DESTITUIÇÃO DO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
APREENSÃO DE ELEMENTOS FÍSICOS DA CONTABILIDADE
Sumário

I - A destituição do administrador da insolvência tem de justificar-se em face da gravidade dos actos ou omissões em que tenha incorrido, de ordem a comprometer a relação de confiança do tribunal na continuidade do exercício das suas funções, mas também em face das consequências que tais actos ou omissões tenham determinado no curso do processo de insolvência e na realização dos seus fins.
II - Inexiste fundamento para a destituição de um administrador de insolvência, por não ter apreendido os elementos físicos da contabilidade do devedor se se verifica que tais elementos permaneceram disponíveis em suporte informático e nenhum efeito negativo para o processo de insolvência foi alegado ou demonstrado, como resultado de tal omissão.

Texto Integral

PROC. N.º 3410/21.6T8VNG-W.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 1

REL. N.º 969
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Lina Castro Baptista
2º Adjunto: Juiz Desembargador Pinto dos Santos

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO

No processo de insolvência de A..., S.A. o credor AA veio requerer a destituição do A.I., alegando que o mesmo incumpriu a obrigação de apreender a contabilidade da insolvente, permitindo que a mesma fosse destruída, pois, notificado pelo contabilista da insolvente para levantar tais documentos sob pena de a mesma ser destruída, não o fez. Mais invocou atraso na liquidação da massa insolvente.
A insolvente respondeu, juntando a comunicação do contabilista, recusando o trabalho e a conservação dos documentos, por não ser pago para o efeito.
A credora BB pronunciou-se pelo indeferimento, imputando ao próprio requerente a destruição física daqueles documentos, pelo facto de, enquanto administrador único da Insolvente, ter mantido tais documentos fora de portas.
O A.I. respondeu em 03.10.2024, dizendo que informou os autos, em sucessivos requerimentos, de que não tinham sido apreendidos os documentos de escrituração, dado que, em ordem ao cumprimento das obrigações declarativas, contabilísticas e fiscais, a empresa e os seus legais representantes, careciam dos documentos de escrituração da insolvente. em 12 de Novembro de 2022. Rejeitou ter autorizado a destruição de qualquer documentação.
Notificado o contabilista para informar se tem na sua posse documentos da contabilidade da insolvente e, em caso afirmativo, informar a que exercícios respeitam, veio por email de 08.11.2024 dizer que a contabilidade foi destruída cfr. comunicado ao A.I., acrescentando que tem na sua posse os registos informáticos dos anos de 2018, 2020 e 2021 até março. Os elementos de 2019 foram efetuados por outro contabilista sob as ordens da Eng. BB, irmã do Dr. AA.
Foi, depois, proferida a decisão recorrida, onde o tribunal concluiu pela falta de fundamento da pretensão do requerente, por considerar justificado o atraso no processo de liquidação e por haver elementos que permitem perceber a situação contabilística da insolvente antes do encerramento do seu estabelecimento. Mais considerou que a substituição do administrador na actual fase da insolvência traria “um acréscimo, indesejável, de custos processuais.”
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O requerente AA veio interpor recurso de tal decisão, concluindo nos seguintes termos:
1) O Tribunal não considerou todos os factos necessários para a boa decisão da destituição do Administrador de Insolvência, nulidade de que se reclama;
2) Designadamente os seguintes factos que foram invocados pelo recorrente:
a) Na sentença de declaração de insolvência o Tribunal nomeou “por sorteio como administrador/a da insolvência o/a Sr/a. Dr/a. CC, Avenida ..., sala ..., ... Vila do Conde, inscrito/a na lista dos administradores de insolvência do distrito judicial do Porto - artºs. 36º, al. d) e 52º, n.º 1 do CIRE e 13º, da Lei n.º 22/2013, 26/02.” (cfr., a pág. 6 da sentença de 13.05.2021)
b) No ponto 7.º, da pág. 7, da sentença de insolvência, o Tribunal decretou o seguinte: “7º. - Decreto a apreensão dos elementos de contabilidade da insolvente, para entrega imediata ao administrador da Insolvência.
