PAGAMENTO DE RENDAS
MORA DO ARRENDATÁRIO
NOTIFICAÇÃO DO FIADOR
ABUSO DO DIREITO
CADUCIDADE
Sumário

I - A alegação da senhoria em como notificou o fiador da mora do arrendatário é constitutiva do seu direito a ver-se paga por aquele das rendas em falta.
II - Na ausência da alegação, ainda que a mesma venha a resultar da discussão da causa, sob pena de violação do disposto no art.º 552.º/1/d) do C.P.C., do princípio da concentração dos meios de defesa e dos deveres de lealdade e de litigar de boa-fé sob o ponto de vista processual, não é possível dar-se tal matéria como adquirida.
III - O fiador que invoca não lhe ter sido comunicada a mora do arrendatário não age em abuso do direito, mesmo na circunstância de a sua citação ter ocorrido volvido mais de um ano sobre a propositura da ação.
IV - Dessa demora não é possível inferir que o fiador não teria recebido a notificação atinente à mora do arrendatário acaso esta lhe tivesse sido remetida.
V - Existindo domicílio convencionado, deveria ter sido enviada notificação para a morada indicada.
VI - É inútil avaliar se a citação vale como notificação do fiador, se não ocorre dentro dos 90 dias subsequentes ao momento em que o arrendatário não faz cessar a mora.
VII - O exercício do direito do senhorio junto do fiador está sujeito a prazo certo; são-lhe, por isso, aplicáveis as regras da caducidade, nos termos do disposto no art.º 298.º/2 do C.C..
VIII - Não tendo a A., senhoria, efetuado a notificação exigida pelo n.º 5 do art.º 1041.º do C.C. ao R., fiador, não pode, conforme decorre do n.º 6 do mesmo art.º, exigir deste o pagamento das rendas.

Texto Integral

Processo: 379/23.6T8ILH.P1

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Sumário
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Relatora: Teresa Maria Fonseca
1.º adjunto: Carlos Gil
2.ª adjunta: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
“A..., Lda.” intentou a presente ação declarativa de condenação contra “B...” e AA.
Pede que os RR. sejam solidariamente condenados a pagar-lhe € 9000,00 a título de rendas vencidas e não pagas, acrescidos de € 1800,00 de indemnização pela mora.
Alegou que celebrou com a R. um contrato de arrendamento em que o R. interveio enquanto fiador e que se encontram em dívida as rendas vencidas entre abril de 2022 e março de 2023, cujo pagamento peticiona nos presentes autos.
A R. não interveio no processo.
O R. contestou, alegando nunca ter sido interpelado pela A. para o pagamento de rendas em dívida.
Impugnou parcialmente a factualidade alegada pela A., pugnando pela improcedência da presente ação.
Realizou-se audiência final.
Foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenando a R. a pagar à € 10800,00 e absolvendo o R. do pedido.
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Inconformada, a A. interpôs o presente recurso, que terminou com as conclusões que em seguida se transcrevem.
I - O presente recurso versa sobre matéria de facto e direito e incide sobre a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância no processo n.º 379/23.6T8ILH, que correu os seus termos no Juízo de Competência Genérica de Ílhavo, Juiz 1, e que vai aqui impugnada, por com ela não concordar a Autora.
II - Do ponto de vista do direito e atenta a factualidade dada por provada e por não provada, impunha-se que a presente ação tivesse sido dada por totalmente provada e procedente, o que não aconteceu, e importa agora, por via deste recurso, de facto e de direito, reverter.
III - Ora, desde logo, considera a Apelante que não andou bem o Douto Tribunal de Primeira Instância ao considerar não provado o ponto D) dos factos não provados, uma vez que a prova produzida, designadamente o depoimento do Segundo Réu, impunha que o mesmo constasse do elenco dos factos provados. Ora, o Douto Tribunal a quo não podia ignorar que o Segundo Réu reconheceu, durante a sua inquirição, que foi contactado pelo Sr. BB, legal representante da Primeira Ré, por telefone no final do ano de 2022, tendo por isso reconhecido que foi interpelado telefonicamente pela Autora, ora Apelante, na qualidade de legal representante da Primeira Ré e na qualidade de fiador. Veja-se, nesse sentido, a inquirição do Segundo Réu, Sr. AA, Ficheiro áudio “Diligencia_379-23.6T8ILH_2024-11-12_10-02-39”, minutos 00:22:12 a 00:25:01. Em igual sentido, o legal representante da Apelante, Sr. BB, confirmou que interpelou o Segundo Réu por telefone para que ele procedesse ao pagamento das rendas em falta (cfr. Ficheiro áudio: Diligencia_379-23.6T8ILH_2024-11-12_10-28-56, minutos 00:07:31 a 00:09:32.).
IV - Tal reconhecimento do Segundo Réu equivale a confissão, nos termos do art.º 465.º, n.º 1, do CPC, que adquire força probatória plena contra o confitente, nos termos do artigo 358.º, n.º 1 do CC.
