O arguido não tenha oportunidade de se defender de todos os factos apurados, violando-se o princípio que lhe consagra todas as garantias de defesa. Ora, conhecido o conceito de facto e a sua relação dialéctica com o tipo legal; conhecido o thema decidendum; conhecido o objecto do processo; e conhecidas ainda as razões porque não pode ser modificado o objecto do processo, cremos estar em condições de encontrar critérios que nos permitam afirmar se há ou não alteração substancial dos factos. Cremos poder afirmar que se imputa ao arguido um crime diverso quando: 1. Da referida adição ou modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo; 2. Da referida adição ou modificação dos factos resulte um facto naturalístico diferente, objecto de um diferente e distinto juízo de valoração social; 3. Da referida adição ou modificação dos factos resulte a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, resulte a perda da sua identidade. O critério normativo – é disso que se trata – encontrado só fica completo quando se fizer a previsão das situações em que o arguido não teve oportunidade de se defender dos novos factos, com relevância jurídico-penal. Assim, importa acrescentar que, para efeitos de alteração substancial dos factos, imputa-se ao arguido um crime diverso quando: 4. O arguido não teve oportunidade de se defender dos “novos factos”, não sendo estes meramente concretizadores ou esclarecedores dos primitivos. Nos termos da 2ª parte da alínea f) do nº 1 do artº 1º, estamos ainda perante uma alteração substancial dos factos quando: 5. Por força da modificação ou aditamento de novos factos, resulte o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis ao arguido (…)»
Quando os factos novos não tenham como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, mas sejam relevantes para a decisão, a alteração deverá ser considerada não substancial e o seu conhecimento pressupõe, por isso, o recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º, nº1, do CPP.
Diga-se ainda que a lei fulmina com nulidade a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do CPP [art. 379º, nº 1, b), do mesmo código].
3.1.3. Ora, no nosso caso, não há qualquer alteração substancial de factos pois o crime não é diverso e a moldura penal abstracta permanece a mesma (foi acusado e condenado pelos artigos 203º e 204º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea e), por referência ao artigo 202º, alíneas a) e d) do Código Penal).
Mas haverá uma alteração não substancial?
De facto, importa distinguir, em função dos casos concretos, aquelas situações em que a omissão da comunicação impede a possibilidade de defesa eficaz do arguido, daquelas outras em que tal omissão não tem qualquer impacto negativo na estratégia de defesa do arguido.
Como se afere no Acórdão da Relação do Porto de 12/1/2011, «há uma razão lógica e substantiva para o legislador impor a comunicação da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e a alteração da qualificação jurídica dos mesmos: está em causa, fundamentalmente, assegurar elementares direitos de defesa do arguido, evitando que ele seja surpreendido com uma condenação por factos que não constavam da acusação (ou pronúncia) ou suportada por uma qualificação jurídica distinta da que nela constava. A própria Lei ressalva que a comunicação só tem lugar se a alteração tiver “relevo para a decisão da causa” e se não tiver “derivado de factos alegados pela defesa” [nº 1 e 2 do citado art.]. Compreende-se: tanto num caso como no outro, a alteração (dos factos ou da sua qualificação jurídica) não tem uma repercussão negativa na estratégia de defesa do arguido».
É esse interesse de salvaguarda dos direitos de defesa do arguido que justifica a imposição da comunicação, não sendo algo de formal ou automático.
Como já alguém rezou, «na constante procura do equilíbrio entre o interesse público da aplicação do direito criminal – mediante a eficaz perseguição dos delitos cometidos – e o direito impostergável do arguido a um processo penal que assegure todas as garantias de defesa vinga a leitura atenta e racional da Lei que dê sentido útil à afirmação dos direitos consagrados e eficácia ao sistema processual implantado».
Deste modo, há que ser razoável na leitura dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal - como se concluiu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 674/99: “(…) erige-se assim em critério orientador a defesa eficaz do arguido, permitindo que ele tome conhecimento das alterações de factos que sejam relevantes do ponto de vista daquela defesa (...)”.
Tem a jurisprudência e a doutrina apontado alguns casos em que se dá conta da irrelevância negativa de certas alterações para os direitos de defesa do arguido – falamos das situações em que a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado [Ac.STJ de 7.11.2002]: entende-se que não há qualquer alteração relevante para o efeito em causa, uma vez que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia).
Tem-se, de facto, entendido, com alguma margem de consenso, que a comunicação do artigo 358º/3 do CPP, apenas se efectuará quando se tratar de uma modificação relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa [Ac. T. C. nº 330/97 (DR II 1997/Jul./03), 387/2005, (DR II 2005/Out./19); Ac. STJ de 1991/Abr./03, 1992/Nov./11, 1995/Out./16, 2006/Abr./06 (BMJ 406/287, 421/309, www.dgsi.pt, CJ II(S), 161)].
No que concerne à alteração da qualificação jurídica, encontra-se actualmente ultrapassado aquele posicionamento de plena liberdade de qualificação jurídica sem haver comunicação prévia, pois impõe-se que esta se realize [Ac. TC 173/92; 279/95; 16/97, 445/97], tanto em 1.ª instância, aqui em audiência de julgamento, [Ac. TC 518/98; Ac STJ nº 3/2000, de 15/12/1999], como nos tribunais superiores.
Tanto mais que actualmente a lei é expressa nesse sentido [358º, nº 3, 424º, nº 3].
Continuamos a opinar que, a par da alteração não substancial dos factos, a alteração da qualificação jurídica que impõe a obrigatoriedade dessa comunicação deverá ser igualmente relevante, pois só estas são susceptíveis de integrar situações de “indefesa constitucionalmente relevante”.
Retomando a jurisprudência anteriormente traçada que conduziu à consagração expressa do dever de comunicação da alteração da qualificação jurídica, temos como denominador comum de todas elas que se tratava sempre de incriminações cuja moldura penal abstracta da condenação era sempre mais grave do que aquela pela qual o arguido tinha sido acusado.
Nestes casos, a inobservância do contraditório resultava num manifesto e grave prejuízo para a defesa.
O mesmo não se passa se persistir uma homogeneidade da factualidade, o que sucede sempre que esta permanece íntegra, ou então se ocorrer uma homogeneidade descendente, em que aquela se vê amputada de circunstâncias agravativas da conduta do arguido, que permitem uma mais benevolente qualificação jurídica dos factos, em virtude destes passarem a integrar um tipo de crime menos grave.
Nestas situações, não surgem vulneradas as garantias de defesa do arguido, na vertente do princípio do contraditório, porquanto não existe uma heterogeneidade da qualificação jurídica que o apanhe de surpresa e lhe cause um prejuízo grave – e isto porque o núcleo essencial do tipo base persiste, havendo antes um deslizamento da qualificação jurídica para um tipo legal de crime “inferior”, tendo sempre a sua defesa abrangido o centro irredutível da qualificação jurídica que identifica o tipo base.
Voltando ao Acórdão de 15/6/2011, «a ideia do “favor defensionis” não fica assim atingida quando se mantém a prática do mesmíssimo tipo de crime, passando-se apenas do seu cometimento em co-autoria para autoria [Ac. STJ 2005/Nov./09 CJ (S) III/205] ou então, estando-se numa relação de hierarquia no âmbito da tutela do mesmo bem jurídico, se desce de um crime mais grave para um outro menos grave [Ac. STJ de 1991/Abr./03, CJ II/17; Ac. TC 330/97; Ac. R. P. 2011/Jan./12, 2011/Mar./02(12)]».
