UNIÃO DE FACTO
POSSE
AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO
Sumário


I- A união de facto, por si só, não é suscetível de gerar um património autónomo para os conviventes e, consequentemente, de gerar a aquisição do direito de compropriedade de um dos conviventes sobre o bem imóvel em causa e registado apenas em nome do outro;
II- Todavia, isso não invalida que o convivente ( não registado) alegue e prove que tal bem imóvel também lhe pertence, em virtude de uma das vias de aquisição do direito de propriedade, aquisição essa que está submetida ao princípio da tipicidade e só pode ocorrer por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos expressamente previstos na lei, nos termos do art.º 1316º do Código Civil.
III- Mutatis mutandis, dir-se-á quando, no decurso da posse, essa união de facto se converte posteriormente em casamento com regime de comunhão de adquiridos.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

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I- RELATÓRIO ( que se transcreve):

“Nos presentes autos, AA, residente na Rua ..., ..., ..., ... ..., instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, com residência no Lugar ..., ..., ... ..., CC, residente na ..., Lote ..., ... ..., DD, residente na Avenida ..., ... ..., EE, residente na Rua ..., ..., ... ... e FF , residente na Rua ... ..., peticionando, a final, que:

”(…) a) Ser reconhecido que a herança de GG é, juntamente com a herança de HH, verdadeira proprietária do prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, com logradouro, no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...44.º e omisso na Conservatória do Registo Predial, por o ter adquirido pela via originária da usucapião, condenando-se os Réus no reconhecimento e aceitação deste direito de propriedade das heranças sobre o mesmo;
b) Serem os Réus condenados a fazer ingressar tal prédio no património a partilhar na herança aberta por óbito de GG (…)”
 
Para o efeito, o autor alega que é filho de GG (falecida em ../../2009, de quem os réus também são sucessores) e que esta era comproprietária, conjuntamente com HH (falecido em ../../2013 - com quem GG veio a contrair casamento em 1981 - sendo os réus DD, EE e FF os sucessores de HH), do prédio urbano sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...44.º, por ter adquirido esse direito por via da usucapião, não obstante o falecido HH figurar no registo predial como único proprietário desse imóvel.
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A ré DD ofereceu contestação (ref. n.º ...38), na qual refuta que GG fosse comproprietária do prédio do artigo ....º, defendendo, outrossim, que a propriedade do imóvel cabia a HH.
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Na sequência do óbito do réu BB (ocorrido em ../../2000), foi proferida sentença no apenso A), na qual foram habilitados como seus sucessores II, residente na Rua ..., ..., ..., ..., ... ..., JJ, residente na Rua ..., ..., ... ..., KK, residente na Rua ..., ..., ..., ..., ... ..., e LL, residente na Avenida ..., ... ....”
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Após a competente audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: 
“Termos em que, considerando o exposto, nos presentes autos de acção declarativa, sob a forma de processo comum, decide-se:
a) Declarar que a herança aberta por óbito de GG integra a contitularidade do direito de propriedade, à razão de 1/2, em conjunto com a herança aberta por óbito de HH, relativamente ao prédio sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...44.º, condenando-se os réus CC, DD, EE, e FF e os habilitados II, JJ, KK e LL a reconhecê-lo;
b) condenação dos RR nas custas…
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É desta decisão que vem interposto recurso pela Ré contestante, a qual termina o seu recurso formulando as seguintes conclusões ( que se transcrevem):

