ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REVISTA EXCECIONAL
DESPACHO DO RELATOR
DESPACHO SOBRE A ADMISSÃO DO RECURSO
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
INCUMPRIMENTO
REJEIÇÃO
RECURSO
Sumário


I - Compete à Formação decidir sobre a verificação dos pressupostos de admissão da revista excepcional, nos termos do art.º 672 n.º 3 do CPC.
II - Tal decisão pressupõe o cumprimento dos ónus a cargo do Recorrente, nos termos do art.º 672 n.º 2.
III - Se não forem cumpridos esses ónus, a Formação não terá matéria nem para analisar, nem sobre a qual decidir, podendo o relator desde logo proferir o despacho de rejeição do recurso, em conformidade com o disposto no art.º 672.º n.º 2 do CPC.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 7.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I - RELATÓRIO

AA intentou o presente processo especial de INVENTÁRIO para partilha de bens subsequente ao divórcio, contra:

BB, ambos melhor identificados nos autos.

Nomeada cabeça de casal, a Requerida apresentou relação de bens.

Notificado do respectivo teor, o AA apresentou reclamação contra a relação de bens, pugnando pelo aditamento de duas verbas ao passivo, em que figura ele próprio como credor.

Em resposta, a cabeça-de-casal sustentou que a pretensão manifestada pelo reclamante “é frontalmente incompatível com a data em que se produzem os efeitos patrimoniais do divórcio, entre os cônjuges”., e que “as verbas que a cabeça-de-casal relaciona com os nºs 3 e 4 representam os montantes pagos pelo reclamante após a propositura da acção de divórcio que a cabeça-de-casal reconhece constitui um crédito do reclamante na proporção de metade”.

Realizada audiência para produção de prova, com inquirição das testemunhas indicadas pelas partes e junção de documentos, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:

Julgo improcedente a reclamação produzida pelo interessado AA contra a relação de bens apresentada pela cabeça de casal BB e, em consequência, não reconheço as duas verbas do passivo, referentes aos créditos de que o interessado se arroga titular.”

Inconformado, AA interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 22-10-2024, julgou o recurso totalmente improcedente e confirmou a decisão recorrida.

Ainda inconformado, vem agora o Requerente interpor recurso de revista excepcional, formulando as seguintes conclusões:

1.º-Espera-se pela intervenção do Venerando Supremo Tribunal de Justiça para a correta e adequada apreciação jurídica da posição processual do ora Recorrente.

2.º-Com interesse direto para o presente recurso tem de se determinar, no âmbito do processo de inventário em curso e inerente reclamação de créditos, que o pagamento dos encargos desde 2005, realizados exclusivamente com o produto do trabalho do Recorrente, não podem ser considerados como um resultado de um proveito comum do casal.

3.ºEste casal apenas existia formalmente existente, mas sem qualquer tipo de comunhão de vida desde essa data, conforme factualmente assente na sentença judicial de divórcio.

4.ºDesta forma, no presente processo ao estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e quando são questionados interesses de particular relevância social.

5.ºPois, a questão dos “proventos do trabalho” dos cônjuges, não levanta dúvidas quanto à sua natureza de bens comuns.

6.ºContudo, o problema que se levanta prende-se com a noção de comunhão patrimonial e de vida em comum de um casal quando comprovadamente aceite por ambos os cônjuges, cessou anos antes do divórcio.

7.º Assim, nestes casos, o património conjugal constituído pelos bens comuns do casal, vinculado ao fim de servir de suporte económico à sociedade conjugal, persiste tal obrigação ou tal ónus uma vez terminada a vida em comum dos ainda cônjuges, naquilo que respeita aos rendimentos laborais de cada uma das partes?

8.ºA resposta deve ser negativa, não se pode considerar comum o produto do trabalho gerado exclusivamente por um dos cônjuges que fica amarrado a um objetivo de comunhão que deixou de existir.

9.ºEsta dúvida suscitada constitui uma questão de elevado relevo jurídico e de interesse social, considerando a existência de milhares de situações certamente idênticas neste campo.

