EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA ANTECIPADA DA EXONERAÇÃO
Sumário

I - A exoneração do passivo restante trata-se de uma medida especial de proteção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
II - Em concreto, constitui fundamento de recusa antecipada da exoneração do passivo restante, entre o mais, a violação dolosa ou gravemente negligente das obrigações fixadas no despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, com prejuízo da satisfação dos créditos sobre a insolvência.
III - Os deveres de informação e de diligência consagrados no art.º 239.º, n.º 4, do CIRE são especialmente exigentes, tendentes a obrigar o devedor a colaborar ativamente, de forma leal e transparente, com o sucesso da exoneração do passivo restante.
IV – A razão de ser do elevado grau de exigência deste comportamento justifica-se com a necessária conciliação entre os interesses do devedor e os interesses dos credores.

Texto Integral

Processo n.º 840/23.2T8AMT.P1

Comarca: [Juízo de Comércio de Amarante (J3), Comarca do Porto Este]

Juíza Desembargadora Relatora: Lina Castro Baptista

Juiz Desembargador Adjunto: Rui Moreira

Juiz Desembargador Adjunto: João Proença

SUMÁRIO

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

AA, divorciado, residente na Calçada ..., freguesia ..., Marco de Canaveses, veio, em 15/06/2023, apresentar-se à insolvência e requerer o benefício da exoneração do passivo restante.

Alega, em síntese, que ficou desempregado, não tendo como fazer face às despesas com que se vê confrontado diariamente nem meios para prover à sua subsistência, nomeadamente despesas de saúde, alimentação, habitação e vestuário.

Afirma que o único rendimento de que dispõe é o subsídio de desemprego, no valor EUR 566,72.

Declara ter tido necessidade de ir viver para casa dos pais, contribuindo mensalmente com a quantia de EUR 250,00 para ajudar nas despesas correntes.

Sustenta não dispor de meios económicos para honrar os compromissos assumidos, tendo atualmente dívidas no montante global de aproximadamente EUR 85.000,00.

Defende encontraram-se preenchidos os requisitos de que depende a exoneração do passivo restante.

Com data de 22/06/23, foi proferida sentença a declarar a insolvência do Requerente e, a 01/09/23, foi proferido despacho a admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, de onde consta designadamente que “(…) fica salvaguardado para aquele/a, durante o período de cessão - os referidos três anos após o encerramento do processo, início que tem lugar com a prolação deste despacho – artº 237º, alínea b), do CIRE- na redação dada pela Lei nº 9/2022, de 11-01-, a quantia correspondente a UM salário mínimo nacionalx12meses, devendo o/a/s devedor/a/s ajustar as despesas à sua condição atual, em face do beneficio que irá/ão ter a final em detrimento dos credores, ficando o/a/s mesmo/a/s obrigado/a/s a observar as imposições previstas no nº 4 do artº 239º do CIRE.”, bem como que “Fica/m o/a/s devedor/a/s advertido/a/s para o facto de a exoneração do passivo ser revogada no caso de se verificarem as circunstâncias previstas nas alíneas b) e segs. do nº 1 do artº 238º do CIRE ou violar dolosamente as suas obrigações durante o período de cessão, e, por algum desses motivos, tenha prejudicado de forma relevante a satisfação dos credores da insolvência.”

Na sequência de requerimento apresentador pelo credor “Fundo de Garantia Automóvel”, o Sr. Administrador da Insolvência, veio, com data de 14/09/2023, informar nos autos que, quanto ao veículo automóvel registado em nome do insolvente, de marca BMW e com a matrícula n.º ..-..-ON que “foi feita insistência junto da ilustre mandatária do insolvente para vir prestar os necessários esclarecimentos, tenho o insolvente limitando-se a juntar documentação que comprova o pedido de cancelamento da matrícula, ficando por responder quem foi o comprador e por que valor foi a viatura vendida.”

Com data de 18/09/2023, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Com cópia do requerimento de 14/09/2023, notifique o insolvente, na sua pessoa e na pessoa do seu Il. Advogado, para prestar as informações relativamente à venda ocorrida no ano de 2022 do veículo de marca BMW com matrícula ..-..-ON (preço e identificação do comprador). Adverte-se que a ausência de prestação da informação (colaboração) pode dar lugar à cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante – arts. 239.º, n.º4 a) e 243.º, n.º1 a) do CIRE.”

