Sumário:
I. Se a motivação dos factos não provados é incompleta e pouco aprofundada ou mesmo se chega a ser deficiente ou errada, são patologias do domínio da impugnação da matéria de facto e não do âmbito da nulidade da sentença por falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
II. Considerando que se mostram expressa e precisamente elencados os factos provados e não provados na sentença recorrida, se na impugnação da decisão da matéria de facto a recorrente não especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, a omissão deste ónus conduz à sua imediata rejeição.
Apelação n.º 48/23.7T8PSR.E1
(1.ª Secção Cível)
Relator – Filipe César Osório
1.º Adjunto – José António Moita
2.º Adjunto – Manuel Bargado
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ACORDÃO NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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I. RELATÓRIO
Ação Declarativa, Processo Comum
1. Identificação das partes
Autora – AA - CONSTRUÇÕES UNIPESSOAL, LDA.
Ré – BB – ENGENHARIA UNIPESSOAL, LDA.
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2. Objecto do litígio – Responsabilidade civil contratual resultante da falta de cumprimento de contrato de empreitada, designadamente falta de pagamento de trabalhos a mais, consubstanciado no seguinte pedido de condenação da Ré:
“Nestes termos, deve a presente Acção, ser Julgada procedente e a R., ser condenada no pagamento à A., da quantia global de 12.105,38€ (doze mil cento e cinco euros e trinta e oito cêntimos) acrescidos de juros vincendos à taxa legal, desde a propositura da presente Acção até completo e integral pagamento, custas e procuradoria.”.
Para o efeito, a Autora alegou essencialmente que no exercício da sua atividade celebrou com a ré um contrato de empreitada tendo em vista a construção de uma moradia e que, para além de ter executado a obra objeto do contrato, executou ainda diversos trabalhos a mais, solicitados pela Ré e no seu interesse, que discriminou, cujo valor global corresponde a €11.375,45, valor que a Ré não liquidou, não obstante as diversas interpelações da autora para tal efeito, acrescendo juros de mora que à data da P.I. perfazia a quantia de €729,93.
Na sua Contestação, a Ré pediu a absolvição do pedido, alegando, em síntese, ter pago todas as quantias devidas no âmbito do contrato de empreitada celebrado com a Autora e desconhecer quaisquer trabalhos a mais que tivessem sido executados pela mesma, os quais afirmou não terem sido acordados, nem autorizados.
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3. Desenvolvimento da instância:
Foi realizada audiência prévia, com prolação de despacho saneador e do despacho a que alude o artigo 596.º, n.º 1, do CPC.
Foi realizada a audiência final e proferida sentença.
Interposto recurso daquela, por Acórdão desta Relação foi determinada a elaboração de nova sentença.
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4. Dispositivo em Primeira Instância:
Foi proferida nova sentença onde se decidiu o seguinte:
“Pelo exposto, julgo totalmente improcedente a presente ação, por não provada, e, consequentemente, absolvo a ré do pedido que contra a mesma foi deduzido pela autora.”.
