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CONTRATO DE SEGURO
INCÊNDIO
ATO DE TERCEIRO
DIREITO DE REGRESSO
Sumário
I – Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção. II - Num contrato de seguro em que em relação ao risco concreto da cobertura de incêndio se defina este como combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios”, abrange o que ocorreu no imóvel seguro ainda que o mesmo tenha sido provocado por ato de terceiro. III - Os riscos contratados e discriminados no referido documento não são apenas os riscos derivados do exercício da atividade contratada (restaurante ou similar/restauração), razão pela qual não tem qualquer aderência a interpretação de que a cobertura em causa abrangia apenas o risco de incêndio derivado da atividade de restauração. IV - Os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas. V - Numa ação em que apenas foi condenado o devedor principal não pode ser exercido o direito de regresso contra o terceiro causador do incêndio, ou seja, o titular do direito de regresso deve propor uma ação própria contra o devedor, após ter pago (ou assumir a obrigação de pagar) a dívida ao credor. VII - Permitir o exercício do referido direito seria violar o princípio do dispositivo e os limites da condenação (cf. artigo 609.º, nº 1 do CPCivil).
Texto Integral
Processo nº 113/23.0T8OAZ.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo Local Cível de Oliveira de Azeméis Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr.ª Teresa Sena Fonseca
2º Adjunto Des. Dr.ª Ana Paula Amorim
5ª Secção Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I-RELATÓRIO A...–COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede em Lisboa, intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra B..., LDA., esta com sede de Oliveira de Azeméis e contra AA, residente na Rua ..., ..., ..., peticionando a procedência da ação e a condenação dos réus nos seguintes moldes: “1. O 1º Réu no pagamento do valor de € 40.152,05 (quarenta mil cento e cinquenta e dois euros e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, a apurar, desde a primeira interpelação daquele até efetivo e integral pagamento, custas judiciais e respetivas custas de parte; ou 2. Caso assim não se entenda, o 2º Réu no pagamento do valor de € 40.152,05 (quarenta mil cento e cinquenta e dois euros e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, a apurar, desde a primeira interpelação daquele até efetivo e integral pagamento, custas judiciais e respetivas custas de parte.”
Para tanto alegou, em suma, ter ocorrido um incêndio no decurso de atividade/intervenção levada a cabo pelo 2º Réu que determinou a ocorrência de danos em estabelecimento de segurado da autora e que esta ressarciu.
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Regularmente citada, a ré B..., S.A. (doravante designada por 1º réu) deduziu contestação onde pugnou, em síntese, que celebrou efetivamente um contrato de subempreitada com o 2º réu, tendo adjudicado a esta os mesmos trabalhos que haviam sido previamente adjudicados a si própria a título de empreitada pelo Condomínio. Nesse seguimento, frisou que quem realizava os trabalhos no local era o 2º réu, razão pela qual interpelou este para explicar o sucedido e, acreditando na versão exposta por este, não pode o 1º réu ser responsabilizado pelo sucedido. Ademais, salientou que o sinistro verificado não integra o conceito de incêndio previsto no contrato de seguro aludido pelo autor, não estando os danos sofridos garantidos contra o incêndio desta natureza. Mais manifestou exercer direito de regresso contra o 2º réu, caso venha a ser condenada no decurso desta ação.
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Em sede de contestação o 2º réu mencionou que no momento do incêndio não havia qualquer maçarico a funcionar, declinando assim qualquer responsabilidade.
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Tendo o processo seguido os seus regulares termos teve lugar a audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais.
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A, final, foi proferida decisão com a seguinte parte dispositiva: “Pelo exposto, e nos termos dos fundamentos de facto e de Direito invocados, julga-se a presente ação totalmente procedente, por provada, em consequência do que se condena a ré B..., Lda. a pagar à autora o valor de €40.152,05, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos desde a data da interpelação para pagamento até efetivo e integral pagamento”.
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Não se conformando com o assim decidido veio a 1ª Ré interpor o presente recurso, rematando com extensas conclusões que mais não são do que cópia quase integral (excetuadas as transcrições dos depoimentos) do que já constava do corpo alegatório.[1]
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Devidamente notificada contra-alegou a Autora concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir: a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto; b)- decidir em conformidade face à pretendida alteração factual, ou sendo julgada improcedente a pretendida alteração, saber se o tribunal fez ou não uma correta subsunção jurídica dos factos que nos autos se mostraram assentes.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que o tribunal recorrido deu como provada:
1. A autora exerce a atividade de seguros.
2. O Condomínio do Prédio sito na Av. ..., Ed. ..., Oliveira de Azeméis celebrou com B..., S.A. acordo denominado contrato de empreitada, com vista à realização de trabalhos de impermeabilização a quente, com tela asfáltica no terraço do prédio onde aquele Condomínio se mostrava constituído.
3. A 18.05.2020, B..., S.A. e AA (doravante designados por 1ª e 2ª réus) celebraram entre si acordo denominado “contrato de subempreitada”, inerente aos trabalhos referidos em 2., do mesmo constando as seguintes cláusulas:
“Cláusula 1ª
Cláusula 4ª
Trabalhos a mais e a menos
Cláusula 6ª
Prazo de Execução
Cláusula 7ª
Obrigações da Subempreiteira
4. No exercício da sua atividade, a autora celebrou com C..., Lda., um contrato de seguro do Ramo Multirriscos Empresas, titulado pela apólice nº ....
5. No âmbito deste contrato, a autora assumiu a responsabilidade civil decorrente de sinistros ocorridos no estabelecimento comercial sito na Av. ..., Ed. ..., ... Oliveira de Azeméis, em particular, a autora assumiu a responsabilidade pelo pagamento de danos no recheio da fração, tendo sido contratadas, para além do mais, a cobertura de “incêndio, ação mecânica de queda de raio, explosão”, cujo capital seguro ascende ao montante de € 99.343,16; e a cobertura de “danos em bens de senhorio”, cujo capital seguro ascende ao montante de € 2.500,00.
6. Decorrem das condições gerais desse contrato de seguro as seguintes menções, para além do mais:
“Artigo 1º
Tomador do seguro – pessoa singular ou coletiva que, por sua conta pu por conta de uma ou várias pessoas, celebra o contrato de seguro com o Segurador, sendo responsável pelo pagamento do prémio.
Segurado – a pessoa, singular ou coletiva, titular dos bens, valores, interesses ou obrigações que constituem o objeto do contrato de seguro e no interesse do qual o contrato é celebrado.
(…)
Instalações seguras: edifício ou fração destinado à catividade do segurado e onde se encontram os bens objeto deste contrato.
Edifício ou fração de edifício conjunto de elementos de construção, instalações fixas, dependências, muros, vedações e instalações anexas que sejam propriedade do segurado.
(…)
Artigo 2º
1º O presente contrato tem por objeto garantir, nos termos estabelecidos nas respetivas coberturas e /ou seus limites, as indemnizações devidas por danos nos bens móveis e/ou imóveis, mencionados nas Condições Particulares destinados ao exercício da catividade desenvolvida pelo Segurado.
(…)
Artigo 7º
(…)
Cobertura 001
1. (…)
Incêndio – combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem e que se pode propagar pelos seus próprios meios.
(…)
2. A cobertura do risco de incêndio compreende os danos causados aos bens seguros ainda que tenha havido negligência do Segurado ou de pessoa por quem este seja responsável.
Cobertura 019
5. Exclusões – Além das exclusões previstas no art.5º destas condições gerais, ficam também excluídos desta cobertura:
d) a responsabilidade civil decorrente de obras, trabalhos de transformação ou ampliação das instalações seguras;”
7. A autora recebeu nos seus serviços uma participação de sinistro ocorrido em 29.05.2020, pelas 15h15m, no estabelecimento comercial de C..., Lda., denominado “D...”, sito na morada indicada em 5, consistente em incêndio, tendo efetuado averiguação às circunstâncias de ocorrência do incêndio e dos danos causados.