10.ºEstamos perante uma matéria transversal a outras relações de cessação de vida conjugal e consequente partilha patrimonial dos dissolvidos casais e desta forma merecedora da devida apreciação deste Venerando Tribunal Superior, cfr. art.º 672.º n.º 1 alíneas a) e b) e n.º 2 alíneas a) e b) do CPC.

11.ºOra, conforme resulta da lei, o regime de bens traça as regras referentes ao património do casal, definindo a propriedade sobre os bens dos cônjuges, após a celebração do casamento.

12.º No regime da comunhão de adquiridos, todos os bens adquiridos depois do casamento a título oneroso comunicam-se a ambos os cônjuges.

13.º Mesmo os valores que constituam contrapartida da realização de uma prestação por parte de um dos cônjuges em que ele aplique as suas capacidades físicas ou intelectuais integrarão o património comum.

14.º Determina o art.º 1724.º do CC que fazem parte da comunhão, não só o produto do trabalho dos cônjuges, mas ainda os bens adquiridos por eles na constância do casamento.

15.º O pressuposto de tal imposição legal assenta naturalmente na noção de que este esforço comum visa a persecução de uma vida a dois, em família e com um escopo de pertença a ambos os cônjuges.

16.º Ora, este objetivo não pode ser de aplicação plena, quando a comunhão de vida terminou, conforme reconhecido e fixado judicialmente.

17.º Desde 2005, que o produto de trabalho do Recorrente não foi nem é utilizado para continuação e enriquecimento do fim comum do casal que se encontrava separado e sem vida em conjunto.

18.º A partir de data anterior ao divórcio e à propositura da ação judicial deixou de existir uma contribuição para o património em comunhão dos cônjuges que se separaram de facto, sem intenção de uma retoma de vida em comum.

19.º O trabalho do Recorrente para suporte económico da sociedade conjugal, deixou de existir a partir de 2005, conforme determinado na douta sentença de divórcio de fls.

20.º Aceitarmos o contrário estamos a decidir contra matéria julgada como assente e provada que determinou a inexistência de uma comunhão de vida e economia conjunta do casal desde 2005, beneficiando indevidamente a Recorrida do trabalho e da capacidade de ganho do Recorrente, com quem não mantinha qualquer comunhão de vida e de matrimónio.

21.º O fim do art.º 1724.º alínea a) do CC visa um uso do produto dos rendimentos a uma afetação específica de comunhão de uma vida e de uma vontade comum do casal na prossecução dos objetivos do seu casamento e da respetiva família.

22.º Não se fala aqui do património comum que se encontra estabilizado, mas sim dos vencimentos do Recorrente que resultam do seu trabalho individual e que já nada tem a ver com o sustento de um casal que deixou de existir.

23.º Tal questão é merecedora de ser esclarecida e estabilizada em termos jurisprudenciais.

24.º A posição da Recorrente encontra apoio na jurisprudência e invoca-se a douta decisão: Ac. TRC de 15 de janeiro de 2013, Proc. n.º 1930/09.0T2AVR-D.C1,

25.º Com relevância para a decisão a formular, está violado pela sua indevida apreciação e interpretação o teor do art.º 1724.º alínea a) do CC.

Deve, pois, a douta decisão ser revogada e substituída por douto acórdão que consagre a posição articulada do Recorrente com as legais consequências.

Assim se fará JUSTIÇA.


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A Recorrida pronunciou-se pela inadmissibilidade legal do recurso.

*


Afigurando-se não ser admissível o recurso de revista excepcional, foi proferido despacho no qual se determinou a notificação das partes nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 655.º do CPC.

O Recorrente veio pronunciar-se no sentido de a ratio da norma legal constante do art.º 1724 a) do Código Civil , envolver questão “de elevado relevo e interesse social, pois torna-se necessário clarificar uma situação para verdadeira definição da finalidade da comunhão conjugal e do sentido de perpetuamento da mesma no âmbito de um casamento que terminou e não passa de uma mera formalidade. A defesa de um interesse colectivo dos cidadãos merece a necessária clarificação de se definir que o património adquirido durante a união pertence efectivamente ao casal, não fazendo sentido tal obrigação/dever continuar depois de efectivamente cessada a vida em comum”. Defende que as alíneas a) e b) do art.º 672-º do CPC encontram-se devidamente preenchidas no recurso recorrido.