Seguimos de perto a nossa jurisprudência que tem defendido que:
· não existe uma alteração dos factos integradora do artigo 358º do CPP, quando a factualidade dada como provada na sentença consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação ou da pronúncia, por não se terem dado como assentes todos os factos aí descritos [cf. Ac. TC nº 330/97, in DR II, 1997/Jul./03];
· Não tal existe também quando apenas existam alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes [cf. Ac. STJ de 1991//Abr./03, de 1992/Nov./11 e de 1995/Out./16, in BMJ nº 406/287, nº 421/309 e em www.dgsi.pt];
· Também tal não ocorrerá quando se tratar de uma simples descrição do contexto temporal e do ambiente físico em que a ação do arguido se desencadeou, quando o mesmo não é mais do que a reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação ou na pronúncia [Ac. TC nº 387/2005, de 2005/Jul./13, in DR II, 2005/Out./19];
· Da mesma forma, não se poderá falar de alteração dos factos com relevo para a decisão, quando a decisão condenatória se sustenta «exclusivamente nos factos constantes da acusação e da contestação e o recorrente não foi surpreendido com os factos, dadas as considerações que precedem [cf. o Ac. STJ de 23/06/2005, processo nº 1301/05, CJ, Tomo 2/2005);
· Daí que se possa dizer, que "só constitui alteração substancial dos factos a modificação que se reporte a factos constitutivos do crime e a factos que tenham o efeito de imputação de um crime punível com uma pena abstrata mais grave.
· A modificação dos restantes factos que constem da acusação ou da pronúncia constitui alteração não substancial dos factos, desde que sejam relevantes para a decisão da causa" e que "(... ) não há crime diverso em face da mera alteração das circunstâncias da execução do crime (incluindo o dia, hora, local, modo de execução e instrumento do crime), desde que essas circunstâncias não constituam elementos do tipo legal, nem constituam um outro facto histórico unitário" [Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Lisboa, 2007, pp. 41].
Dito de outra forma: a “alteração substancial” dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Já a “alteração não substancial” constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal; a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.
Na realidade, falamos de aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica.
Veja-se o aresto do STJ de 20/12/2006 que decidiu em caso algo paralelo que: «A circunstância de terem sido dados como provados «dois casos concretos de transação de droga com indivíduos não identificados» não integra a noção de «alteração não substancial», pois, mesmo a existir, não modificaria o quadro factual da acusação, nem teria qualquer relevância para a qualificação ou para a determinação da moldura penal, não assumindo, assim, interesse para a decisão da causa, pelo que não se verifica violação do procedimento - tributário do princípio do acusatório - previsto nos arts. 358.° ou 359.°, do CPP».
Ou seja, a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.
Olhemos para o nosso caso.
Diremos nós que não estamos perante qualquer facto novo relevante que apenas tenha surgido por ocasião da audiência.
O que aconteceu, no facto nº 7, foi a prova de apenas uma parte do facto e não da totalidade do facto.
Vejamos:
Na acusação, esse facto 7 tinha a seguinte redacção: «7. Nestas circunstâncias de tempo e lugar encontravam-se os arguidos a desinstalar componentes em metal das máquinas, bem como juntá-los no chão, perfazendo os já reunidos valor não inferior a €102,00 (cento e dois euros), com vista a levarem-nos consigo e fazê-los seus, contra a vontade do seu legítimo proprietário, o que só não conseguiram por terem sido detidos em flagrante delito pela G.N.R.».
No acórdão, tal facto 7 passou a: «7. Nestas circunstâncias de tempo e lugar encontravam-se os arguidos com componentes em metal das máquinas, bem como a juntá-los no chão, perfazendo os já reunidos valor não inferior a €102,00 (cento e dois euros), com vista a levarem-nos consigo e fazê-los seus, contra a vontade do seu legítimo proprietário, o que só não conseguiram por terem sido detidos em flagrante delito pela G.N.R.».
E deu-se naturalmente como NÃO PROVADO que «os arguidos no dia 28.4.2022 se encontravam a desinstalar os componentes em metal das máquinas».
Ou seja, apenas não se provou que os arguidos tivessem sido encontrados a desinstalar componentes em metal das máquinas, provando-se tão-somente que foram encontrados com tais componentes.
Ou seja:
No nosso caso, o sentido da acusação mantém-se o mesmo.
É o mesmo pedaço de vida que se discute.
O alegado facto diverso – que apenas é uma parte ínfima do facto narrado na acusação – é um facto que forma uma unidade necessária, indissociável dos que constam da acusação/pronúncia.
Não é descoberta outra diversa “realidade” factual, porque ocorrida noutras circunstâncias ou praticada por outras pessoas.
Apenas se constata a não prova de uma parte de um facto.
Não havendo, in casu, factualidade nova relevante capaz de surpreender a defesa, não haveria, pois, de fazer qualquer comunicação ínsita no único artigo do CPP que aqui poderia ser invocado – o artigo 358º do CPP, pois nunca seria de convocar o artigo 359º do CPP pelas razões já expostas. Inexiste, assim, esta 1ª nulidade, a única denunciada em sede de recursos. 3.1.4. Como tal, improcede a arguição de nulidade nos termos expostos, não ocorrendo qualquer supressão dos direitos da defesa. 3.2. SOBRE OS FACTOS
3.2.1. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto sob dois prismas:
· o da impugnação ampla, se tiver sido suscitada;
· e dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP.
Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, nº 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.
Comecemos pela que primeiro[4] deve ser analisada pois a sua procedência pode levar ao reenvio do processo para a 1ª instância, ao abrigo do artigo 426º do CPP, se este tribunal não tiver condições para decidir a causa. 3.2.2. Na realidade, estabelece o artigo 410º, nº 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: 1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; 2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; 3. Erro notório na apreciação da prova.
Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º do CPP.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410º do CPP.
Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.
Este último, numa tese inicialmente defendida, permitiria uma maior amplitude do recurso, pela também possibilidade de análise da prova registada, mas uma tal solução poria em causa o princípio da imediação com que havia sido apreciada a prova na primeira instância, princípio cujo cumprimento seria de muito difícil alcance pelo tribunal de recurso.
Daí a solução intermédia, chamada de revista alargada.
Tal sindicância não deixa de ser, em bom rigor, uma actividade puramente jurídica, pois basear-se-á apenas no texto da decisão recorrida e não em qualquer prova que exista fora dele, seja ela documental ou outra. 3.2.3. Quais os vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do CPP?
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, …o[5].
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, …[6].
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, …
"[7].
Os conceitos podem confundir-se à primeira vista mas têm palco próprio e distinto entre si.
O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando:
a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;
b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP;
c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. 3.2.4. Há no acórdão recorrido algum vício do artigo 410º/2 do CPP?
Embora o conhecimento destes vícios seja de conhecimento oficioso, acabamos por considerar que a invocação pelas defesas do uso indevido da chamada prova indirecta configura o vício do artigo 410º, nº 2, alínea c) do CPP (e já não um erro de julgamento, só sindicável por recurso à prova gravada, nos termos do artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP).
Note-se que o recurso nº 1 impugna os factos provados nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 12, 13 e 14.
Há um voto de vencido por parte da 2ª Juíza Adjunta do Colectivo que pugna pela absolvição dos arguidos quanto ao crime de furto qualificado por entender que não se fez prova da sua autoria do furto levado a cabo antes desse dia 28.4.2022 (aceitando apenas a sua condenação pela prática do mesmo crime, só que na forma tentada).
Esta Relação anulou o acórdão anterior por falta de exame crítico da prova.
Deixámos escrito o seguinte: «3.1.2.2. Com este pano de fundo, vejamos, então, o nosso caso concreto e analisemos a forma como fez o tribunal recorrido esse exame crítico das provas quanto à imputação criminosa aos dois arguidos recorrentes do delito em causa ou à sua desresponsabilização.
Lida a decisão recorrida, só podemos afirmar, em alto e bom som, que o exame crítico não foi suficientemente feito em texto corrido de forma a satisfazer plenamente os requisitos legais.
