Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO POR BLOCOS DE FACTOS E BLOCOS DE MEIOS DE PROVA
FACTOS IRRELEVANTES
Sumário
I - A nulidade decorrente da falta ou deficiência da gravação da prova deve ser invocada perante o tribunal em que a mesma ocorreu, no prazo fixado no nº 4 do art. 155º do CPC, não podendo ser arguida nas alegações [e conclusões] do recurso. II - A impugnação da matéria de facto por blocos de factos e blocos de meios de prova só é de admitir quando o/a recorrente alegue ou seja evidente que o conjunto ou conjuntos de factos correspondem a uma mesma realidade factual [mais ampla] que deverão ser apreciados/julgados à luz dos mesmos meios de prova [os mesmos segmentos dos vários depoimentos sinalizados e os mesmos documentos]. III - Quando o recurso incida sobre factos que não interferem com a solução da questão de direito, por serem irrelevantes para alteração/modificação da decisão decretada pelo tribunal recorrido, ou quando, por outro motivo, os mesmos não possam ser tidos em conta, a Relação deve abster-se de proceder à reapreciação da matéria de facto, para não levar a cabo uma atividade inútil e sem qualquer efeito prático.
Texto Integral
Proc. 740/23.6T8PVZ-B.P1 – 2ª Secção (apelação em separado) Relator: Des. Pinto dos Santos Adjuntos: Des. Artur Dionísio Oliveira
Des. Lina Castro Baptista
*
*
Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
i) O incidente e sua tramitação.
Nestes autos de inventário para partilha das heranças por óbitos de AA e marido BB, foi nomeada como cabeça-de-casalCC, por ser a filha mais velha dos inventariados.
A cabeça-de-casal, citada, deduziu incidente de escusa, alegando estar completamente afastada “das situações que estão em causa nos presentes autos” e sugeriu que fosse nomeada a sua irmã DD, em virtude de esta sempre ter acompanhado muito de perto o seu pai e estar inteirada dos assuntos da herança.
Notificadas do requerimento apresentado pela cabeça-de-casal, as interessadas EE e DD vieram expressar o seu acordo à designação da segunda como cabeça-de-casal, para o caso da escusa vir a ser julgada procedente, confirmando que a mesma estava inteirada de todos os assuntos da herança, que nenhuma das quatro filhas vivia com o inventariado há pelo menos 1 ano à data da morte e que a herdeira mais velha, com exclusão da cabeça-de-casal em funções desempenha cargo público incompatível com o exercício das funções de cabeça-de-casal.
Por sua vez, a interessada FF manifestou não dar o seu acordo para a nomeação da irmã indicada pela cabeça-de-casal e pugnou pela sua nomeação no cargo, alegando que vivia com o inventariado há mais de um ano à data da sua morte e, por isso, deve ser nomeada ao abrigo do disposto no art. 2080º nº 3 do CCiv.. Mais referiu que a cabeça-de-casal nomeada não tem fundamento legal para pedir escusa e que não corresponde à verdade que a irmã DD seja a herdeira mais inteirada dos assuntos relativos à herança, na medida em que reside no Porto há cerca de 20 anos e foi a própria quem ajudou muitas vezes o pai a tratar de questões referentes à administração do património hereditário.
Em resposta ao pedido de nomeação deduzido pela interessada FF, a cabeça-de-casal em funções reiterou a indicação da irmã DD para o cargo e as demais cointeressadas impugnaram que a interessada FF vivesse com o inventariado há pelo menos 1 ano à data do óbito, afirmando que esta interessada se limitava a viver num quarto da casa do inventariado e que este viveu no Porto entre Setembro de 2021 e Julho de 2022.
Foi produzida a prova oferecida pelas interessadas e, após, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo: «DECISÃO: Nestes termos e com os fundamentos que antecedem: a) Julgo improcedente o incidente de impugnação da competência deduzido e, em consequência, declaro competir legalmente à interessada CC o cargo de cabeça-de-casal; e b) Julgo improcedente o incidente de escusa deduzido e, em consequência, não concedo à cabeça-de-casal identificada em a) a escusa do cargo em que foi nomeada. Custas pelas requerentes dos incidentes, fixando-se a taxa de justiça em 1,5 UC (art.º 527.º, n.º 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 4 do RCP e tabela II a este anexa) – sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido à interessada FF. Valor dos incidentes: o do inventário (art.º 304.º, n.º 1 do CPC). Registe e notifique. (…)».
*
ii) O recurso e a resposta.
Irresignada com esta decisão, a interessada FF interpôs o presente recurso de apelação [com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo], cujas alegações culminou com as seguintes conclusões:
(…)
As interessadas EE e DDcontra-alegaram, pugnando pelo indeferimento da nulidade arguida pela recorrente, pela rejeição do recurso na parte em que impugna a matéria de facto [em virtude de não observar o que estabelece o art. 640º nº 1, em especial, na al. b), do CPC] e, no mais, pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.
*
*
II. Questões a decidir:
Em atenção à delimitação decorrente das conclusões das alegações das recorrentes – que fixam o thema decidendum deste recurso [arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 als. a) a c) do CPC], salvo ocorrência de outras de conhecimento oficioso, que aqui não se colocam -, as questões a decidir são as seguintes: i) Nulidade por inaudibilidade/deficiente gravação do depoimento de uma testemunha; ii) Rejeição do recurso sobre a matéria de facto por inobservância do estabelecido na al. b) do nº 1 do art. 640º do CPC; iii) Alteração da matéria de facto; iv) Alteração da solução jurídica declarada na decisão recorrida.