V - Para além da confissão do Segundo Réu, confirmada pelo legal representante da Autora, não podia o Douto Tribunal a quo ter olvidado que o Segundo Réu era legal representante da Primeira Ré, pelo que, e salvo o devido respeito, o Segundo Réu tinha pleno conhecimento, na qualidade de legal representante da Primeira Ré e na qualidade de fiador, que se encontravam em dívida as rendas vencidas e não pagas à Autora, aqui Apelante. Aliás, o Segundo Réu reconhece que, quando cessou funções na Primeira Ré no final do ano de 2022, fez questão de transmitir à Primeira Ré que se encontravam rendas em dívida (cfr. Ficheiro áudio “Diligencia_379-23.6T8ILH_2024-11-12_10-02-39”, minutos 00:09:28 a 00:10:17).
VI - Assim sendo, a alegação do Segundo Réu de que não recebeu qualquer interpelação por parte da Autora, ora Apelante, configura uma situação de manifesto abuso do direito, já que o mesmo tomou conhecimento de tal facto na qualidade de legal representante da Primeira Ré e na qualidade de fiador, já que o contacto que o legal representante da Autora tinha da Primeira Ré era o do Segundo Réu e contactou-o nas invocadas qualidades para proceder ao pagamento da quantias em dívida, a título de rendas vencidas e não pagas.
VII - Pelo que, atenta a confissão do Segundo Réu e o depoimento do legal representante da Autora, deverá ser dado por provado o facto não provado D), o que aqui se requer, com as demais consequências legais, devendo o mesmo ser aditado ao leque de factos provados como facto provado 8.
VIII - Sem prescindir, se ainda assim se entender que não deverá ser dado por provado o facto não provado D), o que não se consente, mas apenas se admite por mera hipótese académica, considera-se que, dada a confissão do Segundo Réu, nos termos supra expostos, sempre terá, subsidiariamente, de ser aditado aos factos provados o facto “A Autora comunicou ao 2.º Réu AA a falta de pagamento das rendas relativas ao período entre Março de 2022 e Dezembro de 2022”, uma vez que resulta do depoimento do Segundo Réu que o legal representante da Autora o contactou no final do ano de 2022 (cfr. inquirição do Segundo Réu, Ficheiro áudio “Diligencia_379-23.6T8ILH_2024-11-12_10-02-39”, minutos 00:22:12 a 00:25:01) e que, no âmbito desses contactos, o legal representante da Autora o informou das quantias em dívida, a título de rendas vencidas e não pagas.
IX - Em suma, atenta a prova produzida, quer documental, quer testemunhal, é manifestamente evidente que a sentença, ora em crise, padece de erro no julgamento da matéria de facto, nomeadamente quanto ao facto não provado D, que foi incorretamente julgado e que exige uma devida reapreciação de toda a prova. Assim, requer-se a alteração da matéria de facto, nos termos do art.º 662.º do CPC, nos termos supra melhor expostos, devendo, em conformidade, ser dado por provado o facto não provado D, ou, subsidiariamente, se assim não se entender, ser aditado aos factos provados o seguinte facto: “A Autora comunicou ao 2.º Réu AA a falta de pagamento das rendas relativas ao período entre março de 2022 e dezembro de 2022”, o que se requer, nos termos do art.º 662º do CPC, com as demais consequências legais.
X - A alteração da matéria de facto, nos termos ora requeridos, implicará que a sentença seja revogada e substituída por um acórdão que julgue totalmente procedente por provada a presente ação e que, em conformidade, condene solidariamente os Réus no pagamento à Autora da quantia global de € 10.800,00, o que aqui vai invocado, com as demais consequências legais.
XI - Em todo o caso, entende-se que mesmo que não ocorra tal alteração, analisados os autos de direito, sempre teria de ter sido proferida decisão oposta à proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, por de direito tal exclusivamente se justificar.
XII - A nosso ver, o raciocínio de direito da sentença recorrida não faz sentido, uma vez que, ao contrário do que resulta da sentença, mesmo que o Segundo Réu não tivesse sido interpelado para proceder ao pagamento das rendas em dívida relativas ao período entre março de 2022 e março de 2023, o que não é verdade, conforme se expôs supra, certo é que, em bom rigor e em concreto, se tivesse sido enviada uma interpelação por escrito ao Segundo Réu, tal carta de interpelação não seria rececionada pelo Segundo Réu, já que conforme decorre dos presentes autos o segundo Réu não recebe as cartas que lhe são enviadas.
