A homologação de um PER que inclua modificações no pagamento dos créditos da Segurança Social contra a sua vontade, violando o disposto nos artigos 30.º, nº 2 e 3, e 36.º, nº 2 e 3 da LGT, e 190.º, nº 1, 2 a) e 6, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social é ineficaz perante a Segurança Social.
***
IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
A Apelante veio interpor recurso do “despacho de 16.01.2024 referência 455839223, o qual retifica a Douta Sentença homologatória do plano de recuperação por não se conformar com o seu teor”, porém, o recurso foi admitido, a nosso ver bem, como tendo sido interposto “da decisão de homologação do PER na parte em que decidiu pela não afetação dos créditos reclamados pelo Instituto de Segurança Social”, pois que, operada a rectificação esta constitui complemento e parte integrante da sentença (por aplicação analógica do art. 617º nº 2 do CPC)[1], ficando o recurso interposto a ter como objecto a nova decisão.
Em função das conclusões de recurso a Apelante centrou a sua discordância em duas questões, sendo que a segunda está colocada em termos de só dever ser conhecida se a primeira improceder:
i. o despacho de rectificação é nulo porque foi proferido depois de a sentença proferida a 8.01.2024 ter transitado em julgado, tendo sido violado o princípio da extinção do poder jurisdicional ínsito no art. 613º nº 1 do CPC (Conclusões A. a J.);
ii. erro de julgamento quanto à declaração de ineficácia da homologação do PER relativamente à Segurança Social (Conclusões K. a V.), tendo sido violado o art. 215º do CIRE.
Segundo o principio do esgotamento do poder jurisdicional estabelecido no art.º 613.º nº 1 do CPC, após a prolação da sentença o juiz fica impedido de a alterar, pelo que tal invocação só se justificará quando posteriormente à sentença o juiz profira decisão que, ao contender com a questão nela já tratada, conduza à modificação substancial ou à revogação da decisão anteriormente proferida.
Como escreve Prof. Alberto dos Reis, “Relativamente à questão ou questões sobre que incidiu a sentença ou despacho, o poder jurisdicional do seu signatário extingiu-se. Mas isso não obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o seu poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida. O juiz pode e deve resolver as questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu (…) ».[2]
O poder jurisdicional não se esgota relativamente a questões sobre as quais o julgador não se tenha pronunciado expressamente, já que o efeito positivo do esgotamento do poder jurisdicional apenas vincula o juiz a conformar as decisões posteriores que venha a tomar no processo de acordo com a decisão anteriormente tomada.
“A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.”[3]
Embora em nada condicione a presente decisão, convém salientar-se que o esgotamento do poder jurisdicional não se confunde, como de forma algo confusa sugere a Apelante, com o trânsito em julgado da sentença, porquanto aquele ocorre logo que seja proferida a sentença, independentemente da extinção do prazo para interposição de recurso.
Ora, nos presentes autos, na sentença de homologação do PER, dando o juiz a quo por adquirido que o plano apresentado pela devedora havia sido aprovado nos termos do despacho proferido em 27.12.2023, não verificando existir qualquer situação que fundamentasse a sua não homologação, homologou-o por sentença de 8.01.2024, fazendo alusão ao art 17º-F, nº 7 do CIRE.
Assim que foi notificado dessa sentença, em 12.01.2024, o ISS,IP suscitou perante o Tribunal a quo a questão de nada constar na sentença sobre o requerimento que havia apresentado em 14.12.2023 no qual havia requerido que, caso fosse aprovado o plano apresentado pela devedora, fosse declarada a ineficácia ou inoponibilidade da parte dispositiva do Plano em relação aos créditos da Segurança Social, tendo sustentado que a homologação do PER com a consequente vinculação de todos os credores sem pronúncia quanto à requerida ineficácia ou inoponibilidade deveu-se a lapso manifesto cuja rectificação requereu nos termos conjugados do art. 613º nº 2 e 614º nº 1 do CPC, ex vi do art. 17º do CIRE.
Foi então que o Tribunal a quo proferiu o referido despacho de rectificação da sentença, convocando para o efeito ter existido manifesto lapso cuja rectificação era permitida ao abrigo do art. 249º do CC, e desse modo acrescentou na parte dispositiva da sentença a expressão “(…) porém, ineficaz no que respeita ao credor instituto de Segurança Social”, mantendo a homologação do plano de recuperação apresentado pela devedora com essa ressalva.