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5. Inconformada com a decisão, a Autora interpôs recurso de apelação com as seguintes conclusões:
“A) A ora Apelante não se conforma uma vez mais, com a Sentença proferida, na medida em que a mesma julgou, uma vez mais, totalmente improcedente a Acção intentada;
B) Razão pela qual veio a interpor o devido e competente recurso;
C) O Tribunal recorrido, entendeu não dar cabal acolhimento ao Douto Acórdão proferido, por este Venerando Tribunal;
D) Na verdade, limitou-se unicamente a elencar os factos provados e não provados;
E) Contudo não fundamentou a referida situação e a razão pela qual alcançou a prova nos factos provados e a não prova nos factos não provados;
F) Uma vez mais, o Tribunal recorrido, ao não elencar a fundamentação, ou melhor a concreta fundamentação, como veio a ser ordenado pelo Tribunal da Relação, face à matéria provada e não provada, veio a omitir uma situação essencial para a retratação da situação e consequentemente para a devida fundamentação da decisão;
G) O mesmo não deu cumprimento ao disposto no Artº 607 nº 4 do C.P.C., como superiormente decidido;
H) Desconhecendo a parte qual a fundamentação que veio a ser seguida pelo Tribunal recorrido, impedido fica de rebater a mesma;
I) Ou dito de outro modo de valorar os Depoimentos das Testemunhas arroladas, assim como as Declarações de Parte do Legal Representante da A., descritas e transcritas no presente Recurso;
J) A que acresce o Documento, junto pela A., e no qual estribou a sua fundamentação;
K) Não obstante o referido, vejamos, no que às Testemunhas diz respeito, as mesmas confirmaram a existência no local da obra, conforme se encontra descrito, dos trabalhos a que a A., faz referência na sua Acção;
L) As Testemunhas, em causa, não foram de ouvir dizer, mas sim através da presença no local, devido a outros trabalhos por conta de outras Entidades;
M) Prestaram o referido Depoimento de forma isenta e clara, no que respeita às circunstâncias da existência em obra, das situações mencionadas pela A., e que pelo facto de terem sido prestados tais serviços e não liquidados reclama a A., os mesmos;
N) A conjugação dos Depoimentos das Testemunhas com as Declarações de Parte do Legal Representante da A., serão no entender desta, bastantes e suficientes para dar à evidência, a feitura de tais serviços e bem assim o não pagamento destes, razão pela qual veio reclamar os mesmos;
O) No que respeita ao Documento junto pela A., o mesmo reveste força probatória, na medida em que e de acordo com o Artº 376 do C.Civil e os que o antecedem, fará prova plena, quanto às declarações atribuídas ao seu Autor;
P) O Autor do referido documento foi a ora A., através do seu Legal Representante, na medida em que enumera o conjunto de serviços prestados à R., a pedido da mesma e com conhecimento desta, e que esta não liquidou;
Q) O referido documento particular terá força probatória, na medida em que não foi objeto de impugnação pela parte prejudicada pelo conteúdo do mesmo, conforme (Acórdão Relação de Lisboa de 2.10.1997-CJ, 1997 4º-100);
R) Ao não ter decidido este Tribunal, em conformidade quer com a Prova Testemunhal, anteriormente evidenciada, quer com o documento particular, que da presente Acção faz parte, quer ter tido em atenção as Declarações de Parte prestadas;
S) Veio a ser considerado, por este mesmo Tribunal recorrido, improcedente por não provada a referida Acção;
T) Pelo que, vem a A., ora Apelante, requerer e fazer questão de com o presente recurso e nova apreciação, vir a ser alterada a referida decisão;
U) E em consequência, ser julgada a Acção procedente por provada, o que se requer, para os devidos e competentes efeitos.».
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6. Resposta:
Não foram apresentadas contra-alegações.
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7. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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8. Objecto do recurso – Questões a Decidir:
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Deste modo, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem nas seguintes (por ordem de precedência lógica):
1.ª – Nulidade da sentença – Se a decisão de facto carece de fundamentação;
2.ª – Impugnação da matéria de facto;
3.ª – Reapreciação jurídica da causa – Falta de cumprimento da obrigação de pagamento do preço por trabalhos a mais realizados no âmbito de contrato de empreitada.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
9. Em Primeira Instância consignou-se a seguinte fundamentação de facto:
«A) Factos Provados
Resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1) A autora dedica-se à edificação de imóveis e à compra e venda de terrenos.
2) No exercício desta sua atividade, a autora tomou de empreitada uma obra a pedido da ré na povoação de Local 1.
3) Por conta da referida empreitada, a ré veio a liquidar à autora as seguintes importâncias: 19.262,19€, 32.103,65€ e 12.841,44€.
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B) Mais se provou (artigo 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC):
4) A obra referida em 2) antecedente tinha em vista a construção de uma moradia.
