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ERRO NA DECLARAÇÃO
RETIFICAÇÃO
Sumário
Ainda que a vontade das partes não corresponda à declaração emitida, não pode obter-se por via judicial a retificação da declaração, sendo o negócio celebrado anulável.
Texto Integral
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.
I - Relatório:
AA propôs a presente ação contra BB, também conhecida por CC, e marido DD, EE, FF, GG, HH, II; JJ pedindo a sua condenação:
- a reconhecerem a existência de erro na identificação do prédio rústico donde advém a água que adquiriu por escritura de 06 de novembro de 1998, e que, por via disso, ficou onerado com uma servidão de aqueduto, devendo, em consequência, ser proferida sentença que ordene a retificação dessa escritura de compra e venda, por forma a que dela passe a constar que a água adquirida pelo Autor provém de uma mina explorada no prédio denominado “...”, sito no lugar da ..., União de freguesias ... e ..., concelho ..., inscrito na matriz respetiva sob o art.º ...10.º (anterior art.º ...16º da extinta freguesia ...), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...53;
em alternativa,
- a reconhecerem a existência de erro na identificação do prédio rústico donde provém a água que adquiriu através da escritura de 06 de Novembro de 1998 que, desse modo, ficou onerado com uma servidão de aqueduto;
- a outorgarem instrumento de retificação da sobredita escritura de compra e venda e correspetivos conhecimentos de SISA, devendo, para o efeito, ser notificados pelo autor, através de carta registada com aviso de receção, da data, hora e local onde vai ter lugar a assinatura desse instrumento, bem como na multa diária de € 500,00 por cada dia em que, após a notificação que lhes for feita, não comparecem para a outorga do sobredito instrumento de retificação.
Alegou, em síntese, que por escritura pública de compra e venda, outorgada em 06 de novembro de 1998, comprou a BB e marido, DD, a KK e mulher, EE e a GG e mulher, LL, que nesse ato foram representados pelo procurador, MM, o prédio misto melhor identificado nos autos, bem como “…toda a água explorada na mina localizada perto da extrema norte existente no prédio rústico denominado “...”, ou dos “...”, também conhecida por “Bouça dos ...”, sito no lugar ..., da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz respetiva sob o art. ...6, descrito na Conservatória sob o número ... – ...…”, sendo que essa água encontrava-se “…canalizada por tubo subterrâneo à profundidade média de um metro numa extensão de setecentos metros aproximadamente e na direção norte-sul, que depois de atravessar o caminho e prédios de outros proprietários é recolhida num tanque existente no prédio misto objeto deste contrato e que se destina a gastos domésticos da parte urbana e regra da parte rústica…”, assumindo os vendedores, na mesma escritura, a existência de uma servidão de aqueduto sobre esse prédio rústico, denominado “..., dos “...” ou “Bouça de ...”.
Mais alegou que era para si condição essencial que, com a venda do prédio misto, lhe fosse alienada a água da mina e salvaguardada a servidão de aqueduto.
Posteriormente, quando estava a proceder ao registo da servidão de aqueduto, apercebeu-se que a água, diferentemente do que consta da identificada escritura pública, não provém de uma mina existente na “...”, dos “...” ou “Bouça dos ...”, que foi posteriormente vendida à sociedade comercial EMP01..., Lda., mas antes de uma mina escavada no prédio rústico, denominado “...”, sito no lugar da ..., da mesma freguesia ..., concelho ..., inscrita na matriz respetiva sob o art.º ...10.º da União de freguesias ... e ..., descrito na Conservatória sob o nº ...53, igualmente pertencente aos vendedores que outorgaram aquela escritura pública.
O réu JJ contestou e excecionou a sua ilegitimidade por estar desacompanhado do seu cônjuge e impugnou a matéria constante da petição.
Também os réus BB, DD e EE contestaram e impugnaram a versão do autor.
O réu FF foi citado editalmente, tendo posteriormente sido cumprido o disposto no art.º 21.º do C. P. Civil, com a citação do Ministério Público.
Na sequência da exceção da ilegitimidade passiva invocada pelo réu JJ, foi admitida a intervenção de NN.
Efetuado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, com a absolvição dos réus do pedido.
Inconformado, o autor veio apresentar recurso de apelação que foi julgado parcialmente procedente, anulando-se a sentença com a repetição do julgamento com vista à ampliação da matéria de facto constante dos arts.º 11, 14, 15 e 16 da petição inicial.