Pois bem, apreciar agora se era ou não admissível a rectificação da sentença nos moldes em que o foi- por recurso ao art. 249º do CC- é tarefa que ficou prejudicada pelo despacho que foi, entretanto, proferido no Tribunal a quo em simultâneo com a admissão do presente recurso, e do qual resulta que tal despacho de rectificação foi declarado nulo e como tal deixou de existir, como se pode ler do seguinte trecho:
“Concordamos com a recorrente que a retificação da decisão que homologou o plano especial de recuperação não poderia ser retificada ao abrigo do art. 249º do CC, na medida em que não existe um simples erro de cálculo ou de escrita, que permita ser retificado ao abrigo do art. 249º do CC e, nesse sentido, não é de aplicar o art. 249º do CC.
Mas, diversamente, do defendido pelo recorrente o tribunal não se pronunciou expressamente sobre o pedido de não afetação dos créditos, mas apenas sobre as situações de justificariam a sua não homologação, o que e coisa diversa.
Assim, sempre poderíamos estar sobre uma omissão de pronuncia, visto que o tribunal não se pronunciou nunca sobre o pedido de não afetação dos créditos da SS, como ele pediu, na sentença de homologação.
Pelo que, no limite, a sentença sempre seria nula nos termos do art. 615º, nº 1, al. d) do CPC, porque, então, o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
No caso, entendemos que essa omissão se tratou de um manifesto lapso e daí que tivesse sido retificada.
Erradamente ao abrigo do art. 249º do CC, que no entendimento do recorrente é uma nulidade.
Neste caso, declara-se a nulidade do despacho de retificação ao abrigo do art. 249º do CC.”
É certo que o Tribunal a quo acabou por manter o segmento que tinha sido acrescentado na sentença, mas fê-lo posteriormente ao despacho de rectificação do qual a Apelante recorrera, socorrendo-se agora da possibilidade de correção da sentença por em seu entender padecer de inexactidão devida a omissão manifesta (art. 614º nº 1 do CPC) articulado com a possibilidade de suprimento da nulidade por omissão de pronúncia (art. 615ºd) do CPC), apresentando os seguintes argumentos:
“No entanto, continuamos a entender ser possível, quer ao abrigo do art. 614º, nº 1 do CPC quer ao abrigo do art. 615º, nº 1 al. d) do CPC, o tribunal a requerimento da parte ou oficiosamente pode retificar o lapso/omissão, decidindo-a, nos termos em que foram decididos
Na verdade, o Tribunal não se pronunciou porque, por lapso, não foi considerada a posição do ISS na sentença que homologou o plano
E daí que o credor ISS veio a 12.01.2024 – antes do transito em julgado da decisão de homologação – requerer a retificação.
É, pois, falso que a sentença de homologação tivesse transitado quando o tribunal a retificou, porque havia uma posição do credor a apreciar, como ato prévio a esse transito.
O art. 614º, nº 1 do CPC permite ao julgador retificar quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
Foi na verdade o que aconteceu nos autos.
O tribunal corrigiu uma inexatidão devida a uma omissão de não se considerar aquele pedido de não afetação dos créditos do ISS na sentença de homologação do Plano.
Assim, considera-se conhecida a nulidade do despacho de retificação da sentença de homologação do Plano, nos termos expostos.”
Quando o Tribunal a quo conheceu da referida inexactidão devida a omissão manifesta (ou nulidade por omissão de pronúncia como indistintamente a apelidou), o que resulta seguro dos autos é que na sentença fora completamente omitida decisão sobre a questão da ineficácia ou inoponibilidade do plano relativamente aos créditos da Segurança Social, questão essa que esta credora havia expressamente colocado junto do Tribunal a quo previamente à prolação da sentença de homologação do plano.
Por conseguinte, parece-nos admissível defender que não tendo recaído decisão expressa sobre o requerimento do ISS,IP onde tal questão se suscitara, e não constando na sentença qualquer pronúncia sobre a eficácia ou ineficácia do plano relativamente aos créditos da Segurança Social, não se esgotara o poder jurisdicional do Juiz a quo para conhecer de tal questão, e apesar de a correção introduzida na sentença contender com a eficácia do plano relativamente aos créditos do ISS,IP dela não resultou a alteração da parte da decisão de homologação do PER, que apesar do voto contra do ISS,IP fora aprovado e homologado por sentença e assim se manteve depois da correção introduzida.