XIII - Conforme decorre dos presentes autos, a presente ação foi instaurada pela Autora no dia 16-05-2023. A Primeira Ré foi citada no dia 29/05/2023 (aviso de receção junto aos autos em 05/06/2023, com a referência 14663035) e o Segundo Réu foi citado no dia 04/06/2024 na sua morada profissional (aviso de receção junto aos autos em 17/06/2024, com a referência 16301365), depois de várias tentativas de citação via postal e por contacto pessoal por Agente de Execução, e depois de várias diligências da Autora para apurar a morada do Segundo Réu... E questiona-se. O Segundo Réu teria recebido alguma carta de interpelação da Autora? Não, o Segundo Réu não teria recebido nenhuma carta de interpelação da Autora, uma vez que conforme decorre dos autos (cfr. Ofício da Agente de Execução junto aos autos em 19-02-2024, com a referência 157586654), o Segundo Réu já não residia na morada que o mesmo indicou aquando da celebração do contrato de arrendamento não habitacional em 29/12/2021 e também porque não comunicou à Autora qualquer alteração de morada nos termos da cláusula décima sétima do contrato de arrendamento.
XIV - É abusivo invocar que não foi interpelado para proceder ao pagamento das quantias em dívida nos termos do contrato de arrendamento celebrado entre as partes quando é manifestamente evidente nos presentes autos que o Segundo Réu não ia receber nenhuma das cartas de interpelação? Sim, é abusivo. É que a parte invoca que não foi interpelada por escrito, quando em bom rigor e em concreto, tem pleno conhecimento que não ia receber as alegadas cartas de interpelação, até porque já não residia na morada que o mesmo indicou aquando da celebração do contrato de arrendamento não habitacional e também porque não diligenciou pela comunicação da alteração de morada à Autora, nos termos da cláusula décima sétima do contrato de arrendamento, nem diligenciou pela atualização de morada nos termos do disposto na Lei n.º 7/2007, de 5 de fevereiro.
XV - Ademais, o ónus da atualização de morada era do Segundo Réu, que deveria ter comunicado à Autora essa alteração, nos termos da cláusula décima sétima, e deveria ter comunicado no prazo de 30 dias novo endereço postal e promover, junto dos respetivos serviços, a atualização da morada no cartão de cidadão, o que o Segundo Réu não fez claramente com o intuito de não ser contactado/não receber correspondência.
XVI - Acresce ainda que, o Segundo Réu também não logrou provar, até porque tal não decorre dos factos provados, que tenha comunicado qualquer alteração de morada à Autora, nem logrou demonstrar que tenha comunicado à Autora que cessou funções como legal representante da Primeira Ré no final do ano de 2022. Não pode, por isso, o Segundo Réu beneficiar da alegada não interpelação por escrito da Autora, quando é manifestamente evidente que o Segundo Réu não diligenciou por se manter contactável, não tendo comunicado à Autora qualquer alteração de morada, nem tendo propositadamente atualizado a sua morada nos termos da Lei n.º 7/2007, de 5 de fevereiro, tudo com o intuito de se furtar a eventuais interpelações/ notificações e de obstar a eventuais citações judiciais, o que veio a ocorrer nos presentes autos, tendo o Segundo Réu apenas sido citado 13 meses após a instauração da ação.
XVII - Age, por isso, o Segundo Réu em abuso do direito, nos termos do art.º 334.º do CC, ao invocar a alegada não interpelação por escrito por parte da Autora quando o mesmo tem pleno conhecimento que mesmo que lhe fosse enviada alguma carta pela Autora o mesmo não a ia receber, não só porque já não residia na morada indicada no contrato de arrendamento celebrado em 29-12-2021, mas também porque não comunicou qualquer alteração de morada à Autora... Pelo que, atenta a atuação em manifesto abuso do direito, não pode o Segundo Réu beneficiar da invocação do disposto no artigo 1041.º, n.ºs 5 e 6 do Código Civil, o que aqui vai invocado, com as demais consequências legais, devendo, em conformidade, ser revogada a sentença, ora em crise, e ser a mesma substituída por um acórdão que condene solidariamente os Réus no pagamento à Autora da quantia de € 10.800,00, o que se requer, com as demais consequências legais.
XVIII - Sem prescindir, se ainda assim se entender que não ocorre abuso do direito, nos termos supra expostos, o que não se consente, sempre se terá de considerar que a citação realizada na presente ação é suscetível de suprir a alegada falta de notificação do Segundo Réu, prevista no art.º 1041.º, n.ºs 5 e 6 do CC. Salvo o devido respeito, não faz qualquer sentido o raciocínio do Douto Tribunal a quo, nem o raciocínio plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08/05/2023, quanto à consideração de que a Autora apenas poderia reclamar do Segundo Réu o pagamento das rendas vencidas nos 90 dias anteriores à respetiva citação, uma vez que não é essa a conclusão que decorre da lei. Mais acresce que, conforme se referiu supra, a ação foi instaurada pela Autora em 16/05/2023 e apenas por culpa do Segundo Réu, aplicando-se mutatis mutandis tudo o que se alegou supra quanto ao abuso do direito, é que o mesmo não foi citado em tempo útil, como ocorreu com a Primeira Ré, pelo que, salvo o devido respeito, não pode o Segundo Réu beneficiar do alegado prazo de caducidade previsto no art.º 298.º do CC, conforme resulta erradamente da sentença ora em crise, já que, apenas por culpa do Segundo Réu, é que o mesmo foi citado em 04-06-2024, e não em maio de 2023 como a Primeira Ré.