*
*
III. Matéria de facto:
i) A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. A inventariada AA faleceu no dia 10 de Agosto de 2021, no estado de casada com BB.
2. O inventariado BB faleceu em 19 de Maio de 2023, no estado de viúvo de AA.
3. Do casamento dos inventariados nasceram 4 filhas, a saber:
3.1. CC, a 22/11/1955;
3.2. GG, a 10/07/1959;
3.3. DD, a 01/09/1963;
3.4. FF, a 11/05/1965.
4. Os inventariados residiam ambos na casa situada na Avenida ..., rés-do-chão esquerdo à data do falecimento da inventariada.
5. Local onde também residia e continua a residir a filha FF há mais de 40 anos.
6. Entre Setembro de 2021 e Julho de 2022, durante a semana, o inventariado residia no Porto, em casa da filha GG e na companhia desta.
7. E regressava aos fins-de-semana para a sua casa da Póvoa identificada em 4..
8. O inventariado não tomou iniciativa de avisar ou informar a filha FF do local para onde se ausentou em Setembro de 2021.
9. E essa filha veio a saber onde o mesmo se encontrava depois de lhe telefonar para o efeito quando se apercebeu da sua ausência.
10. Entre Julho de 2022 e Maio de 2023, o inventariado residiu na sua casa identificada em 4..
11. No período referido em 10., o inventariado tomava as refeições sozinho, com o neto HH ou com a filha DD.
12. O inventariado e a filha FF não partilhavam despesas e cada um deles comprava os seus produtos de alimentação e higiene, para uso exclusivo.
13. A interessada FF confecionava as suas refeições e não tomava as mesmas juntamente com o inventariado.
14. A interessada FF não se oferecia para cuidar do inventariado, nem o acompanhava nas suas deslocações.
15. Por indicação do inventariado, as funcionárias que o mesmo contratou não cumpriam ordens da interessada FF.
16. Não limpavam o seu quarto ou tinham acesso ao mesmo.
17. E tinham instruções para contactar a filha DD caso fosse preciso resolver algum assunto.
18. A interessada FF tinha chaves do seu quarto.
19. E acedia à cozinha e casa-de-banho da casa referida em 4. livremente.
20. Com exceção das divisões referidas em 18. e 19. o inventariado fechava as portas divisões da casa à chave e apenas as abria segundo a sua conveniência.
21. Em Agosto de 2022, o inventariado adoeceu e a interessada FF chamou os Bombeiros Voluntários, que o levaram de emergência ao Centro Hospitalar ..., onde aquele ficou internado.
22. A interessada DD deslocava-se habitualmente aos fins-de-semana a casa do pai.
23. O que fazia para verificar o seu estado de saúde e se inteirar das suas necessidades.
24. Nessas ocasiões, fazia as refeições e tomava refeições com o pai.
25. Iam a Arcos de Valdevez para visitarem as propriedades e tratar dos assuntos necessários.
26. A interessada DD acompanhava o pai quando o mesmo tratava de assuntos relacionados com o património do dissolvido casal.
27. A interessada CC não está inteirada dos assuntos da herança.
28. A interessada GG é magistrada judicial, desempenhando funções como Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça.* ii) … E considerou como não provados os factos seguintes:
A) No período que mediou entre 20 de Dezembro de 2021 e meados de Janeiro de 2022, o inventariado voltou a viver na sua casa da Póvoa de Varzim.
B) O inventariado costumava anunciar previamente quando não pernoitava em casa.
C) O referido em 6. e 7. ocorreu com finalidade temporária, para que o inventariado mudasse de ares e evitasse as lembranças da casa lhe causavam, no período do luto.
D) Durante o período de internamento, quem acompanhou o inventariado junto da instituição e pessoal e lhe transportou roupa e objetos pessoais foi a interessada FF.
E) A qual o visitava diariamente.
F) A interessada FF ajudou muitas vezes o pai, a solicitação deste, nos registos dos imóveis da herança,
G) Em documentos de obras realizadas nos imóveis da herança,
H) E em questões de condomínio relativas à casa da Póvoa de Varzim. *
*
IV. Apreciação do objeto do recurso:
i) Nulidade por inaudibilidade/deficiente gravação do depoimento de uma testemunha.
Na conclusão 2, a recorrente alega que a gravação do depoimento da testemunha HH [inquirido na sessão de produção de prova de 08.11.2024 (manhã)] está deficiente e contém partes inaudíveis ou impercetíveis, padecendo, por isso, da nulidade prevista no art. 195º e segs. do CPC, que «argui para todos os efeitos legais».
A verificação desta situação poderá traduzir-se numa nulidade processual enquadrável na previsão do art. 195º nº 1 do CPC, pois, a ser admissível, neste recurso, a impugnação da matéria de facto, aquela deficiência [inaudibilidade total ou parcial do depoimento da referida testemunha] seria suscetível de influir no exame da matéria de facto prova e não provada e na decisão da causa.
Por estar em questão a gravação de uma diligência de produção de prova há que ter em conta o que dispõe o art. 155º do CPC, particularmente os seus nºs 3 e 4 que estabelecem que: «3 - A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato. 4 - A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.».
