I - A existência do defeito ou da execução defeituosa da prestação é um facto constitutivo dos direitos atribuídos ao comprador, porquanto a execução defeituosa da prestação contratual, como violação do contrato, é um ato ilícito, elemento integrante da responsabilidade contratual.
II - No domínio desta responsabilidade, presume-se a culpa, mas, na falta de norma que o permita, o mesmo não acontece relativamente aos restantes requisitos da responsabilidade civil.
III - Assim, é sobre quem invoca a prestação inexata da outra parte como fonte da responsabilidade que há de recair o ónus de demonstrar os factos que integram esse incumprimento, entre os quais o facto ilícito.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Central Cível de Penafiel – Juiz 2
Relatora: Des. Teresa Pinto da Silva
1º Adjunto: Des. Jorge Martins Ribeiro
2º Adjunto: Des. Manuel Fernandes
Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
A... – Companhia de Seguros, S.A. propôs a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra B..., Lda e C..., S.A. – Sucursal em Portugal, pedindo a condenação solidária das Rés a pagarem à Autora a quantia de € 902.880,65 (novecentos e dois mil, oitocentos e oitenta euros e sessenta e cinco cêntimos), acrescida de juros legais contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto, que a 1ª R. é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio por grosso, entre outros, de equipamentos e sistemas computorizados para a indústria, e bem assim a trabalhos de assistência pós-venda, manutenção e reparação dos equipamentos que fornece. Nesse âmbito revende e distribui equipamentos da marca “...”, entre os quais uma máquina computorizada de corte de pele para calçado designada “...”.
A 2ª Ré é uma sucursal em Portugal e representante permanente da seguradora estrangeira, “C... S.A.” que, no âmbito dessa sua atividade seguradora, contratou com a 1ª Ré um contrato de seguro de ramo responsabilidade civil da atividade daquela com cobertura de danos causados pelos serviços prestados e produtos fornecidos pela 1ª Ré - apólice n.º ....
A A., no âmbito da atividade seguradora a que se dedica, celebrou, em 24/1/2013, com D..., Lda, um contrato de seguro do ramo “Multiriscos Negócios”, tendo como objetos seguros e locais de risco o edifício sito na Rua ... ..., o mobiliário, mercadorias e equipamentos ali existentes, e que incluía, entre outras, a cobertura de incêndio, com abrangência de todos esses objetos seguros.
A Autora contratou ainda com a referida “D..., Lda”, um seguro do ramo Multiriscos Habitação sob a apólice n.º ..., tendo por objeto a fração correspondente ao 3º Esqº do mesmo prédio, sito na Rua ..., ..., também pertença da segurada, bem como um outro seguro do ramo Multiriscos Habitação sob a apólice n.º ..., tendo por objeto a fração correspondente ao 3º Dtº do mesmo prédio da Rua ... e também pertença da segurada, ambos os contratos sem franquia em caso de incêndio.
Esse prédio, sito na Rua ..., ..., estava integralmente afeto à atividade da segurada.
Foi ainda celebrado entre a A. e “D..., Lda” um contrato de seguro de bens em Regime Leasing sob a apólice n.º ..., tendo por objeto o equipamento máquina de corte pele ..., com direitos ressalvados a favor do Banco 1..., S.A., em razão de contrato de leasing.
No dia 5 de abril de 2019 ocorreu um incêndio nas instalações industriais da “D...,Lda” acima indicadas, tendo o inicio da combustão tido origem numa máquina informatizada de corte de tecido / pele, de tipo “CNC – corte de pele” denominada “...” com número de série ..., equipada com mesa digitalizadora (DGT-CRD – N/S ...), Software (AE PD5 GMS V10 S/N1...), PC e monitor da marca DELL”, que havia sido adquirida em 12/7/2017 pela segurada, em regime de locação financeira, por contrato celebrado com o “Banco 1..., SA”.
O fabricante da máquina em causa é a empresa norte-americana “B..., Inc,” do Grupo “B... Tecnologie”, que tinha como distribuidor exclusivo em Portugal a 1ª Ré, que a forneceu à segurada da Autora, tendo procedido à sua instalação no prédio sito na Rua ..., ... em 22 de dezembro de 2017.
Em 20 de fevereiro de 2019, por apresentar uma deficiência de funcionamento, a 1ª Ré efetuou uma intervenção técnica ao abrigo da garantia, substituindo a placa de interface do controlador por a mesma se apresentar com defeito, bem como a reparação da placa de controle de movimento ou “controlador”.
Foi nessa placa de controle de movimento “...” que se deu o sobreaquecimento que originou o incêndio, num dos seus transístores deficiente, que entrou em auto-combustão, pelo que conclui que o produto em causa era defeituoso e perigoso.
As chamas propagaram-se a partir do referido computador ao resto da máquina, alastrando para as instalações industriais, destruindo-as por completo, bem como os conteúdos existentes no seu interior.
A Autora suportou uma indemnização contratual de €800.000,65 para compensação dos prejuízos cobertos sofridos pela sua segurada “D..., Lda”, cujo recobro vem reclamar das Rés, invocando para tanto o regime jurídico fixado no Decreto-Lei nº 383/89, de 06 de Novembro, bem como o direito de sub-rogação previsto no artigo 136º no regime jurídico do contrato de seguro.
Para além disso, teve ainda a A. que indemnizar o Banco 1... com a quantia de €102.880,00 em 11/10/2019, devido à perda da máquina em causa, também destruída pelas chamas.
Citadas, vieram as Rés B..., Lda. e C..., S.A. – Sucursal em Portugal apresentar contestação conjunta, na qual impugnaram parte dos factos alegados pela Autora na petição inicial.
No mais, alegaram que à data do incêndio relatado nos autos, a 1.ª Ré havia transferido, até ao limite € 827230,00 (oitocentos e vinte e sete mil, duzentos e trinta euros) por sinistro e por ano, para a 2.ª Ré, a sua responsabilidade civil pelos eventuais danos causados a terceiros emergentes da sua atividade comercial e dos seus produtos, nos termos do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ....
Entre outras, o contrato de seguro inclui uma cobertura de Responsabilidade Civil Produtos, não prevendo a aplicação de uma franquia.
Assim, e face ao capital contratado, na eventualidade de a presente ação ser julgada procedente, a 2.ª Ré responderá até ao montante de € 827 230,00 e a 1.ª Ré responderá pelo valor remanescente.
Acresce que a condição especial de Responsabilidade Civil Produtos exclui expressamente a cobertura de reclamações relacionadas com “o valor do próprio produto defeituoso”, motivo pelo qual, caso a presente ação seja julgada procedente, não poderá a Ré C... ser condenada ao pagamento do valor de tal produto.
Mais entendem que, sendo o pedido da Autora sustentado no pressuposto de que a sua segurada é um “consumidor”, o que não corresponde à verdade (não tendo adquirido a máquina de corte para uso doméstico, familiar ou pessoal), não é aplicável ao caso o regime previsto no Decreto-Lei n.º 383/89, de 06 de novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 131/2011, de 24 de abril, como alega a Autora. Consequentemente, não está a Autora sub-rogada nem legitimada a intentar a presente ação para recuperar as quantias pagas à sua segurada, porquanto para que a Autora, na qualidade de seguradora, pudesse estar sub-rogada nos direitos da sua segurada, sempre teria a D... de ser considerada um “consumidor”, o que não é o caso.
Para além disso, porque a D... utilizou o equipamento fornecido pela Ré B... “conjuntamente com outros equipamentos e dispositivos não aprovados”, a responsabilidade desta Ré por uma eventual avaria no equipamento está afastada, de acordo com a cláusula 21ª das condições gerais de venda do equipamento em causa.
Mais alegam que não se sabe onde e por que motivo teve início o incêndio.
Por outro lado, apresenta-se notória a existência de culpa do lesado na produção do incêndio e no agravamento das suas consequências, pelo que, na hipótese de se considerar que existe responsabilidade da Ré B... na produção do incêndio, nos termos do artigo 570.º do Código Civil, deverá a indemnização, senão totalmente excluída, pelo menos ser reduzida com base na gravidade da culpa da segurada da Autora.
Termos em que concluem pela improcedência da presente ação, devendo as Rés ser absolvidas do pedido.
Na sequência da notificação da contestação das Rés, veio a Autora, em 20 de outubro de 2022, requerer a intervenção principal provocada, do lado passivo, da sociedade D..., Lda.
Alegou, para tanto, que face aos factos invocados pelas Rés na contestação, a resultarem os mesmos provados, verificar-se-á falta de cobertura do sinistro e as indemnizações já pagas deverão ser restituídas no todo ou em parte, ao abrigo do disposto nos arts. 247.º, 251.º, 289.º ex vi 295.º do Código Civil ou, ainda que assim se não entenda, por via do recurso subsidiário ao regime do enriquecimento sem causa – art.473.º e 476.º do Código Civil.