Por sua vez, a Recorrida reafirma o seu entendimento de que o presente recurso não deve ser admitido.


*


Foi proferida decisão singular na qual se entendeu não estar cumprido o ónus a cargo do Recorrente, previsto nas alíneas a) e b) do art.º 672.º n.º 2, do CPC, e por consequência rejeitou-se liminarmente o recurso de revista excepcional.

*


Inconformado com a decisão singular, o Recorrente vem dela reclamar para a conferência, argumentando nos seguintes termos:

A douta decisão singular de fls., alvo da presente reclamação para a conferência, viola manifestamente o disposto no n.º 3 do art.º 672º do CPC, uma vez que, nos termos da aludida norma legal, a apreciação preliminar sumária cabe a uma formação do Supremo Tribunal de Justiça constituída por três Venerandos Juízes Conselheiros e não a um único Juiz Conselheiro.

Ora, o Recorrente encontra-se a cumprir todos os requisitos legais ao ter interposto o presente recurso com base nas alíneas a) e b) do art.º 672.º do CPC, por estarmos perante uma situação de relevância jurídica e com elevado interesse social, no sentido que o pagamento dos encargos do apenas formal casal desde 2005, terem sido realizados exclusivamente com o produto do trabalho do Recorrente, não poderem, assim, ser considerados como um resultado de um proveito comum do casal apenas existente em papel, mas sem qualquer tipo de comunhão de vida, conforme factualmente foi assente.

O Recorrente pede a este Venerando Tribunal a apreciação das consequências da existência da questão dos “proventos do trabalho” dos cônjuges, na aceção de contraprestação pela disponibilização da força de trabalho, pois, na situação de um casal normal, não há dúvida nem controvérsia sobre a sua natureza de bens comuns, mas aqui o problema que se levanta relaciona-se com a noção de comunhão patrimonial e de vida em comum entre cônjuges que, comprovadamente aceite por ambos e reconhecido judicialmente, cessou anos antes do divórcio.

O património conjugal constituído pelos bens comuns do casal, afetado por lei ao escopo de servir de suporte económico à sociedade entre marido e mulher, persiste uma vez terminada de forma comprovada judicialmente a vida em comum dos ainda cônjuges, no que concerne aos rendimentos laborais de cada uma das partes ,situação de relevância jurídica e com elevado interesse social, no sentido que o pagamento dos encargos do apenas formal casal, desde 2005, terem sido realizados exclusivamente com o produto do trabalho do Recorrente, não poderem, assim, ser considerados como um resultado de um proveito comum do casal apenas existente em papel, mas sem qualquer tipo de comunhão de vida, conforme factualmente foi assente.

O Recorrente pede a este Venerando Tribunal a apreciação das consequências da existência da questão dos “proventos do trabalho” dos cônjuges, na aceção de contraprestação pela disponibilização da força de trabalho, pois, na situação de um casal normal, não há dúvida nem controvérsia sobre a sua natureza de bens comuns, mas aqui o problema que se levanta relaciona-se com a noção de comunhão patrimonial e de vida em comum entre cônjuges que, comprovadamente aceite por ambos e reconhecido judicialmente, cessou anos antes do divórcio.

O património conjugal constituído pelos bens comuns do casal, afetado por lei ao escopo de servir de suporte económico à sociedade entre marido e mulher, persiste uma vez terminada de forma comprovada judicialmente a vida em comum dos ainda cônjuges, no que concerne aos rendimentos laborais de cada uma das partes?

Esta é a questão que deverá ser apreciada uma vez que inexiste o escopo de uma vida em comum, considerando o sentido e a ratio da norma legal em apreço (art.º 1724.º alínea a) do CC) que não teve como objetivo algo externo em termos contributivos para um esforço que se pressupõe no espírito da norma em apreço como sendo de ambos numa comunhão conjugal.

Uma decisão judicial sobre esta matéria, é de elevado relevo e interesse social, pois, torna-se necessário clarificar uma situação para verdadeira definição da finalidade da comunhão conjugal e do sentido de perpetuamento da mesma no âmbito de um casamento que terminou e não passa de uma mera formalidade.

Em suma, a posição do ora Recorrente deverá ser considerada como merecedora da devida apreciação deste Venerando Tribunal Superior, pois só assim se fará a costumada Justiça.”