3) E ainda os os factos que constam do processo e que deveriam ter sido dados como provados, ao abrigo do princípio do inquisitório (art. 11.º do CIRE), designadamente os seguinte:
c) Por douto despacho de 9 de Julho de 2021, foi autorizado o encerramento antecipado do estabelecimento, nos termos da alínea b) do artigo 157.º do CIRE, reportado à data de 13 de Maio de 2021.
d) O Administrador de Insolvência foi notificado no dia 14.05.2021, através da notificação com a Ref.ª 424840332, de que foi nomeado AI no processo de insolvência da A..., tendo ainda sido notificado da sentença insolvência da A... e avisado de que, nos termos do artº 54º do CIRE, inicia imediatamente funções a partir desta notificação.
e) O despacho de 21.09.2024 ordenou a notificação ao Senhor AI do requerimento do recorrido de 11.06.2024 e do requerimento da insolvente de 24.06.2024, onde consta em anexo o email que o contabilista certificado, DD, enviou ao Administrador da Insolvência no dia 9/11/2022 com o seguinte teor:
Bons dias
Na qualidade de contabilista certificado nº. ... venho informar de que fiz a renúncia como cc da empresa A... SA, pelo que as minhas funções cessaram na data da comunicação.
Pese embora tenha renunciado, continua o meu nome associado à empresa insolvente.
Informo também de que a documentação ficou na minha posse, não tendo sido recolhida pela responsável da empresa.
Assim sendo informo de que deverá providenciar que seja nomeado novo cc face á minha renúncia.
Comunico também de que toda a documentação na minha posse terá de ser recolhida no prazo de 30 dias.
Caso não o façam informo de que vou eliminar todos os registos contabilísticos e que vou destruir toda a documentação física na minha posse, pois só trabalho para quem me paga e para quem quero, e face á dívida não paga pelas A... SA, recuso a prestação de qualquer colaboração.
cpts
DD
f) O despacho de 21.09.2024 foi notificado ao AI no dia 23.11.2024, com a Ref. 46371544.
g) No requerimento de 03.10.2024, com a Ref. 463715448 (cfr., o ponto 15), o AI confessa que recebeu o referido correio eletrónico de 9/11/2022, juntando em anexo uma cópia do email que o contabilista certificado, DD, enviou ao Administrador da Insolvência no dia 9/11/2022.
h) Apesar desse facto, o Administrador de insolvência não procedeu à apreensão da contabilidade da insolvente, não impedindo que os documentos da contabilidade da insolvente fossem destruídos pelo contabilista certificado.
i) Por douto despacho judicial de 11.10.2021 foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência
j) Em 24.01.2022 o Administrador emitiu parecer no sentido de “a presente insolvência (ser) qualificada como culposa, indicando-se para o efeito o administrador único da insolvente, Sr. EE, que atuou como administrador da sociedade nas referidas escrituras, a ser afetado por tal eventual qualificação.”
3. Também se invoca no presente recurso a errada a aplicação da Lei decorrente a violação culposa pelo AI da obrigação de proceder à apreensão dos elementos de contabilidade da insolvente, violação que se perpetuou durante um período superior a um ano, entre 13 de maio de 2021 e, pelo menos, dezembro de 2022, date em que permitiu que os documentos em causa fossem destruídos, nada fazendo para o impedir.
4. Está documentado nos presente autos que o Administrador de Insolvência não procedeu, espontaneamente, à apreensão da contabilidade da insolvente apesar da ordem que lhe foi dada pelo Tribunal na sentença de declaração de insolvência e das injunções normativas que lhe são impostas pelo disposto nos artigos 36.º, 1, al g), 149.º e 150.º do CIRE.
5. Por douto despacho de 9 de Julho de 2021, foi autorizado o encerramento antecipado do estabelecimento, nos termos da alínea b) do artigo 157.º do CIRE, reportado à data de 13 de Maio de 2021.
6. Com o encerramento do estabelecimento a eventual administração que tivesse sido mantida na insolvente cessava e todos os poderes se transferiram para o AI (cfr. art. 228.º do CIRE).