Devolvidos os autos à 1.ª Instância, foi realizada nova audiência de julgamento e proferida nova sentença que, mais uma vez, julgou a ação improcedente e absolveu os réus do pedido formulado.
Inconformado, o autor apresentou recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
“1. Violando o disposto no artigo 608º do CPC, o tribunal a quo omitiu a apreciação do pedido formulado na ação, consistente no reconhecimento da existência de erro na identificação do prédio donde provêm as águas adquiridas pela compra e venda, titulada pela identificada escritura pública de 06 de novembro de 1998, pelo que a sentença está ferida de nulidade, prevista no artigo 615º, nº1, al. d) do Código de Processo Civil. 2. Para suprimento dessa nulidade de julgamento, o Tribunal da Relação deverá conhecer do aludido pedido, dando-lhe a devida procedência, declarando que a escritura enferma de erro na identificação do prédio, substituindo-se ao tribunal recorrido, nos termos do art. 665º, nº 2 do CPC. 3. Deve a matéria de facto ser ampliada com os factos constantes do artigo 14º da pi e alterar-se a decisão dos pontos 12 e 13 da matéria de facto, dada como não provada, passando-a para o elenco dos factos provados com a seguinte redação: 18. “Na altura em que foi celebrada a escritura pública de 1998, o outorgante MM que nela interveio como procurador dos vendedores, fez uma errada identificação do prédio rústico em que se localiza a mina onde é explorada a água que então foi vendida ao segundo outorgante, aqui autor”; 19. “Sendo a ... e a ... ambas da propriedade dos seus representados (vendedores), em vez de declarar que a mina de onde procedia a água, objeto de transmissão, ficava situada no prédio denominado “...”, por equívoco ou mera desatenção, declarou que se localizava na “..., dos ... ou dos ...”. 4. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 608º do CPC, fazendo uma incorreta interpretação e aplicação dos artigos 247º e 249º do Código Civil. 5. O que se extrai do artigo 249º do Código Civil é que o simples erro revelado no próprio contexto da declaração apenas dá direito à retificação da declaração e não à anulação do negócio, prevista no artigo 247º, mas não quer significar que a retificação não possa ser ordenada quando se demonstrar, por documentos ou prova testemunhal, haver divergência entre a vontade declarada e a vontade real. 6. Ainda que esse não seja o entendimento jurídico do Venerando Tribunal da Relação, deve pelo menos dar-se procedência ao pedido de reconhecimento da existência de erro na escritura no que concerne à identificação do prédio rústico donde advém a água que o Autor adquiriu por escritura de 06.11.1998, devendo consignar-se que a vontade real do declarante sempre foi considerá-la como originária da “...”, sito no lugar da ..., União de freguesias ... e ..., concelho ..., inscrito na matriz respetiva sob o art.º ...10, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n. ...53”.
Os réus, incluindo o Ministério Público em representação do réu ausente, responderam pugnando pela manutenção da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Antes da admissão do recurso, o Mm.º Juiz que proferiu a sentença pronunciou-se sobre arguida nulidade daquela (despacho de 02/04/2025).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir (consignando-se que estes autos foram distribuídos a uma nova Juiz Relatora porquanto a anterior Exm.ª Juiz Desembargadora Relatora se encontra já jubilada).
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II - Questões a decidir:
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts.º 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por C. P. Civil) -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:
1 - Da nulidade da sentença proferida.
2 - Da impugnação da matéria de facto suscitada pelo autor.
3 - Se, alterada ou não a decisão sobre a matéria de facto, deve ser alterada a decisão de direito.
