I - Um dos pilares que sustentam a visão marcadamente humanista que preside ao nosso sistema penal é o instituto da reabilitação.
II - O cancelamento definitivo da decisão no registo criminal com a reabilitação jurídico-penal do ex-condenado determina que seja tratado como delinquente primário no caso de tornar a figurar como arguido num novo processo.
III - Se é proibido ter-se tal ‘pretensa condenação’, tal ‘coisa proibida de conhecer’ em conta, não se atira com ela para cima da ‘mesa da conferência do tribunal de recurso’.
IV - Assim, a referência apofásica ou paralíptica a anterior condenação definitivamente cancelada, feita pelo recorrente, tem-se por não escrita e o recorrido, tal como se considerou na decisão recorrida, é um delinquente primário.
V - A exigência de proporcionalidade no sentido de se fazer o mínimo mal possível ao sujeito passivo acentua-se no caso da medida de coação, face à possibilidade de estar a ser aplicada a um inocente.
VI - Importa encontrar a justa medida das coisas, sem nunca esquecer que deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sobre a prisão preventiva.
VII - Se, conforme razoável e equilibradamente considerado pela Juíza de Instrução, as medidas de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica e proibição de contactos com os outros arguidos mitigam os indiciados perigos de perturbação do inquérito, de fuga, de continuação criminosa e perturbação pública, mostrando-se suficientes e adequadas, a aplicação da medida de coação prisão preventiva violaria os princípios da necessidade, subsidiariedade e proporcionalidade.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
Relator: William Themudo Gilman
1ª Adjunta: Cláudia Sofia Rodrigues
2ª Adjunta: Maria dos Prazeres Silva
No processo n.º 957/23.3T9AVR, a Sra. Juíza de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Instrução Criminal de Aveiro - Juiz 2, proferiu despacho em que ao abrigo do disposto nos artigos 191º, 193º, 201º/1 e 2, 204º/b) e c) e 212º/3, todos do Código do Processo Penal, decidiu substituir a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA pela medida de coação de obrigação de permanência na habitação, mediante fiscalização com recurso a meios técnicos de controlo à distância.
«1. Por despacho datado de 30.01.2025, decidiu a Mmª Juiz a quo, ao abrigo do disposto nos artigos. 192º, 193º, 196º, 200º/1 d), 202.º n.ºs 1 al. a) e b) e 204º b) e c), do Código de Processo Penal, sujeitar o arguido AA às medidas coactivas de prisão preventiva e de obrigação de não contactar por qualquer meio com os restantes arguidos.
2. Por despacho datado de 26 de março de 2025, decidiu o Tribunal a quo, ao abrigo do disposto nos artigos 191º, 193º, 201º, nº1 e 2, 204º, als b) e c), e 212º, nº3, todos do Código do Processo Penal, substituir a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido AA pela medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, mediante fiscalização com recurso a meios técnicos de controlo à distância.
3. O arguido está fortemente indiciado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº1, do D.L. 15/93, de 22-01, por referência à Tabela I-B e I-C anexa a esse diploma legal - cfr. factualidade indiciada constante do despacho de aplicação das medidas de coacção, pontos 108 a 152 e alínea C.
4. O arguido dedicou-se a esta actividade delituosa, juntamente com a sua companheira, a arguida BB, pelo menos, desde julho de 2023 a janeiro de 2025, ainda que aquele já anteriormente tivesse sido condenado no âmbito do processo nº..., por acórdão transitado em julgado no dia 26.01.2016, na pena efectiva de quatro anos e seis meses de prisão, pela prática de um crime de idêntica natureza, cuja condenação não poderá ser valorada para efeitos de medida de coacção a impor e da pena previsivelmente a aplicar ao arguido por ter sido cancelada no seu certificado de registo criminal, mas é a mesma reveladora da personalidade desconforme ao Direito que o recorrente tem assumido, sendo incapaz de interiorizar o desvalor da sua conduta, pese embora a reclusão sofrida na sequência dessa condenação. – cfr. certidão do processo nº ...