De facto, não é perceptível a forma como o Colectivo de dois juízes de Leiria – já que a 3ª adjunta votou vencida, não concordando com a condenação dos arguidos pela prática do furto qualificado consumado tido por praticado no período entre 10 e 28 de Abril de 2022 - declara o seu convencimento quanto à tese acusatória.
… In casu, de juízes convencidos de que os arguidos praticaram o furto descrito nos factos 1 a 5, os dois juízes de Leiria teriam de passar a juízes convincentes.
E NÃO O FORAM.
E até se exigiria que o fossem sabendo que o 3º elemento do Colectivo votou contra a sua convicção.
De facto, a explicação dada na motivação é deveras pobre e meramente enunciativa, não se compreendendo os argumentos aventados para se considerar que, afinal, se fez prova indubitável da culpabilidade dos arguidos no 1º furto.
…
Portanto, não foi devidamente feito o exame crítico da prova produzida integralmente em julgamento.
O que significa, aqui, recorrer às regras da experiência comum?
Ninguém assistiu à prática dos factos 1 a 5, nomeadamente as duas únicas testemunhas ouvidas.
Dois arguidos faltaram à audiência e o arguido P… não prestou declarações.
De que forma é que foi lançada mão da chamada prova indirecta[8]?
…».
Aqui chegados, perguntamos:
O novo aresto de Leiria lança mais luz, e a eficaz, sobre os motivos que levaram o Colectivo a julgar que foram TAMBÉM os 3 arguidos os indivíduos que entraram na fábrica durante o espaço temporal situado no facto provado nº 1?
A resposta é negativa.
Damos aqui por reproduzido tudo o que explanámos no 1º aresto em sede da chamada «prova indirecta».
Lembremos o que também se deixou escrito no nosso 1º aresto[9]:
«Ainda se dirá que teria ficado melhor ao Colectivo explicitar, de forma mais desenvolvida, o contributo de cada um dos documentos enunciados para a prova dos factos.
Apenas se deixa escrito, de forma insuficientemente lapidar, que:
«(…) a convicção do Tribunal assentou, essencialmente (…) na análise da prova documental junta aos autos, nomeadamente:
a. Auto de notícia de fls. 39 a 42;
b. Relatório tático fotográfico de fls. 43 a 46;
c. Relatório táctico de inspecção judiciária de fls. 47 a 48;
d. Relatório tático fotográfico de fls. 49 a 51;
e. Auto de revista e apreensão de fls. 52 a 53;
f. Auto de apreensão de fls. 54 a 55;
g. Auto de busca e apreensão de fls. 94 a 95;
h. Certidão permanente de fls. 120 a 126;
i. Pesquisa das bases de dados do registo automóvel de fls. 127;
j. Certificados de registo criminal de fls. 520 e ss;
k. Pesquisas das bases de dados da segurança social de fls. 172 a 174 e
l. Relatórios sociais de fls. 495 e ss, 505 e ss, 509 e ss»
Em que medida em que os documentos a. a i. contribuíram para a prova dos factos, nomeadamente os controvertidos 1 a 5?
Ignoramos».
Mais umas linhas foram acrescentadas ao texto da motivação, é certo.
Contudo, em nome do princípio constitucional do «in dubio por reo», somos sensíveis aos argumentos das defesas e vamos considerar que nos surgem dúvidas razoáveis sobre a autoria do furto levado a cabo antes de 28.4.2022.
A versão acusatória resulta integralmente da percepção veiculada pela testemunha BB, agente policial da GNR, que, com os colegas, deteve os 3 arguidos nesse mesmo dia 28.4.2022.
De nada mais.
Ele próprio não tem certezas, apenas supõe (aliás, os relatórios policiais existentes em inquérito dão sempre conta dessa suposição).
É daqui que o tribunal, invocando a prova indirecta, chega à conclusão fáctica veiculada no acórdão recorrido (se os arguidos foram encontrados no interior da fábrica com intuitos furtivos, no dia 28.4.22, então foram eles que já lá estiveram antes, consumando o furto dos bens mencionados nos factos provados nºs 4 e 5).
Parece-nos temerária a conclusão a que chegaram 2 elementos do Colectivo de Leiria, concordando-se aqui com as lucubrações da 2ª Juíza vencida.
As dúvidas assolam-nos:
· desconhece-se quem foram os autores do 1º furto;
· desconhece-se se foram os 3 ora arguidos, se só dois (e quais?), se só um (qual?);
· desconhece-se se esse 1º assalto foi levado a cabo em concertação de esforços entre os 3 arguidos;
· inexistem provas testemunhais desse 1º assalto, não havendo qualquer vestígio lofoscópico da autoria do mesmo;
· houve um arrombamento da porta metálica das traseiras da fábrica e não duvidamos que estes arguidos, neste dia 28, terão entrada pela dita porta (terá havido a tentativa de entrada por uma janela, não lograda) – mas desconhece-se quem a arrombou;
· estavam de luvas neste dia pois sabiam que iriam furtar material que exigiria o seu manuseamento, sem que daqui se infira que já o soubessem por anterior entrada no edifício (é natural que se pense que uma fábrica desactivada contenha material desse jaez);
· o facto de terem entrado pela porta metálica não significa que tenham ido lá «direitinhos», na expressão do acórdão – poderão ter procurado possíveis entradas (veja-se o que consta de fls 50, foto 6) e encontrado esta porta já arrombada, eventualmente por terceiros;
· o facto de se encontram munidos pelos bens referidos nos factos provados nºs 8 a 11 não nos permite concluir que foram eles os autores do arrombamento da dita porta metálica (os arguidos foram detidos pela GNR na posse de ferramentas necessárias ao trabalho de retirada de cabos a que se estavam a dedicar naquele preciso dia 28);
· as regras da experiência comum não nos levam aqui tão longe, não devendo os pesados CRC destes homens guiar-nos no sentido de uma perpétua culpa por tudo o que de ilícito à sua volta se passe;
Perguntam-se duas das Exmªs Juízas:
«Se assim não fosse que estavam os arguidos ali a fazer?»
Possível resposta: para furtar material que encontrassem, decisão tomada naquele específico dia.
»E porque haveriam eles de recolher as peças? E porque haveriam outras pessoas de ter ido desmontar e desmantelar os cabos e as máquinas para eles depois irem buscar?»
Possível resposta: a ligação entre os dois momentos furtivos é fugaz – poderiam ter ali entrado, visto os cabos já mexidos, não por eles em momento anterior, e resolvido apoderar-se deles.
«E porque traziam com eles ferramentas que todos nós sabemos que se destinam a atuar através do “modus operandi” dos arguidos?»
Possível resposta: para levarem a cabo a sua intenção daquele dia - furtar bens alheios de alguma dimensão.
«E por fim, porque iriam estes arguidos entrar exatamente pela porta que já tinha sido previamente arrombada?»
Possível resposta: porque rondaram a fábrica, tentaram entrar por outro lado e acabaram por descobrir esta porta já arrombada (cfr. documento de fls 50 e fotos nºs 7 e 8).
Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que, face à prova, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador, não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».
O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
Foi o que aqui aconteceu, a nosso ver, e salvo o devido respeito. Não ficou o Tribunal de Leiria (duas das Exmªs Juízas) em estado de dúvida. Só uma Exmª Juíza subscritora do acórdão ficou com dúvidas. E nós com ela.
As dúvidas são razoáveis, aliás comungadas pelo Exmº PGA nesta Relação.
E, se assim, é, vamos entender que o acórdão laborou em erro notório na apreciação da prova (aferido pela leitura pura e simples do texto do mesmo), facilmente dirimido por esta Relação, ao abrigo dos artigos 426º, nº 1 e 431º do CPP, face às dúvidas que nos assolam e por intervenção clara do princípio «in dubio pro reo».
Se assim é, fica prejudicada a apreciação de alegados erros de julgamento.