Com data de 10/10/2023, o Sr. Administrador da Insolvência veio informar nos autos que “Em resposta ao requerido, o Administrador Judicial informa que o insolvente até à data não prestou os esclarecimentos requeridos, nomeadamente, quem foi o comprador da viatura e valor de venda. Ao pedido feito por email a 11/09/2023, foi feita nova insistência a 03/10/2023, aos quais o Administrador Judicial não obteve resposta até ao momento.”

Com data de 12/10/2023, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Insista com as cominações previstas no despacho que antecede. Nada vindo, e informando o AI da ausência de resposta, deve isso ser dado conhecimento aos credores para os efeitos tidos por convenientes, designadamente, para efeitos do disposto no art. 243//1 do CIRE.”

Com idêntica data de 12/10/2023, o Sr. Administrador da Insolvência veio declarar nos autos que “(…) o insolvente informa que vendeu a viatura a uma sucata pelo valor de 150€, sem identificar a sucateira e a data da venda, informando ainda que não recebeu os 150€ do comprador, tendo posteriormente a 17/11/2022 pedido o cancelamento da matrícula.”

Com data de 16/10/2023, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Tomei conhecimento das informações prestadas quanto à venda ocorrida no ano de 2022 do veículo de marca BMW com matrícula ..-..-ON (sucata e cancelamento de matrícula). Dê conhecimento aos credores. Prazo: 5 dias. Nada sendo dito ou oposto, conclua para proferir decisão de encerramento por insuficiência de massa nos termos propostos.”

Com data de 18/10/2023, o credor “Fundo de Garantia Automóvel” veio apresentar requerimento nos autos pedindo que se ordene seja junto aos autos documento comprovativo do cancelamento da matrícula, uma vez que o mesmo não acompanha as informações que antecedem.

Sequencialmente, foi proferido despacho, com data de 02/11/2023, com o seguinte teor: “Requerimento de 18/10/2023 apresentado pelo credor FGA: deve o AI documentar a informação veiculado quanto ao cancelamento de matrícula (..-..-ON), disso dando conhecimento aos credores.”

Com data de 06/11/2023, o Sr. Administrador da Insolvência veio juntar aos autos comprovativo do cancelamento de matrícula ..-..-ON, informação extraída do site oficial do “IMT – Instituto da Mobilidade dos Transportes, I.P.”

Com data de 21/11/2023, foi proferida decisão de encerramento do processo, por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as demais dívidas da massa insolvente, e de qualificação da insolvência como fortuita.

Em 07/10/2024, o Sr. Administrador da Insolvência/Fiduciário veio informar nos autos estar impossibilitado de apresentar o Relatório Anual, por não ter sido cedido qualquer valor monetário e dando conta que não foi apresentado pelo Insolvente o “respetivo comprovativo de rendimento.”

Perante esta informação, o credor “Fundo de Garantia Automóvel” veio, com data de 16/10/2024, apresentar requerimento nos autos alegando que, não tendo sido apresentado o comprovativo de rendimento, foi violada pelo Insolvente a injunção prevista nas alíneas a) do n.º4 do artigo 239.º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas[1].

Defende que este comportamento prejudica a satisfação dos créditos e, por isso, deve determinar a cessação antecipada da exoneração, nos termos do disposto na alínea a) do n.º1 do artigo 243.º do CIRE, o que requer.

Com data de 28/10/24, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Requerimentos de 07 e 16 OUT/2024: Veio o Fiduciário informar não ser possível proceder à elaboração do 1.º relatório anual por falta de colaboração do/a devedor/a, tendo o credor FGA requerido a cessão antecipada do incidente por esse facto. Com cópia do/s requerimento/s apresentado/s pelo Fiduciário e credor que antecede/m, notifique o/a Devedor/a na sua pessoa e o/a Il. Advogado/a que o/a representa para, no prazo de 10 dias apresentar os documentos e informações solicitados por aquele de modo a ser efetuado o relatório a que alude o art. 240.º, n.º2 do CIRE. Nada sendo dito ou requerido, fica já advertido de que a omissão pode dar lugar à Cessação Antecipada do Incidente de Exoneração do Passivo Restante – art. 243.º do CIRE, conforme já foi requerido nesse sentido. Decorrido esse prazo: Remetendo-se o/a Devedor/a ao silêncio deve o Fiduciário disso dar conta aos credores e aos autos, aguardando-se prazo de 10 dias. Caso contrário, no mesmo prazo, deve ser apresentado relatório.”

