EXECUÇÃO BASEADA EM SENTENÇA
FUNDAMENTOS DE OPOSIÇÃO
FACTO SUPERVENIENTE
Sumário


De harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa.
O impedimento declarado por uma entidade pública, estranha à sentença exequenda e surgido depois de esta ser proferida, constitui acto superveniente que importa válida oposição à sentença de execução de prestação de facto positivo a que estavam obrigados os executados.

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

1. RELATÓRIO

Os executados (aqui Recorridos) deduziram oposição à execução, a qual teve por base uma decisão judicial.
Concluíram pedindo que seja declarada extinta a obrigação em causa com todas as consequências legais.
Notificados da p.i. de embargos de executado, apresentaram os exequentes (entre os quais a Recorrente) contestação, tendo concluído pela improcedência dos embargos de executado.
A final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, julgam-se procedentes, por provados, os presentes embargos de executado e, em consequência, determina-se a extinção dos autos executivos.
Custas pelos exequentes/embargados porque decaíram na sua pretensão, nos termos do art.527.º do Código de Processo Civil.”

Inconformada com esta decisão, a Exequente AA recorreu, formulando, em suma, as seguintes
Conclusões
1.º O presente recurso impugna a decisão sobre a matéria de facto (e a de direito).
2.º Ocorreu a gravação da audiência e os Recorrentes, nos termos do art. 640.º, números 1 e 2 do C.P.C., indica os concretos meios de prova, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, constantes do processo e do registo de gravação (indicando com precisão as passagens de gravação em que se funda o seu recurso), em que tudo se funda para discordar da decisão de facto proferida.
3.º em face do vertido supra em 1), A), alíneas a), 1 e b), cujo teor aqui se deixa reproduzido na integra, deve o Tribunal da Relação:
1-Dar como provado o seguinte (o que se requer):
a) BB desviou há, pelo menos, 16 anos, concretamente em 30-3-2006, as águas para o terreno de CC;
2- Dar como Não provado o ponto 4 dos Factos Provados (o que se requer).
De Direito:
4.º O desvio da água (conforme aceita e reconhece o Tribunal a quo) proveniente do fontanário ocorreu há, pelo menos, 16 anos, mais concretamente em 30-3-2006, conforme doc. junto com a Contestação como doc. n.º 1, que as testemunhas DD e EE (Guardas da GNR) confirmaram o seu teor, ou seja, a água do fontanário sempre correu no sentido contrário ao desvio efectuado e que o teor da transacção proferida no âmbito da acção declarativa confirma e que foi homologado por sentença.
5.º daí é forçoso concluir que o vertido na Declaração da Junta de Freguesia não corresponde à verdade quando declara que a água proveniente do fontanário sempre correu no sentido aí referido.
6.º O que conjugado com o teor do vertido na Declaração da Junta de Freguesia de que a água sempre correu no sentido aí referido e com o doc. n.º 1 junto com a Contestação, em que no dia 30-3-2006 BB procedeu ao desvio das águas, leva a concluir que o facto extintivo ou modificativo ocorreu sempre anteriormente ao encerramento da discussão na acção declarativa, conforme, aliás, já tinha sido decidido na 1.ª Instância.
7.º Não se verificando, por conseguinte, o requisito da posterioridade do facto extintivo ou modificativo da obrigação, tem de concluir-se pela inviabilidade de tal facto poder fundar oposição à execução, nos termos da alínea g), do art. 729.º do C.P.C.
8.º Resulta do exposto que os Exequentes dispõem da sentença proferida em 8-10-2013, já transitada em julgado, e, por conseguinte, de titulo executivo que lhes permite obter e exigir o cumprimento da obrigação que impende sobre os Executados.
9.º tendo a decisão proferida no dia 8-10-2013 força probatória dentro e fora do processo n.º 173/09.7TBPRG, verificando-se a autoridade do caso julgado.
10.º A decisão recorrida violou e interpretou erroneamente as normas que invoca, designadamente, art. 729.º, al. g), do C.P.C.
11.º devendo a sentença em crise ser revogada e substituída por Acórdão que julgue procedentes as Conclusões 1.º a 10.º, inclusive, julgando os Embargos improcedentes, e, ordene o prosseguimento da execução, o que se requer.
Termos em que,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, julgando-se procedentes as conclusões 1.º a 11.º, inclusive, decidindo, V.ª as Ex.ª as, Venerandos Desembargadores, de acordo com as conclusões 1.º a 11.º, inclusive, …
Os Recorridos responderam ao recurso, culminando as suas alegações com pedido da sua improcedência.

2. QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.1 Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas2 que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.3

As questões enunciadas pelo/a(s) recorrente(s) podem sintetizar-se da seguinte forma:
- Saber se ocorreu erro de julgamento de determinados factos e se, em resultado da modificação desse julgamento, deve ser alterado o julgado;
- Saber se houve erro na aplicação do disposto no art. 729º, al. b), do Código de Processo Civil, ou violação da autoridade do caso julgado.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO JULGADA
Tendo em mente a interpretação do art. 640º, do Código de Processo Civil, consideramos que a Apelante cumpriu na impugnação deduzida os ónus aí previstos.
Descendo ao caso.
A Apelante sindica, em primeiro lugar, a decisão da matéria de facto pretendendo, por um lado, o aditamento de um facto novo (1) e, por outro, a decisão negativa daquele que ficou a constar do ponto 4. dos factos provados.
E efectivamente, nos termos do art.º 662º nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil, a Relação deve, mesmo oficiosamente, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, quando repute deficiente, obscura ou contraditória aquela decisão sobre determinados pontos da matéria de facto, ou quando considere indispensável a sua ampliação, se do processo constarem todos os elementos que lhe permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto (os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente).
Posto isto, no que contende com a requerida ampliação da matéria de facto com o referido item 1/a), da 3ª conclusão da apelação em apreço, julgamos estar perante matéria que não é indispensável à solução da causa e, portanto, não deve ser aditada.
Estamos em face de execução de sentença em relação à qual os embargantes opõe a existência de facto extintivo superveniente e a matéria de facto nada adianta ao julgamento pretendido, constituindo, por outro lado, matéria que ficou resolvida com a transacção ocorrida entre as partes há mais de uma década.
Improcede, por isso, esta impugnação.
No que contende com a matéria do item 4., dos factos provados, que a Apelante, concretamente, coloca em causa (vide alegações em b), p. 3) estamos perante factualidade que é também inútil para o desfecho destes embargos4, sendo certo que o que se regista nesse ponto 4. é o teor do documento autêntico5 ou declaração emitida pela referida entidade pública e, portanto, a prova pessoal indicada é, não só inapropriada, como insuficiente para colocar em causa essa matéria.
Nesta medida, de acordo com esse primeiro argumento e ao abrigo do disposto nos arts. 2º, nº 1, 6º e 130º, do Código de Processo Civil, decide-se não conhecer desta particular impugnação.

3.2. FACTOS A CONSIDERAR
a) Factos provados.
1) Por sentença proferida em 08/10/2013, transitada em julgado, que homologou a transacção nos Autos de Acção Declarativa n.º 173/09.7TBPRG, 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua, foram os RR/ Executados condenados a desviar a água do tanque publico referido na P.I. do processo supra-referido de forma a passar a correr no sentido peticionado pelos Autores no dito processo n.º 173/09.7TBPRG, conforme o ali alegado nos arts. 24 a 29.º da P.I., desviando o percurso da água do fontanário em sentido contrário, ao longo do caminho de acesso ao prédio dos Réus, indo a mesma desaguar no ribeiro.
2) Desde essa data, até ao momento, os Executados ainda não procederam à realização das obras necessárias a dar cumprimento à transacção homologada por sentença que serve de título executivo aos presentes autos.
Embargos de Executado (2013)
3) Os Executados declararam que, desde 28/02/2013, “(…) já se encontravam em condições de assumir o compromisso de desviar a água do tanque público para o lado contrário àquele para que actualmente está orientada (…)”
4) Os executados não cumpriram a obrigação que assumiram na aludida transacção nos autos principais porque, na sequência da transacção, deram conhecimento da obrigação que assumiram, tendo sido impedidos pela Junta de Freguesia de o fazer, por comunicação por parte desta entidade que lhes comunicou que não permitia que alterassem o escoamento da água em questão.
5) A declaração emitida pela Junta de Freguesia ... em 11/11/2013 tinha o seguinte teor: “FF, Presidente da Junta de Freguesia ... e ..., pertencente à União de Freguesia ... e ..., concelho ..., contribuinte fiscal n.º...97, usando da competência que lhe foi conferida pela Junta. Tendo esta Junta de Freguesia tomado conhecimento do teor da cláusula 2.ª de uma transacção judicial celebrada entre as partes no respectivo processo, CC e mulher e BB e mulher, pela qual estes se comprometem a desviar a água do tanque público situado no limite do prédio destes de forma a que essa mesma água passe a correr em sentido contrário ao actual, ou seja, ao longo do caminho de acesso aos prédios dos mencionados BB e mulher e daí desaguar num hipotético ribeiro, que não existe, declara esta Junta de Freguesia que não permite que tal desvio seja efectuado porque a linha de água está situada para onde corre a água neste momento e não do lado contrário, o terreno encontra-se a descer para esta mesma linha de água e a Junta de Freguesia há mais de 15 anos gastou dinheiro para apanhar todas estas águas ao colocar maninhas no final da linha de água, encostadas à parede do terreno do Sr. CC pois não permitiu que ficassem seguras nesta, de modo a que a água não caísse a céu aberto no caminho público danificando este e impossibilitando as pessoas de o utilizarem pedonal mente. Em face de tudo isto, deve a referida água continuar a cair e a correr nas condições actuais que são as que sempre existiram, ou seja, saindo do referido tanque público e correndo para o lado esquerdo desse mesmo tanque em relação a quem esteja de frente para o mesmo e caindo directamente em terreno do Sr. BB situados desse mesmo lado que de seguida escorrem para a linha de água. Por ser verdade passo a presente declaração que vai devidamente assinada e autenticada com selo branco em uso nesta Junta de Freguesia (…)”.