III - Fundamentação de facto:
Foram considerados provados os seguintes factos:
“1.- Por escritura pública de compra e venda, celebrada no extinto Cartório Notarial ..., no dia 06 de novembro de 1998, o autor comprou a BB, que também usa o nome de CC e marido, DD, a KK e mulher EE e a GG e mulher LL, representados pelo procurador, MM, o prédio misto, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...0º e na rústica sob o art. ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...51, conforme documentos n.ºs 1, 2, 3 e 3 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 2.- Nessa escritura de compra e venda o autor também comprou aos identificados vendedores “…toda a água explorada na mina localizada perto da extrema norte existente no prédio rústico denominado “...”, ou dos “...”, também conhecida por “Bouça dos ...”, sito no lugar ..., da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz respetiva sob o art. ...6, descrito na Conservatória sob o número ... – ...…”, conforme documento n.º 1 junto com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 3.- Nessa escritura de compra e venda consta, além do mais, o seguinte relativamente a essa água: “…canalizada por tubo subterrâneo à profundidade média de um metro numa extensão de setecentos metros aproximadamente e na direção norte-sul, que depois de atravessar o caminho e prédios de outros proprietários é recolhida num tanque existente no prédio misto objeto deste contrato e que se destina a gastos domésticos da parte urbana e regra da parte rústica…”, 4.- … assumindo os vendedores, na mesma escritura, a existência de uma servidão de aqueduto sobre esse prédio rústico, denominado “..., dos “...” ou “Bouça de ...”. 5.- O prédio misto adquirido pelo autor era e continua a ser abastecido, para gastos domésticos da parte urbana e para rega da parte rústica, por água captada numa mina. 6.- Aquando a celebração da escritura pública de compra e venda identificada em 2., o prédio rústico denominado “...”, ou dos “...”, também conhecida por “Bouça dos ...”, sito no lugar ..., da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz respetiva sob o art. ...6, descrito na Conservatória sob o número ... – ..., e o prédio rústico denominado “...”, sito no lugar da ..., da mesma freguesia ..., concelho ..., inscrita na matriz respetiva sob o art. ...10º da União de freguesias ... e ..., descrito na Conservatória sob o nº ...53, eram ambos propriedade dos ora RR. BB, DD e EE, conforme documentos n.ºs 4 a 7 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 7.- Aquando a celebração da escritura pública identificada em 2. e ainda hoje, não existe qualquer aqueduto subterrâneo e/ou captação de água no prédio rústico denominado “...”, ou dos “...”, também conhecida por “Bouça dos ...”, sito no lugar ..., da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz respetiva sob o art. ...6, descrito na Conservatória sob o número ... – .... 8.- Aquando a celebração da escritura pública identificada em 2. e ainda hoje, existia e existe um aqueduto de água subterrâneo no prédio rústico denominado “...”, sito no lugar da ..., da mesma freguesia ..., concelho ..., inscrita na matriz respetiva sob o art. ...10º da União de freguesias ... e ..., descrito na Conservatória sob o nº ...53, igualmente propriedade dos vendedores que intervieram na escritura de 06 de novembro de 1998. 9.- Sucede que, em data que não é possível precisar, o autor apercebeu-se que a água que havia comprado e de que usufrui há mais de vinte anos, ao invés do que consta da identificada escritura pública, não provém de uma mina existente na “...”, dos “...” ou “Bouça dos ...”, que foi posteriormente vendida à sociedade comercial EMP01..., Lda., conforme documentos n.ºs 5 e 6 juntos com a petição inicial, 10.- Ambos os prédios rústicos (... e ...) propriedade dos seus representados (vendedores), ficam situados em lugares distintos, o primeiro (...) no lugar da ... e o segundo (...) no lugar com o mesmo nome. 11.- Não é possível, por mero efeito da gravidade, conduzir qualquer água da “...” para o prédio adquirido pelo A.. 12.- No prédio denominado “...” não existe qualquer aqueduto de água, mina de água ou nascente de água. 13.- Confrontado com semelhante situação, o Autor decidiu requerer a Notificação Judicial Avulsa da primeira Ré, do segundo Réu, da terceira Ré, a título pessoal e na qualidade de cabeça-de-casal da herança do falecido marido, KK, e do quinto Réu, em nome próprio e na qualidade de cabeça-de-casal da herança da falecida mulher, LL, para que, coligados com os restantes herdeiros dos vendedores falecidos, comparecessem no dia ../../2018, no Serviço de Finanças ..., a fim de inscreverem na matriz a água em apreço e retificarem os conhecimentos de SISA, e no dia seguinte (18 de Setembro), no Cartório Notarial da Dra. OO, em ..., para subscreverem o instrumento de retificação da escritura, conforme documento n.º 8 junto com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 14.- Os RR BB, DD e EE foram notificados para o efeito por contacto direto da agente de execução, PP, no dia 13 de setembro de 2018, conforme documento n.º 9 junto com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 15.- Por “Título de compra e venda” outorgado no dia 28 de dezembro de 2018 na Casa Pronta junto da Conservatória do Registo Predial ..., o R JJ adquiriu aos Réus EE, FF, BB, que também usa o nome de CC e marido, DD, GG, HH e II, um prédio rústico denominado “ ...”, composta de pinhal e ..., sita no lugar da ..., ..., da União de freguesias ... e ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...10º, que corresponde ao artigo ...16º da extinta freguesia ..., descrito no Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...53/... (Extinta), pelo preço de 65.000,00€ (sessenta e cinco mil euros). 16.- Os Réus BB, DD e EE recusam outorgar instrumento notarial retificativo. 17.- Por força de tal aquisição o Autor passou, a partir dessa data, a usufruir dessa água, de forma pública, pacífica, continuada e de boa fé, à vista de toda a gente, sem oposição nem embargo de ninguém, com ânimo, espírito e convicção de quem julga exercer e exerce os poderes inerentes ao direito de propriedade, de que é titular”.