“1.ª) Tendo HH comprado à Junta de Freguesia ...,em 1975, através de escritura pública, o imóvel descrito nos factos n.º 11 a 15 da matéria de facto julgada como provada, no estado de solteiro, e tendo inscrito a totalidade da titularidade desse direito no registo predial a seu favor, faz concluir que tal imóvel haverá de ser considerado como bem próprio daquele após o casamento contraído com GG nos termos do art.º 1722º, n.º 1, alínea a) do Cód. Civil.
2.ª) A propriedade do imóvel não é alterada pelo facto de HH e GG terem vivido em situação em tudo semelhante à de marido e mulher, desde data indeterminada, mas na década de sessenta do século passado.
3.ª) Nem tão pouco o facto de GG ter, eventualmente, contribuído de alguma forma – que nem tão pouco o tribunal recorrido augurou concretizar – para a aquisição do imóvel à Junta de Freguesia ..., e posteriormente, ter ajudado a suportar os custos com a construção da casa de morada de família, a torna comproprietária do mesmo.
4.ª) A relação que actualmente se designa por união de facto não produz actualmente quaisquer efeitos patrimoniais entre o casal, e também não produzia nas décadas de 60 e 70 do século passado, porquanto nem tão pouco se encontrava prevista no ordenamento jurídico português – a qual apenas viu a “luz do dia” no nosso ordenamento através da Lei 7/2001, de 11 de Maio.
5.ª) Tendo HH conscientemente inscrito o direito de propriedade sobre o imóvel a seu favor, quando já vivia há vários anos com GG em situação análoga à de marido e mulher, e posteriormente ambos terem decidido casar-se no regime de comunhão de adquiridos, não permite que subsista qualquer dúvida quanto ao facto de GG não ser comproprietária do imóvel em crise, desde logo porque a seu favor milita a presunção da existência do direito – cfr. art.º 7º do Cód. do Registo Predial.
6.ª) GG, seja enquanto companheira de HH, seja posteriormente enquanto sua esposa, era mera detentora da casa de habitação, em resultado daquela constituir a casa de morada de família do agregado familiar, o que determina que não seja possível a aquisição do direito de propriedade por via da usucapião – cfr. art.º 1290º do Cód. Civil.
7.ª) Tal detenção, ainda que reúna em si o corpus da posse, não preenche o
elemento subjectivo da posse – animus - que poderia, no limite, conduzir à aquisição do direito de propriedade através da usucapião, sendo requisito para a aquisição do direito de propriedade por esta via.
8.ª) Aceitar que pelo facto de GG ter residido no imóvel durante várias décadas, em conjunto com HH, titular do direito de propriedade sobre o referido prédio, ali ter criado os seus filhos e outros familiares, fruindo assim do imóvel à vista de todos e sem oposição de ninguém, e ainda que eventualmente se referisse àquela casa como “a sua casa”, não determina a alteração da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel, porquanto esses factos resultam tão só e apenas da vivência normal decorrente da relação entre o casal, seja enquanto marido e mulher ou seja enquanto casal unido de facto.
9.ª) Conclusão contrária, isto é, o reconhecimento de que tais factos podem conduzir à aquisição do direito de propriedade de um imóvel por via da usucapião, constituiria uma violação do regime de bens do casamento, tornando-o absolutamente inútil.
10.ª) O tribunal recorrido não julgou provado, nem poderia julgar porque nenhuma prova foi produzida nesse sentido, de que alguma vez GG tivesse afirmado perante terceiros e, nomeadamente, perante o seu marido, titular da totalidade do direito de propriedade do imóvel, de forma inequívoca, que fosse comproprietária do referido imóvel
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O A apresentou contra-alegações e pugnou pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Cumpre decidir, após os vistos.
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II- FUNDAMENTAÇÃO

Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do Recorrente (artigos 635.º, n.º 4, 636.º, n.º 1, e 639.º, n.º 1, do CPC), a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões, e segundo a sua sequência lógica:

1- Analisar do mérito e enquadramento jurídico da causa.
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III- Para a apreciação da questão elencada, é importante atentar na matéria que resultou provada e não provada, que o tribunal recorrido descreveu nos termos seguintes:
Matéria de facto provada:
1. GG e HH, ambos no estado civil de solteiros, contraíram casamento católico entre si no dia ../../1981, sem precedência de convenção antenupcial.
2. GG faleceu em ../../2009, no estado de casada com HH.
3. HH faleceu em ../../2013 no estado de viúvo.
4. GG era mãe do autor (n. ../../1954), dos réus BB (n. ../../1949), CC (n. ../../1951), DD (n. ../../1961) e EE (n. ../../1967), assim como de FF (n. ../../1969).
5. DD, EE e FF são filhos de HH.
6. Em 04/03/2016 FF repudiou as heranças abertas por óbito de GG e HH.
7. MM é pai do réu FF.
8. O réu BB faleceu em ../../2020.
9. O réu BB era pai dos habilitados II, JJ, KK e LL, assim como de NN.
10. Em 18/04/2023 NN repudiou a herança aberta por óbito de BB.
11. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...02 o prédio sito na freguesia ..., concelho ....
12. Decorre da descrição predial relativa ao prédio descrito sob o n.º ...02:
 artigo ...64.º-A da matriz predial rústica;
 área total: 100 m2;
 composição: parcela de terreno de mato, destinada a construção urbana;
 confrontações: norte com Estrada Municipal, sul com caminho público, nascente e poente com Junta de Freguesia ....
13. Encontra-se inscrita a favor de HH (no estado de solteiro) a aquisição do direito de propriedade relativo ao prédio descrito sob o n.º ...02, mediante a ap. n.º 3 de 20/11/1975, por compra a Junta de Freguesia ....
14. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...44.º o prédio sito na freguesia ..., concelho ....
15. Decorre da descrição relativa ao prédio do artigo ....º que este apresenta:
 área total: 217 m2; área de implantação do edifício: 85 m2; área bruta de construção: 127 m2; área bruta dependente: 42,5 m2; área bruta privativa: 85 m2;
 composição: casa de r/c e 1.º andar, destinada a habitação, com logradouro;
 confrontações: norte e nascente com Junta de Freguesia ..., sul e poente com caminho público.
16. Encontra-se inscrita a favor da herança aberta por óbito de HH a titularidade do rendimento relativa ao prédio do artigo ....º.
17. GG e HH viveram como um casal desde data não concretamente apurada da década de 1960.
18. Em data não concretamente apurada da década de 1970, a expensas de ambos, GG e HH erigiram na parcela correspondente ao prédio do artigo ...64.º-A uma casa de rés-do-chão e primeiro andar, com logradouro, a qual corresponde ao edifício construído no prédio do artigo ....º.
19. (…) passando GG e HH a fruir do imóvel, de forma contínua, até à sua morte, nele pernoitando, tomando as suas refeições, educando os filhos, nele convivendo com familiares e amigos, tratando da higiene das suas pessoas, roupas e do próprio imóvel, o que fizeram sempre à vista e com conhecimento de toda a gente, na convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem o direito de outrem, sendo reconhecidos por todos como seus donos.
20. GG e HH adquiriram, em conjugação de esforços económico-monetários, à Junta de Freguesia ..., a parcela de terreno correspondente ao prédio do artigo ...64.º-A.
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Matéria de facto não provada:

1. A inscrição no registo predial da aquisição do direito de propriedade apenas a favor de HH deveu-se a um lapso...”
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IV. Do objeto do recurso:

1.Prima facie, importa abrir um parentesis para que se consigne que, pese embora a apelante no corpo das alegações tenha impugnado alguma matéria de facto ( por exemplo, facto 19 provado e que considera deveria ser dado como não provado), na verdade não constando sequer tal impugnação da matéria de facto nas conclusões, nem os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, não cumpre a apelante o disposto no art. 640º do CPC, pelo que não apreciará este tribunal ad quem qualquer impugnação de facto e muito menos questões suscitadas, de modo solto, de apreciação de prova, como é exemplo a conclusão 10º.
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2. Reapreciação de direito.

Na sentença recorrida, o tribunal a quo julgou procedente a pretensão do A., com base em usucapião, exarando a seguinte fundamentação, que se transcreve:

perpassa da materialidade provada (cfr. factos provados n.ºs 17 a 20) que o prédio do artigo ....º corresponde ao prédio sito na mesma freguesia, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...02 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...64.º-A, e, nessa medida, apesar da duplicação de inscrições na matriz, trata-se na prática de um único imóvel.
Nessa medida, importa ter presente que se mostra efectuada a inscrição no registo da aquisição do direito de propriedade relativo ao prédio descrito sob o n.º ...02, a favor de HH, o que implica que este beneficie da presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial (de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define).
Ao invés, apesar da herança aberta por óbito de HH constar como titular inscrita do rendimento relativo ao prédio do artigo ....º, não podemos olvidar que as inscrições matriciais só para efeitos tributários constituem presunção de propriedade (cfr. artigo 12.º, n.º 5, do C.I.M.I.).
Em decorrência, por via da presunção registral da titularidade do direito de que beneficiam os herdeiros de HH, incumbe ao autor ilidir essa presunção (cfr. artigo 350.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
Para o efeito, o autor invoca que GG adquiriu a contitularidade do direito de propriedade respeitante ao prédio do artigo ....º (que vimos corresponder ao prédio descrito sob o n.º ...02, também inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...64.º-A), por via da usucapião.
No que tange à usucapião (artigo 1287.º do Código Civil), a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, desde que se trate de uma posse pública e pacífica (artigo 1296.º do Código Civil).
Quando se trate de bens imóveis, o período de tempo exigido para a usucapião varia consoante haja justo título de aquisição e registo deste, ou tenha existido registo da mera posse, ou a posse seja de boa fé – cfr. artigos 1294.º a 1296.º do Código Civil.
Como primeiro pressuposto de aquisição do direito por via da usucapião, exige-se que o beneficiário seja possuidor.
A posse constitui o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, ou seja, corresponde ao exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real – cfr. artigo 1251.º do Código Civil.
Independentemente de se indagar se o legislador português perfilhou a teoria subjectivista ou objectivista da posse , não existem dúvidas, atento o disposto no artigo 1253.º do Código Civil, que se mostra exigível, não só que o detentor obtenha o poder de facto sobre a coisa, mas também que haja da sua parte a intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, ou seja, que se verifiquem os denominados “corpus” e “animus” da posse .
Posto isto, ficou evidenciado que por 29 anos (tomando como ponto inicial o fim da década de 1970, atendendo à incerteza a respeito do momento em que a actuação começou, e o óbito de GG), de forma contínua, GG fruiu do prédio do artigo ....º em conjunto com HH, após o terem adquirido com recurso a meios financeiros de ambos, aí tendo erigido uma casa de rés-do-chão e primeiro andar, com logradouro, onde pernoitavam, tomavam as suas refeições, educavam os filhos, nele conviviam com familiares e amigos, tratando da higiene das suas pessoas, roupas e do próprio imóvel, o que evidencia a prática dos actos materiais que integram o “corpus” possessório, o que, por força do disposto no artigo 1252.º, n.º 2, do Código Civil, faz presumir o seu “animus possidendi” enquanto comproprietária (a par de HH)  , sem que tenha sido ilidida tal presunção (cfr. artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil), pelo que se mostra evidenciada a posse daquela (cfr. artigo 1252.º, n.º 2, do Código Civil), sendo que esta se revela ainda pública e pacífica, perante a materialidade vertida no facto provado n.º 19 (cfr. artigos 1261.º, n.º 1 e 1262.º, do Código Civil).
Quanto ao prazo exigível para a aquisição do direito de propriedade este situa-se nos 15 (quinze) anos (cfr. artigo 1296.º do Código Civil), pois a posse, apesar de não titulada (cfr. artigos 1259.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil), é de boa fé, face à factualidade supra indicada (cfr. artigo 1260.º, n.º 1 e 2, do Código Civil), o que não constitui obstáculo, pois ficou provado o exercício da posse, de forma contínua, por um período de 29 anos.
Note-se, também, que os direitos de GG e HH se presumem quantitativamente iguais (cfr. artigo 1403.º, n.º 2, do Código Civil), sem que tal presunção se mostre ilidida (cfr. artigo 350.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil), face à materialidade provada, para além de se tratar de direitos próprios de cada um dos cônjuges, por o início da posse ser anterior ao casamento que celebraram, no regime de comunhão de adquiridos (cfr. artigo 1722.º, n.º 2, al. b), do Código Civil).
Nesta conformidade, verifica-se que se mostram preenchidos todos os pressupostos para ser reconhecida a aquisição por banda de GG de metade do direito de propriedade relativo ao prédio do artigo ....º, assim se mostrando infirmada a presunção registral de que beneficiava HH, quanto à titularidade exclusiva da dominialidade.”.