Termos em que conclui pela admissão da intervenção principal provocada da sociedade D... para, ainda que subsidiariamente, ser demandada do lado das RR., e ser responsabilizada pelos danos causados à Autora, na medida da sua culpa, devendo-a ressarcir na proporção da sua responsabilidade, a aferir em sede de produção de prova ex vi art.º 570.º do Código Civil.
Ainda que assim se não entenda, a provar-se na presente ação a invocada responsabilidade ou co-responsabilidade da interveniente, sempre assistirá fundamento para a intervenção principal acessória da sociedade D..., a fim de, em ulterior ação de reembolso, lhe poderem ser opostos os factos que nesta ação resultem provados.
Termos em que requer a admissão da intervenção principal provocada passiva, e caso assim não se entenda, a intervenção acessória provocada da sociedade D..., Lda.
Admitida a peticionada intervenção principal provocada passiva da identificada sociedade D..., veio esta, em articulado próprio, apresentar a sua contestação, pugnando pela improcedência da ação quanto a ela.
Em 5 de janeiro de 2023, veio essa mesma sociedade D..., deduzir incidente de intervenção principal espontânea, alegando que a Autora sub-rogou-se (parcialmente) nos direitos da Interveniente e através dos presentes autos pretende exercer tais direitos quanto aos terceiros responsáveis pelo incêndio em causa nos autos, pelo que o direito que a mesma invoca corresponde ao direito da Interveniente, na medida em que a A. se sub-rogou. Sucede que, fruto dos limites de capital seguro e coberturas contratadas, a Interveniente não foi indemnizada na totalidade dos danos que sofreu e decorrentes do incêndio em causa nos autos, pelo que, com a intervenção, pretende a Interveniente ver os seus danos globalmente indemnizados, na medida em que não foram satisfeitos pela Autora.
Conclui, pedindo a condenação solidária das Rés, de acordo com as responsabilidades que vierem a ser apuradas, a pagar à Interveniente a quantia de Eur. 515.055,38, bem como os juros vincendos, contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento.
Na sequência de despacho proferido em 2 de fevereiro de 2023 a ordenar a sua notificação para o efeito, veio a Autora tomar posição sobre a matéria de exceção invocada pela Interveniente D... na contestação por esta apresentada, concluindo pela improcedência das exceções invocadas, por não provadas.
Em 27 de março de 2023, a Interveniente D... apresentou reclamação do despacho saneador e do despacho relativo à identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova,
Em 29 de março de 2023, as Rés apresentaram reclamação da matéria assente e dos temas da prova, o mesmo tendo feito a Autora por requerimento datado de 30 de março de 2023.
Desta decisão, interpôs a Interveniente recurso, em 2 de maio de 2023, pugnando pela revogação da decisão proferida e pela sua substituição por outra que admita a intervenção principal espontânea por ela requerida.
Tal recurso veio a ser admitido por despacho de 29 de maio de 2023, tendo, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 12 de julho de 2023, sido negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.
Em 29 de junho de 2024 foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:
«Atento o exposto, julga-se a presente ação improcedente, por não provada e, por consequência, absolvem-se as Rés do pedido.
Custas a cargo da Autora.
Registe e notifique.»
Inconformada com a sentença proferida em 29 de junho de 2024, veio a Autora / Apelante dela interpor o presente recurso, apresentando alegações que culimou com as seguintes conclusões:
1) Ainda que o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, deixe no crivo subjectivo deste, o convencimento em relação aos factos controvertidos sujeitos à produção de prova, tratando de factos cuja apreciação demanda conhecimentos técnico-científicos que ultrapassam o conhecimento do julgador, e são objecto de prova clara e evidente por relatórios técnicos de entidades independentes cujos autores explicam e confirmam em depoimento na audiência, não pode o julgador dar prevalência a depoimentos testemunhais de empregados de uma parte sem as competências técnico-periciais que se limitam a afirmar a impossibilidade do que os relatórios técnicos concluíram;
2) Mais ainda, sem o Julgador fundamentar a sua convicção quando não aponta uma única incorrecção, ambiguidade ou incongruência aos relatórios técnicos que confirmam e demonstram os factos que aquele acaba por dar como não provados;
3) Deve ser alterado o ponto 13 e 20 dos factos dados como não provados na sentença e correspondente ao tema da prova n.º 1 e 8, considerando que a sua comprovação resulta da apreciação conjunta dos seguintes meios de prova: o relatório de peritagem da empresa “E..., Lda” subscrito pelo seu autor Eng. AA junto como doc.11 com a PI, em especial as fotografias dele constantes, complementado pelo depoimento deste prestado na sessão de julgamento de 5/1/2024 nas passagens de 00:01:30 a 00:10:26, de 00:07:18 a 00:02:21; relatório da Inspecção Judiciária junto como doc.12 com a PI, complementado pelo depoimento testemunhal do seu autor Inspector BB – prestado na sessão de julgamento de 5/1/2024, nas passagens da gravação de 00:00:52 a 00:03:55, de 00:05:17 a 00:07:12,
4) Com efeito, destes meios de prova resulta concludentemente a demonstração do local de ignição do incêndio sem que tenha sido produzido qualquer meio de prova que apontasse e muito menos de forma comprovada, um outro local de ignição, o que, salvo devido respeito, aponta um evidente erro de julgamento;
5) Deve ser alterada a decisão relativa à matéria de facto no que respeita aos pontos 14), 15), 16) e 17) dos factos não provados, respectivamente, temas da prova 2, 3, 4 e 5, para “provados”, com excepção do segmento “a qual havia sido objeto de recente substituição”, por resultarem da conjugação dos seguintes meios de prova que se passam a indicar;
6) A pretendida alteração dos pontos referidos na conclusão anterior funda-se, desde logo na reapreciação conjugada do relatório de peritagem da empresa “E..., Lda” junto como doc.11 com a PI, nas partes acima transcritas e fotografias dele constantes n.º 10 a 18), com o depoimento do seu autor Eng. AA, prestado na sessão de 5/1/2024 nas passagens de 00:11:07 a 00:21:55, de 00:21:55 a 00:24:36 e de 00:27:58 a 00:32:03, nas quais descreve e demonstra como foi possível, após desmontagem da torre do PC identificar uma placa com vestígios da combustão inicial lenta na referida placa GALIL e, nesta, localizada na zona dos “transístores”;
7) No mesmo sentido, fundamenta-se a alteração nestes pontos na apreciação do relatório da Inspecção Judiciária junto como doc.12 com a PI, no qual concluiu após 3ª inspecção para desmontagem da torre do PC concluindo pela origem do incendio num componente da placa do PC, meio de prova esse corroborado pelo depoimento testemunhal do seu autor Inspector da PJ, testemunha BB – prestado na sessão de julgamento de 5/1/2024, nas passagens da gravação de 00:07:12 a 00:08:19, e ainda, o relatório de peritagem da empresa F... junto como doc.13 com a PI, relatório esse que assimila as conclusões dos relatórios da G..., LDA e da PJ o qual esclarece na pág 24 que os componentes do controlador da máquina foram colocados à disposição dos das RR.;
8) Nenhum outro meio de prova indicou outro componente, outra localização, outra causa consistente e minimamente demonstrada que abalasse a consistência dos meios de prova acima descritos que concluíram – afirmando sem quaisquer dúvidas – que a origem do incêndio esteve no aquecimento e combustão lenta por decomposição defeituosa de um componente da dita placa GALIL como sustentado nos relatórios;
9) Nem os peritos indicados pelas RR, nem as testemunhas, funcionários da R. B... que a Mmª Juiz a quo menciona - testemunhas CC e DD – apresentaram qualquer versão diversa, ou sequer apresentaram argumentos que colocassem em causa os relatórios periciais referidos, limitando-se a afirmar especulativamente, a sua crença na impossibilidade de um dos referidos componentes ter criado uma ignição por terem tensões muito baixas, baseando-se no facto de trabalhar com aqueles equipamentos há anos e nunca ter assistido a ocorrência igual;
10) Daqui se retira que a Mmª Juiz a quo deu prevalência ao depoimento de dois funcionários da R. em que um primeiro entende “muito difícil uma autocombustão de componentes” e outra que a afirma impossível porque “se trata de uma placa que a Ré utiliza no seu equipamento há anos, e que nunca houve um problema como aquele em causa nos autos”, o que, de quem não tem a menor qualificação para determinação de causas de incêndio, é manifestamente, insusceptível de abalar as conclusões periciais acima invocadas;
11) A respeito deste encadeado factual quanto à origem do incêndio, a Mmª Juiz a quo alude ao depoimento da testemunha “EE, na parte em que esta afirma ter desligado a máquina no fim do trabalho no dia do incêndio (assim parecendo explicar a sua dúvida acerca de como poderia dar-se a combustão), salvo devido respeito, olvidando dois relevantes elementos: quer o facto de existir uma UPS a ligar o PC tendo este ligação diferente da máquina, quer ainda o trecho do depoimento da já referida testemunha Eng. AA, na passagem de 00:01:23 a 00:03:54, onde explica o processo lento e demorado de evolução das microchamas da ignição até ao desenvolvimento da combustão do incêndio podendo levar muitas horas;
12) Assim, devem ser aditados aos factos provados, os dos pontos com a seguinte redacção:
- Feita a desmontagem da torre do computador que fazia a gestão eletrónica da máquina em apreço, detetou-se numa placa de circuitos integrados, marcas condizentes com um sobreaquecimento e um início muito lento de combustão, pelo que foi possível concluir que o incêndio ocorreu por falência daquele componente eletrónico (tema da prova n.º2);