Com o presente recurso a Apelante pretende que se mantenha a plena homologação do plano de recuperação aprovado, homologação essa que se manteve apesar da correção nela introduzida pelo Tribunal a quo, porque essa correção apenas acarretou a ineficácia do plano perante a Segurança Social, não tendo determinado a alteração do sentido decisório da questão que fora conhecida na sentença, não consubstanciando nessa medida violação do princípio da extinção do poder jurisdicional.
Diferente seria se com a apreciação da questão colocada pelo ISS,IP o Tribunal a quo tivesse modificado substancialmente o sentido decisório da sentença, designadamente não homologando o plano por considerar ter ocorrido uma violação não negligenciável nos moldes contemplados no art. 215º do CIRE (o que bem poderia ter acontecido), porque nesse caso o efeito positivo do esgotamento do poder jurisdicional impediria que fosse introduzida tal alteração na sentença.
Em suma, tendo deixado de existir o despacho de rectificação da sentença contra o qual a Apelante interpusera recurso (pois que o próprio Tribunal de 1ª Instância o considerou nulo), e tendo sido pelo Tribunal a quo suprida a omissão de pronúncia sobre a questão da ineficácia do plano perante os créditos do ISS,IP, (não estando questionado em sede deste recurso se o podia ou não fazer) não podemos concluir pela violação do art. 613º do CPC.
Mantendo-se o segmento da sentença do qual resulta a ineficácia da homologação do PER perante a Segurança Social, e tendo a Apelante recorrida também quanto à declarada ineficácia, da qual discorda, cumpre apreciar se os argumentos recursivos apresentados com vista à revogação daquele segmento decisório merecem ou não acolhimento.
Defende a Apelante que inexiste motivo para se decidir pela ineficácia da homologação do plano relativamente à Segurança Social porque a falta de expressa e discricionária autorização por parte dessa credora não pode ser suficiente para impedir a homologação de um plano de recuperação por alegada violação do disposto nos arts. 194º, 195º e 215º do CIRE e 190º ss do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social aprovado pela Lei nº 110/2009 de 16.09 (alterado pela Lei nº 119/2009 de 30.12, pelo DL nº 140-B/2010 de 30-12, pela Lei nº 55-A/2010) e nºs 2 e 3 do art. 30º da LGT.
E que o nº 3 do art. 30º da LGT não veio conferir carácter indisponível ou imperativo ao sentido de voto da credora Segurança Social, no sentido de dele depender a aprovação e a validade do Plano, transformando-o num voto de qualidade ou num verdadeiro direito de veto.
Porém a Apelante estará equivocada, porque do que se trata não é de fazer depender a aprovação e validade do Plano do voto favorável da Segurança Social, trata-se simplesmente de uma questão de ineficácia ou inoponibilidade do Plano relativamente aos créditos da Segurança Social, isto é, o Plano pode ser aprovado e ser válido apesar do voto contra da Segurança Social, o que acontece é que perante esta o Plano é ineficaz, mantendo-se incólumes os créditos da Segurança Social.
Conforme resulta da jurisprudência, ao que se crê praticamente consolidada, quer do Supremo Tribunal de Justiça, quer deste Tribunal da Relação do Porto[4], da qual não divergimos, a homologação de um PER que inclua modificações no pagamento dos créditos da Segurança Social contra a sua vontade, violando o disposto nos artigos 30.º, nº 2 e 3, e 36.º, nº 2 e 3 da LGT, e 190.º, nº 1, 2 a) e 6, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, apesar de válido, é ineficaz perante a Segurança Social.
Isto porque, parafraseando o recente Ac STJ de 27.05.2025, o qual referencia arestos anteriores que já perfilhavam esse entendimento, “um plano de revitalização aprovado e homologado judicialmente, que configure uma restrição ao conteúdo do crédito da Segurança Social, contra a sua vontade, materializa uma violação negligenciável das normas aplicáveis, nos termos constantes do art. 215º do CIRE, aplicável ao PER, por força do nº. 7 do art. 17º-F, do mesmo código.
A solução da ineficácia relativa do plano, mostra-se justa e equilibrada, compatibilizando-se todos os interesses em causa, sejam sociais, sejam económicos, ou seja, o plano de revitalização produzirá os seus efeitos, relativamente aos demais credores, à exceção daqueles créditos que se reportam ao Instituto da Segurança Social e votados contra a sua vontade, satisfazendo-se também os imperativos legais.”[5]
Tal como de forma clara e cristalina nesse douto aresto se dá conta, “dispõe o artigo 30.º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº. 398/98 de 17/2012, aplicável aos créditos da Segurança Social por força da al. a) do art. 3º do CRCSPSS, que:
(…)
2 - O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.