Temos então que, efetuada a gravação de qualquer audiência ou diligência de produção de prova, a secretaria dispõe de dois dias para disponibilizar a gravação. In casu, terminadas as várias sessões de produção de prova no incidente de que este recurso em separado é dependência, ficou a constar da parte final das respetivas atas [incluindo a da sessão em que a dita testemunha foi inquirida] o seguinte: «Todos os depoimentos, requerimentos e respetivas respostas, bem como os despachos orais, foram gravados através da aplicação Media Studio, nos termos do disposto no art.º 155º, n.ºs 1 a 5 do CPC, sendo apenas transcrito na presente ata os que a Mm.ª Juiz ordenou. - A referida gravação encontra-se disponível em suporte digital.».
Significa isto que a gravação com o depoimento da supraindicada testemunha ficou disponível às partes, incluindo a recorrente, no próprio dia em que aquela foi ouvida em tribunal, ou seja, no dia 08.11.2024.
De acordo com o nº 4 do mesmo art. 155º, a ora recorrente dispunha do prazo de dez dias, a contar da data acabada de indicar, para arguir a nulidade por inaudibilidade/impercetibilidade da gravação do depoimento da referida testemunha.
Tal nulidade, como qualquer outra nulidade processual, tem de ser arguida perante o tribunal onde o ato ou a omissão ocorreram; ou seja, no caso, tinha de ser invocada perante o tribunal a quo, como resulta do disposto nos arts. 196º e 200º nºs 1 a 3 do CPC.
Só assim não seria se o processo tivesse sido expedido em recurso antes de findar o referido prazo de dez dias – art. 199º nº 3 do mesmo corpo de normas.
Não é este o caso, pois o presente recurso só foi expedido [eletronicamente] a esta Relação em 02.04.2025, portanto, muito depois de expirado aquele prazo de dez dias. Aliás, quando a recorrente interpôs o presente recurso [17.02.2025], também já há muito se havia esgotado o aludido prazo.
Surge, assim, evidente que a recorrente arguiu a nulidade pela alegada deficiência quando já se havia extinto o respetivo direito, o que implicou que o vício em questão – a verificar-se – tivesse ficado sanado.
Além disso, é hoje inequívoco que a nulidade em apreço não pode ser invocada através de recurso para o tribunal superior, tendo de ser arguida, como já se disse, perante o tribunal onde a mesma foi cometida ou ocorreu [neste sentido, i. a., Acórdãos do STJ de 12.10.2022, proc. 171/21.2T8PNF.P1.S1, de 08-09-2021, proc. 122900/17.2YIPRT-C.E1.S1 e de 23-02-2016, proc. 350398/09YIPRT.G1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj; no primeiro destes arestos decidiu-se (sumário) que “As deficiências na gravação da prova que inviabilizem o cumprimento da sua razão de existir - o duplo grau de jurisdição em matéria de facto - devem ser arguidas, em 1.ª instância, no prazo de 10 dias a contar da disponibilização do registo, não constituindo as alegações de recurso o meio processualmente idóneo para esse efeito”; e no segundo consignou-se o seguinte (transcreve-se a parte relevante da fundamentação): “(…) o legislador processual civil pretendeu esclarecer a controvérsia existente à luz do regime processual pretérito no que concerne ao prazo para arguir a nulidade decorrente da omissão ou deficiência da gravação, afastando o entendimento de que o início da contagem do prazo para a invocação de eventual deficiência da gravação dos depoimentos fica dependente da livre iniciativa da parte quanto ao momento da obtenção da gravação, sem qualquer limitação temporal (para além da que decorreria do prazo de apresentação do recurso da decisão final). O estabelecimento na lei de que a gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias, a contar do respetivo ato, não envolve a realização de qualquer notificação às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efetiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes, quando estas o requeiram. O prazo previsto no n.º 4 do artigo 155º do Código de Processo Civil, a contar da referida disponibilização, faz recair sobre as partes um dever de diligência que as onera com o encargo de diligenciarem pela rápida obtenção da gravação dos depoimentos, que são disponibilizados no prazo máximo de 2 dias, a contar do ato em causa, e, num prazo curto (10 dias), averiguarem se tal registo padece de vícios, a fim de que os mesmos sejam sanados com celeridade perante a primeira instância. Assim, verificando-se que, no caso, estão em causa as gravações da audiência de 23/05/2019, que foram gravadas, como consta indicado na respetiva ata, e ficaram disponíveis na mesma data, como se consignou no despacho recorrido, o prazo de 10 dias para arguir a nulidade decorrente da ‘deficiência das gravações’ iniciou-se naquela data, pelo que tendo a dita nulidade sido apenas invocada em 13/08/2019 (cf. fls. 386-389), após se ter solicitado cópia das gravações 06/08/2019, a mesma foi invocada após o decurso do prazo legal, estando, por conseguinte, sanada, como se decidiu”.].
Sem necessidade de outros considerandos, indefere-se a nulidade processual arguida na conclusão 2 das alegações da recorrente.
*
ii) Rejeição do recurso sobre a matéria de facto por inobservância do estabelecido na al. b) do nº 1 do art. 640º do CPC.