5) Pode ler-se na cláusula 6.ª do contrato de adjudicação celebrado entre a autora e a ré para construção da mesma moradia, que a autora comprometia-se “em caso de existir trabalhos a mais à empreitada, de enviar por escrito ou via email para aprovação” da ré.
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Ficaram por provar quaisquer outros factos que se não compaginam com a factualidade apurada nem nela constam, o que se deveu à ausência de prova segura, clara e objetiva quanto à sua ocorrência, que tivesse sido produzida em audiência de julgamento.
Concretamente, não se consideram provados os seguintes factos:
A) No decorrer da empreitada levada a cabo pela autora, esta levou a efeito diversos serviços, a pedido e no interesse da ré, na referida obra, e que não cabiam no âmbito da contratada empreitada, a saber:
- Aumento de pé direito da moradia - € 150,00;
- Painel dupla electro soldada pavimento - € 875,00;
- Cassetes das portas - € 1.766,24;
-Aplicar cassetes a mais - € 30,00;
-Caixas Estores - € 500,21;
-Cortar janelas e centrar as mesmas com as paredes - € 30,00;
-Abrir vão nas paredes onde está a clara boia - € 24,00;
-Laje teria exterior por falta de especialidades - € 200,00;
-Reforço de ferro na laje(pala) - € 525,00;
-Parede dupla nas casas de banho - € 230,00;
-Guarnecer portas e janelas a massa grossa - € 230,00;
-Construção de padieira na porta da garagem - € 95,00;
- Aplicação de curvas de descarga de águas de telhado - € 110,00;
- Muro em frente à moradia com assentamento de quadros - € 350,00;
- Abertura de roços e assentamento de caixas 222ml - € 1.100,00;
-Diferença de preço das platibandas de tijolo para betão - € 5.160,00.
VALOR TOTAL - € 11.375,45
B) A ré, por intermédio do seu sócio gerente, CC, veio a tomar conhecimento montante em causa, face às sucessivas comunicações efetuadas pela autora através do seu sócio gerente, AA.
C) A ré nunca negou tal divida.
D) A ré aceitou os trabalhos desenvolvidos pela autora para o efeito, nunca tendo invocado qualquer defeito ou outro motivo atendível para se esquivar ao pagamento em causa.
E) A falta de pagamento persiste apesar das insistências levadas a efeito pela autora para que o pagamento se processe.
F) Instada para liquidar o montante em divida, a ré nunca negou o débito.
Não se considerou matéria conclusiva ou de Direito.».
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B. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
10. Da nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (cfr. art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC):
A sentença é nula nos seguintes casos (art. 615.º, n.º 1, do CPC):
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
A Recorrente alegou nas suas conclusões o seguinte, referindo-se à sentença recorrida:
«D) Na verdade, limitou-se unicamente a elencar os factos provados e não provados;
E) Contudo não fundamentou a referida situação e a razão pela qual alcançou a prova nos factos provados e a não prova nos factos não provados;
F) Uma vez mais, o Tribunal recorrido, ao não elencar a fundamentação, ou melhor a concreta fundamentação, como veio a ser ordenado pelo Tribunal da Relação, face à matéria provada e não provada, veio a omitir uma situação essencial para a retratação da situação e consequentemente para a devida fundamentação da decisão;
G) O mesmo não deu cumprimento ao disposto no Artº 607 nº 4 do C.P.C., como superiormente decidido;
H) Desconhecendo a parte qual a fundamentação que veio a ser seguida pelo Tribunal recorrido, impedido fica de rebater a mesma;».
Da análise destas conclusões – que, de resto, delimitam o objecto do recurso – parece resultar a invocação de nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão prevista no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, para efeitos do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC.
Esta questão já havia aido abordada no Acórdão anterior proferido nos presentes autos em que se considerou, para além do mais, que no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/10/20231 (Cristina Neves, proc. n.º 525/21.4T8LRA.C1, www.dgsi.pt):
“Em cumprimento deste dever de assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo, exige-se não só a indicação dos factos provados, como dos não provados e ainda, a indicação do processo lógico – racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes, conforme o disposto no artº 607º, nº 4 do CPC.