7. O que significa que a partir de 09.07.2021 toda as relações eventuais com a Autoridade Tributária, designadamente quaisquer obrigações declarativas, passam para a esfera do AI.
8. O AI teve mais um ano para proceder espontaneamente à apreensão dos documentos da contabilidade da insolvente.
9. Mesmo quando foi informado de que os documentos das contabilidade da insolvente iriam ser destruídos, mais de um ano após a sentença da insolvência, e quando já não se colocavam quais questões sobre obrigações declarativas, previstas no artigo 65..º do CIRE, o AI absteve-se de aprender a contabilidade permitindo que a mesma fosse destruída.
10. Uma das razões principais razões para se proceder logo após a insolvência (de modo imediato) à apreensão da contabilidade da insolvente é a da conservação desse bens, designadamente para fins probatórios.
11. No caso dos autos o comportamento do AI é agravado pelo facto de ter sido aberto o incidente de qualificação de insolvência sendo importante guardar todos os documentos da contabilidade, mesmo os documentos de suporte, até mesmo a correspondência e outra prova documental que suporte os lançamentos contabilísticos, pois pode haver documentos que permitam verificar se a insolvência deve ser declarada culposa e ainda averiguar a medida da responsabilidade dos responsáveis, ou para a prova de sentido inverso.
12. A insistência do Senhor Administrador em não apreender a contabilidade por força de uma interpretação da lei que não lhe compete, constitui uma violação aviltante da lei e da sentença proferida nos autos.
13. Demonstrativas de que o AI não é uma pessoa leal e confiável.
14. O Código de insolvência não coloca nenhuma ressalva, nenhuma excepção, à obrigação de apreensão dos documentos da contabilidade após a declaração de insolvência nem coloca nenhuma excepção.
15. O que resulta do comando legal é muito simples: após a declaração de insolvência deve ser (imediatamente) apreendida a contabilidade da insolvente e essa função, essa obrigação, compete ao Administrador de Insolvência.
16. Não se exceciona os casos de encerramento ou de manutenção em laboração do estabelecimento da insolvente.
17. Não compete ao Senhor Administrador de Insolvência decidir que não procede à apreensão dos documentos de contabilidade porque a insolvente ainda permanece com obrigações declarativas.
18. Não compete ao Senhor AI decidir os casos em que não deve proceder à apreensão da contabilidade, sobretudo, nos acasos em que tal obrigação decorre de uma sentença judicial que lhe foi notificada.
19. Em novembro de 2022, data do email do contabilista; já não podia colher qualquer desculpa para o AI não proceder à apreensão da contabilidade da insolvente.
20. O Senhor Administrador de Insolvência revelou ser um Administrador não confiável, que não tem os atributos necessários para despenhar um papel de oficial público pois o mesmo além de não cumprir com a Lei não cumpre com as ordens dos tribunais.
21. Como resulta dos autos: o AI foi avisado pelo Contabilista Certificado da insolvente, DD, para apreender a documentação da contabilidade da insolvente que estava na sua posse sob pena de não o fazendo destruir tais documentos e, apesar de avisado, o AI nada fez.
22. Trata-se de um comportamento doloso, preordenado, de deixar destruir a contabilidade da insolvente, apesar de avisado de que a mesma seria destruída se não fosse removida.
23. Há pois no comportamento do AI um comportamento em violação da lei, e culposo, com culpa grave, que faz com que esteja posta em causa, de modo definitivo, a confiança de que exercerá as suas funções nos presentes autos em cumprimento da Lei.
24. Os documentos da contabilidade da insolvente dos quatro anos anteriores à declaração de insolvência, ou seja, 2018, 2019, 2020 e 2021, foram destruídos porque o Administrador de Insolvência incumpriu com a obrigação de apreender a contabilidade e de a depositar num lugar seguro e à sua guarda.