8. Nessa data e hora, o estabelecimento comercial com a denominação “D...” encontrava-se encerrado, estando prevista a sua abertura pelas 17h00m desse mesmo dia.
9. Na data e hora mencionadas em 6. não se encontrava qualquer sócio ou funcionário no interior desse estabelecimento.
10. Na data e hora mencionados em 6., estavam a decorrer os trabalhos de impermeabilização junto à divisão/anexo sito das traseiras do prédio, realizados pelo 2º réu.
11. Para a execução desses trabalhos, o trabalhador do 2º réu utilizou um maçarico de queima de gás, com produção de chama e calor para liquidificar a tela asfáltica e conseguir colar esta aos elementos estruturais.
12. No momento em que esse trabalhador manuseava o maçarico e em virtude da chama direta produzida por este instrumento, deflagrou um incêndio devido à ignição e combustão das placas translucidas constituintes da envolvente empena do anexo contíguo à fração segura na autora.
13. O incêndio alastrou a esta fração.
14. Esse trabalhador executava trabalhos sob as instruções e ordens do 2º réu.
15. Os Bombeiros e a GNR foram chamados ao local.
16. Esse incêndio provocou danos em máquinas, equipamentos e consumíveis que o tomador do contrato de seguro celebrado com a autora tinha armazenados no interior daquela fração.
17. O custo da reparação dos estragos verificados no mobiliário existente na fração foi orçamentado no valor global de €4.618,38, correspondente a:
17.1 Quadro - €36,22;
17.2. Estores laminados - €178,38;
17.3. Mobiliário hotelaria - €1.201,29;
17.4. Expositor - €42,95;
17.5. Móveis garrafeira - €486,62;
17.6. 11 mesas e 30 cadeiras - €656,52;
17.7. Escaparate Inox 2000 - €66,40;
17.8. Escaparate Inox 1300 - €52,42;
17.9. Móvel em aço - €42,42;
17.10. Divisória em aço - €147,37;
17.11. Mesa quadrada - €0,14.
18. O custo da reparação dos estragos verificados em equipamentos existentes naquela fração foi orçamentado no valor global de €27.333,40, correspondente a:
18.1. Picadora Tauruss 6S8 - € 14,35;
18.2. Talheres - € 670,43;
18.3. Esquentador Junker - € 37,84;
18.4. Equipamento Elétrico Hotelaria - € 3.829,70;
18.5. Triturador MD95 - € 50,81;
18.6. Grupo Aspiração - € 192,21;
18.7. Apanha fumos mural - € 111,13;
18.8. Grelha Chapa 3 Laterais - € 87,69;
18.9. Conduta ZNC, 2 prateleiras inox - € 189,24;
18.10. Grelhador Nort. Zod Base Zoadiaco - € 674,73;
18.11. Apanha fumos 8 filtros - € 523,43;
18.12. Tampo granito - € 70,69;
18.13. Placa grelhador - € 210,85;
18.14. Carro mono - € 45,25;
18.15. Escaparate - € 54,74;
18.16. Móvel em aço - € 118,74;
18.17. Grelhador Vertical - € 2.582,61;
18.18. Grelhador - € 855,23;
18.19. Churrasqueira Carvão - € 2.673,12;
18.20. Unidade ventilação - € 5.769,05;
18.21. Máquina Rowenta - € 149,36;
18.22. Motor B3 – € 49,83;
18.23. Impressora HP640 - € 2,44;
18.24. UPS Ondyne - € 50,72;
18.25. Impressora Samsung SRP270 - € 5,50;
18.26. Monitor Acer - € 9,25;
18.27. Impressora - € 69,07;
18.28. Balança com ticket POS - € 173,31;
18.29. Impressora Sittem Térmica - € 54,32;
18.30. Iphone 11 – € 660,10;
18.31. Ar condicionado - € 943,67;
18.32. Ar condicionado - € 774,48;
18.33.Esquentador Vulcano - € 103,83;
18.34. POS Power 800 - € 55,85;
18.35. Computador Tsunami - € 88,76;
18.36. ASUS Vivo Tab Smart - € 119,90;
18.37. Tablet HP X2 - € 227,06;
18.38. POS T950 Ecran 15” - € 177,76;
18.39. Telemóvel Samsung - € 6,50;
18.40. Bomba - € 67,69;
18.41. Forno Convencional - € 314,42;
18. 42. Televisor - € 367,92;
18.43. Televisor - € 68,90
18.44. Computador MacBook-€ 925,25.
19. O custo de reposição de bens alimentícios e objetos de limpeza, como rolos de papel, sacos de lixo, foi orçamentado em € 5.700,27.
20. O tomador do seguro no contrato de seguro mencionado em 4., reclamou junto da autora o pagamento do montante de €24.074,88 a título de danos apurados no edifício decorrentes do incêndio vindo de descrever, cuja responsabilidade pelo ressarcimento a autora declinou por não estarem contratadas coberturas referentes ao edifício da fracção segura naquele contrato.
21. A autora pagou ao tomador do seguro o valor de €2.500,00, correspondente ao capital seguro contratado e por referência à cobertura de “danos em bens do senhorio”, dado que a fração em apreço encontrava-se arrendada pelo tomador do seguro.
22. A autor pagou ao tomador do seguro o montante global de €40.152,05, correspondente a indemnização pela regularização dos danos.
23. A autora solicitou aos réus o pagamento da quantia referida em 22, o que não se verificou até à data de entrada em Juízo da presente ação.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu, a primeira questão que no recurso vem colocada prende-se com: a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões o Réu/apelante abrange, com o recurso interposto, a impugnação da decisão da matéria de facto, não concordando com a resenha de algum dos factos dados como provados e não provados, sendo que, observa, de forma satisfatória, os ónus que sobre si recaem, pelo que deve ser conhecida a impugnação da decisão da matéria de facto nos moldes alegados.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância.
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetividade, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão a Ré recorrente, neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
Os pontos 12. e 13. da resenha dos factos provados têm, respetivamente, a seguinte redação: “12. No momento em que esse trabalhador manuseava o maçarico e em virtude da chama direta produzida por este instrumento, deflagrou um incêndio devido à ignição e combustão das placas translucidas constituintes da envolvente empena do anexo contíguo à fração segura na autora; 13. O incêndio alastrou a esta fração.”
Alega a apelante que os referidos factos deviam ter sido ser dados como não provados.