As recorridas, nas contra-alegações, sustentam que a recorrente impugna a matéria de facto por blocos e sem cumprir as exigências legais e que, por via disso, o recurso deve ser rejeitado na parte em que pretende a reapreciação da matéria de facto [dizem as recorridas que: «(…)como se verifica das alegações de recurso e da conclusão 13 que as reproduz a Recorrente limita-se a elencar uma listagem una e indiscriminada de todos esses meios probatórios e em parte alguma identifica ou remete para quais os concretos pontos de facto que cada um desses meios probatórios visa alterar, ou, dito de outro modo, e como é legalmente imposto, em parte alguma a Recorrente indica – relativamente a cada um dos pontos de factos que pretende ver alterados – quais os concretos meios de prova que impunham diferente decisão»].
Vejamos se têm razão.
Dispõe o art. 640º do CPC que: «1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 – (…).».
Comparando este normativo com o art. 712º do CPC de 1961 [Código que precedeu o ora vigente], escreve Abrantes Geraldes [in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualizada, 2022, pgs. 194-195] que “A comparação que pode fazer-se entre a primitiva redação do art. 712º do CPC de 1962 e o atual art. 662º [agora, 640º] revela que a possibilidade de alteração da matéria de facto que, além, era indicada a título excecional, é agora assumida como função normal da Relação, verificados que sejam os requisitos que a lei consagra. Nesta operação foram recusadas soluções maximalistas que pudessem reconduzir-nos a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissão de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.”
Continua, ainda, o mesmo ilustre Conselheiro: “(…) podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto: a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões. b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos. c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos. d) (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.” [obr. cit., pgs. 197-198]
E conclui depois: “A rejeiçãototal ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b)). b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a)). c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.). d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda. e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação. (…) As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilização das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto, como instrumento de realização da justiça.” [pgs. 200-202]
Com recurso aos princípios gerais da proporcionalidade e razoabilidade que funcionam como espécie de filtro/válvula de segurança do sistema, é este o entendimento que uniformemente vem sendo seguido pelo Supremo Tribunal de Justiça [e, em geral, pelos tribunais da Relação], quando chamado a apreciar recursos sobre a impugnação da matéria de facto e a interpretação do que estabelece o art. 640º do CPC [a título de exemplo e chamando à colação apenas alguns dos mais recentes, vejam-se os acórdãos do STJ de 17.09.2024 (proc. 4667/20.5T8VIS.C1.S1), 19.03.2024 (proc. 150/19.0T8PVZ.P1.S1), 14.03.2024 (proc. 8176/21.7TSLSB.L1.S1), 27.02.2024 (proc. 2351/21.1T8PDL.L1.S1), 31.01.2024 (proc. 7341/19.1T8ALM.L1.S1) e 16.01.2024 (proc. 818/18.8T8STB.E1.S1), todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
Alguns destes arestos [caso dos Acórdãos de 14.03.2024 e de 27.02.2024]e, ainda, outros [de que são exemplo, os Acórdãos do STJ de 25.01.2024, proc. 1007/17.4T8VCT.G1.S1, de 21.03.2023, proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1, de 13.10.2022, proc. 1700/20.4T8LRS.L1.S1, de 03.10.2019, proc. 77/06.5TBGVA.C2.S2 e de 29.10.2015, proc. 233/09.4T8VNC.G1.S1, todos disponíveis naquele sítio da DGSI], no que também constitui jurisprudência unânime do STJ, procedem, ainda no âmbito do apelo aos referidos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade [sobre o conteúdo destes princípios, vejam-se os Acórdãos de 14.03.2024 e de 21.03.2023], a uma separação, em termos de exigência de cumprimento e efeitos da sua não observância, entre os ónus das alíneas do nº 1 e os das alíneas do nº 2 do citado preceito, apelidando os primeiros de ónus primários [que visam delimitar o objeto e a fundamentação concludente da impugnação] e os segundos de ónus secundários [que visam facilitar o acesso aos meios de prova objeto do registo áudio, relevantes para a apreciação da impugnação deduzida]. E se quanto aos primeiros concluem que o não cumprimento do exigido nas alíneas do nº 1 leva necessariamente à rejeição imediata do recurso [na parte relativa à impugnação da matéria de facto], já no que toca à inobservância dos segundos, entre os quais se inclui a indicação com exatidão das passagens da gravação em que o recurso se funda, entendem que só implicará a rejeição quando a falta ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame da prova pelo tribunal de recurso.