-A placa de circuitos em questão efetuava a gestão eletrónica da máquina em apreço, tendo a falência daquele componente eletrónico causado o incêndio sub judice (tema da prova n.º 3);
- Ocorreu um sobreaquecimento num dos transístores da placa de circuitos integrados, que, por ser deficiente, entrou em autocombustão(tema da prova n.º 4);
- O defeito do referido transístor teve como efeito um retorno da corrente e seu sobre aquecimento até se inflamar, ainda que com o equipamento em stand by gerando um foco de calor que foi decompondo sequencialmente o material disponível autoinflamando-se em chamas de baixa amplitude, dando origem a uma combustão muito lenta e progressiva (tema da prova n.º 5);
13) Deve ser alterada a decisão relativa à matéria de facto no que respeita ao ponto 21) dos factos não provados, respectivamente, tema da prova 17, para “provado” considerando os seguintes meios de prova: relatório de peritagem F... junto como doc.13 com a PI (refª 8086560 de 14/7/2022), conjugado com o documento 16 junto com a PI (refª 8088090 de 15/7/2022) – Ordem de Serviço de acção de reparação da B... em 20/12/2019; relatórios da Inspecção Judiciária levada a cabo pela Policia Judiciária em 6/6/2019 e 12/6/2019 juntos como doc.12 com a PI, que demonstram o facto de ter sido efectuada semanas antes pela R. B..., uma “reparação do controlador” de que faz parte a placa GALIL e uma substituição de outra placa de interface;
14) Também deve ser alterada a decisão relativa à matéria de facto no que respeita ao ponto 22) dos factos não provados, respectivamente, tema da prova 18, para “provado” considerando o facto de estar junto documento que o comprova - documento 29 junto com a PI – Ordem de Serviço de acção de reparação em 20/11/2018 conjugado com o depoimento da testemunha FF -prestado na sessão de julgamento de 3/5/2024, passagem de 00:01:22 a 00:12:10, de 00:08:30 a 00:09:06 e de 00:14:27 a 00:15:36 da gravação, na qual reconhece ser o autor da intervenção que concluiu ser descobrir a causa que havia provocado a avaria de “ecrã azul”;
15) Ainda em relação à decisão quanto à matéria de facto deve ser eliminado dos factos provados o ponto 23 dos mesmos por não se tratar de um facto mas, de um juízo conclusivo de natureza hipotética;
16) Dos factos provados resulta adquirido que, a par da celebração de um contrato de compra e venda do equipamento “CNC – corte de pele” denominada ““...” com número de série ..., equipada com mesa digitalizadora (DGTCRD – N/S ...), Software (AE PD5 GMS V10 S/N ...), PC e monitor da marca DELL”, a 1ª R celebrou um outro - contrato de manutenção e assistência - designadamente, o âmbito do qual a mesma se obrigou a assegurar de forma duradoura e pelo prazo de dois anos da garantia contratada, a manutenção em bom funcionamento da máquina em causa, contrato esse que estava em vigor à data do incêndio (pontos 52 e ss dos factos provados);
17) Na venda, a prestação contratual consistente na entrega do equipamento vendido, foi acompanhada da assunção de responsabilização da 1ª ré “por quaisquer defeitos e avarias que surgissem” (cfr.ponto 53 dos factos provados), e no de manutenção obrigou-se à “prestação dos serviços de manutenção preventiva ou de reparação necessários à operacionalidade do Sistema”(cfr. ponto 56 dos factos provados);
18) A partir do momento em que se demonstrou que o incêndio teve ignição no interior da torre do PC do equipamento fornecido pela 1ª R – que é suposto reunir as condições de segurança térmica que impeçam a sua combustão - resulta evidente a existência de uma desconformidade na prestação contratual da 1ª R. que se tem de ter por defeituosa nas duas vertentes contratuais em que estava adstrita a obrigações de resultado – de assegurar o bom funcionamento no período de garantia e do contrato de manutenção, responsabilizando-se por quaisquer danos, e assegurando com manutenção preventiva qualquer avaria, anomalia ou mau funcionamento;
19) Na verdade, não sendo expectável que uma máquina fornecida nova e no período de garantia se incendeie, e a partir dela se desenvolva um incêndio, independentemente de ser no componente ou peça x,y ou y, e de qual o material dessa minipeça que decompôs lentamente perante a corrente eléctrica – o adquirente cumpriu o seu ónus de prova da desconformidade ou defeito, passando a caber ao fornecedor demonstrar que apesar disso a ignição não se deveu a defeito da placa nem de nenhum dos componentes da mesma de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 344.º do CCiv atenta a presunção de culpa do art. 799.º do mesmo CCiv.;
20) Do mesmo modo, e no que respeita à obrigação resultante do contrato de assistência e manutenção, demonstrando-se que nos meses que antecederam o incendio – ocorrido em 6/4/2019 – ocorreram duas anomalias com intervenção dos técnicos, uma em 20/11/2018 sem detecção da origem do problema, e outra em 20/2/2019 com uma reparação no controlador (de que faz parte a placa GALIL), esta ultima um mês e meio antes do incêndio sem que detectasse e corrigisse a anomalia que o despoletou, consubstanciando cumprimento defeituoso da obrigação com a presunção de culpa do art. 799.º do CCiv também aqui valida e operante que a 1ª R. não ilidiu;
21) A 1ª R. alegou uma série de causas externas que explicassem e ignição do incendio ocorrido mas não logrou demonstrar cabimento de nenhuma delas, não logrando ilidir essa presunção de culpa do art.º 799.º do CCiv;
22) Estando a responsabilidade por danos decorrentes de deficiência do equipamento assegurada contratualmente pela 1ª R. desde a data da instalação da máquina nas instalações da segurada da autora, e por esta, transferida por contrato de seguro entre ambas até ao valor de €827.230,00 para a 2ª R. é evidente a responsabilidade solidária de ambas até esse valor, e da 1ª R. isoladamente no remanescente até aos € 902.860,65, valor que deviam ter sido condenadas a pagar à A. atenta a sub-rogação desta nos direitos da “D..., Lda” até este valor com que a indemnizou, acrescidas de juros legais desde a citação;
23) E nesse sentido, deve ser alterada a decisão recorrida, porque,
24) Violou a decisão recorrida o disposto nos art.s 607.nºs 3 e 4 do CPCiv e 342.º, 344º, 798º, 799º e 921º do CCiv e 136º e 137.º da LCS - DL 72/2008 de 16/4.
Conclui pelo provimento da presente apelação, alterando-se a decisão recorrida nos pontos da matéria de facto acima impugnados e revogando-se a sentença, substituindo-a por outra que, julgando a acção provada e procedente, condene as rés solidariamente, a pagarem à autora a quantia de € 902.860,65, acrescidas de juros legais desde a citação, sendo a obrigação da 2ª ré limitada ao máximo de € 827.230,00, acrescida dos mesmos juros, condenando-se ainda as rés nas custas da acção.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Da análise das conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações, que versam sobre a decisão recorrida e que delimitam o objeto do recurso, estando o Tribunal impedido de conhecer de matérias não incluídas nessas conclusões, com exceção das que sejam de conhecimento oficioso, nos termos do previsto nos artigos 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:
1ª Da impugnação da decisão da matéria de facto
2ª - Da repercussão dessa eventual alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso
1ª Da impugnação da decisão da matéria de facto
O art.º 662.º do Código de Processo Civil dispõe, no seu nº 1, que: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Como refere Abrantes Geraldes[1],“Com a redacção do art. 662º pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo de correção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afetam a decisão da matéria de facto (v.g. contradição) e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos, e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência… fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia… sem embargo, das modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido, nem lhe é permitido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo Tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto, indicou nas respectivas alegações que circunscrevem o objecto de recurso”.
Por seu lado, o artigo 640.º, do Código de Processo Civil, impõe ao recorrente, na impugnação da matéria de facto, a obrigação de especificar, sob pena de rejeição:
a) “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” [tem que haver uma indicação clara e inequívoca dos segmentos da decisão que considera afetados por erro de julgamento; ou seja, essa indicação tem que ser de molde a não implicar uma atividade de interpretação e integração das alegações do recorrente, tendo o Tribunal que encontrar na matéria de facto provada e não provada a matéria que o mesmo pretenderia impugnar, o que, aliás, está vedado ao Tribunal, face ao princípio do dispositivo];
b) “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” [tem que fundamentar os motivos da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos – constantes dos autos ou da gravação – que, no seu entender, implicam uma decisão diversa da impugnada];
c)“quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”;
d) “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
O citado artigo 640.º impõe, pois, um ónus rigoroso ao recorrente, cujo incumprimento implica a rejeição imediata do recurso. Como evidencia António Santos Abrantes Geraldes[2], será de rejeitar total ou parcialmente o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto em alguma das seguintes situações:
«a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc).