XIX - Assim, subsidiariamente, atenta a atuação em manifesto abuso do direito, não pode, de igual modo, o Segundo Réu beneficiar da invocação do disposto nos artigos 1041.º, n.ºs 5 e 6, e 298.º, n.º 2, ambos do Código Civil, o que aqui vai invocado e requerido, devendo, em conformidade, ser revogada a sentença, ora em crise, e ser a mesma substituída por um acórdão que condene solidariamente os Réus no pagamento à Autora da quantia de € 10.800,00, com as demais consequências legais.
XX - Sem prescindir, se ainda assim não se entender, o que não se consente, mas apenas se admite por mera hipótese académica, diga-se que o Douto Tribunal a quo não poderia ter concluído que “caducou o direito de a Autora exigir o cumprimento das obrigações por parte do fiador.” É que a questão da caducidade não foi invocada pelo Segundo Réu na contestação, nem a mesma é de conhecimento oficioso, pelo que o Douto Tribunal a quo não podia pronunciar-se sobre a alegada caducidade, sendo que, fazendo-o, ocorre a nulidade da sentença prevista no art.º 615.º, n.º 1, alínea e), parte inicial do CPC, o que aqui vai subsidiariamente invocado e deverá conduzir à conclusão de que o Segundo Réu não pode beneficiar da invocação do disposto nos artigos 1041.º, n.ºs 5 e 6, e 298.º, n.º 2, ambos do Código Civil, o que aqui vai invocado e requerido, devendo, em conformidade, ser revogada a sentença, ora em crise, e ser a mesma substituída por um acórdão que condene solidariamente os Réus no pagamento à Autora da quantia de € 10800,00, com as demais consequências legais.
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A A. contra-alegou, finalizando nos seguintes moldes.
1 - A Recorrente veio recorrer da douta sentença que absolveu o 2º Réu e aqui Recorrido de tudo quanto peticionado pela Autora nos presentes autos.
2 - Alegando que “não andou bem o douto Tribunal de Primeira Instância ao considerar não provado o ponto D) dos factos não provados, uma vez que a prova produzida impunha que o mesmo constasse do elenco dos factos provados”.
3 - Não concorda o Recorrido com tais alegações, pelos motivos que de seguida se indicam.
4 - No que concerne ao Recorrido, o Tribunal a quo julgou que não foi feita prova em audiência, no que respeita à realização de quaisquer comunicações dirigidas pela Recorrente ao Recorrido, relativamente à falta de pagamento de rendas por parte da 1ª Ré; “matéria essa que foi expressamente corroborada pelo legal representante da Autora, o qual confirmou, em sede de declarações de parte, nunca ter sido enviada qualquer carta de interpelação ao 2º Réu, na qualidade de fiador”.
5 - No que diz respeito à apreciação da eventual responsabilidade solidária do 2º Réu e aqui Recorrido no pagamento das rendas devidas, resultou da factualidade provada que o Recorrido interveio no contrato de arrendamento celebrado entre as Partes, na qualidade de fiador, tendo assumido a posição de principal pagador e solidariamente com a 1ª Ré com as obrigações assumidas por esta.
6 - Contudo, o que está em causa neste recurso é se a prévia notificação pela Autora e aqui Recorrente ao 2ª Réu e aqui Recorrido, na qualidade de fiador, constitui condição sine qua non para que este último possa ser responsabilizado pelo pagamento das quantias reclamadas nos autos, a título de rendas vencidas e indemnização moratória.
7 - E, nesse sentido, regula o art.º 1041º nº 5 do Código Civil que “caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora nos termos do nº 2, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida”.
8 - E, segundo o nº 6 do art.º 1041º do CC “O senhorio apenas pode exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efetuar a notificação prevista no número anterior”.
9 - Nos autos, não resultou provado que a Autora e aqui Recorrente tenha notificado o 2º Réu e ora Recorrido, na qualidade de fiador, de quaisquer quantias em dívida por parte da 1ª Ré (Arrendatária), previamente à respetiva citação no âmbito da ação principal destes autos.
10 - Ainda que se admitisse que a citação realizada pudesse suprir a falta de notificação prevista no art.º 1041º nºs 5 e 6 do CC, a verdade é que a mesma apenas permitiria à Autora e aqui Recorrente reclamar do Recorrido, na qualidade de fiador, o pagamento das rendas vencidas nos 90 dias anteriores à respetiva citação.
11 - Ora, atente-se nos autos que o 2º Réu e ora Recorrido foi citado para os termos da ação no dia 4 de junho de 2024 e não existe qualquer renda peticionada nos 90 dias anteriores.
12 - Não se encontram preenchidos os pressupostos necessários para a exigibilidade do cumprimento das obrigações poer parte do fiador, tendo caducado o direito da Autora e aqui Recorrente relativamente ao mesmo, pelo que, deverá manter-se inalterada a douta decisão ora recorrida, só assim se fazendo a almeja justiça!