Sendo imprescindível a um processo equitativo, por só através do seu escrupuloso cumprimento se salvaguardar as garantias das partes possibilitando a sua cabal reacção, em caso de discordância (mormente através do recurso ao disposto no artº 640 do C.P.C.), a sua não observância, pela total falta de indicação dos factos provados ou dos não provados, constitui fundamento de nulidade da decisão.
Com efeito, decorre do disposto no artº 607, nº4 do C.P.C. que o juiz deve declarar quer os factos que julga provados, quer os que julga não provados. Esta indicação não se basta com meras remissões para os articulados, nem com a indicação de que os não provados são todos os que não resultarem provados. Tal afirmação equivale a nada dizer.
Cumpre ao magistrado judicial, em cumprimento do disposto no nº 4, do artº 607 do C.P.C., indicar de forma concreta os factos relevantes e controvertidos que julgou não provados, fundamentando a sua decisão, em conformidade com o disposto nos nºs 4 e 5 deste preceito.”.
E ainda no recentíssimo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26/09/20242 (Manuel Bargado, proc. n.º 7114/15.0T8STB.1.E1, www.dgsi.pt), onde se sumariou o seguinte:
“I - A obrigação de fundamentação das decisões judiciais tem a função de permitir um controlo interno (das partes e instâncias de recurso) do modo como o juiz exerceu os seus poderes.
II - A fundamentação visa ainda expor os motivos determinantes da decisão para a opinião pública, devendo o juiz demonstrar a consistência dos vários aspetos da decisão, que vão desde o apuramento da verdade dos factos na base das provas, até à correta interpretação e aplicação da norma jurídica aplicável.
III - A Relação pode oficiosamente anular a decisão que omita integralmente a matéria de facto.”.
De igual modo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/06/20233 (Maria João Matos, proc. n.º 3096/17.2T8VNF-J.G1, www.dgsi.pt), sumariou-se o seguinte:
“I. É deficiente a decisão proferida pela 1.ª instância quando o que tenha dado como provado e como não provado não corresponda a tudo o que, de forma relevante, foi previamente alegado pelas partes; e constituirá o grau máximo dessa deficiência a omissão total de fundamentação de facto, justificando a anulação oficiosa da decisão de mérito assim proferida, nos termos do art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC.
II. A possibilidade de alteração oficiosa da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no art. 662.º, n.º 2, do CPC, não pode ser feita de forma tão ampla que retira a garantia, legal e constitucional, do duplo grau de jurisdição na apreciação, julgamento e decisão da matéria de facto; e, assim, será inaplicável quando tenha ocorrido omissão absoluta de fundamentação de facto.”.
Com efeito, no caso concreto em apreciação, o objecto do litígio consiste essencialmente em saber se a Autora realizou certos trabalhos “a mais” que elencou detalhadamente, por certos montantes que especifica, a pedido e no interesse da Ré, entre outros, ou seja, este é o cerne, o núcleo essencial da fundamentação de facto da pretensão da Autora, contudo, tal factualidade não constava elencada nos factos não provados da sentença anteriormente prolatada pela Primeira Instância.
Aliás, a fundamentação de facto da sentença em causa não continha a descrição de qualquer facto não provado.
Salientou-se ainda no anterior Acórdão proferido nos presentes autos que não se pode extrair da formulação vaga e genérica adoptada pela anterior sentença a que factos concretos se refere a Primeira Instância, o que desde logo inviabilizava que possa a recorrente, nesta parte, lançar mão do disposto no art.º 640.º, do C.P.C., óbice que igualmente se verifica em relação ao tribunal ad quem, pelo desconhecimento da realidade fáctica que a Primeira Instância considerou não provada.
Esta omissão determinou efectivamente a nulidade da primeira sentença recorrida, por se integrar nos fundamentos de nulidade previstos no art. 615.º, n.º 1, al. b) do CPC.