Ajuizou pois, o tribunal a quo, que a falecida mãe do A e esposa de HH,  exerceram, sobre o imóvel identificado nos autos, composto por um edifício e pelo terreno onde o mesmo foi construído ( cfr. factos provados n.ºs 17 a 20, donde consta a descrição do prédio do artigo ....º corresponde ao prédio sito na mesma freguesia, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...02 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...64.º-A), posse pública e de boa fé, durante cerca de 29 anos. Isto é, a mãe do A. e esposa de HH exerceu sobre o imóvel posse boa para a aquisição originária do direito de propriedade sobre o imóvel, por usucapião.
Tal asserção de exercício de posse, sobre o imóvel, por HH e sua mulher, não merece discordância por parte da recorrente (cfr. conclusão 7ª).
Porém, alega a recorrente que a posse da mãe do A- GG- não preenche o elemento subjetivo- o “animus”- para conduzir à aquisição do direito de propriedade por usucapião, sendo certo que aqueles factos provados correspondentes ao “ corpus” resultam da vivência normal decorrente da relação entre o casal, seja enquanto marido e mulher, seja enquanto casal unido de facto.
Aduz que a relação que atualmente se designa por união de facto não produz atualmente quaisquer efeitos patrimoniais entre o casal, e também não produzia nas décadas de 60 e 70 do século passado, porquanto nem tão pouco se encontrava prevista no ordenamento jurídico português.
Alega ainda que conclusão contrária, isto é, o reconhecimento de que tais factos podem conduzir à aquisição do direito de propriedade de um imóvel por via da usucapião, constituiria uma violação do regime de bens do casamento, tornando-o absolutamente inútil.

Vejamos.
É indiscutível que a união de facto, por si só, não é suscetível de gerar um património autónomo para os conviventes e, consequentemente, de gerar a aquisição do direito de compropriedade da falecida mãe do Autor apelado sobre o bem imóvel em causa, mas não é incompatível com essa aquisição nos termos gerais de direito, contanto que se alegue (e posteriormente, prove) os pertinentes factos que lhe permitam, nesses termos gerais, isto é, por força dos institutos do direito comum, adquirir esse direito de compropriedade sobre os bens em causa.
Sendo a compropriedade uma das modalidades do direito de propriedade em que há uma pluralidade de titulares (contitularidade) do direito de propriedade sobre a mesma coisa (cfr. artigo 1403.º, n.º 1 do CCivil), ou dito por outras palavras, “um caso de contitularidade num único direito de propriedade sobre a coisa comum”, a compropriedade pode ser adquirida por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação e demais modos previstos na lei (artigo 1316.º do CCivil).
O recurso ao instituto da compropriedade, na união de facto, como forma de atribuição dos bens, será viável, em princípio, nas situações em que os unidos de facto intervêm no ato e no momento de aquisição do bem. Se, naquelas circunstâncias, intervém apenas um dos elementos da união, se apenas um deles consta como adquirente no título de aquisição do bem, não funciona uma presunção de compropriedade semelhante à que vigora para os bens móveis no casamento para o regime da separação de bens (art.º 1736º, nº 2, do Código Civil).
Acresce que, se a aquisição do bem se mostrar registada em nome de um dos conviventes- no caso em nome de HH, pai da apelante-, o titular do direito inscrito beneficia da presunção prevista no art.º 7°, do Código do Registo Predial, segundo o qual “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Poderá a mãe do Autor, companheira e posteriormente mulher de HH- aceder à compropriedade do bem, ilidindo a referida presunção do registo, mediante a prova de que o bem comprado por HH, pai falecido da apelante se destinava ao casal?
A resposta é positiva.
Não se põe em causa que a mera coabitação não cria posse, nem sequer no âmbito do casamento, ou seja, em princípio, estaremos perante uma situação de mera detenção.
Todavia, isso não invalidava que o Autor alegasse e provasse que tal bem imóvel também pertencia à sua mãe ( herança da mãe), em virtude de uma das vias de aquisição do direito de propriedade, aquisição essa que está submetida ao princípio da tipicidade e só pode ocorrer por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos expressamente previstos na lei, nos termos do art.º 1316º do Código Civil.
Ora, não está controvertido o facto de HH ser, pelo menos, proprietário de metade da fração em causa, sendo tal aceite pelo Autor.
Tal direito adquiriu-o o pai da apelante-HH- através do contrato de compra e venda aludido nos pontos 13. e ss dos factos provados, pois que, não obstante, não estar junto o contrato de compra e venda definitivo, é a conclusão que se retira quer do ponto 13 dos factos provados, quer da inscrição registal, referida no ponto 11 e 12 dos factos provados.
Nesse contrato, a mãe do Autor não teve intervenção formal, sendo apenas o seu então companheiro ( e a partir de 1981, marido) HH quem outorgou como comprador e, como tal, não pode invocar, qualquer causa de aquisição derivada de metade do prédio.
Vejamos, pois, se poderá invocar outra causa de aquisição, concretamente, a usucapião, causa de aquisição originária.
Não iremos discorrer sobre o instituto da posse, por a sentença já ter desenvolvido extensamente o tema.
Ainda assim, em jeito de súmula, dir-se-á que a noção de usucapião, prescrição positiva ou aquisitiva consta do artigo 1287.º do CC e a noção de posse, acolhida no artigo 1251.º do Código Civil, e que constitui o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, deve ser entendida segundo a conceção subjetivista, integrando no seu conceito jurídico quer o corpus quer o animus possidendi.
Acresce dizer ainda que impera igualmente o entendimento doutrinário de que a presença e relevância deste elemento psicológico–o animus–não poderá ser recusada quando a atividade em que o corpus se traduz seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em seu benefício uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real.
Postos estes breves considerandos, importa agora, em face da resenha dos factos provados, saber se está, ou não verificada a referida aquisição originária do direito de compropriedade do imóvel em questão por parte da mãe do Autor- GG.
Respigando o elenco dos factos provados e com pertinência para a decisão da questão supra enunciada, vem provado o seguinte, em síntese: por cerca de 29 anos (tomando como ponto inicial o fim da década de 1970, atendendo à incerteza a respeito do momento em que a actuação começou, e o óbito de GG), de forma contínua, GG fruiu do prédio do artigo ....º em conjunto com HH, após o terem adquirido com recurso a meios financeiros de ambos, aí tendo erigido uma casa de rés-do-chão e primeiro andar, com logradouro, onde pernoitavam, tomavam as suas refeições, educavam os filhos, nele conviviam com familiares e amigos, tratando da higiene das suas pessoas, roupas e do próprio imóvel, o que evidencia, tal como foi consignado na sentença “ a prática dos atos materiais que integram o “corpus” possessório, o que, por força do disposto no artigo 1252.º, n.º 2, do Código Civil, faz presumir o seu “animus possidendi” enquanto comproprietária (a par de HH), sem que tenha sido ilidida tal presunção (cfr. artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil), pelo que se mostra evidenciada a posse daquela (cfr. artigo 1252.º, n.º 2, do Código Civil), sendo que esta se revela ainda pública e pacífica, perante a materialidade vertida no facto provado n.º 19 (cfr. artigos 1261.º, n.º 1 e 1262.º, do Código Civil).”.