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Com relevo para esta apelação, não foram considerados provados os seguintes factos:
“12.- Na altura em que foi celebrada a escritura pública de 1998, o outorgante MM, que nela interveio como procurador dos vendedores, laborou num erro notório na identificação do prédio rústico em que se localiza a mina onde é explorada a água que então foi vendida ao segundo outorgante, aqui Autor. 13.- Na verdade, sendo ambos os prédios rústicos (... e ...) propriedade dos seus representados (vendedores), o procurador, em vez de declarar que a mina de onde procedia a água, objeto de transmissão, ficava situada no prédio denominado “...”, sustentou, por equívoco, que se localizava na “..., dos ... ou dos ...”.
IV - Do objeto do recurso:
O autor veio arguir a nulidade da sentença, com fundamento na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do C. P. Civil, alegando que os pedidos que formulou não pressupõem apenas a existência de erro na declaração, mas também uma divergência entre a vontade das partes e a declaração efetuada, não tendo sido apreciado o pedido que foi formulado para outorga de um instrumento de retificação.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (vide, neste exato sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/10/2018, proc. 1716/17.8T8VNF.G1 inwww.dgsi.pt).
Apreciemos.
A sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou apreciasse questões de que não podia tomar conhecimento (alínea d) do n.º1 do art.º 615.º do C. P. Civil).
A existência do erro é o pressuposto dos pedidos que foram formulados pelo autor. O Tribunal entendeu que esse erro não ficou demonstrado e, nessa medida, julgou a ação improcedente.
Nenhum das pretensões deduzidas pelo autor deixou de ser apreciada e, por isso, a sentença proferida não é nula.
Saber se a existência de erro ficou demonstrada, seja o erro na declaração ou o erro como divergência entre a declaração emitida e a vontade das partes, e se sua verificação permitia a procedência, ainda que parcial da ação, é matéria que interessa apenas ao mérito do recurso e será, nesse contexto, apreciada.
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2. Da impugnação da matéria de facto:
2.1. Em sede de recurso, o apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.
Nada obsta a sua apreciação, tendo o autor recorrente cumprido o ónus a que se reporta o art.º 640.º do C. P. Civil.
Começa o recorrente por alegar que o primeiro Acórdão proferido por este Tribunal da Relação determinou a realização de novo julgamento quanto aos factos dos arts.º 11.º, 14.º, 15.º e 16.º da petição inicial e que, na sua nova decisão, o Tribunal a quo nada disse quanto ao facto 14.º - que não consta nem dos factos provados, nem dos não provados – embora admita que se possa considerar que está contido no facto 17.º
Considera ainda que os factos dos arts.º 15.º e 16.º da petição inicial e dados como não provados nos pontos 12 e 13 da matéria de facto não provada, devem considerar-se como provados.
No anterior Acórdão proferido por este Tribunal da Relação foi determinada a realização de nova audiência de julgamento que apreciasse se os seguintes factos deveriam ser julgados provados ou não provados:
“11. Por força de tal aquisição o Autor passou, a partir dessa data, a usufruir dessa água, de forma pública, pacífica, continuada e de boa fé, à vista de toda a gente, sem oposição nem embargo de ninguém, com ânimo, espírito e convicção de quem julga exercer e exerce os poderes inerentes ao direito de propriedade, de que é titular. 14. mas antes de uma mina escavada no prédio rústico, denominado “...”, sito no lugar da ..., da mesma freguesia ..., concelho ..., inscrita na matriz respetiva sob o art. ...10º da União de freguesias ... e ..., descrito na Conservatória sob o nº ...53, igualmente propriedade dos vendedores que intervieram na escritura de 06 de novembro de 1998 — cfr. doc. que se junta sob o nº 7. 15. Nesta conformidade, constata-se que na altura em que foi celebrada a escritura pública de 1998, o outorgante MM, que nela interveio como procurador dos vendedores, laborou num erro notório na identificação do prédio rústico em que se localiza a mina onde é explorada a água que então foi vendida ao segundo outorgante, aqui Autor. 16. Na verdade, sendo ambos os prédios rústicos (... e ...) propriedade dos seus representados (vendedores), o procurador, em vez de declarar que a mina de onde procedia a água, objeto de transmissão, ficava situada no prédio denominado “...”, sustentou, por equívoco, que se localizava na “..., dos ... ou dos ...”.