No entanto, analisada a nova sentença proferida pela Primeira Instância constata-se que foram especificados expressamente os factos não provados, como resulta claramente da mesma e que acima se mostram elencados nas alíneas A), B), C), D), E) e F).
A motivação dos factos provados e não provados é a seguinte:
“Ficaram por provar quaisquer outros factos que se não compaginam com a factualidade apurada nem nela constam, o que se deveu à ausência de prova segura, clara e objetiva quanto à sua ocorrência, que tivesse sido produzida em audiência de julgamento.
(…)
A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada, à luz dos princípios que regem a matéria, da prova produzida em sede de audiência final, tendo sido valorada, desde logo, a prova testemunhal dos autos.
Assim, começou por ser ouvido DD, o qual trabalhou numa moradia da ré em Local 1 em março de 2022. Esta testemunha referiu ter-lhe sido dito que a autora tinha executado uma empreitada nessa moradia em data anterior, tendo confirmado que nela existiam, naquela data (março de 2022), cassetes de portas, caixas de estores, casas de banho com parede dupla, uma padieira construída na porta da garagem, curvas de descarga de águas no telhado, um muro exterior e vários roços abertos, desconhecendo quem pediu tais trabalhos, em que condições, quem os executou e o seu valor.
Contribuiu, com o depoimento que prestou - aqui sumariado, à semelhança do que sucederá com o seguinte, no que foi considerado essencial -, apenas para prova do Facto Provado 2).
A testemunha EE também executou trabalhos numa moradia da ré em março ou abril de 2021, tendo confirmado a existência na moradia de cassetes de portas, caixas de estores, portas e janelas guarnecidas com massa grossa, curvas de descarga de águas no telhado, de um muro no exterior (em frente à moradia) e de alguns roços abertos no imóvel, desconhecendo também o valor desses trabalhos, como foram contratados, por quem e o seu valor.
Contribuiu também, com o depoimento que prestou, apenas para prova do Facto Provado 2).
Não obstante a insuficiência/escassez da prova testemunhal, a autora, na pessoa do seu legal representante, prestou declarações de parte e nelas confirmou genericamente o teor da petição inicial.
Poderá tal ser suficiente para dar por provados os demais factos vertidos na petição inicial ?
Como é sabido, a prova por declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, sendo, porém, normalmente insuficiente para valer como prova de factos favoráveis à procedência da ação quando desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou, sequer, a indicie. Isto porque, apesar de o tribunal apreciar livremente as declarações das partes como meio de prova, elas são produzidas por quem tem um manifesto e direto interesse na ação, no processo, razão pela qual poderão ser declarações interessadas, parciais ou não isentas.
Por isso, essas declarações, como princípio, não podem ser consideradas sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, já que se trata da versão da parte interessada, sendo, por isso, de considerar sobretudo como elemento de clarificação das restantes provas.
Ora, as declarações de parte do legal representante da autora em nada vieram clarificar, visto que nenhuma prova havia sido produzida em sede de julgamento que confirmasse ou apenas indiciasse a sua versão dos factos. De facto, as testemunhas nada sabiam sobre os factos essenciais e o documento n.º 4 da petição inicial - mero elenco de trabalhos a mais alegadamente realizados pela autora na obra e estimativa do seu valor em materiais e mão de obra aplicados – nada prova, por ser um documento particular cuja autoria se desconhece, que nem sequer se mostra assinado pela autora ou por quem quer que seja e que contém uma mera estimativa de valores. Por outro lado, do próprio contrato celebrado entre as partes (junto aos autos com a contestação) decorre que os trabalhos a mais a realizar na obra teriam de ser enviados à ré por escrito para que fossem sujeitos à sua aprovação, não se tendo demonstrado tal envio à ré, da forma acordada ou de qualquer outra, de uma listagem de trabalhos a mais executados e, muito menos, a sua subsequente aprovação desses mesmos trabalhos.