O tribunal recorrido na motivação da decisão da matéria de facto sob os pontos em questão discorreu do seguinte modo: “A factualidade assente em 8, 9, 10, 11, 12, 13, 16 ficou ancorada no contributo dado pela prova testemunhal arrolada pela autora. Assim, a testemunha BB, elemento da E... que procedeu à elaboração de relatório de averiguação solicitado pela autora, depôs de forma coerente, transmitindo relato sobre aquilo que considerou evidências quanto à génese do incêndio que determinou a ocorrência de danos na fração segurada. Comunicou que esteve no local duas vezes, falou com o segurado, com a proprietária de estabelecimento de cabeleireiro adjacente ao terraço e com elemento da 1ª ré, não tendo tido grande colaboração por parte da administração do condomínio. Explicou que da observação da existência no terraço adjacente à fração segurada eram visíveis rolos de tela asfáltica, esta que, como decorria do contrato de empreitada e do contrato de subempreitada juntos, era para ser colocada a quente para que fosse possível a sua aderência ao piso, sendo para tanto necessário a utilização de maçarico ou tocha em chama e uma botija de gás; para além disso, dos depoimentos das pessoas por si inquiridas derivou a informação de que o trabalho levado a cabo pelo 2º réu estava em curso. Inferiu que o incêndio deflagrou, teve o seu início na parte inferior da chapa exterior (junto a empena) existente no anexo adjacente à fração segura, anexo esse pertencente a esta fração, por ser visível a ignição da combustão neste local, sendo esta a parede com maior grau de destruição. Atestou que a tela asfáltica estava quase toda aplicada e que tinha sido efetuado trabalho de colocação deste material junto ao anexo. Frisou que no interior do anexo não foram detetados materiais altamente inflamáveis que potenciassem, por si só, o início do incêndio, sendo na sua essência, géneros alimentícios e prateleiras com talheres, recordando, inclusive, a existência de carvão, em sacos, ainda por utilizar. Mais apontou que a cozinha do restaurante da fração segura–e por tanto, onde existiam equipamentos elétricos e inflamáveis–localizava-se do lado oposto ao local do anexo, nada permitindo concluir que o incêndio pudesse ter tido o seu início na cozinha e depois alcançar o anexo, como também é visível das fotos constantes de pag. 12, 13, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26 do relatório efetuado por esta testemunha. De facto, é patente que o grau de destruição é bem maior junto e no anexo do que no interior do restaurante, nomeadamente, na cozinha, o que evidencia que o incêndio terá deflagrado junto a esse anexo, tendo a testemunha concluído que foram os trabalhos de colocação de tela a quente no terraço adjacente a esse anexo, que provocaram o incêndio, não notando a existência de outros materiais/elementos inflamáveis ou potenciadores de incêndio no interior do anexo. O depoimento desta testemunha revestiu assaz pertinência para a formação da nossa convicção quanto aos factos provados, sendo certo que das suas palavras não derivou qualquer razão para considerar que os danos por si apontados e respetivos valores de ressarcimento estivessem sobredimensionados, por tal não constituir a prática habitual de peritagens e porque a própria autora aceitou como justificáveis e devidos esses danos e valores, como atestou a testemunha CC. DD, lesado em virtude do incêndio e segurado na autora, recordou os estragos que sofreu no interior do seu estabelecimento e ainda que tenha manifestado esquecimento ou particular confusão quanto aos bens que foram substituídos e, assim, ressarcidos pela autora, declarou ter procedido à substituição da maior parte dos equipamentos (elétricos e mobiliário) porque, mesmo que não tivessem sido consumidos pelo fogo, alguns ficaram estragados pelo fumo negro e, por isso, insuscetíveis de utilização em espaço aberto ao público. As testemunhas arroladas pelos réus assumiram incongruências que ditaram a irrelevância dos seus depoimentos. Nessa senda, Carlos Castro, trabalhador do 2º réu, procurou afastar a suposta utilização de maçarico ou tocha em chama, declarando que, no momento do incêndio, o maçarico estava apagado e que estavam apenas a cortar tela, não obstante responder posteriormente que o trabalho já estava adiantado. Procurou depois dizer que nesse dia estiveram toda a manhã a descarregar material e equipamento do carro; que entre as 13h00m e as 15h00m tinham estado apenas a descarregar material e equipamento do carro para o terraço, sendo necessário subir por um escadote exterior e ali colocado apenas para aceder ao terraço, para logo a seguir dizer que afinal demoraram pouco tempo a descarregar o material e o equipamento do carro e que, mesmo assim, tenha sido pouco ou muito tempo, o maçarico e a botija de gás, ficaram no interior do carro, o que pouco sentido faz perante a afirmação de que o trabalho estava adiantado, sendo que para adiantar esse trabalho, para colar a tela, precisavam do maçarico e da botija. Por seu turno, Márcio Oliveira, trabalhador do 2º réu e que também andava no local a aplicar telas, mencionou que só utilizaram o maçarico nesse dia de manhã, que durante a hora de almoço levaram o maçarico para o carro, mas deixaram ficar no terraço a botija de gás e que, pelas 15h00m, hora provável de início do incêndio, não estavam a utilizar o maçarico, que ainda estava no interior do veículo. Sem embargo, também este relato não oferece razoabilidade, porquanto, a testemunha disse posteriormente que, afinal, o maçarico estava no terraço, mas desligado, pouca coerência também oferecendo que tenham tido o cuidado de levar o maçarico para o carro durante a hora de almoço, sendo certo que ao terraço onde estava a ser colocada a tela só era possível o acesso através de escadote (amovível) ali colocado por estes trabalhadores e que levaram o maçarico, mas deixaram ficar as telas, dois extintores e uma botija de gás durante a hora de almoço e que mesmo quando chegaram, depois do almoço, regressaram ao terraço, primeiro sem maçarico, depois com este estranhamente desligado no momento do incêndio, sendo os únicos que se encontravam no terraço onde se localizava o anexo da fração segurada”.
A Ré apelante discorda da referida fundamentação sendo que, o pomo da discórdia, o situa circunstância de que chapas de fibra de vidro constituintes da envolvente empena do anexo contíguo à fração segura na autora, serem, por definição, incombustíveis.
Ora, salvo o devido respeito, não se acompanha esta asserção.
Efetivamente, não obstante, em princípio, as fibras em causa sejam incombustíveis, tudo dependerá da sua composição.
Com efeito, placas de fibra de vidro com resina (como poliéster ou epóxi) podem causar ou propagar um incêndio se forem expostas a um maçarico e estiverem próximas de materiais inflamáveis.
A resina queima facilmente, especialmente se for comum (não retardante de chama), pelo que, durante a queima, pode gotejar material em chamas, como plástico derretido.
Ora, tal plástico derretido quando em contato com materiais inflamáveis próximos pode levar à ignição secundária com a propagação de fogo.
Argumenta também apelante de que o facto de o grau de destruição ser maior junto no extremo do anexo, apena nos diz que ali havia mais coisas ardidas, mas nada nos diz, de per si, quanto ao ponto de ignição ou de deflagração do incêndio.
É verdade que, o grau de destruição mais elevado junto ao anexo do que no interior do estabelecimento, pode ser um indício de que a ignição teve origem nessa zona, mas não é, por si só, uma prova conclusiva.
Mas também é verdade que áreas com maior destruição, carvão mais profundo ou deformação de materiais podem indicar maior tempo de exposição ao fogo, o que pode coincidir com o ponto de origem/ignição.
Alega depois a apelante que a probabilidade séria de o incêndio ter ocorrido a partir da churrasqueira a carvão de madeira, é reforçada pela proximidade e comunicabilidade interior dos anexos, sendo que, em termos de probabilidade, é bem mais provável que o incêndio tenha nascido no interior dos anexos, a partir do carvão incandescente da churrasqueira (que o dono do restaurante quis esconder), do que a partir do maçarico do 2º R., ainda que este tivesse funcionado na parte da tarde desse dia.
Repare-se, todavia, que, como se refere na motivação da decisão da matéria de facto, a cozinha do restaurante da fração segura localizava-se do lado oposto ao local do anexo, ou seja, no entender da apelante poderão ter sido as fagulhas libertadas pelo carvão incandescente da referida churrasqueira que terão ido parar aos anexos e ter-se aí iniciado a ignição do incêndio.
Trata-se de uma teoria rebuscada sem qualquer aderência à realidade espelhada nos autos, pois que, como afirmou a testemunha BB no interior do anexo não foram detetados materiais altamente inflamáveis que potenciassem, por si só, o início do incêndio, sendo na sua essência, géneros alimentícios e prateleiras com talheres.
Por outro lado, admitindo que a ignição do incêndio começou na cozinha provocado pela dita churrasqueira a carvão e depois alastrou aos anexos, como então explicar que o grau de destruição é bem maior no anexo do que no interior do restaurante, nomeadamente, na cozinha, como o atestam as fotografias de págs. 12, 13, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26 do relatório efetuado por citada testemunha, sendo que, era na cozinha que certamente existiam equipamentos elétricos e inflamáveis.
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Diante do exposto e porque a apelante não convocou quaisquer elementos probatórios constantes dos autos que infirmem a motivação supratranscrita, devem os pontos em questão continuar no elenco dos factos provados.