II - O DIREITO

Cumpre apreciar e decidir:

As questões a apreciar são duas:

1 - Se a decisão singular violou o disposto no art.º 672.º n.º3 do CPC

2 - Se o Recorrente não cumpriu os ónus a que estava obrigado por força do disposto no art.º 672.º n.º 2 alíneas a) e b) do CPC.

1 - Nos termos do disposto no art.º 672.º n.º 3 do CPC “a decisão quanto à verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 compete ao Supremo Tribunal de Justiça, devendo ser objecto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes escolhidos anualmente pelo presidente de entre os mais antigos das secções cíveis”.

Não há qualquer dúvida sobre a atribuição de competência à referida Formação para decidir sobre se, num determinado recurso de revista excepcional, determinada questão, identificada pelo Recorrente, apresenta relevância jurídica tal que a sua apreciação seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – alínea a) do art.º 672.º n.º1.

Compete ainda à Formação decidir se, num determinado recurso de revista excepcional, estão em causa “interesses de particular relevância social” – alínea b) do art.º 672.º n.º 1.

Ora bem, para que a Formação possa apreciar e decidir sobre a verificação dos referidos pressupostos de admissão da revista excepcional, é essencial que o Recorrente cumpra os ónus elencados no n.º 2 do art.º 672.º.

Ou seja, o Recorrente tem de identificar com clareza qual a questão jurídica a apreciar excepcionalmente pelo Supremo e as razões pelas quais a apreciação dessa questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e as razões pelas quais os interesses discutidos nessa questão são de particular relevância social.

Nesse caso, a Formação analisará, apreciará as invocadas “razões” e proferirá a decisão em conformidade com o juízo que fizer.

Porém, se não forem cumpridos esses ónus, a Formação não terá matéria nem para analisar, nem sobre a qual decidir, pelo que seria um acto inútil remeter o recurso para a mesma Formação, podendo e devendo o relator desde logo proferir o despacho de rejeição do recurso, em conformidade com o disposto no art.º 672.º n.º2 do CPC.

Por conseguinte, a decisão singular proferida não violou o disposto no art.º 672.º n.º 3 do CPC, posto que a competência ali prevista refere-se à decisão sobre a existência dos pressupostos de admissibilidade do recurso de revista excepcional. Porém, a decisão singular reclamada não conheceu de tal matéria, limitou-se a verificar a falta de cumprimento dos ónus a cargo do Recorrente, o que inviabiliza a apreciação pela Formação e por isso determina a rejeição liminar do recurso , nos termos do disposto no art.º672.º n.º2, nada impedindo que seja o relator a proferir esta decisão.

2 - Importa agora apreciar se o Recorrente não cumpriu os ónus a que estava obrigado por força do disposto no art.º 672.º n.º 2 alíneas a) e b) do CPC.

Não há dúvida sobre a verificação da “dupla conforme”, visto que o acórdão da Relação confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na primeira instância. Nestes termos, conforme estipula o art.º 671.º n.º 3 do Código de Processo Civil1, não é admissível revista, salvo os casos previstos no artigo seguinte, ou seja, precisamente os casos de revista excepcional.

Porém, o recurso de revista excepcional pressupõe o preenchimento dos requisitos gerais de admissibilidade da revista, designadamente dos requisitos relacionados com o conteúdo da decisão recorrida – art.º 671.º n.º1 -, com a alçada e a sucumbência- art.º 629.º n.º1 – com a legitimidade dos recorrentes – art.º 631.º- e com a tempestividade do recurso – art.º638.º 2

Há que verificar ainda se o objecto do recurso visa algum dos fundamentos legais previstos no art.º 674.º.

Assim, para se determinar se é de admitir a revista excepcional, deve começar-se por apurar se, no caso concreto,estão preenchidos os requisitos gerais da admissibilidade da revista, rejeitando-se o recurso, sem necessidade de apreciação dos requisitos específicos, se se concluir que não se mostram verificados tais requisitos.