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II - Questões a dirimir:
a - da reapreciação da matéria de facto: se deve ser dado como assente que a A. comunicou ao R. a mora da R. no pagamento das rendas;
b - se o R. age em abuso do direito ao invocar a falta de comunicação pela A. da mora da R. no pagamento das rendas, pois que, ainda que a notificação tivesse ocorrido, não a teria recebido;
c - se a citação supriu a invocada ausência de comunicação do R. pela A. nos termos do art.º 1041.º/5/6 do C.C..
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III - Fundamentação de facto
Factos provados (tal como enunciados na sentença)
1- Em 29 de dezembro de 2021, a Autora e os Réus celebraram um escrito denominado contrato de arrendamento não habitacional com prazo certo e fiança, mediante o qual a primeira declarou dar de arrendamento à 1.ª Ré B..., e esta declarou tomar de arrendamento, o prédio urbano em propriedade total destinado a comércio, sito na Rua ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o n.º ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., declarando igualmente o 2.º Réu AA «obriga[r]-se solidariamente a garantir, pelo prazo de vigência deste contrato, como principal pagador, o bom cumprimento de todas as obrigações que tenham expressão pecuniária, emergentes do presente contrato, para com a ARRENDATÁRIA», renunciando «ao benefício da excussão prévia».
2- Acordaram igualmente as partes que o referido contrato teria a duração de 1 ano, com início no dia 1 de janeiro de 2023 e termo a 31 de dezembro de 2023, renovando-se automaticamente por períodos sucessivos de igual duração, salvo declaração em contrário pelas partes.
3- Na Cláusula Terceira do escrito contratual referido em 1. consta que:
«1. A renda mensal fixada no ano de 2022 é de 700,00€ (setecentos euros), ficando sujeita às seguintes atualizações anuais:
a) A partir de 1 de janeiro de 2023 e até dezembro de 2023 o valor da renda mensal é atualizado para o montante de 900,00€ (novecentos euros).
b) Nos anos seguintes a renda mensal será atualizada em função dos coeficientes legais aprovados por cada ano, tendo como limite mínimo 0%.
2. As Partes acordam e aceitam que, a atualização prevista na anterior alínea a) do número um da presente Cláusula aplica-se automaticamente, sem necessidade de notificação à ARRENDATÁRIA ou outras formalidades.
3. O montante referido no número anterior da presente cláusula será pago no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que disser respeito, por transferência bancária (…)».
4- No ato da assinatura do escrito contratual referido em 1., a 1.ª Ré B... pagou à Autora a quantia de € 1.400,00, correspondente aos meses de Janeiro e fevereiro de 2022.
5- Em fevereiro de 2022, a 1.ª Ré B... pagou à Autora a quantia de € 700,00.
6- Em 13 de março de 2023, a Autora recebeu da 1.ª Ré B... as chaves do prédio identificado em 1., desocupado e livre de quaisquer pessoas e bens.
7- Após a celebração do acordo referido em 1., a 1.ª Ré B... realizou obras no imóvel acima identificado.
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Factos não provados.
A. Além das quantias referidas em 4. e 5., os Réus efetuaram outros pagamentos à Autora.
B. As obras referidas em 7. foram realizadas pela 1.ª Ré B... com o conhecimento e/ou autorização da Autora.
C. A Autora e o 2.º Réu AA acordaram que, por força da realização das obras referidas em 7., a 1.ª Ré B... ficaria desobrigada ao pagamento das rendas relativas aos meses de abril e maio de 2022.
D. A Autora comunicou ao 2.º Réu AA a falta de pagamento das rendas relativas ao período entre março de 2022 e março de 2023.
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IV - Fundamentação jurídica
a - Da reapreciação da matéria de facto
A apelante entende que o facto não provado sob a alínea D) deverá passar a integrar o leque de factos provados.
Está em causa a seguinte matéria:
A Autora comunicou ao 2.º Réu AA a falta de pagamento das rendas relativas ao período entre março de 2022 e março de 2023.
O tribunal de 1.ª instância deu tal matéria como não provada. Considerou que o legal representante da A. aduziu não ter sido enviada carta de interpelação ao R., na qualidade de fiador, das rendas vencidas e não pagas, entre abril de 2022 e março de 2023, no montante global de € 9 000,00, acrescida da quantia de € 1 800,00, a título de mora de 20%, nos termos previstos no art.º 1041.º do Código Civil.
A apelante insurge-se contra a desconsideração do aludido facto. Invoca ter sido confessado pelo R. ter sido contactado por BB, legal representante da R.. Compulsada a prova produzida, constata-se que AA atestou terem sido mantido contactos telefónicos entre o si e o aludido BB: Ele ligou-me, eu liguei-lhe. (…) O Sr. BB ligou-me várias vezes (…) as chamadas foram feitas, foram atendidas. (…) Houve diálogo. Mais ressaltou do depoimento de AA que tinha conhecimento de que as rendas estavam em dívida e, inclusivamente, que chamou a atenção da R. a este propósito.