25. O conceito de justa causa legitimadora da destituição do Administrador Judicial num processo de insolvência preenche-se e concretiza-se 1) com a conduta do administrador reveladora de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo; 2) ou com a conduta do administrador traduzida na inobservância culposa dos seus deveres, “apreciada de acordo com a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado (art.º 59.º n.º 1 CIRE ) 3) exigindo-se cumulativamente a qualquer dos requisitos anteriores, que tal conduta, pela sua gravidade justifique a quebra de confiança, inviabilizando, em termos de razoabilidade, a manutenção nas funções para que foi nomeado.
26. “A justa causa necessária para a destituição do administrador de insolvência, é sempre alguma circunstância ligada à pessoa ou a uma conduta do administrador que, pela sua gravidade inviabilize, em termos de razoabilidade, a manutenção das suas funções.” “Assenta na ideia de inexigibilidade de continuação da relação, por violação de deveres e do princípio da confiança que está subjacente a estas relações.
27. Ora, de tudo o que vai exposto, resulta que o Administrador de Insolvência não tem condições de se manter no cargo.
28. A conduta acima referida é reveladora de ineptidão e de incompetência para o exercício do cargo, conduta essa que é traduzida na inobservância culposa dos seus deveres e que deve ser apreciada de acordo com a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado (art.º 59.º n.º 1 CIRE).
29. Um administrador de insolvência ordenado e diligente procede imediatamente à apreensão da contabilidade da sociedade devedora dada a importância desses documentos para vários aspectos da insolvência, designadamente no âmbito da qualificação da insolvência
30. O comportamento do Administrador de Insolvência é de tal modo grave que e justifica a quebra de confiança, inviabilizando, em termos de razoabilidade, a manutenção nas funções para que foi nomeado.
31. A decisão sentença recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 36.º, 1, al g), 59.º, 149.º e 150.º do CIRE.
Termos em que, e nos demais e direito, deve ser concedido provimento à presente apelação, declarando nula a decisão recorrida, ou, subsidiariamente, revogando a mesma, devendo a decisão recorrida ser substituída por outra que declare a destituição do Administrador de Insolvência, com todas as consequências legais.”
Não se mostra junta qualquer resposta ao recurso.
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O recurso foi admitido, como de apelação, com subida em separado e com efeito devolutivo.
Foi recebido nesta Relação, cumprindo apreciá-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1 e 2, do C.P.Civil.
Nas circunstâncias do processo, as questões a resolver são as seguintes:
- da nulidade da sentença, por deficit no rol dos factos provados
- do complemento dos factos pressupostos na decisão recorrida com outros elencados pelo apelante;
- da verificação dos pressupostos de destituição do administrador da insolvência em face da factualidade adquirida.
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Começou o apelante por arguir a nulidade da decisão recorrida, por não terem sido considerados todos os factos necessários para a apreciação da questão colocada. E, sucessivamente, elencou diferentes factos que constituem actos do próprio processo e que, a seu ver, o tribunal deveria ter usado como pressupostos da sua decisão.
Está bom de ver que uma tal questão não consubstancia qualquer nulidade, o que poderá ter estado na causa de o apelante nem a qualificar.
Admitindo, todavia, que se referia à nulidade prevista na al. d) do nº 1 do art. 165º do CPC, ou mesmo à da al. b), resta afirmar simplesmente que tais nulidades não se verificam, pois que o tribunal assentou a decisão nos factos que teve por suficientes e na ausência de quaisquer outros, em ordem a ter por não verificados os fundamentos que habilitariam a destituição do administrador da insolvência.
Assim, se se vier a concluir que outros factos se identificam no caso e que os mesmos são pertinentes para a decisão da questão colocada, isso refere-se já ao próprio mérito da decisão, mas não a um vício formal que a mesma apresente.
Será nessa vertente que se apreciará a pretensão do apelante quanto à ponderação de outros factos e da sua utilidade para a decisão da causa, e não em face da hipótese de uma tal omissão, caso se verifique, determinar uma nulidade da decisão, o que de todo se rejeita.
Improcede, pois, a pretensão do apelante, no tocante à apontada nulidade da decisão.
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Pretende, em todo o caso, o apelante que se enunciem outros factos, para que integrem a premissa menor da decisão a proferir, a fim de que se venha a concluir, com tal complemento, que se justifica a destituição do administrador da insolvência, contrariamente ao ajuizado pelo tribunal recorrido.