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Impugna depois a apelante os pontos 17., 18., 19. e 21. dos factos provados, pugnando pela sua eliminação do elenco dos factos provados.
Os factos em causa dizem respeito ao custo da reparação dos estragos verificados: a) no mobiliário existente na fração; b) em equipamentos; c) custo de reposição de bens alimentícios e objetos de limpeza, como rolos de papel, sacos de lixo; e d) o valor de € 2.500,00, correspondente ao capital seguro contratado e por referência à cobertura de “danos em bens do senhorio”, dado que a fração em apreço se encontrava arrendada pelo tomador do seguro.
Na motivação da decisão da matéria de facto e sobre os pontos em questão o tribunal recorrido discorreu da seguinte forma: “Paralelamente, os factos assentes em 3, 4, 5, 6, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 não foram infirmados pelos réus, outrossim foram confirmados pelo teor dos documentos juntos pela autora com a sua petição e com requerimento de 02.03.2023, sobretudo aqueles respeitantes à apólice do contrato de seguro e as suas condições particulares; aos valores ressarcidos ao tomador do seguro; ao contrato de empreitada e ao contrato de subempreitada; ao relatório efetuado pela E.... Não olvida o Tribunal que relativamente aos documentos ora enunciados foi efetuada uma impugnação (tão só) genérica, mormente, pela 1ª ré, sem que, todavia, tenha sido produzida prova que abalasse a relevância probatória dos mesmos, pelo contrário, antes asseverando o seu conteúdo, razão pela qual os mesmos assumiram particular relevo para a formação da nossa convicção. Os documentos juntos pelos réus, ainda que observados, não revestiram pertinência probatória”.
Alega a apelante a existência de contradições entre os depoimentos das testemunhas BB, DD e o acervo factual provado.
Acontece que, a recorrente não está a efetuar qualquer consideração com base na produzida na sua globalidade, mas tão somente, a cada prova produzida individualmente e com base em excertos dos depoimentos de testemunhas isolados do seu contexto.
Respigando o vertido nas alegações recursiva e respetivas conclusões, entende a apelante que não resultaram demonstrados os valores efetivos dos prejuízos advenientes do sinistro em discussão nos autos.
Ora, a Autora/apelada, juntou com a sua petição inicial os documentos nº 6 a 30, que demonstram, claramente, a extensão dos danos provocados na sequência do sinistro no imóvel seguro.
Concatenado tais documentos, percebe-se, sem qualquer esforço, que bens foram danificados.
Por outro lado, nos documentos nº 32 e 33 juntos com a referida peça estão elencados, especificadamente, os bens concretamente danificados, a data da sua aquisição, o valor contabilístico e o valor que os mesmos tinham à data do sinistro, face à sua desvalorização decorrente do tempo.
Por outro lado, contrariamente àquilo que a apelante afirma, a Autora apelada não se limitou a pagar uma indemnização à tomadora do seguro na esperança de vir a ser reembolsada posteriormente pela entidade responsável pelo sinistro.
Na verdade, ao assim proceder a apelada não tem quaisquer garantias de que efetivamente se apure o responsável pelo mesmo ou, apurando-se, que este chegue a reembolsá-la, pelo que o argumento da Recorrida carece de qualquer cabimento.
Através da transcrição de excertos dos depoimentos das testemunhas BB e DD, alega a apelante que não resultou provado o valor dos prejuízos, mostrando, até, muito espanto pelo facto da testemunha DD não ser capaz de elencar o valor de cada bem.
Todavia, a apelante parece esquecer-se que o tribunal recorrido não baseou as suas convicções exclusivamente na prova testemunhal.
Os documentos juntos sob os nº 32 e 33 da petição inicial elencam exaustivamente os valores dos danos.
Aliás, seria estranho que a testemunha DD (dono do estabelecimento em causa), à data do seu depoimento, conseguisse afirmar em Tribunal o valor de cada verba recebida.
Com efeito, como é expectável, a referida testemunha logrou afirmar, em números “redondos”, o valor que, efetivamente, recebeu a título de indemnização da Autora.
Aliás, diga-se, que sob este conspecto, a alegação constante das páginas 15 a 22 da motivação do recurso é algo confusa, não se entendendo se a apelante pretende alegar que não resultaram provados alguns danos alegados (ficando por explicar quais) ou se não resultaram provados os valores de cada verba indemnizada.
Em todo o caso, não pode a Recorrente afirmar que não resultaram provados os danos, bem como o valor, efetivamente, indemnizado à Tomadora do Seguro.
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Da eventual não alteração de resposta dos factos 17., 18., 19., 21.
Caso os factos provados 17., 18., 19., e 21. não sejam alterados, pugna a apelante que pela alteração destes factos com a seguinte designação: “a quantia de 40.152,05 €, a que se refere o facto 22, não foi o resultado da soma das diversas parcelas de reparação dos vários bens e equipamentos danificados por efeito do incêndio, o que não foi sequer tido em conta, mas um valor indemnizatório global, encontrado por acordo entre o dono do restaurante e a seguradora, a título de ajuda e para que aquele utilizasse para os fins que entendesse, designadamente para pagar aos seus funcionários e para comprar o que entendesse”
Ora, este facto, que terá resultado do depoimento da testemunha DD, constituiria matéria excetiva e, como tal, teria de ser alegado pela apelante (cf. artigo 5.º, nº 1 do CPCivil), apenas sendo lícito ao juiz considerar outros, não alegados, se forem complementares instrumentais, notórios ou que sejam do seu conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Nestes termos, nunca poderia este tribunal aditar o facto ao rol dos factos provados.
Para além disso e ainda que assim não fosse, como bem afirma a própria Recorrente, resultou efetivamente demonstrado que a Autora pagou uma indemnização à Tomadora do Seguro pelo montante total de € 40.152,05.
Porém, não aceita que este valor corresponda à indemnização de cada verba danificada, mas antes, corresponda a uma indemnização global para ressarcir os danos decorrentes do incêndio.
Ora, face ao suprarreferido, não pode aceitar-se que se entenda que o valor pago à tomadora do seguro não esteja devidamente especificado, não só quanto aos danos, como quanto ao valor pago, individualmente, por cada bem.
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Desta forma, devem também os factos em causa continuar com mesma redação na resenha dos factos provados.
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Importa salientar que quando o tribunal de recurso empreende o reclamado “exercício crítico substitutivo” da decisão da primeira instância (que pode implicar a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes), tem de ter presente que, se não se exige um erro notório, ostensivo na apreciação da prova para que a Relação deva proceder à alteração, também não basta que as provas, simplesmente, permitam, ou até sugiram, conclusão diversa daquela que foi a conclusão probatória a que se chegou na primeira instância.
A atividade judicatória na valoração dos depoimentos (incluindo os depoimentos e declarações de parte) há de atender a uma multiplicidade de fatores, que têm a ver com as razões de ciência, as garantias de imparcialidade, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, etc. que, não sendo ininteligíveis, não são de fácil compreensão.
A análise e a valoração da prova produzida constituem o punctum saliens do processo probatório[5], já porque é na apreciação da prova que se decide a concreta aplicação do direito, já porque, da amálgama das provas produzidas, o tribunal tem de “separar o trigo do joio”, selecionar as informações válidas e rejeitar as outras, de acordo com os critérios da experiência comum, mas também à luz dos conhecimentos científicos e técnicos postos à sua disposição.
Esse exame corresponde, no fundo, à indicação dos motivos que levaram a que o tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido, aceitando um e afastando outro, porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substrato lógico-racional da decisão e, portanto, deve permitir alcançar que a opção tomada não é fruto do arbítrio do julgador, de uma sua qualquer tendenciosa inclinação, mas sim de um processo sério assente em razões lógicas e nas regras da experiência comum.