A matéria de facto do art.º 11.º da petição inicial consta agora da matéria de facto provada no facto 17, e a matéria de facto dos arts.º 15.º e 16.º da petição inicial consta dos factos não provados 12 e 13.
Tal como refere o recorrente, a matéria de facto que consta do art.º 14.º da petição inicial não consta efetivamente nem da matéria de facto provada, nem da não provada, sendo certo que a decisão proferida por este Tribunal da Relação em 18/01/2024, já transitada em julgado, tem de ser cumprida (e daí que não seja lícito considerar que à mesma se reporta o facto 17 da matéria de facto provada, pois que esse reproduz apenas o facto do art.º 11.º da petição inicial e foi determinada a ampliação da matéria de facto também em relação ao facto do art.º 14.º da petição inicial).
Vejamos assim se tal factualidade deve considerar-se provada ou não provada ou, em último caso, se haverá necessidade de ordenar nova repetição do julgamento, sendo que esta solução apenas se impõe se tal factualidade não tiver sido objeto de produção de prova.
A motivação da decisão proferida quanto aos factos provados é, em si mesma, absolutamente clara para que se afirme que a água que o autor utiliza, desde a data da celebração da escritura pública em discussão nos autos, é proveniente de uma mina que se situa no prédio rústico denominado ..., com os elementos de identificação deste prédio que constavam já do facto provado 8.
Escreveu-se na motivação da decisão de 1.ª Instância sobre a matéria de facto provada e não provada: “as testemunhas QQ, RR, MM, SS, TT, UU, VV e WW acompanharam, de um modo claro e inequívoco, a versão dos RR BB, DD e EE de que na “...”, antiga propriedade destes RR., não existe qualquer nascente de água ou vestígios de qualquer aqueduto de água que a onere; que nenhuma água que eventualmente exista na “...” pode atingir, por efeito da gravidade, o prédio do A.; e que aquando a celebração da escritura pública de compra e venda em crise, os aí vendedores também eram proprietários da “...”. Na verdade, como já supra se referiu e evidenciaram as testemunhas QQ, RR, MM, SS, TT, UU, VV e WW, na “...” nunca existiu qualquer água que alguma vez pudesse ser objeto de qualquer transmissão nos termos exarados na escritura pública em crise. Acresce que, mesmo que existisse tal água, a mesma nunca podia atingir o prédio misto adquirido pelo A aos RR., como afirmaram as testemunhas QQ, RR, MM, SS, TT, UU, VV e WW. Assim, a existir a venda, cujo preço foi pago pelo autor, de uma água proveniente de uma nascente que é “… canalizada por tubo subterrâneo à profundidade média de um metro numa extensão de setecentos metros aproximadamente e na direção norte-sul, que depois de atravessar o caminho e prédios de outros proprietários é recolhida num tanque existente no prédio misto objeto deste contrato e que se destina a gastos domésticos da parte urbana e regra da parte rústica…”, como consta da escritura pública de compra e venda em crise, essa água não poderá ser a água da “...”. Dúvida não há, portanto, que a existir a transmissão de qualquer direito sobre qualquer água de uma nascente, essa água nunca podia advir da “...”, como consta na escritura pública de compra e venda. Aqui chegados, importa agora realçar que os ora réus e vendedores BB, DD e EE, aquando da celebração da escritura de compra e venda em crise, também eram proprietários “...”, que se situa nas proximidades do prédio adquirido pelo A.. Aliás, os RR e então vendedores, nas proximidades do prédio do A, apenas eram proprietários de um único prédio denominado “...”, como referiu a testemunha WW. Assim, aquando da celebração da escritura pública de compra e venda, os RR vendedores eram proprietários, para além do prédio misto que venderam ao autor, de mais dois prédios, ou seja, eram proprietários da “...” e da “...”, sendo este último o prédio que se situa mais perto do prédio misto outrora vendido ao autor pelos RR BB, DD e EE. Acontece que, destes dois prédios que eram propriedade dos RR vendedores, o único que possuía aqueduto de água de uma mina e exploração dessa água era o prédio denominado “...”, como referiram expressamente as testemunhas MM e TT. Resulta, assim, do quadro probatório supra evidenciado que o único prédio, propriedade dos vendedores outorgantes da escritura de compra e venda em crise, aquando da sua celebração, com exploração de mina e água encanada, era a “...” e nunca a “...”