Embora tal fundamento do recurso não venha estruturado de forma a subsumir-se imediatamente ao regime de impugnação da matéria de facto, tal como consagrado no art. 640º do CPC, constata-se, por um lado, que o apelante concretizou devidamente os factos que entende deverem ser adicionados, bem como os fundamentos para o efeito; por outro lado, que tais elementos constituem actos do próprio processo ou resultam dos seus termos. Por isso, há que apreciar tal pretensão, que não implica uma avaliação da realidade do facto, mas tão só a da sua utilidade para a sustentação da decisão.
Em qualquer caso, para se aferir da utilidade complementar dos elementos apontados no recurso, é útil atentar nos pressupostos enunciados na decisão recorrida, o que surge dificultado pela sua dispersão ao longo da decisão. Encontram-se, mesmo assim, os seguintes elementos:
- O A.I. informou os autos, em sucessivos requerimentos, em 31 de Dezembro de 2021, em 30 de Março de 2022, em 31 de Março de 2022, em 27 de Junho de 2022, em 8 de Setembro de 2022 e em 19 de Novembro de 2022, de que não tinham sido apreendidos os documentos de escrituração, dado que, em ordem ao cumprimento das obrigações declarativas, contabilísticas e fiscais, a empresa e os seus legais representantes, careciam, dos documentos de escrituração da insolvente.
- Em 12 de Novembro de 2022, o A.I. foi destinatário de comunicação do Sr. DD, contabilista certificado nº. ..., e deu conhecimento à insolvente, na pessoa do seu Il. mandatário, bem como ao Dr. AA, com conhecimento do próprio contabilista, da ameaça de destruição dos documentos da contabilidade da insolvente, por parte do Sr. DD, e não autorizou a destruição de qualquer documentação.
- O contabilista DD, por email de 08.11.2024 informou que a contabilidade foi destruída, acrescentando que tem na sua posse os registos informáticos dos anos de 2018, 2020 e 2021 até março, E, bem assim, que os elementos de 2019 foram efetuados por outro contabilista sob as ordens da Eng. BB, irmã do Dr. AA.
- Em momento anterior já havia sido requerida a destituição do A.I. pela credora BB, tendo sido proferida decisão em 20.12.2021 de indeferimento, a qual foi objecto de recurso para o TRPorto o qual confirmou a decisão recorrida por Acórdão proferido em 21.03.2022 (ap. H), tendo, posteriormente sido requerida novamente a destituição, pelo credor AA, e proferida decisão em 30.04.2023, também de indeferimento.
- Considerou o tribunal ainda que “a contabilidade que foi analisada pelo A.I. é suficiente para a compreensão da situação económica e patrimonial da empresa, cujo estabelecimento foi antecipadamente encerrado no ano de 2021.”.
Pretende, então, o apelante que se adite a esta súmula de elementos do processo um conjunto de outros, que melhor permitirão caracterizar a situação sub judice e qualificar a actuação do administrador de insolvência. Tal actuação, note-se, nos limites do objecto deste recurso, reconduz-se exclusivamente ao alegado incumprimento do dever de apreender os elementos de contabilidade da insolvente.
Sendo certo que, como já se referiu, os elementos em causa são actos o dados do próprio processos de insolvência, afigura-se-nos que o tribunal não deixou de neles atentar, como resulta implicitamente do teor algo inconcreto – nessa parte – da decisão recorrida. Com efeito, é notório que o tribunal avaliou todo o processado, como resulta da referência a anteriores incidentes congéneres e indeferidos, bem como a diversos requerimentos que integraram o curso dos autos.
Em qualquer caso, para que dúvidas não restem, expressamente se enunciaram aqui aqueles elementos que o apelante considera que podem motivar uma decisão diferente. Assim, tal como pretende, considerar-se-á ainda o seguinte:
I) Na sentença de declaração de insolvência o Tribunal nomeou “por sorteio como administrador/a da insolvência o/a Sr/a. Dr/a. CC.