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento de impugnação». Quanto a esta situação importa, no entanto, ter presente que o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão nº 12/2023, de 17 de outubro de 2023[3], uniformizou a seguinte jurisprudência: «Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
À luz dos considerandos que antecedem, no caso dos autos, entendemos que a Recorrente cumpriu os pressupostos de ordem formal para se proceder à reapreciação da decisão da matéria de facto, mais precisamente o ónus de impugnação a que alude o artigo 640º, do Código de Processo Civil, mostrando-se preenchidos todos os pressupostos necessários para a Relação proceder à reapreciação da prova.
Cumpre salientar que essa reapreciação deve conter-se dentro dos seguintes parâmetros:
i) O Tribunal da Relação só tem de se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pela Recorrente (a menos que se venha a revelar necessária a pronúncia sobre facticidade não impugnada para que não haja contradições);
ii) Sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem de realizar um novo julgamento;
iii) Nesse novo julgamento, o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Dentro destes limites, o Tribunal da Relação está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pela Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto à imediação e oralidade.
Diga-se ainda que a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do Código de Processo Civil), que está atribuído quer ao Tribunal da 1ª instância quer ao Tribunal de recurso, embora se reconheça que na formação da convicção do julgador podem intervir elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade permitem apreender.
Recorrendo aos ensinamentos de António Santos Abrantes Geraldes[4], diremos que “É inegável que a gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (vídeo) nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reações perante as objeções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de perceção das referidas reações que, porventura, influenciaram o juiz de 1ª instância”.
Como é referido por aquele autor em nota de rodapé (547), na obra citada, página 348, «Já no Preâmbulo do Decreto nº 12.353, de 22-9-1926, se assinalava, com toda a pertinência, que “a psicologia judiciária ensina que um dos elementos a que deve atender-se para apreciar o valor de um depoimento é a atitude da testemunha, o modo como ela se apresenta, a forma por que depõe, o tom de firmeza ou de embaraço que imprime às suas declarações. Não é exagerado afirmar-se que mais do que aquilo que a testemunha diz vale o modo por que o diz”».
Por estas razões, está, em princípio, em melhor situação para apreciar os depoimentos prestados o julgador de primeira instância, uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos que não transparecem na gravação dos depoimentos, devendo, contudo, esclarecer, na decisão, os elementos considerados que entendeu de relevo.
Não obstante essas dificuldades com que o Tribunal da Relação se defronta, a verdade é que deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando, analisando devidamente todos os meios de prova, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, consiga concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação por parte do Tribunal de 1ª Instância relativamente aos concretos pontos de facto impugnados pelo Recorrente. De salientar que pode, também, dar-se o caso de, mesmo que o erro na apreciação da prova se não verifique, o Tribunal da Relação, usando da sua autonomia decisória, entender que deve introduzir as alterações solicitadas pelo Recorrente no compósito fáctico da causa, por diversa convicção sobre as provas, pois que o princípio da livre convicção de julgador vigora não só no julgamento de facto em 1ª instância, como também no julgamento de facto da Relação, não estando este Tribunal vinculado à livre convicção do julgador do Tribunal inferior.
Partindo destas premissas, passamos a conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto suscitada pela Recorrente, tendo, para tal, procedido à audição integral dos registos fonográficos indicados e analisado devidamente toda a prova documental junta aos autos.
A Recorrente impugna os pontos 13), 14), 15), 16), 17), 20), 21) e 22) dos factos não provados, pretendendo que passem a provados, e o ponto 23) dos factos provados, pugnando pela sua eliminação, por entender que não se trata de um facto, mas de um juízo conclusivo de natureza hipotética.
É o seguinte o teor desses pontos:
- 13) dos factos não provados: A origem da combustão foi-o na máquina informatizada de corte de tecido/pele caracterizada em 23 a 26 dos factos assentes e, pela leitura das marcas deixadas pelo fogo, no que diz respeito ao sentido e direção da propagação do incêndio foi possível determinar que o início da combustão teve origem no interior da unidade de comando da referida máquina;
- Ponto 14) dos factos não provados: Feita a desmontagem da torre do computador que fazia a gestão eletrónica da máquina em apreço, detetou-se numa placa de circuitos integrados, marcas condizentes com um sobreaquecimento e um início muito lento de combustão, pelo que foi possível concluir que o incêndio ocorreu por falência daquele componente eletrónico;
- Ponto 15) dos factos não provados: A placa de circuitos em questão efetuava a gestão eletrónica da máquina em apreço, tendo a falência daquele componente eletrónico causado o incêndio sub judice;
- Ponto 16) dos factos não provados: Ocorreu um sobreaquecimento num dos transístores da placa de circuitos integrados, que, por ser deficiente, entrou em autocombustão, a qual havia sido objeto de recente substituição;
- Ponto 17) dos factos não provados: O defeito do referido transístor teve como efeito um retorno da corrente e seu sobre aquecimento até se inflamar, ainda que com o equipamento em stand by gerando um foco de calor que foi decompondo sequencialmente o material disponível autoinflamando-se em chamas de baixa amplitude, dando origem a uma combustão muito lenta e progressiva;
- Ponto 20) dos factos não provados: Em consequência do incêndio, as chamas propagaram-se a partir do referido computador ao resto da máquina alastrando para o resto das instalações industriais, destruindo-as por completo, bem como os conteúdos existentes no seu interior;
- Ponto 21) dos factos não provados: O produto integrado/componente da máquina fornecida pela 1.ª Ré apresentava falta de segurança para utilização em instalações industriais, a qual não foi corrigida mediante a reparação cerca de seis semanas antes com intervenção precisamente ao nível da placa de controlo onde se deu a ignição;
- Ponto 22) dos factos não provados: E não obstante uma outra ação de manutenção em 20/11/2018, numa por anomalia e maus contactos em todo o PC, sem deteção da deficiência presente;
- Ponto 23) dos factos provados: O incêndio e os danos ocorridos e descritos teriam sido evitados se, com zelo e rigor nas prestações supra descritas, a placa em causa, que apresentava deficiência evidente com anomalias de funcionamento, tivesse sido substituída por outra sem o defeito.
O Tribunal a quo motivou os pontos de facto impugnados por parte da Apelante nos seguintes termos:
“ Atento o comando vertido no n.º 4 do art.º 607.º do Cód. Processo Civil, importa analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a fixação da matéria de facto nos termos supra descritos, o que implica a escalpelização de todo o material probatório que foi trazido a este processo.
(…) Com relação ao facto n.º 23, foi tido em consideração o teor do documento n.º 14 junto com a petição inicial.
(…) No que se refere à matéria de facto dada como não provada, a parte a quem competia o respetivo onus probandi não logrou produzir prova bastante, tendente à demonstração das concretas afirmações de facto aí vertidas.
Os factos n.ºs 13, 14, 15, 16, 17, 19 e 20 foram dados como não provados, depois de conjugados os depoimentos das testemunhas Eng.º AA, gerente da sociedade E..., Lda., Eng.º GG, Supervisor da F..., com formação em mecânica, HH, economista, perito que presta serviços à F... e que subscreveu o Relatório junto com a petição inicial como documento 13, BB, Inspetor da Polícia Judiciária, Diretoria do Norte, com os depoimentos das testemunhas CC, funcionário da 1.ª Ré que procedeu a uma intervenção (cf. documento 13 junto com a contestação) e DD, licenciado em engenharia eletrónica industrial, funcionário da 1.ª Ré há 32 anos, onde exerce funções de responsável pela equipa de serviços técnicos da empresa há 10/12 anos, os quais foram ainda complementados com o depoimento prestado pela testemunha EE.
A testemunha Eng.º AA referiu que a sua empresa faz uma peritagem independente, e que tem experiência na investigação de incêndios desde fevereiro de 2013. Interveio na sequência de um pedido da F... do dia 9/4.
Deslocou-se três vezes ao local e elaborou o Relatório de 26/7/2019.
Depôs sobre o seu modus operandi, esclarecendo que pela interpretação dos danos, identifica-se o início da propagação, e que pelos vestígios que o calor deixa nos materiais, vê-se o sentido da propagação.
Referiu que o ponto de ignição do incêndio situou-se dentro de uma unidade informática de comando de uma máquina de corte de peles, mais precisamente numa placa de circuitos impressos, situada dentro de uma torre, cf. Foto 10, pág. 32, do Relatório.
Acrescentou que se a placa tivesse recebido calor de outro material em combustão, apresentaria danos homogéneos. No caso, há danos heterogéneos, um dano anormal, circunscrito, pontual, no círculo tracejado a vermelho, onde existe maior intensidade do dano, cf. Foto 19 do Relatório. Na Foto 17, verifica-se que é na zona de transístores onde há o maior grau de dano. Mas também poderá ter sido do condensador, situado imediatamente ao lado, porque trata-se de uma questão de milímetros. O foco foi num destes componentes.