Na concretização dessa delicada e difícil tarefa, o juiz orienta-se pelo princípio básico da livre apreciação, que tem consagração no artigo 607.º, n.º 5, do CPC.
Em termos simples e sintéticos, o princípio da livre apreciação da prova pretende exprimir a ideia de que no ordenamento jurídico que o acolhe não existe prova tarifada (portanto, não há regras de valoração probatória que vinculem o julgador, como acontecia no sistema da prova legal), pelo que, por regra[6], qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com a livre convicção do julgador.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações das partes, mesmo em detrimento dos depoimentos de uma ou várias testemunhas; pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só[7]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do autor ou do réu ou os depoimentos testemunhais, podendo respigar desses meios de prova aquilo que se lhe afigure credível.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada (se se quiser, segundo as legis artis adequadas).
A convicção do julgador é, sempre e necessariamente, uma convicção pessoal, mas também “uma convicção objetivável e motivável, portanto, capaz de impor-se aos outros”.[8]
A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva, emocional e, portanto, imotivável. Há de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão[9].
Por isso é absolutamente fundamental que o juiz explique e fundamente a sua decisão e deve preocupar-se em ser claro, racional[10] e objetivo na motivação da sua decisão, de modo que se perceba o raciocínio seguido e este possa ser objeto de controlo.
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Ora, perante motivação probatória da decisão recorrida, pode dizer-se que a Sr.ª Juiz se desenvencilhou dessa tarefa com sucesso, sendo a supratranscrita fundamentação perfeitamente inteligível e de fácil compreensão para o cidadão comum.
O que o legislador pressupõe é um juiz responsável, capaz de pôr o melhor da sua inteligência e do seu conhecimento das realidades da vida na apreciação do material probatório que tem ao seu dispor, analisando e valorando as provas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.
A verdade processual terá sempre de resultar do confronto de todos os meios de prova, assim como terá de ser dessa avaliação conjugada que se atribuirá maior ou menos credibilidade ao que a testemunha vem aportar aos autos, nunca esquecendo, claro está, o ónus da prova.
Na valoração individual da prova examina-se a fiabilidade de cada uma das provas em concreto. A articulação das provas entre si e a sua avaliação conjunta permitem o conhecimento global dos factos que, por sua vez, irá refletir-se no resultado da totalidade da prova atendível.
No decurso do processo analítico efetuado não pode prescindir-se da perspetiva conjunta do modo como cada uma das provas é integrada no quadro probatório global.
Os dois momentos de valoração são, pois, reciprocamente necessários.
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Como assim, temos de convir, salva outra e melhor opinião, que as discordâncias que a apelante convoca para que se imponha uma decisão diversa sobre a impugnação da matéria de facto em causa, não são de molde a sustentar a tese que vem por eles expendida, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo que afirmar ter a Mmª juiz captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem.
Numa apreciação distante, objetiva e desinteressada esta é a única conclusão lícita a retirar, refletindo a fundamentação dos factos os meios probatórios trazidos aos autos que não podiam conduzir a conclusão diversa, que sempre teria de ser alicerçada em certezas e sem margem para quaisquer dúvidas.
Conclui-se, por isso, que o tribunal de forma fundamentada, fez uma análise crítica e ponderada todos os meios probatórios, e, reavaliada essa prova, apenas haverá que sufragar tal decisão.
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Improcedem, assim as conclusões 1ª a 52ª formuladas pela apelante.
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Permanecendo inalterada a fundamentação factual a questão que agora importa analisar prende-se com: b)- saber se o tribunal fez ou não uma correta subsunção jurídica dos factos que nos autos se mostraram assentes.
1- A questão subrogatória
Alega a apelante que é pressuposto do direito de sub-rogação aqui exercido pela Autora/recorrida, enquanto seguradora, nos termos do art.º 136.º do RJCS, que a indemnização por ela paga à sua segurada, dona do restaurante, pelos alegados danos que teriam sido consequência do incêndio aqui em causa, fosse uma indemnização devida nos termos do contrato de seguro.
A sub-rogação, alega, não pode proceder em relação (i) aos danos que não estejam cobertos pelo seguro (ii) nem em relação a valores pelos quais o segurador responda, mas já não assim o terceiro causador, sendo que, no caso em apreço, o risco do incêndio (alegadamente) provocado pelos trabalhos executados pelo 2º Réu no terraço ao lado do restaurante, não estava abrangido pelo contrato de seguro invocado na petição inicial, e, por isso, a indemnização paga pela Autora da presente ação à sociedade dona do restaurante, não era devida nos termos daquele contrato de seguro.
Vem provado nos autos que: “- No exercício da sua atividade, a autora celebrou com C..., Lda., um contrato de seguro do Ramo Multirriscos Empresas, titulado pela apólice nº .... - No âmbito deste contrato, a autora assumiu a responsabilidade civil decorrente de sinistros ocorridos no estabelecimento comercial sito na Av. ..., Ed. ..., ... Oliveira de Azeméis, em particular, a autora assumiu a responsabilidade pelo pagamento de danos no recheio da fração, tendo sido contratadas, para além do mais, a cobertura de “incêndio, ação mecânica de queda de raio, explosão”, cujo capital seguro ascende ao montante de €99.343,16; e a cobertura de “danos em bens de senhorio”, cujo capital seguro ascende ao montante de €2.500,00; 6. Decorrem das condições gerais desse contrato de seguro as seguintes menções, para além do mais: “Artigo 1º Tomador do seguro–pessoa singular ou coletiva que, por sua conta pu por conta de uma ou várias pessoas, celebra o contrato de seguro com o Segurador, sendo responsável pelo pagamento do prémio. Segurado–a pessoa, singular ou coletiva, titular dos bens, valores, interesses ou obrigações que constituem o objeto do contrato de seguro e no interesse do qual o contrato é celebrado. (…) Instalações seguras: edifício ou fração destinado à atividade do segurado e onde se encontram os bens objeto deste contrato. Edifício ou fração de edifício–conjunto de elementos de construção, instalações fixas, dependências, muros, vedações e instalações anexas que sejam propriedade do segurado. (…) Artigo 2º 1º O presente contrato tem por objeto garantir, nos termos estabelecidos nas respetivas coberturas e /ou seus limites, as indemnizações devidas por danos nos bens móveis e/ou imóveis, mencionados nas Condições Particulares destinados ao exercício da atividade desenvolvida pelo Segurado. (…) Artigo 7º. (…) Cobertura 001 1. (…) Incêndio – combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem e que se pode propagar pelos seus próprios meios. (…) 2. A cobertura do risco de incêndio compreende os danos causados aos bens seguros ainda que tenha havido negligência do Segurado ou de pessoa por quem este seja responsável. Cobertura 019 5. Exclusões – Além das exclusões previstas no art.5º destas condições gerais, ficam também excluídos desta cobertura: d) a responsabilidade civil decorrente de obras, trabalhos de transformação ou ampliação das instalações seguras.”
Ora, perante a referida factualidade dúvida não existem de que estão cobertos os danos resultantes do incêndio ocorrido na fração em causa.
Veja-se que em relação ao risco concreto da cobertura de incêndio, nos termos da cobertura especial de “Incêndio, Ação Mecânica de Queda de Raio, Explosão”, dispõe a cobertura 001 das Condições Especiais da Apólice o seguinte: “1. Definições Para efeitos desta cobertura, entende-se por: Incêndio-combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios”.
Decompondo:
“Combustão acidental”–o incêndio tem de resultar de uma causa não intencional (isto é, sem dolo por parte do segurado);
“Estranha a uma fonte normal de fogo”–refere-se a um fogo que não faz parte da atividade normal do local, mas que se origina de forma anormal e se propaga;
“Mesmo que tenha origem numa fonte normal de fogo”-como por exemplo, uma vela, fogão ou máquina, desde que o fogo se torne descontrolado.