3.2.5. Face ao exposto: A) - a factualidade provada – factos a 1 a 14, não se mexendo nos outrora factos nºs 15, 18, 19 e 20 - fica assim redigida:
«1. No dia 28-04-2022, de comum acordo, em comunhão de esforços e mediante um plano previamente combinado entre todos, C…, P… e B…, dirigiram-se às instalações onde operou a fábrica … sita na Rua ….
2. Os arguidos fizeram-se transportar no veículo ligeiro de passageiros, …, que deixaram estacionado, numa estrada de terra batida, nas imediações das instalações fabris acima identificadas.
3. Aí chegados, através de uma porta metálica, sita nas traseiras do edifício, que dava acesso ao 2º andar, introduziram-se no interior das ditas instalações.
4. No dia 28-04-2022, quando os militares da G.N.R. … se deslocaram às referidas instalações a fim de proceder à inspecção judiciária ao local, cerca das 17h40m, depararam-se com os arguidos C…, P… e B… dentro das instalações da dita fábrica, mais concretamente no primeiro andar.
5. Nestas circunstâncias de tempo e lugar encontravam-se os arguidos com componentes em metal das máquinas, bem como a juntá-los no chão, perfazendo os já reunidos valor não inferior a €102,00 (cento e dois euros), com vista a levarem-nos consigo e fazê-los seus, contra a vontade do seu legítimo proprietário, o que só não conseguiram por terem sido detidos em flagrante delito pela G.N.R.;
6. Em face do descrito foi efectuada revista ao arguido C…, tendo o mesmo na sua posse:
…
7. Efectuada revista ao arguido P…, tinha o mesmo na sua posse:
…
8. Foram, ainda, apreendidos os seguintes objectos pertença dos arguidos, que se encontravam junto a si, nas supra identificadas instalações fabris:
…
9. Efectuada busca ao veículo acima identificado, …, foram apreendidos os seguintes objectos, pertença dos arguidos:
…
10. Tais objectos apreendidos aos arguidos destinavam-se a auxiliar os arguidos na prática dos factos acima descritos.
11. Os arguidos actuaram em concertação de esforços e intentos, com uma divisão previamente acordada das tarefas, no intuito de se apropriarem daqueles objectos, que sabiam não lhes pertencerem, o que não concretizaram por motivos alheios à sua vontade;
12. Agiram os arguidos de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal». B)- Os anteriores factos provados nºs 15 a 20 passarão a ser os factos nºs 13 a 18, respectivamente. C)- No facto provado nº 16 – agora, nº 14 - dever-se-á acrescentar um último parágrafo:
· «Por decisão de 13.7.2023, transitada em julgado em 2.10.2023, o arguido foi condenado no âmbito do Proc. nº 245/23.... pelo crime de violação de imposições, proibições ou interdições na pena de 5 meses de prisão suspensa na sua execução por um ano». D)- No facto provado, outrora nº 17 e agora nº 15, deverá ter como não escrita a duplicação da condenação operada no Pº 56/08.... (Porto de Mós), acrescentando-se o seguinte (boletim nº 27):
· «No âmbito do processo n.° 10/08...., do 2º Juízo do Tribunal de Porto de Mós, pela prática, em 2008, de um crime de cultivo para consumo (estupefacientes), foi condenado na pena de 27 dias de multa, por sentença proferida em 23.11.2011». E)- Já como FACTOS NÃO PROVADOS, acrescentamos os seguintes ao já enunciado pelo Colectivo de Leiria:
«Em data não concretamente apurada, compreendida entre as 14h do dia 10-04-2022 e as 14h do dia 28-04-2022, e anteriormente aos factos narrados no facto provado nº 1, de comum acordo, em comunhão de esforços e mediante um plano previamente combinado entre todos, C…, P… e B…, dirigiram-se às instalações onde operou a fábrica …, sita na …;
Aí chegados, de forma não concretamente apurada, partiram as componentes da fechadura da porta metálica, sita nas traseiras do edifício, que dava acesso ao 2.º andar, logrando por essa via introduzir-se no interior do mesmo;
Já dentro do edifício, arrancaram, cortaram e subtraíram os cabos, em cobre, do quadro eléctrico das instalações da identificada fábrica, bem como parte da estrutura metálica das máquinas, que compunham a linha de montagem da dita fábrica;
Objectos de valor não concretamente apurado mas não inferior a €5100,00 (cinco mil e cem euros), que levaram consigo e fizeram seus, como se lhes pertencessem, bem sabendo que os mesmos pertenciam ao proprietário das ditas instalações e que agiam contra a vontade deste;
Os arguidos actuaram em concertação de esforços e intentos, com uma divisão previamente acordada das tarefas, no intuito concretizado de se apropriarem daqueles objectos, que sabiam não lhes pertencerem, querendo e conseguindo remover obstáculos materiais a tal desiderato. 3.3. DO DIREITO 3.3.1. Face à nova fisionomia dos factos provados, torna-se claro que temos de mexer no DIREITO aplicável à causa. Assim, convolamos o crime de furto – JÁ VEREMOS SE SIMPLES OU QUALIFICADO - da forma consumada para a forma tentada. De facto:
Face aos facos provados, agora nºs 1 a 12, atingiu-se o estádio da tentativa (contrariando-se aqui as defesas).
Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se (artº 22º nº 1 do CP), sendo actos de execução, a saber, os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime, os que forem idóneos a produzir o resultado típico e os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas anteriormente (nº 2 do citado preceito).
A punibilidade da tentativa vem prevista no artº 23º do CP, devendo-se ter em consideração o disposto no artº 24º do mesmo diploma, do qual resulta que na punibilidade desta conduta estará em causa essencialmente a circunstância da consumação ou da verificação do resultado serem impedidos por facto independente da vontade do agente.
Quer isto dizer, então, que a tentativa deixa de ser punível se o agente desistir e se a desistência for relevante, sendo elemento fundamental dessa figura que a consumação não chegue a ocorrer, ou, que se evite o resultado, no domínio da tentativa acabada.
Por seu turno, a desistência para ser relevante tem de ser espontânea e a sua voluntariedade será excluída se as desvantagens ou os perigos ligados à continuação da execução se revelem, de acordo com a perspectiva do agente, desproporcionadamente grandes à luz das vantagens esperadas, de tal modo que seria desrazoável suportá-los (cfr. Figueiredo Dias, Sumários, pág. 36).
E o esforço do agente para seriamente evitar a consumação, na expressão do nº 2 do artº 24º do CP, para os casos da consumação ou da verificação do resultado serem impedidas por facto independente da conduta do desistente, tem de ser avaliado segundo um critério objectivo moldado na teoria da causalidade adequada e considerando designadamente às especiais qualidades ou conhecimentos do agente, conduta essa, por sua vez, traduzida em actos idóneos, segundo a experiência comum e tendo em conta as especiais possibilidades concretas do agente.
Ora, no nosso caso, pode concluir-se com a necessária certeza que os arguidos se preparavam para fazer seus os componentes em metal das máquinas (facto nº 5), que sabiam não lhes pertencer e que actuavam contra a vontade da sua legítima proprietária. 3.3.2. Existe tentativa e de que crime?
Cai a qualificativa do nº 204º, nº 1, alínea a) (o valor dos bens tentados subtrair não são de valor elevado) e a qualificativa do nº 2, alínea e), ambos do CP, na medida em que se deu como provado apenas o que consta do novo facto nº 3, ou seja:
3. Aí chegados, através de uma porta metálica, sita nas traseiras do edifício, que dava acesso ao 2º andar, introduziram-se no interior das ditas instalações.
Não se deu comprovado que o arrombamento da dita porta metálica tenha sido levado a cabo pelos arguidos mas que apenas por ela entraram.
Não há arrombamento (existiu mas não se provou que fosse da sua prévia autoria) nem escalamento (entraram por uma porta e não por qualquer local não destinada à entrada de pessoas[10]), pressupondo as definições apostas no artigo 202, d) e e) do CP. Mas já temos aqui a qualificativa do nº 1, alínea f) do CP - «introduzindo-se ilegitimamente em (…) estabelecimento industrial ou espaço fechado».