Referiu que se houver uma anomalia, o material entra em sobreaquecimento, inflama e dá-se a combustão.
Questionado sobre se a utilização de uma UPS é contrária à utilização de uma máquina, respondeu que, no caso, o foco não foi na zona de alimentação, sendo a UPS irrelevante. Pelos vestígios, determina-se o ponto de início da combustão, e depois apura-se a causa. No caso, a causa do incêndio não tem a ver com a energia de alimentação que entra dentro do aparelho, pois se fosse o caso, o dano seria na fonte de alimentação.
Questionado sobre a existência de colas, sprays ou outros produtos a circular no ar, respondeu que, em standby, o equipamento não geraria calor para inflamar esse combustível.
No caso, houve uma fonte de calor que degradou o material de dentro para fora. O calor foi decompondo o material de dentro para fora.
Os componentes eletrónicos têm capacidade para aguentar a potência a que estão sujeitos. Estão adequados à potência que desenvolvem e à tensão a que estão sujeitos. Um componente com anomalia vai-se degradando lentamente, até atingir um limite de acumulação térmica e se inflamar. A libertação de calor e a degradação do material pode não ter efeitos visuais e pode demorar meses. A partir do momento em que entra em combustão e se inflama, faz uma micro chama, e propaga-se, o que pode demorar horas.
O equipamento em causa pode estar em standby, e o standby não leva a uma maior degradação dos componentes. Tem de haver uma avaria do componente para entrar em sobreaquecimento. Para se inflamar e entrar em combustão, tinha de estar a gerar calor, e o calor residual tinha de estar a incidir sobre o material de forma permanente para o decompor.
A testemunha Eng.º GG, referiu que a Autora pediu a intervenção da F..., que interveio no próprio dia.
A testemunha acompanhou o perito da E..., Eng.º AA.
Houve uma primeira intervenção no local, para ver a dimensão dos danos e perceber o que se passou. Houve necessidade de se libertar os escombros, e a Polícia Judiciária acompanhou a remoção dos escombros.
O ponto de inicio do incêndio localizou-se no PC associado a uma máquina de corte de pele, numa placa de circuitos integrados que faz parte do próprio computador. Referiu a testemunha que foi uma reação bastante lenta, e que dá a ideia de que ocorreu através de um transístor. Em condições normais, não é possível entrar em combustão. Houve uma falência de um componente.
Acrescentou a testemunha que foi feita uma despistagem de fatores externos, como intervenção de terceiros, trovoadas e alterações daí decorrentes. Foi instruído o gerente da D... para questionar a L... sobre a existência de alterações de fornecimento de energia na zona, e a resposta foi negativa.
Existiu uma total convergência de conclusões da Polícia Judiciária e do Eng.º AA.
A testemunha HH referiu igualmente que foram despistadas outras causas externas à ocorrência de avarias, nomeadamente se nos dias anteriores houve trovoadas, o que não foi o caso, diligência junto da L..., no sentido de saber se houve algum incidente, tendo-se apurado que não houve incidente, e se havia substâncias inflamatórias, não havendo indícios disso.
Houve uma avaria numa placa que fazia interface e que estava no computador. O problema foi um componente que terá aquecido.
A testemunha BB referiu que fizeram a desmontagem da Unidade de Controle da máquina de corte, que consiste numa torre de PC, e verificaram marcas condizentes com uma situação de início do incendio a partir dali.
Não houve qualquer tipo de intrusão na empresa, e não foi encontrado qualquer artefacto para provocar intencionalmente uma ignição.
Refere-se no Relatório de Inspeção Judiciária de 12/6/2019, assinado pela testemunha, junto com a petição inicial como documento 12, que «Numa 3ª Inspecção judiciária, que viria a ocorrer no dia 12/06/2019, debruçamos a nossa atenção à unidade de comando da já referida máquina de corte de tecido/pele. Tendo sido efectuada a desmontagem da torre do computador que fazia a gestão electrónica da máquina em apreço, viria a detectar-se numa placa de circuitos integrados, marcas condizentes com um sobreaquecimento e um início muito lento de combustão, pelo que foi possível concluir que o incêndio ocorreu por falência daquele componente electrónico.»
No que respeita à confirmação da inexistência de picos de tensão junto da L..., foi considerado o teor do e-mail de 4/11/2019 que constitui o documento 17 junto com a petição inicial.
Já a testemunha CC referiu que a Placa Galil tem dois reguladores de tensão (2.2 e 3.3), que não são transístores, e que se trata de tensões muito baixas, e não é possível sobreaquecer. Em standby, esses reguladores deixam de estar alimentados. O computador ou está ligado ou está desligado. Se estiver desligado, a Placa Galil está desligada. Mesmo estando o computador ligado, é muito difícil uma autocombustão de componentes. O material não é inflamável. Se o regulador de tensão entrar em curto-circuito, a fonte de alimentação do computador desliga por sobretensão.
A testemunha EE, funcionária da Interveniente D..., a exercer funções no setor de corte há cerca de 7 anos, referiu que trabalhou com a máquina, no dia anterior ao incêndio, após o que a desligou, como o fazia sempre, acrescentando que a máquina nunca foi colocada em standby.
A testemunha DD referiu ser impossível um incêndio começar numa placa como a Placa Galil, porque tecnicamente é impossível (essa Placa) ter força para criar uma ignição, acrescentando que se trata de uma Placa que a Ré utiliza no seu equipamento há anos, e que nunca houve um problema como aquele em causa nos autos.
Esclareceu que na Foto da p. 43 do documento 11 junto com a petição inicial, exibida à testemunha, onde se refere “transístores” são dois reguladores de tensão, que mantêm a tensão de saída em 3.2 volts. A Placa em causa é uma Placa de Controle, que não tem potência, e que não é possível esta Placa ter um ponto de ignição ao ponto de gerar uma faísca. Trata-se de uma placa que faz toda a gestão de sinais binários, zeros e uns. Envia um sinal de comando para os cérebros, que, esses sim, vão enviar corrente e tensão mais elevada para que a máquina se desloque, nas três direções. É uma placa feita com semicondutores, e o semicondutor é feito para partir, não arde. Se houver um excesso de corrente/pico de tensão, o semicondutor parte. Não tem potência para arder, mesmo estando sempre ligado. O próprio PC, se houver um excesso de corrente, desliga. Refere a testemunha que é o mesmo que ter duas pilhas, de 1,5 volts cada uma. Se a máquina estiver desligada, o PC não tem alimentação. O único componente que poderá ter alimentação remanescente é a fonte de alimentação do PC. A fonte de ignição não pode vir da Placa. O material de todos os componentes da Placa, de silício, é como uma pedra, não arde. É um material que não é combustível.
Os depoimentos das testemunhas Eng.º AA, gerente da sociedade E..., Lda., Eng.º GG, Supervisor da F..., HH, economista, perito que presta serviços à F... e BB, Inspetor da Polícia Judiciária - quanto ao ponto de início da combustão, que concluem ter sido numa placa de circuitos impressos, tendo em atenção os danos heterogéneos que apresentava, com uma zona de maior intensidade de dano, e indícios de ter havido uma fonte de calor que degradou o material de dentro para fora e, por via disso, que a referida placa de circuitos impressos entrou em sobreaquecimento devido a uma avaria/falência de um componente que se terá inflamado, - foram contrariados pelos depoimentos das testemunhas funcionárias da 1.ª Ré, CC e, essencialmente, da testemunha DD, licenciado em engenharia eletrónica industrial, que depôs sobre a impossibilidade de o incêndio ter começado na Placa de Controlo de Movimento em causa, por não ter potência suficiente para gerar uma faísca e entrar em combustão, sendo os semicondutores feitos de material não combustível, o que se afigura suscetível de criar a dúvida no espírito do julgador sobre a realidade daqueles factos (início da combustão e defeito dos componentes da Placa de Controle em causa) alegados pela Autora, a quem cabe fazer a prova dos mesmos, enquanto factos constitutivos do direito invocado, dúvida que terá, assim, de ser resolvida contra a parte a quem o facto aproveita”.
Seguiremos a ordem indicada pela Recorrente no que tange à censura que dirige ao julgamento da matéria de facto.
A) A Apelante começa por dirigir tal censura aos pontos 13 e 20 dos factos dados como não provados, considerando que os mesmos devem passar a provados, o que, no seu entendimento, resulta da apreciação conjunta dos seguintes meios de prova: o relatório de peritagem da empresa “E..., Lda” subscrito pelo seu autor Eng. AA, junto como documento 11 com a petição inicial, em especial as fotografias dele constantes, complementado pelo depoimento por ele prestado na sessão de julgamento de 5/1/2024 na passagens de 00:01:30 a 00:10:26, de 00:07:18 a 00:02:21; o relatório da inspeção Judiciária junto como documento 12 com a petição inicial, complementado pelo depoimento testemunhal do seu autor, Inspetor BB, prestado na sessão de julgamento de 5/1/2024, nas passagens da gravação de 00:00:52 a 00:03:55, de 00:05:17 a 00:07:12.