5. Mais resulta da factualidade indiciada, ter o arguido e a sua companheira, a arguida BB, vendido canabis (resina), e algumas vezes cocaína, a um número considerável de consumidores (cerca de dezassete), que previamente os contactavam telefonicamente para combinarem o local de entrega – cfr. sessões 00064, 00066, 00067, 00068 e 000070 do Alvo ... (arguido CC), do Apenso G; sessões 00164, 00165, 00168, 00170, 0017 e 00178 do Alvo ... (arguido CC), do Apenso I; sessões 11369, 11370, 11372, 11373, 11374, 11375, 11375, 11376, 11377, 11378, 11383,11385, 11389, 11390, 11398, 11519, 11770, 11782, 11838, 12087, 12139, 12163, 12165, 12247, 12256, 12287, 12291, 12450, 16621, 12661, 02100 e 02115 do Alvo ... (arguido AA), do Apenso H.
6. As transações de produto estupefaciente (incluindo o seu fornecimento por parte do arguido CC) chegaram a ocorrer, algumas vezes, junto à residência do arguido e no seu interior, tal como foi possível observar das várias vigilâncias realizadas pelo órgão de policia criminal que procedeu à investigação – cfr. RDE nº 30 e respectivo Auto de gravação e selecção de registo de imagens nº12 e Auto de Impressão de fotogramas nº12; RDE nº48 e respectivo Auto de gravação e selecção de registo de imagens nº26 e Auto de Impressão de fotogramas nº2; RDE nº98e respectivo Auto de gravação e selecção de registo de imagens nº69 e Auto de Impressão de fotogramas nº69, do Anexo I.
7. Assim, atenta a natureza do crime indiciado e a moldura penal correspondente -4 a 12 anos de prisão -, mostram-se desde já preenchidos os requisitos específicos para aplicação da prisão preventiva, definidos no n.º 1 do artigo 202.º, do Código de Processo Penal, e, por maioria de razão, os previstos na parte final do n.º 1 do artigo 201.º, quanto à obrigação de permanência na habitação.
8. Todavia, conforme decorre dos citados normativos legais, tais medidas só são de aplicar quando as demais medidas coactivas se mostrarem inadequadas ou insuficientes.
9. Não se ignora que a prisão preventiva é a medida de coacção mais gravosa para o arguido, daí que o legislador a tenha consagrado com natureza subsidiária e excepcional, isto é, só pode ser aplicada pelo juiz como “extrema ratio” – cfr. os arts. 18º, 27º e 28º, da Constituição da República Portuguesa.
10. Sucede porém, no que ao crime de tráfico de estupefacientes concerne, tem sido defendido pela a jurisprudência que a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, não seria proporcional à gravidade daquele crime e à respectiva sanção, nem seria suficientemente idónea para acautelar os perigos concretos e reais, saindo comprometidas as necessidades de natureza cautelar ínsitas às finalidades do processo penal e da justiça penal.
11. De facto, ainda que o arguido se mantenha confinado a uma residência, tal não o impede de repetir comportamentos de tráfico de estupefacientes, continuando a sua actividade delituosa, porquanto a OPHVE não tem a virtualidade de impedir os contactos e transações com fornecedores e clientes de droga, bastando, para o efeito, que o arguido faça uso do telemóvel, das redes sociais e/ou de terceiros, para adquirir produto estupefaciente junto de outrem, diligenciando, de seguida, para que alguém lho traga a casa, com vista a proceder posteriormente à sua venda junto daqueles que o contactem e se desloquem à sua habitação para lhe adquirirem droga.
12. Aliás, o perigo de continuação da actividade criminosa é mais acentuado para este arguido, caso se mantenha sujeito à medida de OPHVE, por ter este o apoio da sua companheira, a arguida BB, que poderá agora contactar livremente e, através do seu auxílio, retomar a actividade de tráfico que ambos têm vindo a desenvolver.
13. Por isso, entendemos que, no caso concreto, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação se afigura inadequada e insuficiente para acautelar os perigos que in casu se verificam, perigos esses que apenas estarão acautelados com a sujeição do arguido, de novo, à medida de coacção de prisão preventiva.