b) Factos não provados.
Não foram registados.

3.3. DO DIREITO APLICÁVEL
O Tribunal recorrido considerou em suma, sic: “por se tratar de um acto de terceiro (Junta de Freguesia) que impede os executados/embargantes de cumprirem com a prestação a que se comprometeram na acção declarativa, estamos perante uma impossibilidade de prestação, nos termos do disposto no art. 790º, do C. Civil e porque se trata de uma impossibilidade superveniente, ocorrida depois de ter sido proferida a sentença homologatória da transacção, faz extinguir os efeitos do acordo alcançado e, em consequência, exonera os devedores/executados/embargantes da prestação e, consequentemente, determina a extinção da execução (art.729.º, alínea g) do CPC).”
Em concreto, esta argumentação da sentença reporta-se ao impedimento declarado pela referida Junta de Freguesia à prestação de facto assumida pelos aqui executados/embargantes, que a Apelante, de resto, verdadeiramente nem questiona.
Descontente, a Apelante questionou, sem sucesso e/ou sem relevo, a decisão da matéria de facto considerada na sentença, razão pela qual devem improceder todas as conclusões que formulou com base nessa impugnação instrumental.
No plano jurídico, quando questiona a aplicação do citado art. 729º, al. g), a Apelante ainda se reporta a essa matéria, pelo que improcedem as conclusões em que debate esse alegado erro de direito, sendo certo que as suas alegações e/ou conclusões nessa matéria ignoram, ab initio, o verdadeiro sentido da decisão recorrida ao esquecer que o relevante neste caso é o impedimento declarado pela referida Junta de Freguesia (facto 4), depois da sentença exequenda (facto 1).
Improcede, portanto, a conclusão em que se critica a sentença por alegado erro de interpretação dessa norma.
Carece igualmente de qualquer sustento a alegação, desenquadrada de qualquer norma jurídica, no sentido de imputar à sentença a violação da autoridade do caso julgado no referido processo nº 173/09.
O que está aqui em causa é um facto superveniente, invocado nos presentes embargos, que em nada belisca a decisão exequenda, antes constitui matéria nova que obsta à demanda executiva da Apelante, tal como também há muito foi decidido nestes autos pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29.6.2015.
A presente acção executiva estava, aliás, condenada ao insucesso pois, como se salienta nesse Acórdão, os Autores, aqui Exequentes, não cuidaram de envolver na primitiva acção declarativa a entidade pública responsável pelo domínio público assumidamente envolvido na prestação de facto em apreço.
É com estes argumentos que se julga improcedente a apelação, por isso, com custas a cargo da Recorrente, conforme decorre do disposto no art. 527º, do Código de Processo Civil.

4. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação.
Custas pela Apelante (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).

*
Guimarães, 10-07-2025

Rel. – Des. José Manuel Flores
1ª Adj. - Des. Maria Amália Santos
2ª - Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves


1 ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106. 
2 Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
3 ABRANTES GERALDES, Op. Cit., p. 107. 
4 Saber em que sentido corria a água é questão ultrapassada entre as partes desde o desfecho transaccional da acção declarativa em que foi emitida a sentença exequenda e impertinente para a concreta oposição deduzida e apreciada pela sentença em crise…
5 E não a factualidade nele declarada…