3 - O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial (Aditado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2011).
Aludindo, ainda, o art. 125º da mesma Lei, a extensibilidade de tal norma aos processos de insolvência que se encontravam pendentes e ainda aos que não tivessem sido objecto de homologação.
Também o art. 36º da LGT, sobre regras gerais, dispõe:
Constituição e alteração da relação jurídica tributária
1 - A relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário.
2 - Os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes.
3 - A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei.
4 - A qualificação do negócio jurídico efetuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a administração tributária.
5 - A administração tributária pode subordinar a atribuição de benefícios fiscais ou a aplicação de regimes fiscais de natureza especial, que não sejam de concessão inteiramente vinculada, ao cumprimento de condições por parte do sujeito passivo, inclusivamente, nos casos previstos na lei, por meio de contratos fiscais.
Como escreveu Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, pág. 412-413 «O aditamento do nº 3 ao artigo 30º da Lei Geral Tributária visava, designadamente, enfrentar as dúvidas que até aí surgiam acerca da relação entre o CIRE, a LGT, o CPPT, e o regime da regularização das dívidas à segurança social. Com efeito, a jurisprudência mostrava-se dividida quanto à possibilidade de o plano de insolvência, porque previsto em lei especial, afastar o regime contido em normas imperativas da legislação referida. O artigo 30º, nº 3, da LGT não permite agora dizer que as soluções previstas no plano prevaleceriam sobre a legislação fiscal».
Ora, a alteração legislativa é assertiva e inequívoca do sentido preconizado, ou seja, aos créditos da segurança social haverá que aplicar um regime específico, atenta a sua natureza tributária e indisponível.
Neste sentido, nomeadamente, Ac. do STJ. de 17-1-2023 (indicado como acórdão fundamento da contradição), Ac. do STJ. de 9-6-2021, Ac. do STJ. de 15-12-2011, todos in www.dgsi.pt.
(…) Ora, a eficácia do plano aprovado sobre os créditos de que o Estado seja titular, quer através da Fazenda Nacional, quer da Segurança Social, contra a sua vontade, mereceu tratamento diferenciado e controverso, quer na doutrina quer na jurisprudência.
Porém, é hoje jurisprudência consolidada do STJ., a sua mera ineficácia relativa.
Com efeito, com a supra mencionada alteração legislativa, o que se quis foi consagrar a indisponibilidade dos créditos tributários e dos regimes de segurança social, proibindo a sua redução ou extinção.
Como se aludiu no Ac. do STJ. de 10-5-2018, in www.dgsi.pt. «Não se ignora que os créditos do Estado por impostos e as contribuições para o sistema de Segurança Social são essenciais ao Estado de Direito, na medida em que o Estado, lato sensu, cumpre funções de ordem pública ligadas ao assegurar da Dignidade das pessoas, postulada pela igualdade e tratamento proporcional, política que executa através da arrecadação de impostos observados os princípios da legalidade e equidade tributárias.
O legislador pretendeu erguer uma barreira à jurisprudência do STJ quanto aos créditos tributários no processo de insolvência, acrescentando ao art. 30º da LGT o nº. 3, pretendendo reforçar o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários».
Como se disse no acórdão fundamento, supra identificado «O plano de revitalização produzirá todos os seus efeitos, viabilizando o prosseguimento da atividade económica e comercial da empresa e satisfazendo os interesses dos credores na exata medida acordada e por eles aceite, à exceção daqueles que teriam reflexo na esfera jurídica do Instituto da Segurança Social, enquanto entidade titular de créditos de natureza tributária, ao qual não serão oponíveis, permanecendo intangíveis e imodificáveis no seu conteúdo».
Em sentido idêntico, nomeadamente, Acs. do STJ. de 17-4-2018, 18-2-2014, 1-4-201424-3-2015, todos in www.dgsi.pt.
Como escreveu Catarina Serra, O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência, Almedina, 2ª. ed., pág. 105 «O Supremo Tribunal de Justiça e alguns Tribunais da Relação têm vindo a afirmar que o plano de recuperação pode e deve ser homologado desde que se preservem os créditos tributários. Para tanto basta que se proceda, segundo uns, à restrição dos efeitos do plano aos créditos não tributários e, segundo outros, presumindo que a vontade hipotética ou conjuntural das partes é no sentido de conservar o plano, à redução do plano às cláusulas incidentes sobre estes últimos créditos».