Ora, no caso em apreço, importa desde logo, averiguar se estão preenchidos os requisitos gerais decorrentes do disposto no art.º 671.º n.º 1 que faz depender a possibilidade de recurso que o mesmo incida sobre “decisão que conheça de mérito da causa ou que ponha termo ao processo (…)”. Ora, é certo que a decisão impugnada não põe termo ao processo, tratando-se, pois, de uma decisão interlocutória, contudo, recai sobre uma questão substantiva. Assim, não se deve considerar englobada na previsão do n.º 2 do art.º 671.º e antes abrangida pelo n.º1 do referido preceito, motivo pelo qual se conclui pela verificação deste requisito geral de admissibilidade do recurso de revista neste caso.3

Não se suscitando dúvidas quanto à verificação dos demais requisitos gerais da admissibilidade do recurso de revista, importa averiguar, seguidamente, da viabilidade da admissão da revista excepcional .

Nos termos do disposto no art.º 672.º n.º 2 , “o requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição4: a) as razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.”

E nos termos da alínea b) do mesmo n.º 2 do art.º 672.º:

o requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição: “as razões pelas quais os interesses são de particular relevância social”.

Devem, pois, “ser indicadas razões concretas e objetivas reveladoras de eventual complexidade ou controvérsia jurisprudencial ou doutrinária da questão, com a consequente necessidade de uma apreciação excepcional com o objectivo de encontrar uma solução orientadora de casos semelhantes.5

Ora, é manifesto que no caso em apreço, o Recorrente não deu cumprimento a esse ónus de indicar as razões pelas quais é necessária a intervenção deste STJ, nem as razões pelas quais os interesses em causa são de particular relevância social.

E, na verdade, nem o poderia fazer, pois no caso em análise, não foi analisada qualquer questão sobre a qual exista controvérsia jurisprudencial ou doutrinária.

Vejamos o excerto do acórdão do Tribunal da Relação que demonstra o que acaba de ser afirmado:

ainda que se considerasse a data da separação de facto a que se reporta o ponto 4. dos factos provados como data da cessação dos efeitos patrimoniais do casamento entre apelante e apelada, nem por isso se poderia concluir pela procedência do incidente de reclamação em causa na presente apelação, visto que não resultou provado6 que os créditos bancários visados na reclamação apresentada pelo apelante, na parte em que transcendem os valores relacionados nas verbas nºs 3 e 4 do passivo tenham sido amortizados com fundos que devessem considerar-se bens próprios do apelante.

Com efeito, como se lê no ponto 1 dos factos não provados, não resultou provado que o interessado AA tenha pago com capitais próprios os valores de €208.182,00 e €30.586,04 ao Banco Santander Totta, durante a pendência do casamento.

Não tendo o apelante impugnado a decisão sobre matéria de facto, não se descortina como pode pretender que este Tribunal considere o inverso do que consta do citado ponto 1. dos factos não provados.

Daí que, tratando-se de factos relativamente aos quais o ónus da prova recaía indubitavelmente sobre o apelante (art.º 342º, nº 1 do CC), e constituindo os mesmos o pressuposto fáctico da causa de pedir do presente incidente, a sua não demonstração conduz inexoravelmente à total improcedência do mesmo.”

Vejamos os factos dados como provados pelas instâncias, para melhor esclarecimento do referido excerto do acórdão:

“1-Os interessados AA e Requerida e cabeça de casal BB, casaram um com o outro, sem convenção antenupcial, no regime de comunhão de adquiridos, no dia ... de ... de 1981.

2-O interessado AA intentou contra a ora cabeça de casal BB, ação de divórcio sem consentimento, cuja petição inicial deu entrada na secretaria deste tribunal no dia ... de maio de 2021, pedindo o decretamento do divórcio entre ambos.

3-Por sentença, transitada em julgado, proferida a ... de setembro de 2022, na acção acima referida, decretou-se o divórcio entre os ora interessados, declarando-se dissolvido o seu casamento.

4-Na supra referida sentença, nos factos assentes, deu-se como apurado que os ora interessados deixaram de partilhar casa, cama e mesa desde o ano de 2005, mas não ficou fixada a data da separação de facto do casal no dispositivo, por nenhuma das partes o ter então requerido.

5-A fracção autónoma designada pelas letras “AH”, correspondente ao primeiro andar direito, com entrada pelo Edifício ..., lote 4.12.01, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., descrito na CRP com o n.º ..82 da freguesia de ... foi adquirida pelos interessados em ........1999.