Em 08/11/2024, o Insolvente veio apresentar requerimento nos autos alegando que esteve em situação de desemprego prolongada, sendo que de subsídio de desemprego até ao mês de maio de 2024 recebia a quantia de 384,33€ e que, no mês de junho de 2024, recebeu um subsídio também por parte da Segurança Social com o valor de 217,28€.

Acrescenta que, a partir desse mês (junho) até ao momento, encontra-se na situação de desempregado e sem auferir quaisquer rendimentos, conforme comprovativo de inscrição no centro de emprego já remetido.

Juntou extrato bancário.

Sequencialmente, o Sr. Administrador da Insolvência/fiduciário veio juntar aos autos o Relatório Anual.

Com data de 13/01/2025, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Rel. anual e requerimentos apresentados pelo FGA: Consigna-se que o Devedor com a petição inicial informou estar desempregado. Não se vislumbra que tenha junto nos autos comprovativo de inscrição no centro de emprego, e, se for o caso, renovação desse pedido, devendo proceder à sua junção aos autos. Mais deve apresentar documento de onde resulte os valores que recebeu da SS (e outros se existirem) entre set de 2023 a out de 2024 correspondente ao 1.º ano de cessão.”

Não tendo o Insolvente vindo responder ao solicitado, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Dê conhecimento da ausência de resposta do Devedor ao Fiduciário e credores para os efeitos tidos por convenientes.”

Com data de 07/03/2025, o Sr. Administrador da Insolvência/Fiduciário veio informar nos autos que o devedor não lhe remeteu os documentos em falta.

Com data de 20/03/2025, o credor “Fundo de Garantia Automóvel” veio apresentar requerimento nos autos alegando que o Insolvente, apesar de ter sido devidamente notificado para prestar as informações devidas, tal como resulta do despacho notificado, não procedeu à sua junção.

Defende que este comportamento prejudica a satisfação dos créditos e, por isso, deve determinar a cessação antecipada da exoneração, nos termos do disposto na alínea a) do n.º1 do artigo 243.º do CIRE.

Com data de 10/04/2025, ordenou-se o Insolvente para, querendo, se pronunciar sobre o requerido.

O Insolvente não se veio pronunciar e, com data de 12/05/2025, foi proferido despacho com o seguinte teor resumido: “(…) Assim, atento o que resulta do processado e tendo em conta os dispositivos acima citados, do processo resulta já com um grau de certeza absoluto, a existência de falta de colaboração com o processo do Devedor AA nomeadamente fornecendo as informações e documentos solicitados, o que se traduz numa conduta objectivamente contrária ao regular e célere prosseguimento do processo. No caso da cessação antecipada prevista no artigo 243.º, o legislador basta-se com o preenchimento de uma das circunstâncias previstas nas diversas alíneas desta norma, independentemente de a conduta ou omissão em causa poder prejudicar, em abstrato, a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Daqui decorre que, face ao à constatada conduta que consubstancia uma violação da obrigação prevista na al. a) do nº. 4 do artigo 239º. do CIRE, terá de se concluir que se mostram verificados os necessários requisitos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do disposto no artigo 243.º, n.º 1, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa, por se mostrar preenchida a hipótese prevista na sua alínea a). Termos em que, o tribunal decide recusar ao Devedor insolvente AA, a exoneração do passivo restante, ou seja, dos créditos sobre a insolvência que não hajam sido pagos no âmbito destes autos.”

Inconformado com esta decisão, o Insolvente veio recorrer pedindo a revogação da decisão recorrida, terminando com as seguintes

CONCLUSÕES:

I.O presente recurso tem por objeto o douto despacho proferido pelo Tribunal a quo, o qual decidiu recusar ao devedor a exoneração do passivo restante, uma vez entendido ter havido recusa do devedor em colaborar com os presentes autos fornecendo todos os elementos documentais necessários no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante;

II.Nos termos do artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, a cessação antecipada do período de cessão só pode ser determinada quando se demonstre, de forma inequívoca, que o devedor violou, com dolo ou grave negligência, as obrigações previstas no artigo 239.º, e que dessa violação resultou prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

III.No presente caso, não se verificam os pressupostos legais para a aplicação da referida norma, uma vez que o devedor sempre atuou em conformidade com os deveres que lhe incumbem no âmbito do regime de exoneração do passivo restante, colaborando de forma contínua, integral e diligente com o administrador da insolvência/fiduciário.