Em suma, perante o acervo factual dado como provado, sem margem para qualquer tergiversação, que os atos que a mãe do Autor-GG- exerceu sobre o imóvel, são atos de posse onde estão presentes os dois suprarreferidos requisitos em que a mesma se decompõe (corpus e animus), e pelo decurso do lapso de tempo necessário para a prescrição aquisitiva (cerca de 29 anos).[1]
O argumento da união de facto de GG e HH ora invocado pela recorrente/R. para obstar à procedência da ação não tem razão de ser, e pelas mesmas razões não se diga que este entendimento constitui uma violação do regime de bens do casamento, tornando-o absolutamente inútil, uma vez que, posteriormente, GG e HH casaram com regime de comunhão de adquiridos, em 1981 e o bem imóvel continuou registado apenas em nome de HH e desde 1975.
Em verdade, o casamento entre ambos não teve a virtualidade de fazer cessar a posse de GG e que já ocorria desde a compra registada do imóvel pelo seu então companheiro e posteriormente marido, HH.
Com efeito, e como vimos, estão reunidos todos os pressupostos da aquisição do direito invocado pelo Autor–o direito de propriedade da mãe do autor- GG- sobre o imóvel descrito no nº11 a 13 dos factos provados em regime de compropriedade com HH, nos termos do art. 1403.º, n.º 1 do Código civil.
Improcede, assim, a apelação.

VI. Decisão.

Por tudo o exposto, acordam as Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pela R/recorrente.
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Guimarães, 10 de julho de 2025

Assinado eletronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira ( relatora)
Conceição Sampaio
Maria Amália Santos


[1] No mesmo sentido e em caso semelhante, em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 1610.16.0T8VIS.C1.S2, de 23 de janeiro de 2020, decidiu-se que deve ser reconhecido como comproprietário de imóvel adquirido e construído no decurso da união de facto quem, embora não beneficiando do registo do mesmo em seu nome, tenha praticado atos materiais próprios de um comproprietário, pelo tempo necessário para a aquisição por usucapião do direito de compropriedade.