Concretamente sobre a possibilidade de impugnação da matéria de facto por blocos de factos e como deve nestes casos o recorrente observar os ónus das alíneas do nº 1 do art. 640º do CPC [ónus primários], o Acórdão do STJ de 30.11.2023 [proc. 556/21.4T8PNF.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj] considera que: “O legislador indicou que o impugnante não deve limitar-se a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda ou parte da prova produzida em primeira instância e daí que há muito o STJ se pronuncie no sentido de não estar cumprido o ónus se o apelante, nas alegações e nas conclusões, agrega a matéria de facto impugnada em blocos ou temas e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna – vd. acs. de 19-12-2018, no proc. n.º 271/14.5TTMTS.P1.S1 e de 05-09-2018 no proc. n.º 15787/15.8T8PRT.P1.S2. E igual jurisprudência recomenda que esta problemática seja presidida pelo princípio da proporcionalidade com a preocupação de efetuar uma análise rigorosa em face de cada caso concreto no sentido de se poder aproveitar das alegações/conclusões o que, sem esforço ou excesso de interpretação do art. 640 do CPC, seja inteligível da impugnação e da possibilidade de a conhecer. Da jurisprudência deste tribunal, obtemos que quando a impugnação não tenha sido facto a facto mas sim por blocos de factos deverá, com base nas indicações fornecidas pelo recorrente e não da responsabilidade ou critério do julgador, decidir-se se esse conjunto de factos impugnados se refere à mesma realidade (que deverá ser enunciada) e se os concretos meios de prova indicados pelo recorrente são comuns a esses factos. Quando tal aconteça (e seja indicado) a impugnação poderá ser admissível – vd. ac. STJ de 19/5/2021, Processo 4925/17.6T80AZ.P1.S1 in dgsi.pt. - se os factos individuais do bloco se inserem, digamos assim, num facto maior da mesma natureza, respeitando a aspetos da mesma realidade e se os meios de prova, quanto a toda essa realidade concreta e concretizada são os mesmos. Em verdade nestas situações estamos ainda no domínio da impugnação de um único facto/realidade desmultiplicado em vários e cuja prova é servida pelos mesmos meios, conforme expressa indicação do recorrente. Não é o que ocorre no caso porque a recorrente não referiu que todos os factos impugnados como provados e não provados correspondiam (e não correspondem) à mesma realidade ou que os meios probatórios (com a devida concretização) eram os mesmos, não podendo, obviamente, tomar-se a não indicação como uma forma implícita de uniformização, ou seja, que se nada se disse todos os factos eram a mesma realidade e todos os meios de prova na sua extensão eram os mesmos. A imposição da indicação precisa dos meios de prova que devem conduzir à pretendida modificação dos factos concretamente impugnados, deve estar presente quer a impugnação se realize facto a facto, quer seja aportada a conjunto de factos com a mesma natureza temática e servida pelos mesmos meios probatórios. (…)” [cfr. ainda, além dos arestos citados no segmento decisório transcrito, os Acórdãos do STJ de 10.11.2020, proc. 21389/15.1T8LSB.E.S1, disponível no referido sítio da DGSI e desta Relação do Porto de 23.05.2022, proc. 2398/19.8T8OAZ.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp].
É, pois, em função deste quadro de exigências que há que aferir se a impugnação da matéria de facto por parte da recorrente observa suficientemente os referidos ónus primários, designadamente o da al. b) do nº 1 do citado art. 640º.
Começando pelas als. a) e c) do nº 1 deste normativo.
O recorrente tem de especificar, sob pena de rejeição – sem que haja lugar a prévio convite ao aperfeiçoamento, como é entendimento unânime da jurisprudência –, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto a eles.
Ora, in casu os problemas começam logo aqui.
Com efeito, lendo as alegações e as conclusões [diga-se que o que consta das conclusões 12 a 15 corresponde quase ipsis verbis ao que está alegado no ponto IV, nºs 1 a 4, do corpo das alegações] ficamos sem saber se os factos que a recorrente quer ver dados como provados são os do ponto 12, se os do ponto 14, ou se os do ponto 15, sendo que o que se refere na primeira destas conclusões, sobretudo nos três primeiros parágrafos [desde «A declaração do pai e da irmã no requerimento…» até «os cuidados e atenções que a recorrente tinha para com o inventariado»], se assemelha mais a temas de prova do que a factos concretos, além de que entre os factos das conclusões 14 e 15 também não há coincidência [veja-se que a recorrente começa, no ponto 12 das conclusões, por afirmar «(…) existirem outros factos que, no seu entender, foram incorretamente julgados, e deviam também ficar provados, a saber: (…)»; no início do ponto 14 refere «Decisão diversa da recorrida que na ótica da recorrente se impõe a cada um dos factos que considera mal julgados, e que deveriam ter sido dados como provados: (…)»; e na parte inicial do ponto 15 afirma que «(…) Além dos factos provados na sentença, entende a recorrente que deverão ainda ser considerados como provados, pelas provas concretamente acima discriminadas, os seguintes factos: (…)»].
Cabia à recorrente ser clara e precisa na indicação dos concretos factos que pretendia ver atendidos e considerados provados. Não o foi, manifestamente. Não observou, assim, os ónus primários das referidas als. a) e c).
E quanto ao ónus, também primário, da al. b) dos mesmos número e artigo?
Como já vimos, competia à recorrente, neste âmbito, a indicação dos concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, na sua ótica [fundamentadamente], impunham decisão diversa da recorrida sobre cada um dos factos impugnados ou sobre cada bloco de factos, desde que, neste caso, cada bloco diga respeito a uma mesma e determinada realidade, indicação esta que incumbia, igualmente, à recorrente, exceto se tal fosse evidente.
Os meios de prova invocados constam da conclusão 13.