14. Assim é por existir neste tipo de crime um perigo sério de continuação da actividade criminosa, desde logo por ser a actividade de tráfico de estupefacientes geradora de enormes lucros e de ganhos rápidos sem necessidade de despender grande trabalho, o que a torna uma actividade tentadora para qualquer homem comum, mesmo quem tenha uma actividade profissional.
15. Tal sucedeu com o arguido que, apesar de estar inserido em termos profissionais, tem vindo a dedicar-se à venda de produtos estupefacientes há vários anos.
16. Deste modo, considerando o longo período de tempo em que o arguido vendeu droga a terceiros que o procuravam, é manifesto o perigo de continuar nesta atividade criminosa, perigo que se acentuará se se mantiver sujeito à medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, pois, como se referiu supra, esta medida não tem a virtualidade de impedir o arguido de praticar condutas integradoras dessa actividade de tráfico de estupefacientes, sendo que, in casu, o arguido beneficia ainda do apoio da sua companheira, a arguida BB, para continuar a sua actividade delituosa.
17. Mais se diga que não é pela circunstância de ter o arguido alterado a sua residência para fora do concelho de Aveiro, que o impede de retomar o seu negócio ilícito, pois a medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância electrónica, não obsta que este contacte os seus clientes a partir desta nova residência e seja por eles contactado, fazendo com que estes se desloquem à sua actual habitação.
18. Por outro lado, existe um sério risco de se agravar o perigo de perturbação do inquérito, na vertente de aquisição e conservação das provas, caso o arguido continue sujeito à medida de OPHVE, pois sabendo o mesmo da importância dos depoimentos das testemunhas para a prova dos factos que lhes são imputados, nada o impede de as contactar e coagi-las a faltar à verdade nas declarações que prestarem em sede inquérito, comprometendo, assim, a investigação, a descoberta da verdade material e a realização da justiça.
19. Por isso, é evidente o perigo de perturbação do inquérito, revelando-se a medida de obrigação ineficaz para acautelar esse perigo, pois enquanto estiver o arguido sujeito a tal medida coactiva, nada o impede de continuar a contactar as testemunhas que lhe adquiriram estupefacientes, com vista a convencê-las a não o incriminarem nas declarações que prestarem em sede de inquérito e nas fases subsequentes do processo.
20. Assim, é inequívoco que a medida de coação de permanência na habitação, mediante vigilância eletrónica, não é suficiente, nem adequada a impedir o arguido de continuar a atividade de tráfico, tornando-se, por isso, necessária a prisão preventiva - nenhuma outra se mostra suficiente e adequada a afastar aquele perigo-, sendo a única medida adequada às exigências cautelares que no caso se fazem sentir e proporcional à gravidade do crime indiciado - tendo em conta a respectiva moldura penal abstracta-, e à sanção que previsivelmente lhe poderá ser aplicada, em caso de condenação.
21. Face ao exposto, deverá o despacho recorrido ser revogado, substituindo-se a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, mediante fiscalização com recurso a meios técnicos de controlo à distância, aplicada ao arguido AA, pela medida de prisão preventiva.
22. Decidindo, como decidiu, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 191º, 192º, 193º, 201º, nº1 e 2, 202º e 204º, nº1, als b) e c), todos do Código de Processo Penal.
Contudo, Vossas Excelências decidindo, farão a costumada JUSTIÇA»
Juntos os referidos elementos, foram colhidos os vistos e foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
2.1-QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão a apreciar e decidir é a de saber se a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, mediante fiscalização com recurso a meios técnicos de controlo à distância, aplicada ao arguido AA é insuficiente para assegurar as necessidades cautelares do caso, devendo deve ser aplicada a medida de prisão preventiva.
Com relevo para a resolução das questões colocadas importa, desde logo, considerar o despacho recorrido, cujo teor se transcreve:
2.2.1- Despacho recorrido.
Entendeu-se então que apenas uma medida de coacção privativa da liberdade seria adequada, suficiente e proporcional, tendo em conta os perigos a acautelar de continuação da actividade criminosa, perturbação da ordem e tranquilidade públicas, perturbação do decurso do inquérito, na vertente da aquisição da prova, e de fuga.