A solução (…) da ineficácia relativa do plano, mostra-se justa e equilibrada, compatibilizando-se todos os interesses em causa, sejam sociais, sejam económicos, ou seja, o plano de revitalização produzirá os seus efeitos, relativamente aos demais credores, à exceção daqueles créditos que se reportam ao Instituto da Segurança Social e votados contra a sua vontade, satisfazendo-se também os imperativos legais.”
Para além da Doutrina referenciada nesse aresto, damos nota de Maria do Rosário Epifânio, que a propósito da referida problemática refere que “a jurisprudência maioritária tem entendido que, face à redação do art. 30º da Lei Geral Tributária, os créditos fiscais e os créditos da segurança social devem considerar-se indisponíveis, pelo que não poderão ser objecto de redução, extinção ou moratória nos planos de recuperação apresentados no âmbito de um PER, sem que o Estado tenha votado favoravelmente. Em consequência, os planos de recuperação aprovados que prevejam uma modificação ou extinção dos créditos públicos sem que o Estado tenha votado favoravelmente estão feridos de vício não negligenciável quanto ao seu conteúdo (art. 215º).
Mas, deverá o juiz recusar a homologação do plano (não produzindo, em consequência, o plano quaisquer efeitos) ou, antes, homologar o plano e recusar-lhe eficácia perante quem não possa ser afetado pelo mesmo? Ou seja, haverá uma recusa de homologação ou apenas uma ineficácia do plano em relação aos credores públicos? A jurisprudência tem-se dividido quanto a esta questão. As decisões de recusa de homologação fundamentam-se na existência de “uma violação que, por afetar a boa decisão da causa, configura uma nulidade que atinge todo o plano votado, a ser tratada nos termos da lei processual geral […] com a particularidade prescrita no próprio art. 215º do CIRE. Por seu turno, as decisões (maioritárias) de homologação do plano e de ineficácia do mesmo relativamente aos credores públicos têm sido sustentadas na natureza do plano de recuperação, que, “assente numa ampla liberdade de estipulação pelos credores do insolvente, constitui um negócio atípico, sendo-lhe aplicável o regime jurídico da ineficácia”, e também no argumento de que face aos “interesses subjacentes jurídicos e sociais imbrincados na recuperação da empresa […] a solução mais ajustada é a da ineficácia relativa.” [6]
Contrariamente ao defendido pela Apelante, entendemos, tal como também se decidiu no Acórdão desta Relação do Porto de 10.09.2024 (o qual reproduz em parte o Acórdão desta mesma seção de 19-12-2023, Proc n.º 532/23.2T8AMT.P1), que “o regime aplicável é conformado quer pelo disposto no art. 215º do CIRE, que dispõe que “O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação”; quer pelo disposto nos nºs 2 e 3 do art. 30º da LGT, de onde resulta a indisponibilidade de créditos fiscais e, bem assim, a proibição de homologação de planos de revitalização que contemplem a alteração, redução, extinção ou dilação temporal do pagamento de créditos de natureza tributária, sem que o Estado – a Fazenda Nacional/Segurança Social - tenha votado favoravelmente tal homologação.
(…)Acresce que a jurisprudência vem afirmando inequivocamente (…) que “com a alteração introduzida naquela norma pelo artigo 123.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 2011), e com a norma transitória do artigo 125.º, do mesmo diploma legal, o legislador deixou claro o propósito de reforçar a intangibilidade dos créditos tributários, impedindo que os mesmos possam ser afectados apenas com fundamento em normas especiais, nomeadamente as relativas aos processos insolvenciais ou pré-insolvenciais, à margem das regras consagradas nas normas gerais do direito tributário. E fê-lo, manifestamente, com o propósito de blindar os créditos tributários no processo de insolvência, ainda que, deste modo, possa criar entraves à recuperação da empresa”.
Assim, só pode acompanhar-se a conclusão enunciada naquele acórdão, nos termos da qual “(…) ressalvando situações limite que poderão justificar o recurso a válvulas de segurança interpretativa que a jurisprudência vem ensaiando –, o plano de recuperação aprovado no processo de insolvência ou no PER apenas pode afectar os créditos tributários se respeitar todas as condições de alteração, redução ou extinção desses créditos impostas na lei geral (maxime na LGT, no CPPT e no CRCSPSS), entre as quais se inclui o consentimento do organismo público competente, nomeadamente a AT ou o ISS.”