Nesta são especificados diversos meios de prova, a saber:
- Requerimento de 03.05.2023, referência 35521723 [de início do processo de inventário por óbito de AA], mais concretamente o que consta da sua al. e), na parte em que se diz que a recorrente era «convivente com o inventariante»;
- Requerimento de 16.06.2023, referência 35959197 [de início do processo de inventário por óbito de BB (agora apenso A)], mais especificamente na al. D), em que consta que a recorrente era «convivente» com o inventariado;
- Requerimento de 31.05.2024, referência 39209972 [de junção aos autos de diversos documentos da AT], tratando-se de documentos emitidos em nome da recorrente, em data em que o pai ainda era vivo, atestando, segundo ela, a sua presença em assembleias gerais, o tratamento de assuntos junto do IGCP (certificados de aforro ou outra dívida pública), do Cofre de Previdência dos Funcionários e Agentes do Estado, da ASF Autoridade de Supervisão de Seguros, Fundos e Pensões e o pagamento de IMI em dois anos consecutivos;
- Requerimento de 21.11.2024, referência 40780084, relativo ao pagamento do IMI de imóveis pertencentes à herança dos inventariados;
- Depoimento da testemunha II, minutos 13:20 a 17:49, prestado na sessão de 08.11.2024;
- Depoimento da testemunha JJ, minutos 3:00 a 3:11, 4:36 a 4:43, 7:55 a 8:48, 9:26 a 10:36 e 11:38 a 31:25, prestado na sessão de 08.11.2024;
- Depoimento da testemunha HH, minutos 11:21 a 11:34, 11:44 a 11:57 e 16:16 a 19:25, prestado no mesmo dia;
- Depoimento da testemunha KK, minutos 1:23 a 2:20, prestado na mesma sessão;
- E depoimento da testemunha LL, minutos 10:30 a 13:13, prestado na sessão de 25.11.2024.
Relativamente a estes depoimentos a recorrente limita-se a fazer uma síntese do que disse cada uma das testemunhas, mas sem a reportar a nenhum dos factos que pretende ver considerados provados. E o mesmo acontece também com os requerimentos e documentos a que começámos por aludir.
Ou seja, a recorrente chama à colação todos estes meios probatórios para prova, em bloco, de todos os factos que quer ver declarados provados. Mas não alegou que todos eles digam respeito à [sejam fragmentos da] mesma realidade fáctica, nem é isso que resulta da leitura dos mesmos.
Tomando em conta, por exemplo, o que está alegado na conclusão 15 das alegações [última conclusão em que a recorrente alude aos factos que considera que devem ser dados como provados], facilmente se constata que eles se reportam, pelo menos, a duas realidades distintas mais abrangentes:
- os cinco primeiros factos ali descritos dizem respeito ao relacionamento/convívio pessoal e aos cuidados que a recorrente diz ter tido com os inventariados, seus progenitores;
- os restantes quatro factos referem-se à ajuda e ao auxílio que a mesma diz ter prestado sobretudo ao inventariado.
Devia, por isso, a recorrente ter especificado, quanto a cada meio de prova que indicou, que concretos factos, ou pelo menos que concretos grupos de factos, pretendia ver declarados provados. Mas não o fez.
É, pois, manifesto que não cumpriu os ónus primários das als. a) a c) do nº 1 do art. 640º do CPC, impondo-se a rejeição do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto.
Esta não é, no entanto, a única causa de rejeição deste segmento do recurso.
Este, na parte relativa à matéria de facto, tem de ser rejeitado também por se revelar absolutamente inútil.
Temos como certo que a reapreciação da matéria de facto impugnada está reservada à que se apresenta relevante para a solução do caso. Isto porque o propósito que subjaz à impugnação da materialidade fáctica é o de possibilitar à parte vencida a obtenção de decisão diversa da que foi proclamada na decisão recorrida no que concerne ao mérito da causa. Por isso, tal atividade só faz sentido em situações em que a factologia impugnada possa ter interferência na solução jurídica do caso [decisão de mérito], ou seja, quando o desfecho do recurso a favor do/a recorrente esteja dependente da modificação da matéria de facto impugnada.
Quando incida sobre factos que não interferem com a solução da questão de direito, por serem irrelevantes para alteração/modificação da decisão decretada pelo tribunal recorrido, ou quando, por outro motivo, tais factos não possam ser tidos em conta [por ex., por não serem factos concretos, mas meras conclusões ou conceitos jurídicos], a Relação deve abster-se de proceder à reapreciação da matéria de facto. Caso contrário, estará a levar a cabo uma atividade inútil e sem qualquer efeito prático, com desconsideração do que proclama o art. 130º do CPC, segundo o qual «[n]ão é lícito realizar no processo atos inúteis» [sobre esta problemática e no sentido que fica exposto, vd. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualiz., nota 526, pg. 334, que refere: “[é] claro que a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto apenas se justifica nos casos em que da eventual modificação da decisão possa resultar algum efeito útil relativamente à resolução do litígio no sentido propugnado pelo recorrente, sendo dispensável nos demais casos em que não interfira de modo algum no resultado declarado pela 1ª instância”; idem, Acórdãos do STJ de 14.07.2021, proc. 65/18.9T8EPS.G1.S1 e de 09.02.2021, proc. 26069/18.3T8PRT.P1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj, constando do sumário do primeiro destes arestos que “Se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo. O mesmo é dizer que só se justifica que a Relação faça uso dos poderes de controlo da matéria de facto da 1ª instância quando essa atividade da Relação recaia sobre factos que tenham interesse para a decisão da causa, ut artº 130º do CPC. Quando assim não ocorre, a Relação deve abster-se de apreciar tal impugnação.”].