Ouvidos os depoimentos indicados pela Recorrente e o da testemunha DD, indicado pelas Recorridas, bem como analisados os documentos juntos com a petição inicial como documento 11 e 12, o primeiro um relatório da peritagem elaborado pela empresa “E..., Lda”, subscrito pela testemunha AA, e o segundo um relatório de inspeção judiciária elaborado pela testemunha BB, entendemos que assiste razão à Recorrente, devendo proceder a sua pretensão.
Afigura-se-nos que se mostram devidamente fundamentadas a este respeito as conclusões daqueles relatórios ao colocarem a origem da combustão na máquina informatizada de corte de tecido/pele caracterizada em 23 a 26 dos factos assentes. Acresce que, conforme se pode ler nos referidos relatórios e foi devidamente explicado e complementado em sede de julgamento pelos depoimentos das identificadas testemunhas AA e BB, pela leitura das marcas deixadas pelo fogo, no que diz respeito ao sentido e direção da propagação do incêndio, foi possível determinar que o início da combustão teve origem no interior da unidade de comando da referida máquina, ou seja, no respetivo computador / torre.
Os relatórios acima referidos e dos depoimentos dos seus autores demonstram com elevado grau de certeza a localização do início da combustão na torre do PC (unidade de comando) da máquina de corte de tecido/pele caracterizada em 23 a 26 dos factos assentes, sendo certo que da demais prova produzida não resulta uma localização alternativa para a origem do incêndio, pelo que, neste aspeto, a dúvida do julgador não se nos afigura suficientemente fundamentada. Note-se que as próprias testemunhas CC e DD, funcionários da 1ª Ré, não apontam outro local para o início do incêndio, ou sequer tentaram contrariar que a origem do mesmo tivesse sido na torre do PC da máquina em questão. A divergência entre os depoimentos destes testemunhas e o das testemunhas AA, gerente da sociedade E..., Lda, GG, Supervisor da F... e BB, inspetor da Polícia Judiciária, divergência essa que levou o Tribunal a quo a afirmar um estado de dúvida inultrapassável quanto aos factos em causa, dúvida essa com a qual, aliás, concordamos, como teremos oportunidade mais adiante de ver, refere-se apenas à causa técnica exata da ignição, mas não à circunstância de o foco inicial do incêndio ter ocorrido no PC daquela máquina.
Termos em que procede nesta parte a impugnação da matéria de facto, passando a provados os indicados pontos 13) e 20) dos factos não provados.
B) No que respeita aos factos não provados sob os pontos 14), 15), 16) e 17) argumenta a Recorrente que devem passar a provados, com exceção do segmento “a qual havia sido objeto de recente substituição”, por resultarem da conjugação do já referido relatório de peritagem da empresa “E..., Lda” junto como documento 11 com a petição inicial com o depoimento da testemunha AA, prestado na sessão de 5/1/2024 nas passagens de 00:11:07 a 00:21:55, de 00:21:55 a 00:24:36 e de 00:27:58 a 00:32:03; da apreciação do relatório da inspeção judiciária junto como documento 12 com a petição inicial, corroborado pelo depoimento testemunhal do seu autor, a testemunha BB, prestado na sessão de julgamento de 5/1/2024, nas passagens da gravação de 00:07:12 a 00:08:19, e ainda do relatório de peritagem da empresa F... junto como documento 13 com a petição inicial, relatório esse que assimila as conclusões dos relatórios da G..., LDA e da PJ.
No entanto, ouvida a prova testemunhal indicada pela Recorrente, bem como o depoimento da testemunha DD, indicado pelas Recorridas, e concatenados tais depoimentos com a prova documental referida, entendemos não assistir razão à Recorrente, pois que não vemos razão para divergir do decidido, porquanto, na realidade, da conjugação de tais elementos probatórios resultou uma dúvida inultrapassável no espírito do julgador sobre aqueles factos não provados constantes dos pontos 14), 15), 16) e 17).
Na verdade, relativamente ao local exato do início do incêndio dentro da torre do PC, a prova produzida foi contraditória, divergente e frágil.
Por um lado, importa salientar que resultou evidente da audição dos depoimentos das testemunhas AA e BB que, não obstante cada um deles ter subscrito relatórios distintos, a verdade é que as diligências no local onde ocorreu o incêndio, para recolha dos elementos nos quais basearam as conclusões daqueles relatórios, foram efetuadas em simultâneo, nos mesmos dias e horas. Como referiu ao testemunha BB, a Polícia Judiciária não dispõe de meios técnicos e humanos para proceder à remoção de escombros, tendo esses meios sido disponibilizados pela Autora, e no âmbito desses diligências as testemunhas AA e BB, embora pertencessem a esquipas de investigação distintas, foram falando e trocando opiniões quanto às causa do incêndio. Como afirmou a testemunha BB no seu depoimento “No local foi-se falando…”, referindo-se à testemunha AA e este, no seu depoimento, afirmou “O inspetor BB era da mesma opinião…”. Ou seja, dos depoimentos das identificadas testemunhas resulta que não estamos perante dois relatórios efetuados por entidades distintas, realizados de forma independente, mas antes perante dois relatórios que, apesar de terem sido elaborados por entidades distintas, acabaram por resultar de uma estreita colaboração no terreno.
No relatório da Polícia Judiciária, conclui-se que “Depois de efetuada a limpeza da área, com a remoção de grande parte dos escombros, foi identificada uma máquina de corte de tecido /pele, sendo que pela leitura efectuada das marcas deixadas pelo fogo, no que diz respeito ao sentido e direcção de propagação do incêndio, foi possível determinar que o início da combustão teve origem no interior da unidade de comando da referida máquina.
(…) tendo sido efectuada a desmontagem da torre do computador que fazia a gestão electrónica da máquina em apreço, viria a detetar-se numa placa de circuitos integrados, marcas condizentes com um sobreaquecimento e um início muito lento de combustão, pelo que foi possível concluir que o incêndio, ocorreu por falência técnica daquele componente eletrónico”.
No relatório da E... consta que “ pela aplicação do Quadro de Indicadores de sentido e Direcção da Propagação foi possível determinar que a combustão teve a sua origem no interior da Unidade de Comando da “CNC – Corte de tecido /pele”
(...)
Estando tecnicamente determinado que o incêndio havia tido a sua origem no interior da caixa da Unidade de Comando de CNC – Corte de tecido /pele”, procedeu-se ao seu manuseamento de forma a identificar o ponto de origem da combustão.
Pela observação das diferentes laterais da referida Unidade viríamos a validar que o seu ponto de início se localizava no interior da Torre do Computador (PC da marca BELL), mais concretamente na Placa de Controlo de Movimento “..., que por avaria num dos transístores terá aquecido até se auto-inflamar, gerando danos decorrentes de uma ação lenta do calor gerado e libertado”.
Não obstante o referido neste relatório, o seu autor, a testemunha AA, quando questionado pelo ilustre Mandatário da Autora sobre se conseguiram identificar qual dos componentes da placa em questão deu origem à ignição, afirmou que em cerca de 2/ 3 cms estão colocados 2 transistores, e oscilador e um condensador. Embora no relatório tenha referido que o início da combustão foi num dos transístores, “admitindo uma pequena falha”, pois que a distância entre os componentes é de milímetros, admite que possa ter sido na zona do condensador.
Por outro lado, como é referido pelo Tribunal a quo as testemunhas funcionárias CC e, essencialmente, a testemunha DD, licenciado em engenharia eletrónica industrial, afirmaram, de forma igualmente séria, credível e consistente, a impossibilidade de o incêndio ter começado na Placa de Controlo de Movimento em causa, por não ter potência suficiente para gerar uma faísca e entrar em combustão, sendo os semicondutores feitos de material não combustível, o que se afigura suscetível de criar a dúvida no espírito do julgador sobre a realidade daqueles factos alegados pela Autora, a quem cabe fazer a prova dos mesmos, enquanto factos constitutivos do direito invocado, dúvida que terá, assim, de ser resolvida contra a parte a quem o facto aproveita.
Considera-se que, perante a existência de depoimentos técnicos contraditórios sobre a causa concreta do incêndio e a possibilidade de ignição no componente alegado, a dúvida formada no espírito do julgador é legítima, tanto mais que a própria testemunha AA admitiu que, afinal, diferentemente do que fez constar do seu relatório, o início da combustão pode ter sido no condensador e não num dos transistores.
Analisada a prova produzida, ficou-nos a convicção de que, in casu, não existe o erro de julgamento que a Recorrente aponta, ao invés a matéria de facto foi livremente e bem decidida, pelo que não podemos, com segurança, divergir do juízo probatório do Tribunal a quo.
Efetuada a análise da prova, não há elementos probatórios produzidos no processo que imponham ou justifiquem decisão diversa – como exige o nº1, do artigo 662.º, para que o Tribunal da Relação possa alterar a decisão da matéria de facto quanto aos pontos 14, 15, 16 e 17 dos factos não provados. Não nos deparamos com prova robusta para demonstrar, como pretende a Recorrente, que o incêndio teve origem especificamente na placa de controlo de movimento da máquina em questão, nem que tenha ocorrido um sobreaquecimento de um transistor deficiente que entrou em autocombustão.