IV.A decisão recorrida fundamenta-se na alegação de que o devedor se recusou a fornecer determinados documentos. Contudo, tal conclusão não encontra suporte nos factos provados nos autos, nem em qualquer prova documental ou testemunhal que evidencie conduta dolosa ou negligente.

V.A colaboração do devedor consubstanciou-se na entrega atempada dos documentos de que dispunha, bem como na comunicação de alterações da sua situação profissional e patrimonial, evidenciando uma postura de boa-fé e de cumprimento dos deveres legais, nos termos do artigo 239.º, n.º 1, alínea c), do CIRE.

VI.A distinção entre a impossibilidade objetiva de apresentar certos documentos e a recusa dolosa ou negligente em colaborar deve ser devidamente apreciada. O devedor não pode ser responsabilizado por não apresentar documentos que, por circunstâncias alheias à sua vontade, não lhe é possível obter.

VII.Não foi demonstrado, nem sequer alegado de forma concreta, quais documentos em específico teriam sido solicitados e em que medida a sua ausência constituiu uma violação relevante e dolosa do dever de colaboração.

VIII.Ao considerar que a colaboração do devedor foi insuficiente, com base em meras presunções e sem concretização dos factos, a decisão recorrida incorre em erro de julgamento sobre a matéria de facto e em errónea aplicação do direito, violando os artigos 239.º e 243.º do CIRE.

IX.Acresce que a decisão padece de falta de fundamentação factual objetiva e suficiente, contrariando os princípios da boa-fé processual e da verdade material previstos no artigo 7.º do CPC, o que compromete a sua validade.

X.A decisão recorrida representa, assim, uma sanção desproporcional e injustificada, com graves consequências para o devedor, que se vê privado de um instrumento legal fundamental para a sua reabilitação económica e social, sem que se demonstre o incumprimento dos pressupostos legais para tal.

XI.Nestes termos, impõe-se a revogação da decisão que determinou a cessação antecipada do período de cessão, devendo ser admitida a continuidade do regime de exoneração do passivo restante, por não se verificarem as condições previstas no artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE.

O credor “Fundo de Garantia Automóvel” veio apresentar contra-alegações pedindo que o recurso seja julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, terminando com as seguintes

CONCLUSÕES:

I.O Insolvente, ora Recorrente, incumpriu de forma reiterada e injustificada as obrigações legais previstas no artigo 239.º, n.º 4, alínea a), do CIRE, não juntando os documentos comprovativos da sua situação profissional e patrimonial, apesar de notificado para o efeito.

II.Tal comportamento consubstancia grave violação dos deveres legais que sobre ele impendem durante o período da cessão dos rendimentos, bastando-se a lei, para efeitos do artigo 243.º, n.º 1, alínea a), com a demonstração de um prejuízo simples, ainda que potencial, que possa afetar a satisfação dos créditos da insolvência em termos não irrisórios, não sendo exigido prejuízo concreto ou relevante.

III.A sentença recorrida encontra-se, pois, em plena conformidade com a jurisprudência dominante, nomeadamente com os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.11.2016 (Proc. n.º 152/13.0TBMIR.C1) e de 03.06.2014 (Proc. n.º 747/11.6TBTNV-J.C1), bem como com os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08.02.2018 (Proc. n.º 499/13.5TJPRT.P1), de 18.02.2019 (Proc. n.º 3512/11.7TBVFR.P1) e, particularmente relevante, o Acórdão de 25.05.2021 (Proc. n.º 334/17.5T8VNG.P1) — devendo ser, assim, integralmente mantida por se revelar justa, legal e ponderada.

IV.Improcede, assim, o recurso interposto, devendo ser confirmada na íntegra a decisão de cessação antecipada da exoneração do passivo restante.

Foi proferido despacho a admitir o recurso, como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[2], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

A questão a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, prende-se com a apreciação da existência de uma situação de violação das obrigações fixadas no despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante justificativa de cessação antecipada do procedimento de exoneração.


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III – DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade relevante resume-se aos trâmites processuais atrás consignados no Relatório e ao teor da decisão recorrida, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.


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IV – DA FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A exoneração do passivo restante trata-se de uma medida especial de proteção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

Tal como decorre do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2003, de 18 de março, é uma solução que se inspirou no modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente.