Admitindo que a factologia que a recorrente quer ver reconhecida é a que indicou na conclusão 15 das alegações [por ser a última conclusão em que se refere aos factos que quer ver considerados provados] – concretização que, repete-se, lhe competia fazer e que não fez –, vejamos por que motivos se apresenta a mesma como irrelevante.
A recorrente começa por referir que «convivia com qualquer um dos pais há mais de um ano à data dos seus óbitos», que «tinha relação de intimidade com o inventariado (…)» e que «tinha cuidados e atenções para com o inventariado e este procurava ser um pai próximo».
Trata-se de factos conclusivos, por utilizarem conceitos abstratos, a saber: «convivia», «relação de intimidade», «cuidados e atenções» e «pai próximo». Em vez disso, a recorrente devia socorrer-se de factos concretos que pudessem preencher estes conceitos conclusivos, pois só estes poderiam ser dados como provados, caso a prova que indicou os sustentasse.
Não se estando perante factos concretos e não podendo, por isso, ser dados como provados, não faz sentido procedermos à sua reapreciação. É atividade inútil.
Quanto aos restantes factos indicados na referida conclusão 15:
O facto «A interessada FF tinha também as chaves da despensa, onde guardava os seus produtos alimentares, e a sala estava aberta, onde se sentava no sofá na presença do pai» mostra-se contrariado pelos factos provados nºs 12, 13 e 20. Como a recorrente não pugna pela alteração destes três factos provados, nem que sejam dados como não provados, o que significa que os mesmos estão definitivamente assentes, não pode, sob pena de contradição, pretender que se considere provado aquele primeiro facto.
Os factos relativos à ajuda ou ao auxílio que a recorrente diz ter prestado aos inventariados, particularmente ao seu pai [a partir de «A interessada FF ajudou muitas vezes o pai, a solicitação deste, nos registos dos imóveis da herança» e até «Foi a recorrente quem representou a herança nas reuniões (…) e de fundos de pensões»], apresentam-se, por sua vez, contrariados pelo que está dado como provado nos nºs 14, 17, 25 [com referência ao 22] e 26. Factos estes [os provados] que não estão controvertidos, já que aquela não os questiona no recurso [não pretende a sua alteração, nem que sejam dados como não provados].
Como tal, neste segmento também não há lugar à reapreciação da matéria de facto.
Resta o facto em que a recorrente alega que «quando o pai foi internado, andou sempre a correr para o hospital para falar com os médicos e enfermeiros».
Embora este facto não se mostre diretamente contraditado por nenhum dos factos que vêm dados como provados [o que consta da 1ª parte do facto provado nº 14 não é suficiente para tal], não faz, ainda assim, sentido aferir se o mesmo obtém respaldo na prova apontada pela recorrente, já que, por si só, não é suscetível de provocar qualquer alteração no mérito [solução jurídica] da decisão recorrida.
Neste ponto não há, igualmente, que proceder à dita reapreciação.
Rejeita-se, assim, o recurso na parte relativa à (re)apreciação da matéria de facto.
*
iii) Alteração da matéria de facto.
Face ao exposto no item anterior, apresenta-se prejudicada a apreciação do ponto iii) especificado em II deste acórdão [apreciação da matéria de facto], mantendo-se inalterada a matéria de facto – factos provados e factos não provados – fixada na decisão recorrida.
*
iv) Alteração da solução jurídica declarada na decisão recorrida.
A recorrente, nas conclusões 17 e seguintes, põe, ainda, em causa a solução jurídica declarada na 1ª instância, sustentando que deve ser ela, e não a interessada CC, a exercer o cargo de cabeça-de-casal.
Do que consta das conclusões 21, a partir de «como se preocupava com os pais, (…)» a 24 resulta, porém, que tal pretensão radica no pressuposto da alteração da matéria de facto defendida por aquela.
Como apontado em ii) deste acórdão, a reapreciação da matéria de facto foi rejeitada.
Não ocorre, assim, a conditio sine qua non para apreciação da bondade da solução jurídica proclamada na decisão recorrida.
Ainda assim, diremos que perfilhamos a solução declarada na decisão recorrida, quer no que diz respeito à indicação da interessada competente para exercer o cargo de cabeça-de-casal, quer relativamente à escusa do cargo requerida pela interessada que, para tal, está nomeada.
Quanto à primeira questão e mais propriamente à ratio do nº 3 do art. 2080º do CCiv., invocado pela recorrente, aceita-se, como se diz na decisão recorrida, «que o legislador pretendeu deferir o cargo ao herdeiro que presumivelmente estivesse mais inteirado da situação patrimonial da herança em virtude de fazer vida em comum, ou seja, de coabitar com o inventariado.». Isto porque “viver com” «tem um sentido diverso de “residir em”, tendo aquela expressão um sentido mais amplo do que esta, que aponta para a existência de uma vivência em comum ou uma coabitação (diversa da convivência circunstancial ou de cortesia). Presumindo-se que o legislador se soube exprimir de forma adequada (art.º 9.º, n.º 2 do Cód. Civil), entendemos ser de afastar uma interpretação de acordo com a qual baste a demonstração de uma residência na mesma casa ou sob o mesmo teto do ‘de cujus’ para que se defira ao herdeiro a qualidade de cabeça-de-casal. Na verdade, se esse tivesse sido o espírito do legislador, teria sido fácil afeiçoar a letra do n.º 3 do art.º 2080.º ao seu desígnio, até para romper com aquela que vinha sendo a interpretação de norma idêntica do Código Civil anterior. Neste sentido, CARVALHO DE SÁ [in Descrever, Avaliar e Partir, 6.ª ed., pág. 57] escrevia que “[d]e entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco preferem os que viviam em comum com o falecido há pelo menos um ano à data da morte”. A propósito, escrevia também LOPES CARDOSO [in Partilhas Judiciais, vol. I, 5.ª edição, pgs. 324 e 325] que das normas contidas nos n.º 2 e 3 do art.º 2080.º “não resulta que seja de rejeitar o conceito que a jurisprudência e a doutrina firmaram na vigência da lei cessante e que hoje, como então, tem de considera(r)-se como inteiramente válido. Ou seja, viver com alguém (…) pressupõe, por assim dizer, o viver em comum, posto que em economia separada (…), a convivência (…).».