Em súmula, AA sabia que as rendas não estavam pagas e falava com a senhoria, na pessoa de BB, acerca da omissão de pagamento. Asseverava que as rendas seriam pagas pela R.. Por seu turno, BB falava com AA visando, precisamente, o pagamento.
Deste enquadramento decorre para a apelante que não é correta a consideração do tribunal de 1.ª instância de que não foi comunicada a AA a omissão de pagamento das rendas enquanto fiador. AA bem sabia que as rendas não se mostravam pagas e existia diálogo a este propósito, precisamente no sentido do pagamento.
Afigura-se-nos que a questão não se mostra regularmente contextualizada.
É certo que a matéria de facto deve espelhar de forma concreta, mas tão ampla quanto possível, atentas todas as soluções plausíveis de direito, quanto foi possível apurar, com vista à consecução de um resultado de justiça material.
Não foi, todavia, alegado pela A. e apelante que tenha comunicado ao fiador, o R. AA, a falta de pagamento de rendas pelo senhorio. É o R. AA que, na contestação, alega que a senhoria não lhe comunicou que as rendas estavam em dívida. Em sede de fixação de matéria de facto, o tribunal de 1.ª instância dá como não provado que a comunicação tenha existido. Mais especificamente, o tribunal de 1.ª instância deu como não provado que a A. tenha comunicado ao R. AA a falta de pagamento das rendas relativas ao período entre março de 2022 e março de 2023. É nas alegações de recurso que a A. sustenta que o R. AA deve ser condenado no pedido porque lhe foi comunicada a omissão de pagamento, tendo sido erroneamente dado como não provado que o não foi.
Em conformidade com a alegação - do R. contestante -, o que, em tese, poderia ter sido dado como provado é que a A. não comunicou ao 2.º R. AA a falta de pagamento das rendas relativas ao período entre março de 2022 e março de 2023. É o que corresponde à alegação. Já se viu, porém, que a prova produzida não coincide com a alegação.
Nos termos do art.º 607.º/4 do C.P.C., o juiz toma a decisão ponderando os factos provados.
Dispõe o art.º 5.º/1 do C.P.C. que compete às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
Nos termos do n.º 2 do mesmo art.º, além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
A alegação de que a A. notificou o fiador acerca da mora do arrendatário não constitui, porém, um facto instrumental.
O facto que a recorrente pretende ver introduzido na decisão da matéria de facto é um facto essencial para o direito do senhorio a haver do fiador as rendas em dívida. A respetiva alegação era essencial à procedência da ação no que respeita ao fiador. Ora trata-se de facto não alegado.
Admitir que ao abrigo do disposto no art.º 5.º/2/b) do C.P.C. esse facto pudesse ser introduzido na lide - em todo o caso, sem requerimento da parte interessada no sentido de se prevalecer do facto -, violaria as garantias de defesa do R.. O princípio da concentração dos meios de defesa (de alegação na petição inicial dos factos essenciais da causa de pedir e as razões de direito - art.º 552.º/1/d) do C.P.C. - e de alegação na contestação das exceções - art.º 573º/1/2 do C.P.C.) acarreta a obrigatoriedade da alegação, sob pena de perda do direito de invocação. Não sendo o meio de defesa invocado, fica precludida a possibilidade de a defesa vir a ocorrer mais tarde.
Estão também em jogo a estabilidade das decisões, o dever de lealdade e o dever de litigar de boa-fé sob o ponto de vista processual.
No que respeita especificamente ao facto - não provado - em apreço, trata-se, na verdade, de matéria que não deveria constar, nem enquanto facto assente, nem enquanto facto não provado, já que se trata de facto não alegado. Ora, como se viu, não cabe nos poderes do tribunal aditar facto essencial não alegado, ainda que o mesmo possa resultar do depoimento das testemunhas ou das partes. Não integra o âmbito dos poderes do tribunal conhecer de factos não alegados.
Preceitua o art.º 615.º/1/d do C.P.C. que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Não se nos afigura, porém, estar em causa nulidade.
Ensina Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1984, pp. 144-146: (…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não podia servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art.º 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art.º 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.
Assim, ainda que não esteja em causa, em sentido próprio, uma nulidade, crê-se desadequado introduzir na matéria assente que a A. tenha comunicado ao 2.º Réu AA a falta de pagamento das rendas relativas ao período entre março de 2022 e março de 2023. Como se viu, o tribunal não poderá vir a fazer uso de tal facto.
Deste modo, ainda que não introduzindo o respetivo teor na matéria provada, elimina-se a alínea D) da matéria não assente.
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b - Se o R. age em abuso do direito porque se lhe tivesse sido enviada uma interpelação por escrito tal carta não teria sido recebida.
Argumenta a recorrente que, ainda que tivesse sido enviada carta de notificação ao R. AA nos termos e para os efeitos do preceituado no n.º 5 do art.º 1041.º do Código Civil, este não a teria recebido.