“Que se pode propagar pelos seus próprios meios”-o fogo deve ser real e com potencial de alastramento (não apenas aquecimento localizado).
Portanto, dúvidas não há de que ocorreu um incêndio no imóvel seguro, nem que se tratou de uma combustão acidental, pelo que, demonstrado está que o sinistro tem enquadramento na cobertura de “incêndio”, pelo que a Autora/recorrida estava obrigada a reparar os danos daí decorrentes ao respetivo tomador, razão pela qual se nos afigura completamente descabido o afirmado pela apelante na sua conclusão 60ª de que o contrato de seguro em causa abrangia apenas o risco de incêndio derivado da atividade de restauração.
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2- A questão o princípio da primazia da reconstituição natural e a consequente subsidiariedade da obrigação de indemnizar.
Alega a este respeito a recorrente que é evidente que a Autora/recorrida e o seu segurado optaram diretamente pela primazia da indemnização em dinheiro, e nada havendo nos autos que justificasse, neste caso, a legitimação do afastamento do princípio da primazia da reconstituição natural, por exemplo, por excessiva onerosidade (nem se sabe verdadeiramente o que seria ou não suscetível de reparação), nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 566.º do Código Civil, a Autora pagou mal e, tendo pago mal ao seu segurado, não pode exigir de terceiro o que pagou àquele.
Como se nos afigura incontestado a questão ora ventilada em sede recursiva é uma questão nova.
Acontece que, como supra se consignou, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”-artigo 608.º, nº 2 do CPCivil.
A problemática prende-se com a delimitação do objeto do recurso, ou seja, com os poderes do Tribunal da Relação na apreciação dos recursos de apelação.
Conforme sinteticamente refere Castro Mendes[11], em relação ao objeto do recurso, duas soluções são possíveis.
Primeira: entender-se que o “Objeto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida.”
Segunda: defender-se que o “Objeto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que “ex lege” devia ser proferida.”
A primeira hipótese remete para um sistema de reexame, que permite ao tribunal superior a reapreciação da questão decidenda pelo tribunal a quo, isto é, permite um novo julgamento, eventualmente com recurso a factos novos e novas provas; enquanto o segundo caracteriza um sistema de revisão ou de reponderação, o qual apenas possibilita o controlo da sentença recorrida, ou seja, apenas permite aferir se a decisão é justa ou injusta, considerando os dados fácticos e a lei aplicável, tal como o juiz da 1.ª instância possuía no momento em que proferiu a decisão.
Apesar de não existirem sistemas absolutamente “puros”, ou seja, que apenas apliquem um ou outro sistema “tout court”, a doutrina e a jurisprudência portuguesa têm entendido que “O direito português segue o modelo do recuso de revisão ou ponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseados nos factos alegados e nas provas produzidas perante este.”[12]
Por via disso, repetidamente os tribunais superiores têm afirmado que os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Por esse motivo, se entende que não é lícito invocar em sede de recurso questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido.
Esta regra decorre, designadamente, dos artigos 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2 e 5 do CPC, apenas excecionada quando a lei expressamente determine o contrário[13] ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso.[14]
A questão reside, pois, em saber o que se entende por questões de facto ou direito já submetidas à apreciação do tribunal recorrido.
É comum mencionar-se a este respeito que “questões” não são argumentos, raciocínios jurídicos ou juízos de valor expostos na defesa das teses controvertidas em litígio, reservando-se tal menção apenas para os fundamentos fáctico-jurídicos em que as partes assentaram as suas pretensões, ou seja, para as questões que na perspectiva substantiva apresentam pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Em relação à parte ativa, atender-se-á à causa de pedir e pedido e em relação à parte passiva, às exceções deduzidas.
É este, aliás, o raciocínio que subjaz à nulidade a que alude o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPCivil quando prescreve a obrigatoriedade do juiz se pronunciar sobre as questões colocadas à sua apreciação.
Tentando, agora, aplicar estes considerandos ao caso presente, verifica-se que a Ré recorrente nunca, na respetiva contestação, aduziu tal questão, sendo que, se trata de questão que na perspetiva substantiva apresenta pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Estamos, assim, perante argumentação nova que nunca tinha sido defendida pela apelante, o que coloca o tribunal ad quem perante um novo julgamento, na medida em que este, na reponderação que iria fazer da decisão proferida, não se encontra em situação idêntica àquela em que se encontrou o juiz da 1.ª instância, sendo certo que se trata de questão que não é de conhecimento oficioso.
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3- A presunção de culpa
Refere a recorrente que no caso em concreto, ou seja, para os fins específicos do presente processo, não há lugar à presunção de culpa prevista no art.º 493º do CC, invocada pela Mmª Juiz para suportar a condenação da ora recorrente.
Efetivamente, alega, o simples trabalho manual de soldar telas asfálticas (elas próprias não inflamáveis, como resulta evidente) através de um maçarico que efetua uma combustão de gás, a céu aberto, ou seja, ao ar livre, pode exponenciar a perigosidade e a possibilidade de provocar queimaduras no corpo da pessoa que utiliza aquele instrumento, podendo ser qualificada, para esse efeito, como uma atividade perigosa para efeitos do artigo 493.º, nº 2 do CCivil, mas já não pode tal trabalho manual ser qualificado como atividade perigosa para efeitos do caso concreto do presente processo, uma vez que do contexto e das circunstâncias físicas em que tal trabalho era executado (como se disse, ao ar livre e sem quaisquer elementos inflamáveis nem combustíveis à sua volta), não evidenciando qualquer risco, perigosidade ou possibilidade de provocar um incêndio, que é do que trata este mesmo processo.
Também aqui, salvo o devido respeito se está perante uma questão nova.
Em primeiro lugar nunca na contestação a Ré/apelante, aduziu tal questão.
Em segundo lugar a decisão recorrida não filiou a presunção de culpa no nº 2 do artigo 493.º, do CCivil, mas antes no nº 1 do mesmo inciso e, portanto, valem aqui, mutatis mutandis, as mesmas considerações feitas anteriormente.