Como se menciona neste acórdão, a identificação de uma menor valia da solução legal vigente, pela jurisprudência, não deve redundar na adopção de interpretações legais correectivas e eventualmente abrogantes. Embora caiba recusar uma postura inteiramente positivista na aplicação do direito, isso não pode redundar na interpretação da Lei em ordem à aplicação de uma solução diversa daquela que foi sucessivamente afirmada como pretendida pelo legislador, mesmo que com esta se não concorde.”
Não existe qualquer discricionariedade na decisão da Segurança Social de votar contra o Plano, ainda que porventura as condições contempladas no Plano respeitem o disposto no art. 191º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social e o art. 81º da Regulamentação desse Código, porque entendemos, na senda dos Acórdãos desta Relação do Porto de de 13.05.2025 e de 11.12.2024, que “a fixação, no plano de recuperação, do pagamento em prestações dos créditos fiscais e/ou da segurança social [ainda que com observância do número de prestações e dos prazos previstos nos arts. 196º do CPPT e 190º da Lei nº 110/2009 (e no 81º do DR 1-A/2011, de 03.01)], sem a concordância/autorização da AT e da SS, constitui uma violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo de tais planos; e (…) nestes casos, salvo excecional quadro de estado de necessidade social, a homologação do plano de recuperação não deve ser oficiosamente recusada, antes este deve ser homologado, embora com a expressa declaração da sua ineficácia relativamente aos créditos da Autoridade Tributária e da Segurança Social.”
Foi o que ocorreu no caso sob apreciação, pois que o Plano prevê quanto aos créditos da Segurança Social, o seguinte “Plano de Regularização: A totalidade da divida à segurança social será regularizada através de plano prestacional em 107 prestações no âmbito da execução fiscal, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte ao trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de revitalização.
Garantias: a analisar no âmbito da execução fiscal.
Taxa de juros de mora aplicáveis às dívidas ao Estado e outras entidades públicas.”
A decisão tomada pela Segurança Social de votar contra a aprovação do PER não inviabilizou a aprovação do Plano de recuperação, o qual foi aprovado e homologado na sentença recorrida, tendo sido considerado válido, apenas determinou, conforme aquela peticionara, a consagração na sentença de uma ressalva de não serem aplicadas as condições contempladas nesse Plano no que se refere aos créditos da Segurança Social, assim se harmonizando o voto da maioria dos credores no sentido de privilegiar a viabilização da devedora, com a posição da credora Segurança Social cujos créditos são indisponíveis.
Por conseguinte, a sentença recorrida no segmento posto em crise pela Apelante acompanhou, a nosso ver correctamente, o entendimento praticamente unânime do Supremo Tribunal de Justiça e deste Tribunal da Relação do Porto quanto à homologação do Plano de Recuperação apresentado pela devedora com a ressalva da sua ineficácia no que respeita ao credor Instituto de Segurança Social, que votara contra o Plano que previa o pagamento dos seus créditos em prestações contra a sua vontade, razão pela qual merece a sentença recorrida a nossa concordância, o que determina a sua confirmação.
Custas do presente recurso a cargo da Apelante, que nele ficou vencida (art. 527º nº 1 do CPC).
Notifique.
Porto, 10.07.2025
Maria da Luz Seabra
Alexandra Pelayo
Rodrigues Pires
(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
________________
[1] Neste sentido A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, CPC Vol. I, 2ª edição, pág. 761
[2] Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V, pág. 127.
[3] Ac RG de 2.05.2024, Proc. Nº 2851/14.0T8VNF.G1; Ac RG de 2.03.2023, Proc. Nº 120724/15.0YIPRT.1.G1-A, www.dgsi.pt
[4] Ac RP de 10.09.2024, Proc. Nº3677/23.5T8STS.P1, Ac RP de 5.11.2024, Proc. Nº 600/24.3T8STS.P1 Ac RP de 11.12.2024, Proc nº 464/24.7T8AMT.P1, Ac RP de 13.05.2025, Proc. Nº 2938/24.0T8AVR.P1 www.dgsi.pt
[5] Proc. Nº 22595/23.0T8LSB-A.L1.S1, www.dgsi.pt
[6] Manual de Direito da Insolvência, 8ª edição, pág. 511-512