. Partindo desta realidade confirmada pelo quadro probatório supra evidenciado, não podemos, agora, deixar de realçar que a água que corre por esse prédio denominado “...” encontra-se ainda hoje encanada e ainda hoje deriva na direção do prédio do A., conforme confirmou expressamente a testemunha UU (testemunha que elaborou o documento junto na audiência de julgamento). Acresce que a testemunha SS também confirmou expressamente que o tanque existente na propriedade do seu pai, ora autor, ainda hoje é abastecido por uma água de nascente. Conclui-se, assim, que o único prédio dos então vendedores e ora RR BB, DD e EE (com exceção dos RR JJ e esposa NN) que possuía, à data e ainda hoje, água de uma mina, não é o prédio identificado na escritura pública em crise”.
Basta, assim, atentar na motivação da própria decisão para perceber que, na sequência da alegação do autor constante da petição inicial, e nos precisos termos em que o fez, “em data que não é possível precisar, o autor apercebeu-se que a água que havia comprado e de que usufrui há mais de vinte anos, ao invés do que consta da identificada escritura pública, não provém de uma mina existente na “...”, dos “...” ou “Bouça dos ...” (facto que estava já provado no ponto 9) “mas antes de uma mina escavada no prédio rústico, denominado “...”, sito no lugar da ..., da mesma freguesia ..., concelho ..., inscrita na matriz respetiva sob o art.º ...10.º da União de freguesias ... e ..., descrito na Conservatória sob o nº ...53, igualmente propriedade dos vendedores que intervieram na escritura de 06 de novembro de 1998” (facto a aditar com a numeração 9 A, para que conste cronologicamente da decisão a proferir, e que corresponde ao art.º 14.º da petição inicial e que este Tribunal da Relação entendeu ser também relevante para a decisão a proferir).
Não têm os réus qualquer razão quando referem que tal facto se deve considerar como não provado.
Em primeiro lugar, porque o facto controvertido não se refere ao que está declarado na escritura pública, mas à real utilização da água desde a data em que a mesma foi celebrada.
Contrariamente ao alegado pelos réus, a outorga da escritura pública não implica que se considere plenamente provado que a água que está a ser utilizada pelo autor é proveniente do imóvel que naquela está identificado, não existindo qualquer norma legal que exclua que a prova da origem da água possa ser realizada através do depoimento das testemunhas.
Em segundo lugar, porque, tal como se referiu, a prova daquele facto é evidente perante a prova produzida e os depoimentos que foram considerados relevantes pelo Tribunal a quo e que este refere na sua motivação, sem que a mesma tenha sido colocada em causa, em relação à matéria de facto que aquele considerou provada.
Impõe-se, assim, alterar a decisão da matéria de facto, aditando o facto 9 A com a redação referida.
Como se referiu, o autor apelante entende ainda que a matéria de facto constante dos factos 12 e 13 da matéria de facto não provada deve ser aditada aos factos provados, alegando que a existência do erro na identificação do imóvel está pressuposta na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Não temos qualquer dúvida sobre o que está pressuposto na decisão elaborada pelo Mm.º Juiz a quo.
Por um lado, provou-se que na escritura pública se refere a existência de uma mina situada no prédio denominado ... e de cuja água beneficiaria o prédio vendido ao autor, sendo que aquele prédio não só não tinha mina como, ainda que tivesse, pela sua localização, a água daquele não se deslocaria da forma referida no negócio realizado para o prédio que estava então a ser transmitido ao autor.
Por outro lado, porque também se demonstrou que a água que desde a celebração daquele negócio é utilizada pelo autor é proveniente do prédio denominado ..., que então também pertencia aos réus vendedores e foi, entretanto, adquirido pelo réu JJ.
Daqui não se retira, contudo, o erro a que se reporta a matéria de facto que corresponde aos art.ºs 16.º e 17.º da petição inicial.