Ainda quanto ao mesmo nº 3 do citado art. 2080º, temos, igualmente, como correta a conclusão a que se chegou na decisão recorrida: «Feitas as considerações que antecedem, podemos adiantar que a interessada FF não tem o direito a ser investida no cargo de cabeça-de-casal, dado que os factos que alegou não são de molde a que se tenha por demonstrada a coabitação pressuposta pela norma. Na verdade, face ao objeto do litígio, devia a aludida interessada ter explicitado de que forma era a sua convivência com o inventariado, o que não fez. Para além disso, apenas alegou e logrou demonstrar que chamou os Bombeiros para levarem o seu pai ao hospital numa ocasião em que aquele se encontrava doente. No entanto, como contraindício da coabitação que tal facto pudesse constituir, logrou apurar-se que a interessada FF fazia vida separada do pai, já que cada um deles fazia as suas próprias compras, não tomavam juntos as refeições, a interessada não se oferecia para cuidar do pai, não o acompanhava nas suas deslocações, era uma irmã não residente na casa do pai que diligenciava pela satisfação das necessidades do mesmo e o acompanhava a tratar de assuntos relacionados com o seu património e, por fim, com exceção do quarto onde dormia a interessada, da cozinha e de uma casa-de-banho, o inventariado fechava as portas das divisões da casa à chave e apenas as abria segundo a sua conveniência. Em virtude da factualidade apurada, é de excluir que a interessada FF vivesse com o inventariado, no sentido pressuposto pela norma do art.º 2080.º, n.º 3 do Cód. Civil. Por conseguinte, não se julga procedente o seu pedido de nomeação no cargo de cargo de cabeça-de-casal.».
Relativamente à questão da escusa do cargo de cabaça-de-casal, prevista no art. 2085º do CCiv., requerida pela interessada CC, também acompanhamos a decisão recorrida quando afirma que: «No caso vertente, nem a cabeça-de-casal nomeada, nem as cointeressadas DD, GG ou FF invocaram o preenchimento de alguma das causas expressamente previstas no art.º 2085.º do Cód. Civil. Os factos de a interessada CC não residir com os pais há mais de 40 anos e não estar inteirada do património hereditário e, a par disso, a interessada DD ser a filha do inventariado mais conhecedora do património da herança, em nosso entender, não são suficientes para que se possa conceder a escusa requerida. Na verdade, a lei contém um elenco dos fundamentos de escusa do cabeçalato e não cremos ter sido intenção do legislador afastar o herdeiro preferencial pelo simples facto de não acompanhar o de cujus na administração do seu património e estar alheado dos assuntos da herança. O desempenho do cargo de cabeça-de-casal é um direito e um encargo, manifestando-se a obrigatoriedade do encargo na circunstância de o cabeça-de-casal só poder pedir escusa nos casos legalmente previstos e dever inteirar-se do património hereditário e administrá-lo fora desses casos, ainda que possa socorrer-se de auxiliares e conselheiros. Diversamente se passariam as coisas, se a cabeça-de-casal nomeada já tivesse praticado atos, antes ou depois da nomeação, que fossem reveladores da inaptidão ou inidoneidade para o exercício da administração da herança, uma vez que vimos aderindo ao entendimento de que a capacidade e idoneidade são requisitos inerentes ao desempenho do cargo. Sucede que nenhum desses factos foi alegado, sequer no requerimento inicial apenso – cumprindo aqui referir que foi julgada extinta por inutilidade superveniente a lide no referido apenso e, nos requerimentos em que respondeu aos incidentes deduzidos, a interessada DD se limitou a dar por reproduzida a prova e não a totalidade dos factos por si alegados naqueles autos. Posto isto, impõe-se julgar improcedente o incidente de escusa, sem prejuízo de a inércia e alheamento da cabeça-de-casal poderem vir a fundamentar um incidente de remoção, caso continuem a verificar-se.».
Assim sendo, nada há que alterar ao decidido pela 1ª instância, impondo-se, pelo contrário, a total improcedência do recurso.
Pelo decaimento, as custas do recurso ficam a cargo da recorrente - arts. 527º nºs 1 e 2, 607º nº 6 e 663º nº 2, todos do CPC.
Nesta conformidade, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em: 1º.Julgar o recurso totalmente improcedente, com a consequente confirmação da decisão recorrida. 2º.Condenar a recorrentenas custas devidas pelo decaimento neste recurso.
Porto, 2025.07.10
Pinto dos Santos
Artur Dionísio Oliveira
Lina Baptista