Veio o arguido solicitar a substituição da medida aplicada pela obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, indicando uma morada fora do concelho de Aveiro, mais precisamente em ....
Nesta sequência, ordenou-se que fosse realizado o relatório necessário.
Tal relatório mostra-se agora nos autos.
Não foi ainda deduzida acusação.
Cumpre decidir.
Considerando a informação solicitada à DGRSP, verificamos estarem reunidas agora condições para que o arguido, ainda que privado da liberdade, possa sair do meio prisional, inserindo-se num meio familiar, acautelando-se os perigos apontados em sede de primeiro interrogatório judicial, seja pela utilização dos meios de vigilância electrónica e permanência na habitação (que precatam os perigos de perturbação do decurso do inquérito e de fuga), seja pela distância geográfica que existe entre a morada agora indicada pelo arguido em ... e a sua residência/local da prática dos factos indiciados (distância que mitiga o perigo de continuação da atividade criminosa e a perturbação da ordem e tranquilidade públicas).
Neste quadro, afigura-se-nos estarem criadas condições mínimas para substituição da prisão preventiva pela medida de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios electrónicos, em obediência a um fundamental princípio de adequação e proporcionalidade – arts. 18º da Constituição e 193º do Código de Processo Penal.
Na verdade, mostra-se agora viável um controlo minimamente eficaz da prevenção da continuação criminosa e dos restantes perigos mencionados, mediante recurso a medida de coacção menos grave.
Nestes termos, somos a concluir estarem reunidas condições para substituir a prisão preventiva a que está sujeito o arguido pela medida obrigação de permanência na habitação, sujeita a respectiva execução a vigilância por meios técnicos de controlo à distância.
Pelo que, tudo visto, ao abrigo do disposto nos arts. 191º, 193º, 201º/1 e 2, 204º/b) e c) e 212º/3, todos do Código do Processo Penal, decide-se substituir a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido AA pela medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, mediante fiscalização com recurso a meios técnicos de controlo à distância.
Emita desde já para o efeito os competentes mandados de condução.
Aveiro,
A Juíza de Instrução»
2.2.2- Circunstâncias relevantes dos autos:
-Despacho de 30.01.2025 após primeiro interrogatório (transcrição parcial):
«DESPACHO
I - Validação das detenções
Por ter sido a detenção dos arguidos (…) julgo as mesmas válidas.
Validam-se ainda as revistas (…).
II –Das medidas de coacção
Nos termos do disposto nas normas conjugadas dos arts. 28º/1 da Constituição e 268º/1,a) e 194º/1 do Código de Processo Penal, realizado o primeiro interrogatório judicial dos arguidos, cumpre determinar as medidas de coacção a que ficarão sujeitos nestes autos, para o que enunciaremos a factualidade que resulta indiciada e, após proceder à sua qualificação jurídica, se efectuará a ponderação das exigências cautelares que o caso convoca à luz dos critérios legais previstos no art. 193º do Código de Processo Penal.
A)Factos indiciados
Existem fortes indícios:
A
(…)
Vendas a AA e BB:
Ainda no exercício daquela atividade criminosa, pelo menos no período compreendido entre 26-07-2023 e 20-01-2025, o arguido CC vendeu ou forneceu, em condições ainda não concretamente apuradas, Canabis (resina) e Cocaína ao casal composto pelos arguidos AA e BB, nos locais, datas e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 38 vezes, produtos estupefacientes estes que os referidos arguidos AA e BB, posteriormente venderam a terceiros consumidores de tais produtos, nos termos que infra serão descritos.
Em cada um dessas transações, o arguido CC entregou ao AA e/ou à companheira deste, BB, quantidades que, na sua totalidade, ainda não se mostram concretamente apuradas, daqueles produtos, sendo que, no que concerne ao estupefaciente canabis (resina), geralmente era transacionado em placas, de peso não apurado, mas de valor unitário não inferior a € 200,00 (duzentos euros).