O Mm.º Juiz justificou a não prova deste factos nos seguintes termos: “ainda no que diz respeito à factualidade controvertida, a testemunha MM, enquanto procurador nessa escritura pública, como consta dos seus dizeres, referiu que não promoveu a realização da escritura pública e apenas limitou-se a assinar a escritura sem se aperceber de qualquer lapso de escrita ou erro na identificação dos prédios objeto dessa escritura pública. Não há, assim, qualquer responsabilidade por parte do MM, enquanto procurador nessa escritura pública, no apontado erro porquanto, conforme realçou, limitou-se a assinar a escritura pública, desinteressando-se do seu conteúdo”.
É efetivamente esta a conclusão que se pode extrair da prova produzida, no que se reporta aos factos que estavam controvertidos e que correspondem à alegação do autor dos arts. º 15.º e 16.º da petição inicial.
O que está alegado é apenas que, na escritura pública realizada, o representante dos vendedores em vez de declarar que a mina de onde provinha a água se situava na ... declarou que se situava na ... e que o fez por erro notório.
Ora, sobre estes factos, que se reportam ao erro como resultado da declaração do representante dos vendedores, não está demonstrado, pois que, sobre ele, a única prova produzida foram as suas próprias declarações, tendo afirmado que nada foi por si tratado ou negociado, tendo-lhe sido pedido, apenas, que comparecesse no cartório notarial para assinar a escritura.
Não se demonstrou assim que tivesse sido cometido pelo procurador dos vendedores um erro pois que, como declarou, nenhum elemento documental ou de outra natureza recolheu para a celebração escritura pública, não tendo tido intervenção nas negociações e limitando-se a representar os vendedores no momento da outorga da escritura pública, assinando o que lhe pediram para assinar.
Contrariamente ao alegado pelo recorrente, perante os factos que estão provados, não há presunção judicial que nos permita concluir que a menção que consta da escritura pública ao prédio denominado ... se deveu a erro do procurador dos vendedores, que é esse, e apenas esse, o facto alegado.
Não existe, assim, prova que permita considerar como provados os factos que constavam dos art.sº 15.º e 16.º da petição inicial que, assim, deverão permanecer não provados nos factos 12 e 13 da matéria de facto não provada.
2.2. Os factos provados a considerar são, assim, os que acima se transcreveram como provados (fixados pela 1.ª Instância), aditando-se o facto 9 A, com a seguinte redação:
“9 A - mas antes de uma mina escavada no prédio rústico, denominado “...”, sito no lugar da ..., da mesma freguesia ..., concelho ..., inscrita na matriz respetiva sob o art.º ...10.º da União de freguesias ... e ..., descrito na Conservatória sob o nº ...53, igualmente propriedade dos vendedores que intervieram na escritura de 06 de novembro de 1998”. 3. Reapreciação de direito:
3.1. A apelação apresentada pelo autor reflete a dificuldade que este evidencia perante os termos em que estruturou a sua pretensão e formulou os seus pedidos.
Em primeiro lugar porque o autor não invocou uma única norma ou instituto jurídico para fundamentar a sua pretensão.
Em segundo lugar, porque contrariamente ao por si alegado nos arts.º 35.º e 37.º da sua petição inicial, o autor, nestes autos, não formulou qualquer pedido relativo ao reconhecimento da existência de um direito de servidão de aqueduto que pudesse onerar o prédio denominado ..., agora pertencente ao réu JJ, em benefício do prédio que adquiriu aos demais réus em 1998.
Nos pedidos que formulou está apenas em causa que se reconheça a existência de um erro com vista à prolação de sentença que retifique a escritura pública realizada ou, em alternativa, que se reconheça esse erro com vista à outorga pelos réus de instrumento de retificação da mesma escritura, com a cominação de, não o outorgando, ser por estes devida uma multa.
Não se percebe sequer de que forma entende o autor que estes pedidos podem ser deduzidos de forma alternativa, sendo certo que não existem obrigações diferentes que possam ser cumpridas de forma alternativa.
O que verdadeiramente está em causa nos pedidos alternativos deduzidos pelo autor é, apenas, a retificação do alegado erro cometido na escritura pública.
O que o autor admite é que essa retificação possa ser efetuada por duas formas diferentes: ou por sentença que ordene tal retificação, ou através da imposição aos réus da obrigação de outorgarem um instrumento de retificação que permita que esta seja realizada (com a cominação de uma sanção pecuniária para constranger os réus à sua outorga).