O devedor mantém-se por um período de cessão, equivalente a três anos, adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não tenham sido integralmente satisfeitos e obriga-se, durante esse período, no essencial, a ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário, que afetará os montantes recebidos ao pagamento aos credores.

Decorre do disposto no art. 239.º, n.º 3, al. b), i., do CIRE. que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com exclusão, além do mais, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, em três vezes o salário mínimo nacional.

Em termos processuais, não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial a determinar que, no referido período de três anos de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade designada por fiduciário (cf. art. 239.º, n.º 2 do CIRE).

Este despacho, não consubstancia uma decisão definitiva, garantido apenas a passagem do processo para a fase subsequente, o período de cessão.

Neste período intermédio, o Insolvente encontra-se sujeito a um conjunto de deveres, nos termos elencados no art.º 239.º do CIRE.

Decorrido o período de cessão, o juiz decide sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.

Contudo, durante o período de cessão, pode ocorrer a cessação antecipada do procedimento de exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se ainda estiver em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, nos termos previstos no art.º 243.º do CIRE.

No caso em apreciação, o tribunal recorrido decidiu, em aplicação desta disposição legal, recusar ao devedor insolvente a exoneração do passivo restante.

Justificou que “(…) atento o que resulta do processado e tendo em conta os dispositivos acima citados, do processo resulta já com um grau de certeza absoluto, a existência de falta de colaboração com o processo do Devedor AA nomeadamente fornecendo as informações e documentos solicitados, o que se traduz numa conduta objectivamente contrária ao regular e célere prosseguimento do processo.”

Por outro lado, que “No caso da cessação antecipada prevista no artigo 243.º, o legislador basta-se com o preenchimento de uma das circunstâncias previstas nas diversas alíneas desta norma, independentemente de a conduta ou omissão em causa poder prejudicar, em abstrato, a satisfação dos créditos sobre a insolvência.”

O Recorrente/insolvente limitou-se a impugnar esta decisão na parte respeitante à alegada violação das obrigações legais.

Contrapõe que colaborou de forma contínua, integral e diligente com o administrador da insolvência/fiduciário.

Acrescenta que não foi demonstrado, nem sequer alegado de forma concreta, quais documentos em específico teriam sido solicitados e em que medida a sua ausência constituiu uma violação relevante e dolosa do dever de colaboração.

Conclui que a decisão recorrida representa uma sanção desproporcional e injustificada, com graves consequências para si, que se vê privado de um instrumento legal fundamental para a sua reabilitação económica e social, sem que se demonstre o incumprimento dos pressupostos legais para tal.

Desde logo, é certo que dos elementos documentais existentes nos autos - apesar de não serem todos os devidos – parece resultar que os rendimentos do insolvente implicavam a inexistência de algum valor a ceder, no ano inicial da cessão.

Contudo, esta não é a “questão” a apreciar e decidir no presente recurso, mas a da existência de uma situação de violação juridicamente relevante das obrigações fixadas no despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

A análise dos autos revela, a nosso ver, de forma evidente, a justeza da decisão recorrida.

O art.º 417.º, n,º 1, do CP Civil, estabelece um dever geral de colaboração com o Tribunal, definindo que “Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.”

Em disposição especial, o CIRE o art.º 239.º, n.º 4, prescreve que, durante o período de cessão, o devedor fica obrigado, entre o mais, a “Não ocultar o dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado.” (alínea a)), a “Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado (…).” (alínea b)) e “Informar o tribunal e o fiduciário (…) sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego.” (alínea d)).

Trata-se de um conjunto de deveres especialmente exigentes, tendentes a obrigar o devedor a colaborar ativamente, de forma leal e transparente, com o sucesso da exoneração do passivo restante.

No mesmo sentido, refere-se no “Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, com coordenação de Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões[3], que: “Durante o período de cessão de rendimento disponível, exige-se do devedor um comportamento exemplar, revelador da sua boa fé face ao processo de insolvência em geral e aos credores em particular.”

A razão de ser da exigência deste comportamento exemplar do devedor quer ao nível de deveres de informação, quer ao nível de deveres de diligência, justifica-se com a necessária conciliação dos interesses do devedor com os interesses dos credores.