Ao longo do referido período foram transacionadas, entre o arguido CC e o casal composto pelos arguidos AA e BB, pelo menos, 53 placas de canabis (resina) e ainda 12g de cocaína em pó, por valor não inferior a € 40,00 (quarenta euros) a grama.
Nesse âmbito:
(…)
C
Dos arguidos AA e BB:
Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o mês de julho de 2023, o arguido AA, dedicou-se com regularidade e a título lucrativo à aquisição e venda de substâncias estupefacientes, nomeadamente, canábis (resina) e cocaína em pó (vulgo cocaína de cheiro), diretamente a indivíduos que lhos adquiriam para seu consumo e ainda a distribuidores destes produtos que de seguida os revendiam a consumidores, através da modalidade de venda direta ao consumidor.
Nesse período, o arguido AA adquiriu ao arguido CC elevadas quantidades de produtos estupefacientes, o que ocorreu em casa do próprio AA ou no armazém/oficina do arguido CC, isto após AA contactar previamente e por via telefónica o CC, utilizando para o efeito pelo menos, os números ... e ..., produtos estes que posteriormente vendeu, nos moldes que abaixo serão descritos, a consumidores e/ou revendedores de tais produtos, que para tanto o contactavam previamente por telefone.
No exercício da sua ação criminosa, o arguido AA agiu quase sempre em comunhão de esforços com a arguida BB, sua companheira, que tinha participação ativa na aquisição e venda dos estupefacientes, arguida esta que, na ausência de AA, designadamente quando este emigrou por um curto período, chegou mesmo a assumir o comando do negócio da venda de estupefacientes que vinha sendo desenvolvido pelo casal.
Com efeito, durante a ausência do arguido AA, coube à suspeita BB, sempre de acordo com o previamente planeado com aquele, diligenciar pela aquisição dos produtos estupefacientes, entre outros eventuais fornecedores, junto do arguido CC, bem como tratar da venda de tais produtos aos consumidores finais que, para tanto, a contactavam, contando-se entre esses consumidores:
- DD, utilizador do telemóvel número ...;
- EE do Bem, utilizador do telemóvel número ...;
- FF, utilizador do telemóvel número ...;
- GG, utilizador do telemóvel número ...;
- HH, utilizador do telemóvel número ...;
- II, utilizador do telemóvel número ...;
- JJ, utilizador do telemóvel número ...;
- KK, utilizador do telemóvel número ...;
- LL, utilizadora do telemóvel número ...;
- MM, alcunha “MM1”;
- NN, utilizador do telemóvel número ...;
- um indivíduo de nome “OO”;
- um indivíduo conhecido por “PP”:
- um indivíduo de nome “QQ”, utilizador do número ...;
- um indivíduo de alcunha “RR”;
- um indivíduo utilizador do número ...;
- um indivíduo utilizador do número ...;
Nesse âmbito:
Vendas a DD
No período compreendido entre 24-03-2023 e 18-11-2024 os arguidos AA e BB venderam canabis (resina) a DD, utilizador do telemóvel nº ..., nos locais, data e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 44 vezes. (…)
Vendas a EE
No período compreendido entre 31-01-2024 e 29-04-2024, os arguidos AA e BB venderam canabis (resina) a EE, utilizador do telemóvel nº ..., nos locais, data e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 3 vezes.(…)
Vendas a MM
No período compreendido entre 31-01-2024 e 06-01-2025, os arguidos AA e BB venderam canabis (resina) a MM, utilizador do telemóvel nº ..., nos locais, data e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 7 vezes.(…)
Venda a FF
82 - No dia 06-02-2024, após as 20:01, a arguida BB, agindo sempre em comunhão de esforços com o arguido AA, vendeu pelo menos 5 (cinco) placas de canabis (resina) a FF, utilizador do telemóvel ..., com peso não concretamente apurado e por valor unitário não inferior a €250,00 (duzentos e cinquenta euros), na residência daqueles, na Rua ..., em Aveiro.