Assim, ponderando, de uma forma conjunta e conjugada e com base em regras de experiência comum, os meios de prova produzidos, concluímos que o juízo fáctico efetuado pelo Tribunal de 1ª Instância, no que concerne à matéria de facto em causa, se mostra conforme com a prova produzida, não se vislumbrando qualquer razão para proceder à alteração do ali decidido, mantendo-se os pontos 14), 15) 16) e 17) dos factos não provados.
C) Sustenta também a Recorrente que deve ser alterada a decisão relativa à matéria de facto no que respeita ao ponto 21) dos factos não provados para “provado” considerando os seguintes meios de prova: relatório de peritagem F... junto como doc.13 com a PI (refª 8086560 de 14/7/2022), conjugado com o documento 16 junto com a PI (refª 8088090 de 15/7/2022) – Ordem de Serviço de reparação da B... em 20/12/2019; relatórios da Inspeção Judiciária levada a cabo pela Policia Judiciária em 6/6/2019 e 12/6/2019 juntos como doc.12 com a PI, que demonstram o facto de ter sido efetuada semanas antes pela R. B..., uma “reparação do controlador” de que faz parte a placa GALIL e uma substituição de outra placa de interface.
Recorde-se que neste ponto 21) o Tribunal a quo deu como não provado que “O produto integrado/componente da máquina fornecida pela 1.ª Ré apresentava falta de segurança para utilização em instalações industriais, a qual não foi corrigida mediante a reparação cerca de seis semanas antes com intervenção precisamente ao nível da placa de controlo onde se deu a ignição”.
Antes de mais, convém desde logo referir que a primeira parte deste ponto contém matéria claramente conclusiva e, como tal, nem sequer deveria constar do elenco dos factos, seja provados ou não provados.
Por outro lado, face aos argumentos já aludidos no ponto B) da análise da impugnação da matéria de facto, para os quais se remete, claramente que esta pretensão da Recorrente tem também que improceder, pois que não se provou que foi ao nível da placa de Controlo de Movimento “... que se deu a ignição.
Acresce que, conforme resulta do próprio relatório da E... e do documento 16 junto com a petição inicial, a placa eletrónica substituída no âmbito da reparação de 20 de fevereiro de 2019 foi a “Placa de Interface”, que se encontrava instalada num outro componente da Unidade de Comando da máquina de corte, não existindo qualquer relação entre essa placa e aquela que a Autora alegou (mas não provou) ter estado na origem do sinistro.
Termos em que improcede neste parte o recurso.
D) A Recorrente pretende ainda que se dê como provado o ponto 22) dos factos não provados, considerando o facto de estar junto documento que o comprova - documento 29 junto com a PI – Ordem de Serviço de ação de reparação em 20/11/2018 conjugado com o depoimento da testemunha FF - prestado na sessão de julgamento de 3/5/2024, passagem de 00:01:22 a 00:12:10, de 00:08:30 a 00:09:06 e de 00:14:27 a 00:15:36 da gravação.
Como resulta desse documento 29), conjugado com o depoimento da testemunha II, essa intervenção de 20 de novembro de 2018 foi determinada pela circunstância de um problema reportado pela sociedade D..., Lda, no computador da máquina em causa, que estava a dar erro de ecrã azul do Windows.
No entanto, a intervenção daquela testemunha foi limitada ao software e RAM, e embora tenha admitido que não lhe foi possível diagnosticar a causa subjacente ao erro de ecrã azul, nenhuma conexão resultou provada entre essa anomalia do PC e o alegado defeito específico na placa Galil que se traduziria num sobreaquecimento do transístor e autocombustão, aliás não provados, como já decorre das considerações tecidas na alínea B) que antecede, pois que aquela intervenção não autoriza qualquer conclusão quanto à origem da ignição.
Termos em que improcede nesta parte o recurso, mantendo-se o ponto 22) dos factos não provados.
E) Finalmente, a Recorrente sustenta, na conclusão 15, que deve ser eliminado dos factos provados o ponto 23, por não se tratar de um facto mas de um juízo conclusivo de natureza hipotética.
Conjugada esta conclusão com o que resulta do artigo 30 das alegações verifica-se ter ocorrido um lapso de escrita na formulação daquela conclusão, pois que o facto em causa que a Recorrente pretende ver eliminado não é o ponto 23 dos factos provados, mas antes o ponto 23 dos factos não provados, que aliás, ali transcreve.
Assiste-lhe razão neste ponto. Trata-se de matéria que apenas pode e deve ser extraída em consequência da apreciação da matéria de facto dada como provada e/ou como não provada, sendo que implica um raciocínio jurídico e valorativo que consubstancia parte essencial da controvérsia que constitui o objeto do litígio, a apreciar e decidir no âmbito da questão de direito subjacente. Logo, tais segmentos conclusivo-jurídicos não podem constar da decisão de facto, isto é, não podem constar quer dos factos provados, quer dos factos não provados.
Do que vem de se expor concluímos que improcede o recurso da impugnação da decisão da matéria de facto, com exceção do ponto 23 dos factos não provados, que é eliminado, e dos pontos 13) e 20) dos factos não provados, que passam a provados, quais sejam:
- A origem da combustão foi-o na máquina informatizada de corte de tecido/pele caracterizada em 23 a 26 dos factos assentes e, pela leitura das marcas deixadas pelo fogo, no que diz respeito ao sentido e direção da propagação do incêndio foi possível determinar que o início da combustão teve origem no interior da unidade de comando da referida máquina.
- Em consequência do incêndio, as chamas propagaram-se a partir do referido computador ao resto da máquina alastrando para o resto das instalações industriais, destruindo-as por completo, bem como os conteúdos existentes no seu interior.
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2ª Da repercussão da alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso
A pretensão da Autora é a de que as Rés, solidariamente, lhes paguem os valores que teve de despender em função do incêndio ocorrido no dia 5 de abril de 2019, nas instalações industriais da sociedade D..., Lda, que estavam por si seguradas.
Em face da factualidade provada, o Tribunal a quo decidiu pela improcedência da ação.
Para tanto, afastou desde logo, e bem, a aplicação ao caso sub judice do regime da responsabilidade civil do produtos por coisa defeituosa, previsto no D.L. nº 383/89, de 6 de novembro, pois que a sociedade D..., que adquiriu e utilizava a máquina de corte ... para um fim profissional, não pode ser considerada uma consumidora em sentido estrito nos termos e para os efeitos de estar protegida por aquele regime especial da responsabilidade do produtos, conclusão que não é sequer colocada em causa pela Recorrente nas sua alegações de recurso e com a qual concordamos.
Mas a Recorrente impugnou a decisão quanto à matéria de facto, e perante a procedência parcial da mesma, importa averiguar se será de manter a decisão recorrida.
Um dos corolários do princípio indemnizatório é a sub-rogação pelo segurador que tiver pago a indemnização, na medida do montante pago, nos direitos do segurado contra o terceiro responsável pelo sinistro, conforme previsto no artigo 136º, nº1, do RJCS.
As condições da sub-rogação pelo segurador são o pagamento da indemnização por força do contrato de seguro e a existência de um crédito do segurado contra o terceiro responsável que, uma vez verificadas, fazem funcionar a sub-rogação, por via do que o segurador adquire os poderes que ao segurado competiam contra o terceiro responsável – art. 593º, nº1, do Código Civil.
Sustenta a Recorrente nas suas alegações, no pressuposto da procedência da sua impugnação da matéria de facto, que resulta da factualidade apurada que a par da celebração de um contrato de compra venda do equipamento “CNC – corte de pele” denominada “...” com número de série ..., equipada com mesa digitalizadora (DGTCRD – N/S ...), Software (AE PD5 GMS V10 S/N ...), PC e monitor da marca DELL”, a 1ª R celebrou um outro - contrato de manutenção e assistência - no âmbito do qual a mesma se obrigou a assegurar a manutenção em bom funcionamento da máquina em causa, contrato esse que estava em vigor à data do incêndio (pontos 52 e ss dos factos provados).
Na primeira vertente, da compra e venda de um bem – no caso a máquina ... com o PC integrado, a prestação contratual do fornecedor/vendedor - no caso a ré “B...” reconduz-se a uma prestação de coisa – na entrega do bem ao comprador, sustentando a Recorrente que houve uma venda de coisa defeituosa, entendendo que ao ter provado que a ignição se dá no interior do PC cumpre com o ónus de demonstrar a natureza defeituosa do bem fornecido e da prestação contratual de que o mesmo foi objeto, cabendo à 1ª R. demonstrar que apesar disso a ignição não se deveu a defeito da placa nem de nenhum dos componentes da mesma, de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 344.º do Código Civil, atenta a presunção de culpa do art. 799.º do mesmo Código.