Dando como nossas as palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/03/2021, tendo como Relator Ricardo Costa[4]: "(…) a exoneração do passivo restante, na perspetiva do devedor, serve a realização de valores constitucionalmente consagrados, como a liberdade económica (ou, em rigor, a recuperação dessa liberdade) e o direito ao desenvolvimento da personalidade, desde que o devedor não tenha incorrido em condutas culposas e recorrentes relacionados com a insolvência. Essa tutela, agora na perspetiva do credor, colide naturalmente (ou pode colidir), ao aspirar à liberação, objetiva e subjetiva, das dívidas restantes do devedor, com a tutela constitucional da titularidade dos direitos de crédito de natureza patrimonial, protegidos pela via do art.º 62.º, n.º 1, da CRP (direito à propriedade privada). Ora, no perímetro da liberdade de conformação do legislador, deve considerar-se que essa conciliação entre valores e direitos constitucionalmente protegidos corresponde a uma ponderação equilibrada de interesses (…).”

No caso dos autos, e tal como resulta do relatório, verifica-se, em síntese, que o insolvente, apesar de notificado para o efeito nunca informou nos autos a identificação do comprador do veículo de marca BMW, com a matrícula n.º ..-..-ON, nem juntou comprovativo dos valores que recebeu da Segurança Social (e outros, se existissem) entre setembro de 2023 a outubro de 2024.

Violou, portanto, o dever de informação previsto na lei quanto aos seus rendimentos e património.

Além disso, o devedor não juntou comprovativo de inscrição no Centro de Emprego e/ou renovação desse pedido nem apresentou qualquer justificação para a não prestação destas informações nos autos.

Violou, desta forma, o dever de informação acima referido e presumivelmente, face à não apresentação de qualquer justificação cabal, igualmente o dever de procurar ativamente emprego.

Este dever de diligência impede que o devedor se limite a manter-se desempregado à espera do decurso do tempo da cessão de rendimentos, em proteção dos direitos dos credores.

Além disso, as poucas informações e documentos apresentados nos autos pelo insolvente foram-no na sequência de várias notificações dirigidas a si para este efeito.

Violou, uma vez mais, o indicado dever de informação, na vertente da tempestividade do seu cumprimento.

Este conjunto de factos confirma a conclusão do tribunal recorrido da existência de falta de colaboração do devedor com o tribunal, nomeadamente quanto ao fornecimento de informações e junção dos documentos solicitados.

É evidente, à luz dos factos acima analisados, que o insolvente foi notificado para juntar documentos essenciais para o apuramento da sua situação económica e patrimonial e que, não obstante tais notificações e subsequentes advertências, não juntou a essencialidade dos mesmos aos autos.

Por outro lado, o devedor/insolvente estava perfeitamente ciente das obrigações que sobre si impendiam por força da admissão liminar da exoneração do passivo restante, desde logo por via das várias notificações que lhe foram dirigidas.

Não teve, seguramente, uma atuação diligente e colaborante na gestão da sua situação financeira e no cumprimento das obrigações legais.

Mais do que isso, a análise dos autos revela da sua parte uma postura de alheamento ao longo de todo o período de cessão de rendimentos, com repetidos silêncios e omissões, ao longo dos meses.

Tal como refere a Recorrida, o dever de colaboração do devedor não se satisfaz com simples declarações genéricas de empenho e esforço, tal como faz o insolvente nas suas alegações de recurso.

Neste contexto, a violação destes deveres, ainda que não haja prova de dolo específico, terá necessariamente que ter na sua origem uma negligência grave, entendida esta como uma violação grosseira e indesculpável dos deveres a que se encontrava sujeito.

A conclusão final é, sem dúvida, a de que, não tendo o recorrente/insolvente cumprido os deveres de informação e de diligência consagrados na lei, a decisão do tribunal recorrido de recusa antecipado da exoneração do passivo restante está perfeitamente justificada, por aplicação da disposição legal do art.º 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE.

Improcede, consequentemente, o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar totalmente improcedente o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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Custas a cargo do recorrente/insolvente, sem prejuízo do apoio judiciário (art.º 527.º do CP Civil).

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Registe e notifique.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)


Porto, 10 de julho de 2025
Lina Baptista
Rui Moreira
João Proença
_____________
[1] Doravante apenas designado por CIRE, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] Doravante apenas designado por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[3] 2013, Almedina, pág. 666.
[4] Proferido no Processo n.º 1155/14.2TBPRD.P2.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.