Mas ainda que assim não fosse, na decisão recorrido a este propósito discorreu-se do seguinte modo: “Regressando aos autos, temos que a 1ª ré ficou responsável pela realização de trabalhos de impermeabilização de terraço, parte comum de prédio com propriedade horizontal constituída, com colocação a quente de tela, e que entre esta ré e o 2º réu foi celebrado um contrato de subempreitada, tendente à realização desses mesmos trabalhos. Não foi colocada em crise pelas partes a relação contratual estabelecida entre os réus. Ora, milita o art.º 1207º do Código Civil que emerge para o empreiteiro a obrigação de executar a obra em conformidade com o acordado, sem vícios que excluam ou reduzam o valor da obra, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato e, para o dono da obra, a obrigação de pagar o preço acordado, no ato de aceitação da obra, salvo acordo em contrário. Prosseguindo, o art.º 1209º estatui que o dono da obra tem a faculdade de fiscalizar, à sua custa, a respetiva execução, desde que não perturbe o andamento normal da empreitada, podendo, por isso, controlar a forma como o empreiteiro a está a executar, nomeadamente no que respeita aos materiais utilizados e ausência de vícios de construção. Paralelamente, a subempreitada é qualificada como um “contrato pelo qual um terceiro se obriga para com o empreiteiro a realizar a obra a que este se encontra vinculado ou uma parte dela”–cf. art.º 1213º, n.º 1 Cc, consubstanciando, portanto, um subcontrato de empreitada, a que se aplicam, em regra, os mesmos preceitos estabelecidos para o contrato de empreitada e em que o empreiteiro assume a posição do dono da obra e o subempreiteiro a posição de empreiteiro (neste sentido, vide Pedro Romano Martinez, Contrato de Empreitada, Coimbra 1994, pág. 124). Nesta esteira, a 1ª ré, enquanto empreiteira, assumiu a execução de trabalhos de impermeabilização a quente, com tela asfáltica no terraço do prédio, contratando esta o 2º réu para que este procedesse à efetiva execução desses trabalhos, assumindo a 1ª ré as vestes de dono de obra e o 2º réu de empreiteiro. Como avançado supra, em caso está o apuramento da responsabilidade civil extracontratual, ditada por facto ilícito originado pela execução de obras de impermeabilização que, ante o manuseamento de equipamento emissor de chama, provocou um incêndio na fração segura. Por força do disposto no art.º 487.º nº2 e do já citado artigo 493º, ambos do Cc, a apreciação da culpa do executante de uma obra, há que considerar que ele deve atuar com a diligência do empreiteiro/responsável padrão, relativamente ao sector da sua atividade, tendo, pois, em conta a obrigação de operar segundo as regras da arte ou as normas técnicas de segurança vigentes no domínio da construção civil e as concretas circunstâncias da dinâmica do evento em causa. Por conseguinte, ainda que não tenha sido alegado, em particular pela 1ª ré, que foram cumpridas ou atendidas todas as técnicas comummente usadas neste tipo de trabalhos, a verdade é que a 1ª ré não alegou e não provou que cumpriu a diligência e cuidado que lhe eram exigíveis com a vigilância da obra que entregou ao 2º réu por via da subempreitada. Citando Pedro Romano Martinez (obra acima citada): “O empreiteiro é responsável, não só pela violação dos deveres emergentes do contrato de empreitada, mas também por, no exercício dessa atividade, desrespeitar ilicitamente e com culpa direitos de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios (art.º 483.º, n.º 1, do CC). A violação de deveres emergentes do negócio jurídico (contrato de empreitada) faz incorrer o empreiteiro em responsabilidade contratual; enquanto o desrespeito, no exercício da sua atividade de empreiteiro, dos direitos de outrem (p. ex., direitos dos proprietários de prédios vizinhos daquele onde se executa a obra, ou direitos absolutos do dono da obra, designadamente a sua integridade física), ou de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios (p. ex., normas sobre a emissão de ruídos o fumos) dá origem a responsabilidade extracontratual. (…) Estando em causa a violação do contrato, a culpa presume-se (cf. art.º 799º, n.º 1 do Código Civil); na responsabilidade extracontratual, a culpa do empreiteiro tem de ser provada pelo lesado (cf. art.º 487º, n.º 1 do Código Civil), atendendo-se, nessa apreciação, ao dever de atuar com a diligência de um bom pai de família (n.º 2 do art.º 487º), o que se traduzirá, no contexto da realização de uma obra, no respeito pelas regras da arte vigentes nessa área (desrespeito que, não constituindo um ato ilícito, será avaliado em termos de negligência ou dolo).”. Posto isto, temos que a jurisprudência não é uniforme quanto à questão de determinar se o empreiteiro responde perante terceiros pelos atos ilícitos do subempreiteiro, nessa sede emergindo duas posições: a) Para a primeira, apenas o subempreiteiro responde perante terceiros pelos atos por ele praticados, uma vez que, face à autonomia jurídica entre os contratos de empreitada e de subempreitada, não existe uma relação de comissão entre o empreiteiro e o subempreiteiro, nos termos e para os efeitos do artigo 500.º do Código Civil, relação que, a existir, constituiria fundamento para a responsabilidade objetiva do primeiro pelos atos da responsabilidade do segundo; b) Para a segunda, o empreiteiro pode responder objetivamente pelos atos do subempreiteiro perante terceiro, nos termos do artigo 800.º do Código Civil, dado que utiliza este último como auxiliar no cumprimento da obrigação de realização da obra, extraindo vantagens económico-financeiras dessa atividade, sem a qual por vezes nem poderia celebrar a própria empreitada. Evidentemente, o art.º 500.º, n.º 1 do Cc publicita uma situação de responsabilidade objetiva do comitente, sendo “Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.”. E, assim, a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada, radicando numa relação de dependência entre o comitente e o comissário, de modo que aquele esteja autorizado a dar ordens ou instruções a este, pois que apenas essa possibilidade de direção pode justificar a responsabilidade do primeiro pelos atos do segundo. Destarte, o art.º 800º Cc prevê uma situação de responsabilidade pelos atos de representantes legais ou auxiliares por uma situação resultante do não-cumprimento da obrigação atinente à relação contratual existente entre o credor e o devedor, de modo que a responsabilidade do obrigado existe relativamente aos atos praticados pelos representantes ou auxiliares como se tivessem sido praticados pelo próprio devedor. Neste jaez, temos como pressupostos da aplicação da norma a existência de um sujeito passivo de uma relação obrigacional ou de deveres que advenham desta, um credor, a responsabilidade de tipo obrigacional (falta de execução da obrigação, presunção de culpa/ilicitude e danos) e o nexo de causalidade, com fulcro numa responsabilidade contratual estabelecida entre o empreiteiro e o dono da obra. Contudo, não sendo viável o apuramento de responsabilidade por via do art.500º por não existir, por regra, uma relação de comissão entre o empreiteiro e o subempreiteiro, dada a autonomia técnica deste último; e não sendo viável a invocação do disposto no art.800º do CC por não existir responsabilidade contratual, a jurisprudência tem admitido a atribuição de responsabilidade do empreiteiro pela atuação do subempreiteiro em casos de responsabilidade por danos causados por atividades, nos termos do n.º 2 do artigo 493º do Código Civil, recaindo sobre o empreiteiro um especial dever de vigilância sobre a execução da subempreitada, que não uma mera faculdade ou direito de fiscalização da obra, como a que assiste ao dono da obra em relação ao empreiteiro. É em função do dever de prevenção do perigo que se justifica que se presuma que o dano ocorrido quando a coisa está sob a vigilância de alguém se deve a culpa desta. Releva, aqui, o princípio geral do dever de prevenção do perigo, do qual emana a obrigação para cada um de não expor os outros a mais riscos ou perigos de dano do que aqueles que são, em princípio, inevitáveis–cf. art. 486º do CC. Consequentemente, neste âmbito a responsabilidade do empreiteiro subsiste por sobre ele incidir o dever de vigilância e fiscalização da coisa onde decorre a sua intervenção. Como alude o Ac. do Colendo STJ de 17-06-2014, processo n.º 112/07.0TBCMN.G1.S1: “Não assentando a eventual responsabilidade do empreiteiro pela atuação do consórcio subempreiteiro, numa relação comitente-comissário-art.º 500º, nº 1, do Código Civil–por não se tratar de responsabilidade objetiva, o enquadramento da responsabilidade do empreiteiro pela atuação lesiva do subempreiteiro ancora na omissão pelo empreiteiro do dever de vigilância e fiscalização.”, e como também se sufragou no Ac. do Colendo STJ de 25.3.2010–Proc. 428/1999.P1. S1: “A primeira via possível para responsabilizar o empreiteiro pelos danos culposamente causados a terceiro pelas atividades construtivas realizadas no imóvel a que se reporta a empreitada é a que decorre do enquadramento do caso no nº 1 do referido art.