O Tribunal considerou não provado:

Que o interessado AA tenha pago com capitais próprios os valores de €208.182,00 e €30.586,04 ao Banco Santander Totta, durante a pendência do casamento.”

Como resulta da leitura do acórdão recorrido, decisivo para o indeferimento da pretensão do Recorrente não foi uma determinada e controversa aplicação e interpretação das normas jurídicas relacionadas com o caso, mas sim a falta de prova do “ pressuposto fáctico da causa de pedir do presente incidente” sendo certo que a sua não demonstração conduziu “inexoravelmente à total improcedência do mesmo”.

Não houve, por conseguinte, a discussão de uma questão jurídica relevante, pois o incidente foi julgado improcedente, principalmente, por falta de prova dos factos constitutivos do direito invocado pelo Recorrente.

Conforme tem considerado a jurisprudência desse Supremo Tribunal, “Não cumpre estes ónus quem se limita a referir meras generalidades, pois de acordo com a doutrina mais relevante e a jurisprudência consolidada do STJ o requerente tem de concretizar, com argumentos concretos e objetivos, o relevo jurídico e social das questões em causa. Relevância jurídica, para efeitos da alínea a) do n.º 1 do art.º 672.º do CPC, implicará que a questão suscitada apresente um carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, ou seja controversa ou, porventura inédita, reclamando para a sua solução uma reflexão mais alargada.7

No caso em apreço, não foi dado cumprimento aos ónus a cargo do Recorrente previsto nas alíneas a) e b) do art.º 672.º n.º 2, porque, nas circunstâncias descritas, não havia forma de o fazer, o que sempre determina a rejeição liminar do recurso de revista excepcional.

Com efeito, a invocação da alínea a) do art.º 672.º n.º1 do CPC “pressupõe uma questão de direito que apresente manifesta complexidade ou novidade, evidenciada nomeadamente em debates na doutrina e na jurisprudência, e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça – assumindo uma dimensão paradigmática para casos futuros – se mostre necessária para contribuir para a segurança e certeza do direito.”8

Como já referido, falta de todo a alegação dessas razões sobre as quais a Formação pudesse formar o seu juízo.

Ora, a decisão a cargo da Formação, prevista no disposto no art.º 672.º n.º 3 do CPC, sobre a verificação dos pressupostos referido no n.º 1, pressupõe o cumprimento por parte do Recorrente do ónus de os alegar, sem o que não há objecto para a decisão daquela Formação.

Pelos motivos invocados, deve ser rejeitado liminarmente o presente recurso de revista excepcional, nos termos do disposto no art.º 672.º n.º 2.

III - DECISÃO

Em face do exposto, acordamos na 7.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir a reclamação, mantendo a decisão singular reclamada.

Custas pelo Recorrente

Lisboa, 3 de junho de 2025

Maria de Deus Correia (relatora)

Arlindo Oliveira (vencido conforme declaração infra)

Rui Machado e Moura

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Voto de vencido:

Não está em causa que ao interpor recurso de revista excepcional, tal como o determina o disposto no artigo 672.º, n.º 2, do CPC, o requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição, os fundamentos/razões em que o sustenta, referidos no preceito ora citado, mas sim a quem compete admitir ou rejeitar o recurso, o que como é óbvio, só o poderá ser, no que a este prisma respeita, por se considerar que o requerente alegou ou não, nos termos exigíveis, os pressupostos ali enumerados.

Bem como, previamente, só será admitido o recurso de revista excepcional, desde que verificados os pressupostos de recorribilidade de uma revista “normal”, designadamente, em razão do valor do processo ou da sucumbência, legitimidade, natureza do processo – cf. A. Santos Geraldes, Recursos em Processo Civil, 8.ª Edição Atualizada, Almedina, 2024, pág. 520.

Tanto assim é que remetido o processo ao STJ, o Relator profere despacho liminar, com apreciação dos pressupostos e requisitos gerais, cf. n.º 3, deste preceito e apreciação de eventual inexistência de dupla conforme, caso em que inexistindo qualquer deles, o recurso não poderá ser admitido, como revista excepcional.