II) No ponto 7.º, da sentença de insolvência, o Tribunal decretou a apreensão dos elementos de contabilidade da insolvente, para entrega imediata ao administrador da Insolvência.
III) Por despacho judicial de 9 de Julho de 2021, foi autorizado o encerramento antecipado do estabelecimento, nos termos da alínea b) do artigo 157.º do CIRE, reportado à data de 13 de Maio de 2021.
IV) O Administrador de Insolvência foi notificado no dia 14.05.2021, através da notificação com a Ref.ª 424840332, de que foi nomeado AI no processo de insolvência da A..., tendo ainda sido notificado da sentença insolvência da A... e avisado de que, nos termos do artº 54º do CIRE, inicia imediatamente funções a partir desta notificação.
V) O despacho de 21.09.2024 ordenou a notificação ao Senhor AI do requerimento do recorrido de 11.06.2024 e do requerimento da insolvente de 24.06.2024, onde consta em anexo o email que o contabilista certificado, DD, enviou ao Administrador da Insolvência no dia 9/11/2022 com o seguinte teor:
Bons dias
Na qualidade de contabilista certificado nº. ... venho informar de que fiz a renúncia como cc da empresa A... SA, pelo que as minhas funções cessaram na data da comunicação. Pese embora tenha renunciado, continua o meu nome associado à empresa insolvente.
Informo também de que a documentação ficou na minha posse, não tendo sido recolhida pela responsável da empresa.
Assim sendo informo de que deverá providenciar que seja nomeado novo cc face á minha renúncia.
Comunico também de que toda a documentação na minha posse terá de ser recolhida no prazo de 30 dias.
Caso não o façam informo de que vou eliminar todos os registos contabilísticos e que vou destruir toda a documentação física na minha posse, pois só trabalho para quem me paga e para quem quero, e face á dívida não paga pelas A... SA, recuso a prestação de qualquer colaboração.
cpts
DD
VI) O despacho de 21.09.2024 foi notificado ao AI no dia 23.09.2024.
VII) No requerimento de 03.10.2024, o AI afirmou ter recebido o referido correio eletrónico de 9/11/2022, juntando em anexo uma cópia do email que o contabilista certificado, DD, então lhe enviara, transcrito acima.
VIII) O Administrador de insolvência não procedeu à apreensão da contabilidade da insolvente.
IX) Por despacho 11.10. 2021, foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência.
X) Em 24.01.2022 o Administrador juntou aos autos o Parecer no sentido de “a presente insolvência (ser) qualificada como culposa, indicando-se para o efeito o administrador único da insolvente, Sr. EE, que atuou como administrador da sociedade nas referidas escrituras, a ser afetado por tal eventual qualificação.”, em função d’ “O desaparecimento significativo de parte considerável do património da devedora, expresso nas escrituras públicas de 24 de Agosto de 2018 e 24 de Outubro de 2019.”
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Como acima se referiu, a única causa invocada para motivar a destituição do administrador de insolvência nomeado nestes autos é o incumprimento do seu dever de apreensão dos elementos contabilísticos da insolvente.
O art. 36º, nº 1, g) e os arts. 149º, nº 1 e 150º, nº 2 do CIRE, em termos que foram expressamente enunciados na sentença de insolvência, estabelecem a necessidade de serem imediatamente apreendidos, para que fiquem com o administrador da insolvência, os elementos de contabilidade do insolvente. E, bem assim, que deve ser o próprio administrador a concretizar essa apreensão, para o que conta com um dever de colaboração simetricamente imposto ao próprio insolvente, nos termos das als. a) e c) do nº 1 do art. 83º do CIRE.
No caso, todavia, não oferece dúvida que o administrador de insolvência nomeado entendeu pela inconveniência de concretizar tal apreensão, por considerar que “… a empresa e os seus legais representantes, careciam, dos documentos de escrituração da insolvente…” para “…cumprimento das obrigações declarativas, contabilísticas e fiscais…”, o que expressou em pronúncia dirigida ao tribunal.