Sobre esta qualificativa, diremos, parafraseando argumentos lidos na jurisprudência:
· A doutrina e a jurisprudência têm sustentado que o que caracteriza e justifica a agravante qualificativa do furto da alínea f) do nº 1 do artigo 204º do Código Penal [e também da alínea e) do n.º 2] não é o facto de o agente se introduzir num espaço fechado, mas sim, a circunstância de o espaço fechado estar conexionado com a habitação ou com o estabelecimento comercial ou industrial.
· A introdução em espaço fechado, só por si, não representa um dano acrescido que justifique a previsão da qualificação proposta para a ação do furto.
· O que verdadeiramente reclama uma tutela penal reforçada é a habitação e o estabelecimento comercial ou industrial, conceitos que, para este efeito, incluem os espaços fechados limítrofes, anexos ou a eles agregados. Há um reduto de mais-valias ligado ao espaço físico dedicado à habitação e ao estabelecimento comercial ou industrial e suas dependências contíguas e fechadas que o legislador entendeu ser merecedor de uma tutela acrescida do bem jurídico.
No nosso caso, a introdução ilegítima é na própria fábrica, não em espaço fechado adjacente.
E, por isso, aplicaremos o doutrinado pelo Acórdão da Relação do Porto, datado de 7.11.2012 (Pº 81/10.9GAVFR.P1):«Não comete um crime de furto qualificado por escalamento integrador do artigo 202.º, nº 2, al. e), mas antes um crime de furto qualificado por introdução ilegítima da previsão do artigo 202.º, nº 1, al. f) aquele(s) que acede(m) a uma instalação fabril, ultrapassando primeiro um obstáculo constituído por uma vedação em rede, aproveitando-se da circunstância da mesma já se encontrar cortada e por isso danificada, e depois, num segundo momento, entra(m) por uma das portas das instalações fabris, cuja fechadura já se encontrava forçada, retirando do interior destas instalações certos bens aí existentes, que fazem seus».
E, ao fazermos esta convolação jurídica, não teremos de cumprir o artigo 358º, nº 3 do CPP pois mantemo-nos sempre no âmbito do mesmo artigo do CP (o 204º, variando, apenas a qualificativa), sempre sendo um minus relativamente ao que consta da decisão recorrida, optando-se por uma condenação por forma equivalente de manifestação do mesmo tipo legal, em estádio menos oneroso para a defesa, defesa essa que não é surpreendida por esta convolação, atento até o teor das suas alegações de recurso (subsidiariamente, pugnam por uma condenação por crime tentado de furto simples).
Note-se ainda que os arguidos foram até notificados do parecer do Exmº PGA nesta Relação que segue esta tese da convolação do crime consumado para o tentado, não sendo, assim, um factor surpresa para qualquer uma das defesas este novo figurino da incriminação.
Concluindo: praticaram os 3 arguidos, em co-autoria, e na forma tentada (artigos 22º e 23 º do CP), um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 1, alínea e) do CP, pelo qual têm se ser punidos, contrariando-se assim a defesa do recurso nº 1 que pugna por uma tentativa de um mero crime de furto simples.
3.3.3. E que pena iremos aplicar aos arguidos?
A moldura penal abstracta mudou (para menos).
Assim, temos uma moldura penal abstracta de prisão de 30 dias a 5 anos OU de multa de 10 a 600 dias.
A moldura acaba por ser mais reduzida face ao estádio da tentativa – aplica-se aqui a moldura da atenuação especial[11] [artigo 73º, nº 1, alíneas a), b) e c) do CP].
O artigo 71º, nº 1, do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve encontrar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.
A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística.
Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena.
A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, sendo antes uma discricionariedade juridicamente vinculada.
O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do Direito e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, e na feliz fórmula de Simas Santos, «mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, atos cognitivos e puras valorações».
Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena.
De facto, a determinação da pena envolve diversos tipos de operações:
· a)- determinação da medida abstracta da pena (olhando para o tipo legal de crime em causa);
· b)- escolha, no caso de molduras compósitas alternativas de prisão ou multa, da pena principal, nos termos do artigo 70º, do CP;
· c)- fixação do quantum da pena principal dentro da moldura respectiva, com base nos critérios do artigo 71º, do CP;
· d)- ponderação da aplicação de uma pena de substituição;
· e)- fixação, finalmente, desta pena (sua medida concreta).
Determinada a concreta medida da pena principal e, tendo esta de ser sempre uma pena de prisão, impõe-se verificar se ela pode ser objecto de substituição, em sentido próprio ou impróprio, e determinar a sua medida.
Tais penas de substituição “podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas (…) se não são, em sentido estrito, penas principais (porque o legislador não as previu expressamente nos tipos de crime) …[são] penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição)” - Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II, As consequências jurídicas do crime, p. 91. No nosso caso, só será possível de aplicar a suspensão da execução da pena ao arguido se se aplicar uma pena de prisão igual ou inferior a 5 anos. No nosso caso: Quanto à escolha da pena, olhando para os critérios do artigo 70º do CP, torna-se óbvio para este tribunal que a pena de multa não satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, assente os seus passados criminais cheios de ilicitudes no âmbito, também, dos crimes contra o património. Impõe-se, pois, a aplicação de uma pena de prisão.
Com que moldura?
A de 30 dias a 3 anos e 4 meses de prisão. Olhando agora para as circunstâncias previstas no artigo 71º/2[12] do CP, diremos que perante o quadro de elevado grau de desvalor objectivo e ético-subjectivo demonstrados, sendo o dolo directo intenso, condenáveis os propósitos dos arguidos, nomeadamente, tendo em conta o modusoperandi e o total desprezo pelo património alheiro, entendemos que é muito elevado o juízode censurabilidadeético-jurídica e, portanto, de culpabilidade revelante, ao que acresce o facto de existir grande alarme social relativamente a estes actos praticados em sociedade pelos «amigos do alheio», que quase fazem disto «modo de vida», e sem perspectivarmos grande atenuantes (e as defesas não argumentam com quaisquer relevantes e credíveis argumentos nesse sentido).
Como tal, entendemos justa a pena, para cada um deles, de 2 anos de prisão, situada um pouco acima do meio da moldura. 3.3.4. E será de SUSPENDER a execução destas duas penas (as dos recorrentes)?
O regime jurídico de tal pena está previsto nos artigos 50º a 57º do CP, e nos artigos 492º a 495º do CPP.
O artigo 50º, nº 1, do CP – revisto em 2007 - dispõe: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição». As finalidades da punição são, nos termos do disposto no artigo 40º, do C.P., a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Traduzindo-se na não execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos (outrora era de 3 anos), entendemos, com o apoio da melhor doutrina e jurisprudência, que a suspensão constitui uma verdadeira pena autónoma (cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 10.07.2007, Proc. nº 912/07-1, www.dgsi.pt).
Já assim se devia entender face à versão originária do Código Penal de 1982, como se infere das discussões no seio da Comissão Revisora do Código Penal, em que a suspensão da execução da pena, sob a designação de sentença condicional ou condenação condicional (que no projecto podia assumir a modalidade de suspensão da determinação concreta da duração da prisão ou de suspensão da execução total da pena concretamente fixada) figurava como uma verdadeira pena, ao lado da prisão, da multa e do regime de prova, no art. 47º do projecto de 1963, que continha o elenco das penas principais.
No seio da Comissão, Eduardo Correia, autor do projecto do Código Penal, teve a oportunidade de sustentar o carácter autónomo, de verdadeiras penas, da sentença condicional e do regime de prova, contrariando o entendimento de que seriam institutos especiais de execução da pena de prisão (Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, Separata do B.M.J.)