Daí apenas terem sido dados por provados os factos vertidos em 1) a 3), estes, aliás, admitidos pela própria ré, e, para além deles, os factos vertidos em 4) e 5), face ao teor das faturas juntas à petição inicial e dos documentos juntos com a contestação, nomeadamente o contrato de adjudicação.».
Nesta sequência, é necessário atentar que neste domínio, importa distinguir as nulidades da sentença (cfr. art. 615.º, do CPC) de outras patologias de que pode padecer a sentença e que podem ter consequências diversas daquelas.
Aliás, como refere Abrantes Geraldes4, “[a]cresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso.”.
Daqui resulta que a referida motivação dos factos não provados efectivamente não é muito completa e aprofundada mas esta patologia não acarreta uma total ausência de fundamentação.
Com efeito, na sentença recorrida foi exaustivamente elencada a factualidade não provada e indicada a fundamentação tida por necessária.
Se a motivação dos factos não provados é incompleta e pouco aprofundada ou mesmo se chega a ser deficiente ou errada, são patologias do domínio da impugnação da matéria de facto e não do âmbito da nulidade da sentença por falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Deste modo, em suma, não ocorreu a apontada nulidade da sentença.
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11. Impugnação da matéria de facto
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está sujeita a determinadas regras ou ónus sob pena de rejeição e o incumprimento destas regras também deve ser oficiosamente conhecido.
Dispõe o art. 640.º, do CPC, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:
1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 – O disposto nos 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do no 2 do artigo 636.º.
Então, daqui resulta desde logo que o recorrente tem de especificar obrigatoriamente, sob pena de rejeição:
1.º - Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
2.º - Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
3.º - A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas;
4.º - E quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A previsão destes ónus tem razão de ser, quer para garantia do contraditório, quer para efeito de rigorosa delimitação do objeto do recurso, até porque o sistema consagrado não admite recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, não é compreensível que a verificação do cumprimento de tais ónus se transforme num exercício meramente burocrático5.
Já foi objecto de debate saber se os requisitos do ónus impugnatório devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso. A este propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023 (processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1)6 uniformizou a jurisprudência do seguinte modo: «Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa.».
Vejamos então no caso concreto em apreciação se a Recorrente especifica nas suas conclusões os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
É necessário atentar que na sequência do primeiro recurso de apelação interposto pela Recorrente da primeira sentença proferida os autos, foi proferido Acórdão nos presentes autos a determinar que fossem elencados os concretos factos não provados, precisamente para permitir à Recorrente especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
Com efeito, se a sentença anterior não se elencou os factos não provados, não se poderia exigir que a Recorrente desse cumprimento ao ónus imposto pelo art. 640.º, do CPC, acima transcrito.
Contudo, agora, uma vez elencados os factos não provados, constata-se que a Recorrente continua a não especificar – nem nas conclusões nem no corpo das alegações – quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, como exige o disposto no art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC.
Mas desta vez, não existe qualquer justificação para tal falha porque a sentença recorrida elencou exaustivamente tais factos não provados nas alíneas A), B), C), D), E), F).
E não se diga que pela leitura das conclusões ou do corpo das alegações a mera referência genérica a “trabalhos a mais” é bastante para se compreender quais os pontos de facto não provados que estão em causa.
No caso concreto não é possível saber, com a necessária segurança, qual a matéria de facto impugnada.
Nesta sequência, verifica-se que a Recorrente apenas tece considerações vagas e genéricas sobre alguns meios de prova, mas não especifica quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados nem especifica a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Com efeito, para ilustrar o caso concreto, basta atentar que os seguintes trechos das conclusões da Recorrente referem, apenas vagamente, o que se prende impugnar, a título meramente exemplificativo: “K) Não obstante o referido, vejamos, no que às Testemunhas diz respeito, as mesmas confirmaram a existência no local da obra, conforme se encontra descrito, dos trabalhos a que a A., faz referência na sua Acção; M) Prestaram o referido Depoimento de forma isenta e clara, no que respeita às circunstâncias da existência em obra, das situações mencionadas pela A., e que pelo facto de terem sido prestados tais serviços e não liquidados reclama a A., os mesmos; N) A conjugação dos Depoimentos das Testemunhas com as Declarações de Parte do Legal Representante da A., serão no entender desta, bastantes e suficientes para dar à evidência, a feitura de tais serviços e bem assim o não pagamento destes, razão pela qual veio reclamar os mesmos;”.