Acresce que, mesmo perante o anúncio de que os elementos físicos da contabilidade iriam ser destruídos pelo contabilista da insolvente a quem estavam confiados, por este entender não ter obrigação de os conservar, nem por isso o administrador da insolvência os foi recolher, a fim de os conservar. Diferentemente, limitou-se a anunciar a outrem essa eventualidade, talvez na expectativa de que alguém recolhesse e conservasse tais documentos, o que, como se sabe, não aconteceu.
Certo é, todavia, que a obrigação de apreender e guardar esses elementos de contabilidade era sua, como resulta do regime legal já descrito, não colhendo a justificação enunciada, de os órgãos de administração da insolvente ainda terem de cumprir obrigações declarativas e fiscais. Com efeito, a partir da sua nomeação, toda essa responsabilidade, caso existisse, caberia ao próprio administrador de insolvência, nos termos da al. b) do nº 1 do art. 55º do CIRE, sem prejuízo de se poder socorrer da colaboração daqueles órgãos anteriores de gestão da insolvente, sendo caso disso.
Podemos, pois, concluir sem reservas que, ao omitir a apreensão de tais elementos, logo após a declaração de insolvência, em Maio de 2021, e não assegurando, mais de um ano depois, designadamente em Novembro de 2022, a recolha desses elementos junto do contabilista que os pretendia entregar, prevenindo assim a sua anunciada destruição, o administrador nomeado, Dr. CC, incumpriu um dos deveres funcionais que lhe advieram da sua nomeação para tal função.
A questão que se coloca é, então a de saber se tal infracção deve ser qualificada como justa causa, em ordem a justificar a destituição do Dr. CC das funções de administrador desta insolvência.
Com efeito, dispõe o art. 56º do CIRE, no seu nº 1 “- O juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar existir justa causa.”
Com relevo sobre a compreensão desta regra, escreveu-se no acórdão desta secção do TRP, de 11-12-2024 (proc. nº 2095/24.2T8VNG-E.P1, Relator: JOÃO RAMOS LOPES) “I - O conceito de justa causa de destituição do administrador assenta na ideia de inexigibilidade de continuação da relação, por grave violação de deveres e importante atentado ao princípio da confiança que está subjacente às relações funcionais estabelecidos com o Tribunal, os órgãos de gestão, credores e demais interessados na insolvência, dificultando ou inviabilizando o objectivo ou finalidade do processo. II - Interessa a falta importante e grave, quer na sua dimensão individualizada, quer no domínio do resultado consequencial – a justa causa de destituição só ocorrerá, em princípio, quando a falta ou falha do nomeado se objective ou repercuta no âmbito do processo, dificultando ou inviabilizando se alcancem as suas finalidades, pois só então se poderá ter por irremediavelmente ferida a relação de confiança que a manutenção do exercício do cargo pressupõe.”
Ora, no caso em apreço, é evidenciado que a falha do administrador nomeado não redundou em consequências que inibam a realização dos fins do processo de insolvência.
Com efeito, os elementos contabilísticos relativos aos anos de 2018 a 2021 foram disponibilizados em suporte digital. Quanto aos de 2019 nada se sabe, pois estavam entregues a outro contabilista, sem que se conheça se se mostra ou não prejudicado o acesso aos mesmos. Assim, não se pode ter por adquirido – nem sequer o apelante o chegou a alegar concreta e consequentemente – que qualquer interesse inerente a este processo insolvencial tenha ficado por realizar em função da não apreensão física dos elementos de contabilidade destruídos pelo contabilista, já que eles permaneceram à disposição do administrador e do tribunal, em versão digital, como se deu por adquirido acima.
Assim, o que resulta apurado é que as circunstâncias respeitantes à perda de tais elementos físicos da contabilidade não prejudicaram nem a compreensão da situação económico-financeira da sociedade, tal como declarado pelo tribunal a quo, em face da presença dos elementos necessários noutro tipo de suporte, nem a pronúncia do administrador da insolvência sobre a qualificação da insolvência e Imputação de responsabilidade.