Figueiredo Dias, a propósito do projecto de 1963 e do Código Penal de 1982, recorrendo a algumas expressões que haviam sido utilizadas na discussão travada na Comissão Revisora, assinalou: «(…) as “novas” penas, diferentes da de prisão e da de multa, são “verdadeiras penas” – dotadas, como tal, de um conteúdo autónomo de censura, medido à luz dos critérios gerais de determinação da pena (artº 72º) -, que não meros “institutos especiais de execução da pena de prisão” ou, ainda menos, “medidas de pura terapêutica social”. E, deste ponto de vista, não pode deixar de dar-se razão à concepção vazada no CP, aliás continuadora da tradição doutrinal portuguesa segundo a qual substituir a execução de uma pena de prisão traduz-se sempre em aplicar, na vez desta, uma outra pena» (Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 90).
O mesmo autor, definindo a suspensão da execução da pena de prisão como “a mais importante das penas de substituição” (e estas são, genericamente, as que podem substituir qualquer das penas principais concretamente determinadas), chama a atenção para o facto de, segundo o entendimento dominante na doutrina portuguesa, as penas de substituição constituírem verdadeiras penas autónomas (cfr. ob. cit., p. 91 e p. 329).
Nas suas palavras, «a suspensão da execução da prisão não representa um simples incidente, ou mesmo só uma modificaçãoda execução da pena, mas uma pena autónoma e, portanto, na sua acepção mais estrita e exigente, uma pena de substituição» (cfr. ob. cit., p. 339).
A revisão do Código Penal, introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, reforçou o princípio da ultima ratio da pena de prisão, valorizou o papel da multa como pena principal e alargou o âmbito de aplicação das penas de substituição, muito embora não contemple, como classificações legais, as designações de «pena principal» e de «pena de substituição».
A classificação das penas como principais, acessórias e de substituição continua a ser válida e operativa, ainda que a lei não utilize expressamente estas designações, a não ser no tocante às penas acessórias.
Deste modo, sob o prisma dogmático, penas principais são as que constam das normas incriminadoras e podem ser aplicadas independentemente de quaisquer outras; penas acessórias são as que só podem ser aplicadas conjuntamente com uma pena principal; penas de substituição são as penas aplicadas na sentença condenatória em substituição da execução de penas principais concretamente determinadas.
Se assim é, ou seja, se a pena de suspensão de execução da prisão é uma pena de substituição em sentido próprio (em contraste com as penas de substituição detentivas ou em sentido impróprio), temos como pressuposto material da sua aplicação que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza na seguinte proposição: a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Assim entendeu-se que a aplicação de uma suspensão da execução da pena é um poder-dever que vincula o julgador, que a terá de decretar, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os citados pressupostos.
Encontramo-nos face a um poder-dever, sendo certo que a suspensão da execução da pena de prisão é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico.
A suspensão da execução da pena «une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal ao chamamento, pela ameaça de executar no futuro a pena, à própria vontade do condenado para reintegrar-se na sociedade».
É uma pena, e não uma forma de executar uma outra pena de prisão, porque oriunda de condenação produtora de antecedentes criminais.
É uma medida de correcção, enquanto busca, a reparação do delito ou «prestações socialmente úteis».
Aproxima-se das medidas de ajuda social, se no domínio respetivo se desenham instruções que «afetam o comportamento futuro do condenado».
E tem uma coloração sócio-pedagógica ativa, pelo «estímulo ao condenado para que seja ele mesmo quem com as suas próprias forças possa durante o regime de prova reintegrar-se na sociedade» (Jescheck, Tratado, versão espanhola, vol. II, págs. 1152 e 1153). Ora, a suspensão da execução de uma pena só tem razão de ser quando for possível fazer um juízo de prognose favorável ao arguido.
Como tem vindo a ser entendido pelos nossos tribunais superiores, “na suspensão da execução da pena de prisão, não são as considerações sobre a culpa do agente que devem ser tomadas em conta, mas antes juízos prognósticos sobre o desempenho da sua personalidade perante as condições de vida, o seu comportamento e bem assim as circunstâncias de facto que permitam ao julgador fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas”, conforme Acórdão do STJ, de 25.6.2003, CJ, Acs. do STJ, ano XXI, tomo II, pág. 21. Mais, a suspensão da execução da pena não deverá ser utilizada pelo julgador se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
Na realidade, o valor da socialização em liberdade tem que estar balizado por exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, de acordo com o que defende Figueiredo Dias, Direito Penal Português, pág. 344.
Em nenhum outro momento o Juiz incorpora tão dramaticamente a Justiça, como quando fixa a pena aplicável, sendo certo que a lei não conhece indivíduos, prevendo apenas espécies – cf. R. Salleilles, “La Individualisation de la Peine”, Étude de Criminalité Sociale, Paris, 1927, pág. 267.
Conforme disse Montesquieu, «a justiça das penas, mais do que a sua severidade, é o que consagra a força das leis», sendo certo que uma pena não deve visar a retaliação sobre quem cometeu um crime, antes deve dirigir-se, sempre que possível, para a respetiva ressocialização.
Ouçamos o Acórdão do STJ nº 8/2012 de 24.10.2012: “(…) a aplicação desta pena de substituição só pode e deve ser aplicada quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, como decorre do artigo 50º. Circunscrevendo-se estas, a partir de 1 de Outubro de 1995, de acordo com o artigo 40º do Código Penal, à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, é em função de considerações de natureza exclusivamente preventivas - prevenção geral e especial - que o julgador tem de se orientar na opção ora em causa. Como refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 518, pp. 342-343, pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta - «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade».
E acrescentava: para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.
Por outro lado, há que ter em conta que a lei torna claro que, na formulação do prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto.
Adverte ainda o citado Professor - § 520, p. 344 - que apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime».
Reafirma que «estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa».
Como refere Hans Heinrich Jescheck, na obra atrás identificada, «na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial. A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se reintegrar na sociedade».
Trata-se de uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança fundada e não uma certeza - assumida sem ausência de risco - de que a socialização em liberdade se consiga realizar, que o condenado sentirá a sua condenação como uma advertência séria e solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito”.
*
Vejamos então a situação de cada um destes 2 arguidos. Nenhum deles nos dá qualquer garantia de que se arredaram da delinquência no seu devir. O seu passado criminal é impressionante. O arguido B…o tem sete anteriores condenações criminais, desde 2011 até 2023, pela prática de crimes de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos (duas condenações em penas de multa), de tráfico de estupefacientes de menor gravidade (uma condenação, em 2016, em pena de prisão suspensa na sua execução, com regime de prova), de condução de veículo em estado de embriaguez (uma condenação em pena de multa), de violação de imposições, proibições ou interdições (duas condenações em pena de multa e de prisão suspensa na sua execução) e de desobediência (uma condenação em multa). O arguido C… tem 4 páginas deste acórdão recorrido preenchido com as suas antecedentes VINTE condenações criminais, desde 1988 a 2022, já tendo conhecido penas de multa, penas de prisão substituída por multa, penas de prisão suspensas na sua execução e larguíssimas penas efectivas de prisão, pela prática de crimes de consumo de estupefacientes, de roubo, de furto qualificado, de condução sem habilitação legal, de ofensa à integridade física simples e de furto simples.
A suspensão está, assim, completamente arredada de cogitação (bem como a pena do artigo 58º do CP).
A defesa não nos trouxe qualquer válido e acrescido argumento que nos faça acreditar que estes dois indivíduos estarão prontos para a licitude, abandonando de vez os caminhos ínvios da delinquência. Como tal, não vamos suspender a execução destas duas penas de prisão (2 anos), validando-se a decisão do JCC de Leiria neste particular. 3.4. Que dizer a situação do arguido P…, ora não recorrente?