As conclusões da apelante a este propósito são, em síntese, as seguintes:
(da conclusão XII) (…) em bom rigor e em concreto, se tivesse sido enviada uma interpelação por escrito ao Segundo Réu, tal carta de interpelação não seria rececionada pelo Segundo Réu, já que conforme decorre dos presentes autos o segundo Réu não recebe as cartas que lhe são enviadas.
Conclusão XIII - Conforme decorre dos presentes autos, a presente ação foi instaurada pela Autora no dia 16-05-2023. A Primeira Ré foi citada no dia 29/05/2023 (aviso de receção junto aos autos em 05/06/2023, com a referência 14663035) e o Segundo Réu foi citado no dia 04/06/2024 na sua morada profissional (aviso de receção junto aos autos em 17/06/2024, com a referência 16301365), depois de várias tentativas de citação via postal e por contacto pessoal por Agente de Execução, e depois de várias diligências da Autora para apurar a morada do Segundo Réu... E questiona-se. O Segundo Réu teria recebido alguma carta de interpelação da Autora? Não, o Segundo Réu não teria recebido nenhuma carta de interpelação da Autora, uma vez que conforme decorre dos autos (cfr. Ofício da Agente de Execução junto aos autos em 19-02-2024, com a referência 157586654), o Segundo Réu já não residia na morada que o mesmo indicou aquando da celebração do contrato de arrendamento não habitacional em 29/12/2021 e também porque não comunicou à Autora qualquer alteração de morada nos termos da cláusula décima sétima do contrato de arrendamento.
XIV - É abusivo invocar que não foi interpelado para proceder ao pagamento das quantias em dívida nos termos contrato de arrendamento celebrado entre as partes quando é manifestamente evidente nos presentes autos que o Segundo Réu não ia receber nenhuma das cartas de interpelação? Sim, é abusivo. É que a parte invoca que não foi interpelada por escrito, quando em bom rigor e em concreto, tem pleno conhecimento que não ia receber as alegadas cartas de interpelação, até porque já não residia na morada que o mesmo indicou aquando da celebração do contrato de arrendamento não habitacional e também porque não diligenciou pela comunicação da alteração de morada à Autora, nos termos da cláusula décima sétima do contrato de arrendamento, nem diligenciou pela atualização de morada nos termos do disposto na Lei n.º 7/2007, de 5 de fevereiro.
Sendo as normas jurídicas gerais e abstratas, nem sempre conduzem diretamente a soluções de justiça e de equidade. É neste contexto que surge o instituto do abuso do direito, figura recondutível ao âmbito mais vasto da boa-fé expressamente prevista no art.º 334.º do C.C..
Segundo o disposto neste art.º 334.º, é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Ocorre abuso do direito se o detentor de um determinado direito previsto no ordenamento jurídico o exercita desenquadrado da razão que levou o legislador a prevê-lo.
Antes de mais sempre se dirá que os recursos visam a modificação de decisões anteriormente tomadas a propósito de questões previamente suscitadas. Não se destinam, por via de regra, a criar decisões acerca de matéria não submetida ao exame do tribunal de que se recorre. Tal seria, inclusive, suscetível de violar o direito ao contraditório. No recurso está em causa um reestudo e não a pronúncia sobre questões novas.
Ora a questão suscitada pela apelante é inovadora, o que bem se compreende. Surge na esteira da alegação recursiva de que comunicou a mora da arrendatária ao fiador. Esgrime agora a tese de que, mesmo que se entenda que a notificação não se verificou, teria sido inútil o envio de carta de interpelação formal. Isto por os autos espelharem que o fiador não recebe correspondência pela via regular. Ademais, o fiador teria mudado de morada sem que de tal tivesse dado conta à senhoria.
A alegação da apelante de que o R. AA não teria recebido a putativa notificação formal acerca da mora do senhorio não se funda em matéria adquirida para o processo. Esteia-se na análise que faz do processado, procurando extrair consequências jurídicas substantivas das frustradas tentativas de citação.
Em todo o caso, é retrospetivamente impossível afirmar que o R. AA não teria recebido notificação a propósito da situação das rendas acaso esta lhe tivesse sido remetida. O exame da sequência de envio de cartas para citação em momento ulterior é em si mesma insuscetível de demonstrar o que quer que seja a propósito do que teria ocorrido se, em momento anterior, a A. tivesse agido de forma pela qual não agiu. A apelante é livre de acreditar que assim teria ocorrido, em face das dificuldades na citação. Não é, todavia, confirmável que AA não teria percecionado a não enviada notificação escrita.
Assente-se ainda em que, na cláusula 17.ª/1 do contrato, as partes convencionaram domicílio. Todas as notificações e comunicações deveriam ter lugar para as moradas indicadas no proémio. Nos termos do n.º 2 da mesma cláusula 17.ª, comprometeram-se a comunicar a alteração da morada.
A suposição da recorrente não tem, nem enquadramento, nem virtualidade jurídica.
Conclui-se que não é possível sustentar que ao invocar a falta de comunicação o recorrido aja em abuso do direito.
Desatende-se, por isso, a pretensão da recorrente.