Aliás, no próprio recurso, o apelante refere a questão nos seguintes termos: “22. No caso dos autos o comportamento do AI é agravada pelo facto de ter sido aberto o incidente de qualificação de insolvência sendo importante guardar todos os documentos da contabilidade, mesmo os documentos de suporte, até mesmo a correspondência e outra prova documental que suporte os lançamentos contabilísticos, pois pode haver documentos que permitam verificar se a insolvência deve ser declarada culposa e averiguar a medida da responsabilidade dos responsáveis.” Todavia, acaba a não concluir que qualquer desses objectivos tenha ficado comprometido em razão da indisponibilidade dos elementos físicos de contabilidade. Simplesmente limita-se a repetir sucessivamente que a omissão da apreensão de tais elementos revela que o administrador nomeado não é uma pessoa fiável e não tem condições para se manter no cargo, concluindo que “A violação de tais obrigações, nos termos agravados em que ocorreram nos presentes autos, é, pois, muito perigosa e constitui fundamento de destituição por justa causa.”
Ora, como se refere no acórdão acima citado, desta secção do TRP, “O conceito de justa causa legitimadora da destituição do administrador preenche-se e concretiza-se, assim, com condutas reveladoras de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo, com condutas traduzidas na ‘inobservância culposa’ dos seus deveres, apreciadas tendo por padrão de referência a diligência de administrador criterioso e ordenado (art. 59º, nº 1, parte final do CIRE), quando qualquer de tais condutas assuma suficiente gravidade que justifique a quebra de confiança e inviabilize, razoavelmente, a manutenção nas funções para que foi nomeado - quando ‘o administrador adopte um comportamento geral ou pratique algum acto em particular que o torne desmerecedor da confiança dos restantes órgãos processuais ou das partes’, seja por inaptidão ou incompetência ou até por incapacidade para abstrair dos próprios interesses e manter-se equidistante em relação aos intervenientes no processo.
(…)
O conceito assenta, pois, na ideia de ‘inexigibilidade de continuação da relação, por grave violação de deveres e importante atentado ao princípio da confiança que está subjacente às relações funcionais estabelecidas com o Tribunal, os órgãos de gestão, credores e demais interessados na insolvência, dificultando ou inviabilizando o objectivo ou finalidade do respetivo processo’.
Interessa, porém, que se trate de falta importante e grave, quer na sua dimensão individualizada, quer no domínio do resultado consequencial – a justa causa de destituição só ocorrerá, em princípio, quando a falta ou falha do nomeado se objective ou repercuta no âmbito do processo, dificultando ou inviabilizando se alcancem as suas finalidades, pois só então se poderá ter por irremediavelmente ferida a relação de confiança que a manutenção do exercício do cargo pressupõe.”
No caso em apreço, apesar de se verificar um incumprimento de um dever funcional pelo administrador de insolvência, que deveria ter concretizado a apreensão dos elementos físicos da contabilidade da insolvente, maxime quando lhe foi anunciado que se os não recolhesse haveriam de ser destruídos, sendo censurável a título de negligência essa sua omissão – pois nada indicia a verificação de dolo em ordem à realização de qualquer objectivo, por via daquela destruição – impõe-se também a conclusão quer de que nenhum prejuízo adveio para o processo e para a realização dos seus fins, quer porque tal circunstância não afectou a relação de confiança do tribunal no desenvolvimento, pelo administrador nomeado, das respectivas funções, pois que o processo prossegue sem perturbação, maxime sem perturbação resultante dos factos sob análise.
Isso é expressamente afirmado na decisão recorrido, referindo ainda o tribunal a ineficiência que traria uma opção pela substituição desse mesmo administrador.
Ora, quanto a tudo isso, cumpre reconhecer que nada em contrário afirma o apelante, que apenas persiste na afirmação que aquele concreto incumprimento, pelo administrador da insolvência, revela a sua inaptidão para as funções.
Resta, em suma, concluir pelo acerto da decisão recorrida, na falência da repetitiva argumentação do apelante.
Pelo exposto, negar-se-á provimento à presente apelação.
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Sumário:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento ao presente recurso de apelação, em consequência do que confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo credor requerente.
Registe e notifique.

Porto, 10/7/2025
Rui Moreira
Lina Baptista
Pinto dos Santos