Deste modo, podemos afirmar que a Recorrente não cumpriu minimamente com os exigidos ónus que permitem apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto, rejeitando-se a mesma.
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12. Reapreciação jurídica da causa:
Depois de qualificar o acordo estabelecido entre as partes como contrato de empreitada, a sentença recorrida considerou o seguinte na sua fundamentação jurídica:
«Qualificado o contrato, importa agora apurar se a autora tem ou não direito a receber da ré a quantia peticionada.
Para tal importava apurar se, depois e/ou durante a execução da obra contratada, foram pedidos à autora trabalhos a mais por parte da ré, de forma verbal ou escrita, se tais trabalhos foram executados pela primeira e aprovados pela segunda e, em caso de resposta afirmativa, apurar então qual o valor dos materiais e mão-de-obra aplicados pela autora na execução desses mesmos trabalhos e se os mesmos lhe foram pagos pela ré.
Cabia, portanto, à autora, e desde logo, provar que realizou trabalhos acrescidos na obra e que a ré (dona da obra) lhos solicitou e os aprovou ou, pelo menos, que não manifestou oposição à sua concretização, não tendo determinado a suspensão ou cessação dos referidos trabalhos.
Feita tal prova, cabia ainda à autora provar o valor desses mesmos trabalhos a mais, a interpelação da ré para pagamento dos mesmos e a falta injustificada de tal pagamento.
Só com tal prova poderiam os trabalhos indicados nos autos ter de ser pagos à autora, tanto mais que em termos de regras gerais sobre o ónus da prova, opera o preceituado no disposto no artigo 342.º do Código Civil: àquele que invoca um direito, cabe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo (n.º 1).
Ora, a autora não conseguiu sequer comprovar a solicitação, por parte da ré, de quaisquer trabalhos que não coubessem no âmbito da contratada empreitada e que, por isso, constituíssem trabalhos a mais, não tendo ainda conseguido provar a execução de quaisquer trabalhos desta natureza, a sua aprovação pela ré, o seu valor unitário e/ou global e a realização de qualquer interpelação à última para pagamento.
É, assim, manifesto que o pedido da autora tem de improceder, com a consequente absolvição da ré do pedido.».
Ora, considerando o insucesso, por rejeição, da impugnação da decisão da matéria de facto, perante a factualidade provada resta apenas confirmar o enquadramento jurídico efectuado pela sentença recorrida, ao qual aderimos.
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13. Responsabilidade Tributária:
As custas do recurso de apelação são da responsabilidade da Recorrente.
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III. DISPOSITIVO
Nos termos e fundamentos expostos,
- Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente/Autora e confirmar a decisão recorrida.
- Custas do recurso de apelação são a cargo da Recorrente.
- Registe e notifique.
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Évora, data e assinatura certificadas
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Relator – Filipe César Osório
1.º Adjunto – José António Moita
2.º Adjunto – Manuel Bargado
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1. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/50ec74c6537e635280258a52003879fc?OpenDocument↩︎
2. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/0cca2052bc3f5c5d80258bb7002c967a?OpenDocument↩︎
3. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/d286fe45c7d7423c802589d4004ce829?OpenDocument↩︎
4. Geraldes, António, A. et al. Código de Processo Civil Anotado Vol. I - Parte Geral e Ação Declarativa. Disponível em: Grupo Almedina, (3rd Edição). Grupo Almedina, 2022, pág. 793.↩︎
5. António Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol. I, Almedina, 2022, pág. 831.↩︎
6. https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/12-2023-224203164↩︎