A decisão proferida é muito clara quando explica a razão pela qual é aqui inaplicável o regime do erro do art.º 249.º do C. Civil, nada alegando o recorrente que coloque em causa o que foi decidido.
O que defende o autor recorrente é que os factos alegados e provados permitem convocar o regime da divergência entre a vontade e a declaração, por erro, e, por essa via, a retificação da escritura pública realizada, seja por sentença judicial, seja por imposição aos réus para que outorguem um instrumento que permita realizá-la.
Invoca, em sede de alegações, o disposto no art.º 247.º do C. Civil.
Ora, se era intenção do autor alegar tal divergência, os factos subjacentes não foram alegados.
Teria de ter sido alegado que o autor e os réus vendedores pretendiam negociar a água que provinha da mina situada no prédio denominado ..., constituindo sobre este imóvel uma servidão de aqueduto nos termos referidos na escritura pública (aquela que seria a sua vontade) e que, por erro na identificação do imóvel, declararam que a constituíam sobre o imóvel com a denominação ... (aquela que foi a sua declaração).
Para que se pudesse afirmar a divergência da declaração com aquela que era a vontade das partes, teria sido necessário que o autor alegasse qual era essa vontade e esta não foi alegada.
A divergência que foi alegada reportava-se tão só, como vimos, ao procurador dos vendedores e não à vontade ou declaração do autor (que comprou) ou aos réus (que venderam). O que foi invocado pelo autor subsumia-se ao disposto no art.º 250.º do C. Civil (“a declaração negocial inexatamente transmitida por quem seja incumbido da transmissão pode ser anulada nos termos do art.º 240.º”), mas, como vimos, tal erro do transmitente não ficou demonstrado.
Não é, assim, possível convocar nem o regime do art.º 247.º, nem o do art.º 250.º, ambos do C. Civil.
Ainda que qualquer destes regimes pudesse ser convocado, da existência do erro não resultaria o direito do autor a exigir a retificação da escritura pública realizada, que é, afinal, como vimos, o único pedido formulado.
É que a possibilidade da retificação existe, apenas, para as situações de erro na declaração (art.º 249.º do C. Civil) e não para aquelas em que, por erro, a declaração não corresponde à vontade das partes.
Quanto tal acontece, ao declaratário que não pretenda manter o negócio declarado assiste apenas o direito de invocar a sua anulabilidade, nos termos dos arts.º 247.º e 287.º do C. Civil.
Ora, o autor não só não invocou esta anulabilidade como se percebe que não pretenderá invoca-la, já que afirma que o seu direito de servidão de aqueduto existe em relação ao imóvel denominado ... (art.º 36.º da petição inicial).
Esta questão (relativa à aquisição do referido direito de servidão por usucapião) é, porém, diferente daquela que aqui se discute e que se reporta, apenas, ao pedido de retificação da escritura pública realizada entre o autor e os primeiros réus.
Concluindo, a pretensão de retificação deduzida pelo autor não pode proceder.
Pretende, por último, o autor recorrente que este Tribunal reconheça pelo menos que existiu um erro na identificação do prédio que ficava onerado com a servidão e que a vontade real do autor era que a servidão se constituísse sobre o imóvel denominado ....
No que se reporta ao que era a vontade real do autor, esta não foi alegada.
O que resulta da matéria de facto provada é inequívoco: as partes declararam constituir uma servidão de aqueduto sobre um imóvel dos réus vendedores (...) em benefício do prédio vendido ao autor, sendo que a água que o prédio vendido ao autor utiliza, desde então, é proveniente da mina que se situa noutro prédio (...), que era daqueles réus vendedores e foi mais tarde vendido ao réu JJ, não existindo qualquer mina naquele primeiro prédio e não podendo qualquer água ser dele deslocada até ao prédio vendido ao autor.
Daqui não se retira que o Tribunal possa reconhecer a existência de qualquer erro, seja na declaração, seja na vontade das partes.
A apelação improcede, assim, na sua totalidade.
O autor será naturalmente responsável pelas custas desta apelação, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil.
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V – Decisão:
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação apresentada pelo autor, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
O autor é responsável pelas custas do recurso, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil.
Guimarães, 10 de julho de 2025
(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)
Relator: Paula Ribas
1ª Adjunta: Anizabel Sousa Pereira
2ª Adjunta: Fernanda Proença Fernandes