º 493º, considerando-se que, mesmo no caso de subempreitada, o empreiteiro mantém sobre o imóvel onde decorrem as obras poderes de direção e controle que caracterizam um dever de guarda e vigilância, fundamentador da presunção de culpa aí consagrada […] Mas o empreiteiro, mesmo naqueles casos em que deu a obra de subempreitada, continua obrigado à vigilância, da dita obra, porque continua a impender sobre ele o dever de supervisão técnica da sua feitura, sendo, por isso, de considerar que, em alguma medida mantém, mesmo na hipótese de subcontratação, os referidos poderes de controle e direção. O que leva a considerar que o dever de vigilância não transita para o subempreiteiro, sem prejuízo de sobre este impender idêntico dever. Estando vigente uma subempreitada, o empreiteiro não tem apenas o direito de fiscalização, tal como, nos termos do art. 1209º do C. Civil, tem o dono da obra, antes sim está adstrito a um dever de fiscalização técnica, pois a autonomia do subempreiteiro não pode prevalecer sobre o cumprimento do dever do empreiteiro de realizar a obra segundos os seus critérios técnicos e funcionais. Como seja, quando o empreiteiro passa a deter a coisa com vista à execução da obra, assume os poderes de direção e controlo que caracterizam o dever de vigilância ou de supervisão técnica neste sentido vide Ac. TRP de 29.03.2011, proc. 9360/07.1TBMAI.P1. E, no caso dos nossos autos, sufragamos este último entendimento. Ou seja, não tendo a 1ª ré alegado e provado que a subempreitada entregue ao 2º réu, decorria com total autonomia técnica, não ficou aquela isenta do dever de vigiar a execução levada a cabo pelo 2º réu e os meios utilizados, tanto mais que o resultado final da empreitada e a sua boa execução a responsabilizariam perante o dono da obra, pelo que a 1ª ré é responsável pela atuação do 2º réu, ao abrigo do disposto no art.º 493º nº1 do CC (o Ac. TRP de 11-02-2021, processo n.º 151/19.8T8AVR.P1, refere que: “o art.º 493º, nº 1, do Código Civil, prevê uma presunção de culpa, no caso, do empreiteiro geral, fundamentada naqueles deveres de direção, guarda, coordenação, controlo, vigilância da obra e de supervisão técnica, em ordem ao cumprimento dos critérios técnicos e funcionais adequados. A sua culpa no incumprimento, enquanto detentor da obra, presume-se enquanto não comprovar que não houve nenhuma culpa da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido mesmo que não houvesse culpa sua, ou ainda que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos.”), ainda que sobre o subempreiteiro também possa incidir esse dever de vigilância e de prevenção do perigo. Concluindo, a responsabilidade da 1ª ré, mesmo perante a celebração de contrato de subempreitada, funda-se no disposto no art.º 493º nº 1 do Cc, dado que aquela mantinha sobre o imóvel onde a obra iria ser executada poderes de direção e controlo, caracterizadores de um dever de guarda e vigilância, integrante da presunção de culpa vigente naquele preceito legal. E nos nossos autos, a 1ª ré não afastou a referida presunção de culpa do art.º 493º nº1 do Cc, razão pela qual é responsável pelo ressarcimento dos danos que a autora suportou junto de terceiro lesado pela obra executada pelo 2º réu, enquanto subempreiteiro (..)”.
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Ora nada temos a censurar ao assim decidido com o que se concorda integralmente.
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4- A questão do pedido de “ação lateral” formulado na petição inicial contra o 2º Réu.
Pretende a Ré recorrente que, no caso de vir a ser condenada, lhe seja permitido exercer nestes autos a ação de regresso contra o 2º Réu.
O tribunal recorrido e verteu sobre essa questão o seguinte: “Apurada a existência da obrigação de indemnizar a cargo da 1ª ré, sob a esteira do disposto no art.º 493.º, nº1 do CPC e abordado o direito de regresso entre esta ré e o 2º réu, e ainda que o ato lesivo tenha sido cometido por este último (por trabalhador a seu mando), a verdade é que o Tribunal não pode reconhecer a existência de qualquer direito indemnizatório da 1ª ré contra o 2º réu por tal violar o princípio do dispositivo, dado que a autora só formulou o pedido contra o 2º réu, caso a 1ª ré não viesse a ser condenada, ou seja, um pedido subsidiário, não competindo, nesta sede, o Tribunal apreciar o exercício desse direito entre os réus.”
Concorda-se com o assim decidido.
Efetivamente, como emerge do petitório formulado, a condenação do 2º Réu foi formulada em via subsidiária, ou seja, apenas para a hipótese de o 1º Réu não ser condenado.
Ora, tendo o pedido principal obtido provimento tudo, a final, se passa como se o pedido subsidiário nem sequer tivesse sido formulado, ou seja, o objeto da ação ficou circunscrito ao pedido principal.
Desta forma, não pode ser exercido o direito de regresso numa ação em que apenas se pede a condenação do devedor principal, ou seja, o titular do direito de regresso deve propor uma ação própria contra o devedor, após ter pago (ou assumir a obrigação de pagar) a dívida ao credor.
Dar guarida à pretensão do apelante seria, como sublinha o tribunal recorrido, violar o princípio do dispositivo.
O referido princípio é um dos princípios fundamentais do processo civil (e de outros ramos do direito processual) que estabelece que são as partes que têm o poder de dispor do objeto do litígio, ou seja, as partes têm a iniciativa de instaurar o processo, definir os seus limites (factos e pedidos), apresentar provas, e podem dispor dos seus direitos materiais dentro do processo, sendo que, o juiz está vinculado aos termos do litígio tal como definidos pelas partes.
Para além disso, seria igualmente violar os limites de condenação a que se refere o artigo 609.º. nº 1 do CPCivil e, nessa decorrência, a permitir invocar a nulidade da decisão [artigo 615.º al. e) do citado diploma legal].
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Improcedem, assim as 53ª a 91ª e, com elas, o respetivo recurso.
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IV-DECISÃO Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelo Réu apelante (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 10 de julho de 2025.
Manuel Domingos Fernandes
Teresa Fonseca
Ana Paula Amorim
_______________ [1] Como ensina o Conselheiro Amâncio Ferreira in Manual dos Recursos em Processo Civil”, 7ª Ed., págs. 172 e 173 “Expostas pelo recorrente, no corpo da alegação, as razões de facto e de direito da sua discordância com a decisão impugnada, deve ele, face à sua vinculação ao ónus de formular conclusões, terminar a sua minuta pela indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos, de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão”. Ou como diz Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 359, “As conclusões são “proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação”. Ora, nada disso fez o recorrente, que se limitou a reproduzir nas conclusões, excetuadas alterações pontuais, o corpo alegatório devidamente numerado. Aliás, diga-se, só não se rejeita o recurso porque o STJ vem entendendo, ao contrário do que defendemos, que isso não é motivo para tal. [2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 348. [3] Cr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1. S1, disponível em www.dgsi.pt. [4] Cf. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt. [5]Um dos principais segmentos da sentença, assim se lhe refere A.S. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Apêndice II–Sentença Cível”, Almedina, 5.ª edição. [6] As principais exceções são, como é sabido, a prova por confissão (na qual, em sentido amplo, podemos englobar o acordo expresso ou tácito das partes), por documentos (autênticos, autenticados ou, em certos casos, mesmo os particulares), que têm força probatória plena, devendo ter-se, ainda, em atenção que para se declarar provados determinados factos a lei determina formalidade especial ou documento (nascimento, casamento, morte, etc.). [7] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11.07.2007 (www.dgsi.pt/jstj), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número. [8] J. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal, I, 1974, pág. 203. A afirmação, embora pensada para o processo penal, é perfeitamente válida para o processo civil ou qualquer outro tipo de processo em que se aprecie prova, sobretudo prova pessoal. [9] Figueiredo Dias, ob. cit., 199 segs. [10] Sem esquecer que no processo mental que subjaz à formação da convicção do juiz nem tudo pode ser racional ou lógico, nele intervindo, não raro, elementos não racionalmente justificados, sem que tal impeça uma convicção objetivada. [11] Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, AAFDL, 1980, pág. 24. Veja-se, também, Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, AAFDL, 1982, pág. 172 e Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º. Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, pág. 7-8. [12] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, 8.ª edição, pág. 147. [13] Veja-se, assim, o disposto no artigo 665.º, n.º 2 do CPC que permite a supressão de um grau de jurisdição, desde que verificados os pressupostos ali mencionados. [14] Conforme se alude expressamente na parte final do n.º 2 do artigo 608.º do CPC.