A procedência parcial destes recursos aproveita a esse arguido, por se tratar de um cometimento em comparticipação, tal como se estipula no artigo 402º, nº 1, nº 2, alínea a) do CPP, não sendo a questão da qualificação do crime de furto cometido pelos 3 arguidos qualquer «motivo estritamente pessoal» de cada um deles.
A mesma pena de 2 anos de prisão aplicaremos agora ao arguido não recorrente.
E no que ainda a ele diz respeito, mantêm-se plenamente as razões de prevenção especial negativa, face à perigosidade que tem evidenciado o mesmo, para se manter como efectiva a pena de prisão a que agora foi condenado. 3.5. Procedem, assim, de forma parcial, os recursos. III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em, embora por outras razões, dar provimento parcial aos dois presentes recursos, em consequência, decide-se:
· 1º - julgar improcedente a nulidade de acórdão invocada nos dois recursos intentados;
· 2º- Proceder à alteração da matéria de facto provada e não provada tal como se determinou no ponto 3.2.5. A), B), C), D) e E) deste aresto;
· 3º- Condenar cada um dos arguidos C…,P…, e B…O, pela prática, em co-autoria material e na forma tentada, de um crime de furto qualificado p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 73º, nº 1, 203º, nº 1 e 204º, nº 1, al. e), todos do Código Penal napena de 2 (dois) anos de prisão, cuja execução se não suspende;
· 4º-absolveros mesmos arguidos da prática, em co-autoria material, de um crime de furto qualificado, na forma consumada, da previsão do artigo 204º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea e), por referência ao artigo 202º, alíneas a) e d), todos do Código Penal e sem prejuízo da anterior condenação. Sem tributação. Comunique de imediato o teor deste aresto à 1ª instância, com nota de não trânsito em julgado.
Coimbra, 14 de Julho de 2025 (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturaselectrónicasapostasna1.ªpágina,nostermosdoartº19ºdaPortarianº280/2013,de26-08,revistapelaPortarianº267/2018,de20/09)
Relator: Paulo Guerra
Adjunto: Alexandra Guiné
Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro
[1] O acórdão teve um voto de vencido de uma das Juízas Adjuntas, com o seguinte teor: «Votei vencida a decisão de condenação dos arguidos pelo crime de furto qualificado, na forma consumada, de que se encontram acusados, por entender que não se fez prova da prática, pelos mesmos, do referido crime, ocorrido entre 10.04.2024 e 28.04.2024. A prova produzida nos autos e em audiência permite, em meu entender, tão só julgar verificada a prática, pelos arguidos, no dia 28.4.2024, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, pelo qual deveriam ser condenados. Desconhece-se mesmo, porque prova não se produziu nesse sentido, quantas as pessoas que procederam ao assalto prévio à referida fábrica e a identidade das mesmas, sendo que, no dia 28.04.2024, na posse dos arguidos, apenas foram encontradas ferramentas, necessárias ao trabalho de retirada dos cabos a que se dedicavam na mesma data, quando surpreendidos pelas autoridades. Pugnei, assim, pela absolvição dos arguidos do crime de que se encontram acusados e pela sua condenação pelo referido crime, na forma tentada, ocorrido no dia 28.04.2024. A Juiz de Direito Cristiana Pinto de Almeida» [2] «Claro que nos referimos aos seguintes: Auto de notícia de fls. 39 a 42; Relatório tático fotográfico de fls. 43 a 46;
Relatório táctico de inspecção judiciária de fls. 47 a 48; Relatório tático fotográfico de fls. 49 a 51; Auto de revista e apreensão de fls. 52 a 53; Auto de apreensão de fls. 54 a 55; Auto de busca e apreensão de fls. 94 a 95; Certidão permanente de fls. 120 a 126; Pesquisa das bases de dados do registo automóvel de fls. 127».
[3] Este arguido, P…, não recorreu do acórdão em causa neste recurso.
Dos autos consta o seguinte: «Certifica-se que, nos presentes autos de Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 10/22.7GBLRA, o acórdão que antecede, transitou em julgado, relativamente aos arguidos abaixo indicados, nas seguintes datas: Arguido: P…, transitado em 17-03-2025». [4] Podendo, em alguns casos, ser preferível começar pela impugnação alargada se for previsível que a sua análise e decisão sobre ela acabar por suprir algum vício existente do artigo 410º, nº 2 do CPP. [5] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa.
Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339º, nº 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa.
Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [6] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual.
Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).
[7] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica.
Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso.
Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido.
Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l.
Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (nº 1 do artigo 163º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do nº 2 do artigo 410º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494.
No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666.
Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930». [8] Ela está sujeita à livre apreciação do tribunal, exige um particular cuidado na sua apreciação, apenas se podendo extrair o facto probando do facto indiciário quando seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente plausíveis.
Doutrinou o Acórdão desta Relação de 25/11/2009 o seguinte:
«Nos casos de prova indirecta o que está em causa é «o tribunal inferir racionalmente a prova dos factos a partir da prova indirecta ou indiciária desde que seja seguido um processo dedutivo baseado na lógica e nas regras de experiência comum (recto critério humano e correcto raciocínio) – cf. Ac. R. Coimbra de 2008, proc. 495/002.
A prova indirecta, sendo um meio de prova absolutamente legítimo, pode ser livremente utilizada e valorada pelo Tribunal, em todas as circunstâncias que entender como útil à sua utilização, assumindo relevância específica em circunstâncias de défice da prova directa, seja por virtude de inexistência, seja pela sua debilidade valorativa.
Nessesentido «a prova indirecta ou indiciária pode ser valorada preferencialmente pelo julgador e, só por si, conduzir à sua convicção, tal qual a prova directa», cf. Ac. RC 26.11.2008 proc. 341/06 in www.dgsi.pt.
Já nos referimos à prova indirecta em vários dos nossos arestos desta Relação, escritos desde 2009 a 2011.
Sabemos que fundamental em muitos casos da vida judiciária em que não é possível obter prova directa dos factos é a valoração da chamada “prova indirecta”.
Neste sentido: J. M. Asencio Mellado, in “Presunción de inocência em Matéria Criminal”, 1992: “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir, a todo o custo, a existência deste tipo de provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura”.
Entendemos, assim, que há que ultrapassar os rígidos cânones da valoração pelo julgador exclusivamente da prova directa, para atribuir à prova indirecta, indiciária ou por presunções judiciais o seu específico relevo nos casos de maior complexidade.
Mittermayer, in “Tratado de La Prueba em Matéria Criminal”, 1959, dizia já o seguinte: “…o talento investigador do Magistrado deve saber encontrar uma mina fecunda para o descobrimento da verdade no raciocínio, apoiado na experiência e nos procedimentos que adopta para o exame dos factos e das circunstâncias que se encadeiam e acompanham o crime. Estas circunstâncias são outras tantas testemunhas mudas, que a Providência parece ter colocado à volta do crime para fazer ressaltar a luz da sombra em que o criminoso se esforçou por ocultar o facto principal; são como um farol que ilumina o entendimento do juiz e o dirige até aos vestígios seguros que basta seguir para chegar à verdade”.
Por outro lado, há que afirmar que ao ser valorada a prova indiciária não se está a violar o princípio da presunção da inocência, uma vez que aquela valoração tem de ser objectivável, motivável e não arbitrária, baseada numa pluralidade de indícios.
Este entendimento, que já começou a ser seguido na jurisprudência nacional, tem sido defendido pela jurisprudência de Espanha, conforme os seguintes Ac do Tribunal Supremo de Espanha: Ac nº 190/2006, de 1 de Março de 2006; Ac nº 392/2006, de 6 de Abril de 2006; Ac nº 562/2006, de 11 de Maio de 2006; Ac nº 560/2006, de 19 de Maio de 2006; Ac nº 557/2006, de 22 de Maio de 2006; e Ac nº 970/2006, de 3 de Outubro de 2006 (ver todas estas referências in Revista Julgar, nº 2, 2007 – EuclidesDâmasoSimões – “Prova Indiciária).
A convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Por isso, resulta que, para respeitarmos os princípios da oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como opina o acórdão da Relação de Coimbra de 6 de Março de 2002 (C.J., ano XXVII, 2º, página 44), “quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Nesta parte, importa realçar que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos (prova directa), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este (prova indirecta ou indiciária).
A provaindirecta “…reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág. 289.
Como acentua o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996, “a inferência na decisão não é mais do que ilação, conclusão ou dedução, assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à provaindirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6º, tomo 4º, pág. 555.
No mesmo sentido veja-se o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV, 1º, pág. 51.
Como já se disse, em matéria de apreciação da prova, o artigo 127º do C.P.P. dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Na expressão regras de experiência, incluem-se as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184).
Atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso, há que recorrer, por vezes, à prova indirecta para basear a convicção da entidade decidente sobre a existência ou não da situação de facto.
Como acentua Euclides Dâmaso, no seu artigo «Prova indiciária (contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente)», publicado na Revista Julgar, nº 2, 2007, «vale isto por dizer-se que a “prova indirecta, indiciária, circunstancial ou por presunções”, que alguns decisores por vezes (infelizmente raras e apenas em crimes contra as pessoas) meticulosa e exigentemente praticam sem claramente assumirem fazê-lo, tem que ganhar adequada relevância jurisprudencial e dogmática também entre nós. Sob pena de a Justiça não se compatibilizar com as exigências do seu tempo e de se agravar insuportavelmente o sentimento de impunidade face aos desafios criminosos de maior complexidade e desvalor ético-jurídico, mormente os “crimes de colarinho branco” em geral e a corrupção e o branqueamento em particular».
Prieto-Castro Y Fernandiz e Gutiérrez de Cabiedes opinam mesmo que«o indício apresenta grande importância no processo penal, já que nem sempre se têm à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, com o esforço lógico-jurídico intelectual necessário, antes que se gere impunidade».
Ana Brito, em brilhante artigo intitulado «A valoração da prova e a prova indirecta», publicado em e-book do CEJ («Da Prova Indirecta ou por Indícios», Julho de 2000), disserta sobre a figura da prova indirecta, resumindo muito do que atrás se escreveu: «(…) Nas lições escritas em 1975, Figueiredo Dias, realça a “deslocação do fulcro de compreensão do próprio direito das normas gerais e abstractas para as circunstâncias concretas do caso”. Ensina que livre apreciação significa ausência de critérios legais pré-fixados e, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo”. Não poderá tratar-se de uma convicção puramente subjectiva ou emocional. Curando-se sempre de uma convicção pessoal, ela é necessariamente objectivável e motivável. Esclarece ainda Figueiredo Dias que a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, resultado de um convencimento do juiz sobre a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. (…) Paulo Sousa Mendes adverte que “o julgador moderno tem, cada vez mais, de produzir abundante fundamentação dos seus juízos probatórios. Para o efeito ele faz apelo não só aos meios de prova científicos, mas também às chamadas regras da experiência”. (…) Como se sabe, a prova indiciária é aquela que permite a passagem do facto conhecido ao facto desconhecido. É neste campo que as regras da experiência se tornam necessárias, na medida em que ajudam à realização dessa passagem. Seja como for, a apreensão do facto principal terá, no final, de ser feita de um modo totalizante, pois o juiz historiador nunca pode perder de vista que lhe cabe fazer um juízo objectivo, concreto e atípico acerca do caso decidendo”. O juiz terá sempre que “averiguar em que medida os factos concretos e individualizados do caso, confirmam ou infirmam aquelas inferências gerais, típicas e abstractas… As regras da experiência, os critérios gerais, não serão aqui mais do que índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas apenas isso – é assim em geral, em regra, mas sê-lo-á realmente no caso a julgar?” (aqui, Paulo de Sousa Mendes cita Castanheira Neves). Revemo-nos nas conclusões deste autor, que são as seguintes: “as regras da experiência servem para produzir prova de primeira aparência, na medida em que desencadeiam presunções judiciais simples, naturais, de homem, de facto ou de experiência, que são aquelas que não são estabelecidas pela lei, mas se baseiam apenas na experiência de vida”. “Então, elas ficam sujeitas à livre apreciação do juiz”. (…) No acórdão do STJ, de 06/10/2010, relatado por Henriques Gaspar, afirma-se que “a verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos. Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais.” Também no acórdão do TRL, de 13/02/2013, relatado por Carlos Almeida, se desenvolve: “Nas questões humanas não pode haver certezas… Também não se pode pensar que é possível, sem mais, descobrir “a verdade” (…). A reconstrução que o tribunal deve fazer para procurar determinar a verdade de uma narrativa de factos passados irrepetíveis assenta essencialmente na utilização de raciocínios indutivos que, pela sua própria natureza, apenas propiciam conclusões prováveis. Mais ou menos prováveis, mas nunca conclusões necessárias como são as que resultam da utilização de raciocínios dedutivos, cujo campo de aplicação no domínio da prova é marginal. O cerne da prova penal assenta em juízos de probabilidade e a obtenção da verdade é, em rigor, um objectivo inalcançável, não tendo por isso o juiz fundamento racional para afirmar a certeza das suas convicções sobre os factos. A decisão de considerar provado um facto depende do grau de confirmação que esses juízos de probabilidade propiciem. Esta exigência de confirmação impõe a definição de um “standard” de prova de natureza objectiva, que seja controlável por terceiros e que respeite as valorações da sociedade quanto ao risco de erro judicial, ou seja, que satisfaça o princípio in dubio pro reo”. (…) A prova indirecta determina especiais exigências de fundamentação. Nas várias classificações das provas, a distinção mais importante segundo Taruffo, é a que distingue entre provas directas e indirectas. Seguindo de perto este autor, a distinção assenta na conexão entre o facto objecto do processo “e o facto que constitui o objecto material e imediato do meio de prova”. “Quando os dois enunciados têm que ver com o mesmo facto, as provas são directas”, pois incidem directamente sobre um facto principal. “O enunciado acerca deste facto é o objecto imediato da prova”. “Quando os meios de prova versam sobre um enunciado acerca de um facto diferente, acerca do qual se pode extrair razoavelmente uma inferência acerca de um facto relevante, então as provas são indirectas ou circunstanciais”. Trata-se de uma distinção funcional que depende da conexão entre as provas e os factos Indirectas podem ser quaisquer provas, obtidas por qualquer meio. (…) Cavaleiro Ferreira declara que a apreciação das provas indirectas pressupõe “grande capacidade e bom senso do julgador”, que “as complexas operações mentais que o manejo da prova indiciária implica exigem raras qualidades” E enumera: “inteligência clara e objectiva, experiência esclarecida, integridade de carácter, ausência de fácil ou emotiva impressionabilidade”. (…) Também Santos Cabral, em estudo sobre a prova indiciária e a sua valoração, conclui: “As regras da experiência ou regras de vida como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou a reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte para efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes, a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa, ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária”. (…) Destaco dois pontos do sumário do acórdão STJ de 06/10/2010, relatado por Henriques Gaspar, que deve merecer leitura integral: “O julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além de toda a dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada. Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras da experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões”». [9] Anotamos ainda que mais uma vez o Colectivo esqueceu-se de colocar no facto nº 16 a referência ao Pº 245/23...., constante do boletim nº 8 do arguido CC. [10] Não há furto qualificado por escalamento se a porta já se encontra aberta, mesmo que por arrombamento anterior não levado a cabo pelo actual agente, ou simplesmente encostada e o sujeito aproveita para entrar (cfr., a este propósito, Miguez Garcia e Castela Rio, p. 870 do seu CP comentado, Almedina). [11] O mínimo mantém-se intacto mas o máximo é reduzido de 1/3. [12] A saber:
«2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».