De igual forma, cf. autor e ob. cit., pág. 523, “Se for verificada uma situação de dupla conforme decisória, o recurso é rejeitado se o recorrente não tiver invocado qualquer fundamento excecional de revista.

Se, ao invés, verificada ou confirmada uma situação de dupla conformidade, o recorrente tiver invocado algum ou alguns fundamentos excecionais para a admissibilidade da revista (…), o relator determina a remessa à Formação prevista no n.º 3 do art. 672.º que exclusivamente intervém para a apreciação de tais fundamentos”.

Acrescentando, a pág. 524 que “O recurso é rejeitado ou admitido pela Formação consoante a apreciação que faça dos elementos disponíveis …”.

O mesmo defendem Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, Vol. 3.º, 3.ª Edição, Almedina, pág.s 219/20, que ali referem “A remissão do n.º 3 para o seu n.º 1 (…) não parece que possa admitir a interpretação segundo a qual a apreciação de todos os pressupostos, gerais e específicos, do recurso deve caber, sem restrições, à formação de juízes nele referida, nem que permita entender que, no âmbito da reclamação da decisão de inadmissibilidade do relator da Relação, o relator do STJ ganha competência, que tão pouco teve o relator da Relação, para se pronunciar sobre os pressupostos específicos do n.º 1.

Cabe, pois, exclusivamente à formação especializada … apreciar a verificação destes pressupostos e só deles”.

Ora, in casu, o requerente, alega os fundamentos que, na sua óptica, integram os pressupostos a que se alude nas alíneas a) e b), do n.º 1, do aludido artigo 672.º e indicando as razões para tal, em conformidade com o seu n.º 2, como resulta do teor das 25 conclusões do recurso que pretende interpor.

O que reitera no requerimento de reclamação para a conferência.

Considera a Ex.ma Sr.ª Relatora, que aquele o faz em termos que não cumprem os requisitos para tal legalmente exigidos, em consequência do que rejeitou liminarmente o recurso de revista excepcional, com base no “incumprimento dos ónus” de alegação a que o requerente estava obrigado.

A rejeição liminar do recurso, assenta, assim, na consideração de que não foram alegadas, de forma cabal e/ou satisfatória, as razões para tal, o que se reconduz a considerar que não se verificam os requisitos a que se alude no seu n.º 1.

Efectivamente, os n.os 1 e 2, do preceito em referência, não podem ser lidos de forma autónoma, como se não respeitassem à mesma questão e que se reconduz a saber se se verificam ou não os pressupostos para a revista excepcional. Qualquer um dos requisitos enunciados no seu n.º 1, não pode ser dissociado das razões que se invocam para a respectiva verificação, pelo que a competência para rejeitar ou admitir o recurso de revista excepcional só está atribuída à Formação, nos termos do n.º 3.

Daí que, como acima se referiu, citando A. Abrantes Geraldes, verificada a situação de dupla conforme e invocados fundamentos excepcionais para a admissibilidade da revista, o Relator determina a remessa à Formação que tem a competência exclusiva para a apreciação dos pressupostos específicos da revista excepcional.

Pelo que e em conclusão, entendo que o recurso de revista excepcional não deveria ser rejeitado liminarmente e, ao invés, deveria ser determinada a remessa à Formação, nos termos do n.º 3, do preceito em referência.

Lisboa, 3 de junho de 2025

Arlindo Oliveira

_________


1. Serão deste diploma todos os artigos que doravante forem citados sem indicação de proveniência,

2. Vide Acórdão do STJ de 06-07-2023, Processo 929/21.2T8VCD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt e jurisprudência ali citada.

3. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição Actualizada, Almedina, 2022,p.404.

4. Destacado nosso.

5. Acórdãos do STJ de 29-09-2021, Processo n.º 2848/19.0T8PRT.P1.S2 e de 22-05-2024, Processo 3918/05.0TTLSB-A.L1.S2, disponíveis em www.dgsi.pt

6. Destacado nosso.

7. Acórdão do STJ de 11-05-2022, Processo 1924/17.1T8PNF.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt.

8. Acórdão do STJ de 25-09-2024, Processo 3686/22.1T8FAR.E1.S2, disponível em www.dgsi.pt