Na segunda vertente da prestação defeituosa no contrato de manutenção e assistência, entende a Recorrente que a partir do momento em que a 1ª Ré se obriga a proceder a atos de reparação e a assegurar a “manutenção preventiva” da máquina, isto é, prevenir e evitar qualquer situação de mau funcionamento, deve promover todas as ações necessárias a evitar qualquer situação de deficiente funcionamento, tornando-se responsável a partir do momento em que se demonstra que o equipamento apresentava defeito e perigo.
Por isso, conclui a Recorrente que a partir do momento em que se demonstrou que o incêndio teve ignição no interior da torre do PC do equipamento fornecido pela 1ª R – que é suposto reunir as condições de segurança térmica que impeçam a sua combustão - resulta evidente a existência de uma desconformidade na prestação contratual da 1ª R. que se tem de ter por defeituosa nas duas vertentes contratuais em que estava adstrita a obrigações de resultado – de assegurar o bom funcionamento no período de garantia e do contrato de manutenção, responsabilizando-se por quaisquer danos, e assegurando com manutenção preventiva qualquer avaria, anomalia ou mau funcionamento;
Por sua vez, o Tribunal de 1º instância teceu as seguintes considerações:
“Invoca ainda a Autora como fundamento da sua pretensão ao reembolso dos valores que despendeu devido ao incêndio que deflagrou nas instalações da segurada, à luz do disposto no art.º 136.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o cumprimento defeituoso da prestação de serviços de reparação, presumindo-se a culpa da 1.ª Ré de acordo com o disposto no art.º 799º, que se estende dos técnicos que efetuaram os serviços àquela, de acordo com o previsto no art.º 800.º, do Código Civil, na medida em que o incêndio e os danos ocorridos e descritos teriam sido evitados se, com zelo e rigor nas prestação dos serviços, a placa em causa, que havia sido reparada em fevereiro de 2019 e apresentava deficiência evidente com anomalias de funcionamento, tivesse sido substituída por outra sem o defeito, e a responsabilidade da 2.ª Ré, no contrato de seguro de ramo responsabilidade civil que celebrou com a 1.ª Ré, com cobertura de danos causados pelos serviços prestados e produtos fornecidos pela 1ª Ré.
Por apurar ficou, no entanto, que a Placa ... tenha sido objeto de reparação no âmbito das intervenções de manutenção efetuadas pela 1.ª Ré durante o período de garantia, assim como por apurar ficou, de resto, que a referida Placa Gallil apresentava defeito que originou o incêndio do qual resultaram os danos cobertos pelo contrato de seguro titulado pela apólice n.º ....
Ora, competia à Autora demonstrar, enquanto facto constitutivo do direito por si invocado, o incumprimento, pela 1.ª Ré, das suas obrigações contratuais para com a interveniente D..., no decurso da assistência técnica prestada ao equipamento fornecido, durante o período de garantia.
O princípio geral da responsabilidade obrigacional, enunciado no art.º 798.º, do Código Civil, pressupõe um ato ilícito (o incumprimento de obrigações emergentes do contrato, que pode resultar do não cumprimento de deveres principais/essenciais ou de deveres acessórios/secundários), a culpa, que no âmbito da responsabilidade obrigacional se presume do devedor (n.º 1 do art.º 799.º), um dano e uma relação causal entre aquele e este.
No caso, não logrou a Autora demonstrar, como lhe competia (cf. art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil), o ato ilícito, ou seja, a execução defeituosa da prestação contratual, sendo que, na falta de norma que o permita, tal pressuposto da responsabilidade obrigacional não se presume, como acontece relativamente à culpa.
Com efeito, não logrou a Autora demonstrar que o incêndio teve origem na placa de controle de movimento “...”.
Em todo o caso, ainda que o tivesse demonstrado, o incêndio não é, seguramente, um defeito, uma falta de qualidade ou deficiente funcionamento, mas a consequência de um processo causal anterior, sendo no interior desse processo causal que há de encontrar-se o defeito, isto é, o facto concreto (curto-circuito, ligação mal efetuada, instalação elétrica com comportamento anormal, etc.), a partir do qual se deduz a falta de qualidade, e não logrou a Autora demonstrar o alegado defeito dos componentes da placa de controle de movimento em causa.
Porque assim, não assiste à Autora o direito ao reembolso do que despendeu, nos termos do art.º 136.º do DL. n.º 72/2008, de 6/4”.
Ora, adiantamos desde já que esta decisão do Tribunal a quo não merece reparo, e que a circunstância de a factualidade 13) e 20) dos factos não provados ter passado a considerar-se provada não altera tal decisão.
A ação está configurada pela Autora como uma ação de responsabilidade civil contratual por venda de coisa defeituosa, por força de um incêndio que terá tido o seu início numa máquina informatizada de corte de tecido / pele, de tipo “CNC – corte de pele”.
Essencial para a procedência da ação era que se tivesse provado que o incêndio se ficou a dever a defeito da própria máquina.
Com interesse para o conhecimento desta questão há que convocar os artigos 913º e 921º, do Código Civil.
Por outro lado, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, impunha-se o esforço probatório quanto à circunstância de a máquina em causa apresentar defeito. E não um defeito qualquer, mas um defeito que fosse suscetível de originar o incêndio.
Esse seria o facto gerador da obrigação de indemnizar.
Sucede que não logrou a Autora fazer tal prova, pois que a simples circunstância de estar provado que a origem da combustão foi na máquina informatizada de corte de tecido/pele caracterizada em 23 a 26 dos factos assentes e que o início da combustão teve origem no interior da unidade de comando da referida máquina não autoriza a conclusão de que tal máquina não apresentava qualidades e desempenho habituais nos bens do mesmo tipo.
Transpondo para o presente caso as considerações tecidas no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de março de 2014, proferido no âmbito do processo nº 783/11.2TBMGR.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt, diremos que um incêndio “não é um defeito, uma falta de qualidade, um deficiente funcionamento, é, antes, a consequência de um processo causal anterior e é no interior desse processo causal que há-de encontrar-se o defeito, isto é, o facto concreto (curto-circuito, ligação mal efectuada, instalação eléctrica com comportamento anormal, etc., etc..), a partir do qual se deduz a falta de qualidade e a inexistência do desempenho que seria, nas circunstâncias, expectável, o que, por sua vez, faz presumir a desconformidade da coisa (automóvel, no caso) com o contrato.
Diz ainda o A. que, de um veículo automóvel se espera que não arda, mesmo que imobilizado.
É certo que não é suposto que os automóveis se incendeiem, sobretudo quando estão estacionados, com o sistema de ignição desligado, mas a verdade é que tal aconteceu, sem que o A. impute a ocorrência (e prove a imputação) a um específico defeito ou deficiência de funcionamento que, independentemente da prova da sua causa (causa do defeito), e de acordo com as regras da experiência comum e do bom senso, indicie uma falta de qualidade e desempenho anormal, em função do que razoavelmente seria de esperar de uma coisa daquela natureza.
Ora, as mesmas regras da experiência comum e o bom senso, revelam que um veículo automóvel, dotado de todas qualidades normais que lhe são características, com desempenho também perfeitamente normal, pode, não obstante, incendiar-se por motivos absolutamente alheios e exteriores ao próprio veículo, designadamente, por acção de terceiro ou caso fortuito. Quer dizer que a ocorrência do incêndio pode ocorrer e ocorre, de facto, na vida real, mesmo na ausência de qualquer defeito ou deficiência de funcionamento”.
Ou seja, no caso incumbia à Autora provar que o incêndio que teve o seu início na torre PC da máquina em questão foi provocado por específico defeito ou deficiência de funcionamento daquela torre, o que não logrou fazer.
Por isso, o facto de o incendio ter começado naquela torre PC, por si só, desacompanhado da prova da existência de defeito (repete-se, o incêndio não consubstancia qualquer defeito) não pode deduzir-se que aquela máquina tivesse alguma falta de qualidade e de desempenho habituais que permita qualificá-lo de defeituosa.
Por outro lado, também não logrou a Autora demonstrar, como lhe competia, a execução defeituosa da prestação contratual relativa ao contrato de manutenção e assistência, ou seja, o ato ilícito pressuposto da responsabilidade contratual enunciada no artigo 798º, do Código Civil.
Com efeito, a existência do defeito ou da execução defeituosa da prestação é um facto constitutivo dos direitos atribuídos ao comprador, porquanto a execução defeituosa da prestação contratual, como violação do contrato, é um ato ilícito, elemento integrante da responsabilidade contratual.
No domínio desta responsabilidade, presume-se a culpa, mas, na falta de norma que o permita, o mesmo não acontece relativamente aos restantes requisitos da responsabilidade civil.
Assim, é sobre quem invoca a prestação inexata da outra parte como fonte da responsabilidade que há de recair o ónus de demonstrar os factos que integram esse incumprimento, entre os quais o facto ilícito, o que não logrou a Autora conseguir.
Improcede, pelo exposto, nesta parte o recurso interposto, concluindo-se pela manutenção da decisão recorrida, sem prejuízo da decisão relativa à alteração da matéria de facto provada e não provada.