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c - Se a citação é suscetível de suprir a alegada falta de notificação do R., nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1041.º/5/6 do Código Civil.
Prescreve o art.º 1041.º/5 do Código Civil que caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora nos termos do n.º 2, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida.
O n.º 2 prevê que o direito à indemnização ou à resolução do contrato cessa, se o locatário fizer cessar a mora no prazo de oito dias a contar do seu começo.
E o n.º 6 que o senhorio apenas pode exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efetuar a notificação prevista no número anterior.
A notificação do fiador a que alude o n.º 5 do art.º 1041.º do C.C., com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2019, de 12-2, deve fazer-se desde a primeira mora e se, após a notificação, se cumularem outras rendas que continuem em falta, deverá dar-se conta da dívida acumulada. Caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida, apenas podendo exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito depois de efetuar a mencionada notificação.
Dos preceitos que vimos de reproduzir decorre que o exercício do direito do senhorio junto do fiador está sujeito a prazo certo. São-lhe, por isso, aplicáveis as regras da caducidade, nos termos do disposto no art.º 298.º/2 do C.C..
É sabido que o fiador relativamente ao qual foi afastado o benefício da excussão prévia responde perante o credor em termos solidários com o devedor. A responsabilidade deste é a medida da responsabilidade daquele (art.º 640.º do C.C.).
Como se lê no ac. da Relação do Porto de 8-5-2023 (proc. 1242/22.3T8PRT.P1, Fátima Andrade), da leitura conjugada dos nºs 5 e 6 do artigo 1041º do CC, infere-se que a sanção prevista pelo legislador para a não notificação do fiador por parte do senhorio em caso de incumprimento do inquilino (que não faz cessar a mora nos termos do nº 2 deste artigo) é a da impossibilidade de exigir o cumprimento da obrigação em falta junto do fiador. Bem assim, a notificação por parte do senhorio ao fiador é condição para o poder demandar ao cumprimento da dívida afiançada.
Por relação com os efeitos da citação na ação em que é pedido o pagamento das rendas, perfilam-se duas teses, a saber:
i - a citação na ação em que é pedida a condenação do fiador no pagamento das rendas em dívida, com base na mora do locatário vale como notificação para efeitos do disposto nos nºs 5 e 6 do art.º 1041.º do C.C., ainda que apenas relativamente às rendas vencidas e não pagas nos 90 dias que antecederam a citação desse fiador (neste sentido, cf. o ac. da Relação de Guimarães de 30-4-2025, proc. 1990/22.8T8BRG.G1, Alexandra Rolim Mendes);
ii - a consideração de que a ausência de notificação à fiadora não afasta a relevância da citação desta, considerando-se realizada a notificação da fiadora com esta citação, sendo-lhe exigível as rendas vencidas e não pagas nos 90 dias anteriores à citação, tornaria inúteis os normativos contidos nos n.ºs 5 e 6 do art.º 1041.º do C.C.; a citação não vale, em qualquer caso, como notificação (neste sentido, cf. o ac. da Relação de Lisboa de 04-07-2023, proc. 1202/22.4T8SXL.L1-7, José Capacete).
No caso concreto, as rendas cujo pagamento é peticionado nos presentes autos são as rendas vencidas entre abril de 2022 e março de 2023. A ação deu entrada em 16-5-2023. O R. AA foi citado em 16-6-2024.
Ainda que a citação valesse como notificação, esta não ocorreu dentro do período legalmente previsto - a última renda em dívida refere-se a março de 2023 e o R. foi citado volvido mais de um ano.
É certo que a apelante pretende que o R. não se pode prevalecer do hiato de tempo digamos que anormalmente longo decorrido entre a propositura da ação e a citação. Trata-se, contudo, de matéria que só em sede de recurso é suscitada. Como é natural, a A. não podia prever a data em que o R. viria a ser citado. Ademais, o art.º 260.º do C.P.C. consagra o princípio da estabilidade da instância, o que implica que, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir. O desenrolar da ação e as respetivas peripécias são inadequadas à obtenção de resultado substancial que o autor deveria poder obter através da alegação.
Torna-se, assim, despicienda a análise da controvérsia enunciada e opção subsequente.
Ainda que assim não se entendesse, diga-se que se nos afigura que, efetivamente, a alegação da notificação do fiador integra o direito do senhorio a ver satisfeito o seu crédito por este. Nada tendo sido alegado, não deve o senhorio ver acolhida a sua pretensão por força de vicissitudes recursivas.
Em conclusão, não tendo a A., senhoria, efetuado a notificação exigida pelo n.º 5 do art.º 1041.º do C.C. ao R., fiador, não pode, conforme decorre do n.º 6 do aludido art.º, exigir deste a satisfação dos direitos de crédito invocados na presente ação, correspondentes ao valor das rendas vencidas e não pagas.
O recurso está condenado a soçobrar.
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar o recurso totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pela apelante/A. por ter sucumbido na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto, 10-7-2025
Teresa Fonseca
Carlos Gil
Ana Paula Amorim