Venda a GG
83 - No dia 11-04-2024, após as 21:15, o arguido AA, agindo sempre em comunhão de esforços com a arguida BB, vendeu pelo menos 5 (cinco) placas de estupefaciente canabis (resina) a GG, utilizador do telemóvel ..., com peso não concretamente apurado, por valor unitário não inferior a €250,00 (duzentos e cinquenta euros), na residência daqueles, na Rua ..., em Aveiro.
Vendas a HH
No período compreendido entre 05-05-2024 e 14-07-2024, os arguidos AA e BB venderam canabis (resina) e cocaína a HH, utilizador do telemóvel nº ..., nos locais, data e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 4 vezes.(…)
Vendas a OO
88 - No dia 16-03-2024, em hora não concretamente apurada, o arguido AA, agindo sempre em comunhão de esforços com a arguida BB, vendeu pelo menos 5 (cinco) placas de canabis (resina) a um individuo que identificavam como OO, com peso não concretamente apurado, por valor unitário não inferior a €250,00 (duzentos e cinquenta euros), na residência daqueles, na Rua ..., em Aveiro.
Vendas a II
No período compreendido entre 21-05-2024 e 15-11-2024, os arguidos AA e BB venderam canabis (resina) a um individuo que identificavam como II, utilizador do telemóvel nº ..., nos locais, data e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 4 vezes.(…)
Vendas a JJ
No período compreendido entre 02-08-2024 e 30-10-2024, os arguidos AA e BB venderam canabis (resina) a JJ, utilizador do telemóvel nº ..., nos locais, data e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 2 vezes.(…)
Venda a PP
96 - No dia 14-07-2024, em hora não concretamente apurada, a arguida BB, agindo sempre em comunhão de esforços com o arguido CC, vendeu canabis (resina) a um individuo que identificavam como PP, encontrando-se este acompanhado de DD, em quantidade e por preço não concretamente apurados, na residência daqueles, na Rua ..., em Aveiro.
Venda a KK
97 - No dia 13-05-2024, em hora não concretamente apurada, o arguido AA, agindo sempre em comunhão de esforços com a arguida BB, vendeu canabis (resina) a KK, utilizador do telemóvel nº ..., em quantidade e por preço não concretamente apurados, nas imediações da pastelaria A..., em Aveiro.
Vendas a NN
No período compreendido entre 24-10-2024 e 08-01-2025 os arguidos AA e BB venderam canabis (resina) a NN, utilizador do telemóvel nº ..., nos locais, data e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 5 vezes.(…)
Vendas a SS
No período compreendido entre 30-10-2024 e 06-12-2024, os arguidos AA e BB venderam canabis (resina) a um individuo que identificavam como SS, utilizador do telemóvel nº ..., nos locais, data e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 10 vezes.(…)
Vendas a TT
No período compreendido entre 30-10-2024 e 04-01-2025 os arguidos AA e BB venderam canabis (resina) a TT, utilizador do telemóvel nº ..., nos locais, data e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 7 vezes.(…)
Vendas a UU
No período compreendido entre 28-11-2024 e 13-12-2024 os arguidos AA e BB venderam canabis (resina) a UU, utilizadora do telemóvel nº ..., nos locais, data e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 7 vezes.(…)
Vendas a II
124- No dia 05-11-2024, em hora não concretamente apurada, o arguido AA, agindo sempre em comunhão de esforços com a suspeita BB, vendeu estupefaciente canabis (resina), a II, utilizador do número ..., em quantidade e por preço não concretamente apurados, no B..., em Aveiro. Para tanto, o SS dirigiu-se B..., sito, em Aveiro, e aí procederam à transação do referido produto.
Vendas a VV
125- No dia 20/11/2024, em hora não concretamente apurada, o arguido AA, agindo em comunhão de esforços com a suspeita BB, vendeu canábis (resina) a VV, em quantidade e por preço não concretamente apurados, na residência daqueles, na Rua ..., em Aveiro.
Vendas a QQ
No período compreendido entre 28-11-2024 e 17-01-2025 os arguidos AA e BB venderam canabis (resina) a QQ, utilizador do telemóvel nº ..., nos locais, data e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 2 vezes.(…)
Vendas a WW
128- No dia /12/2024, após as 20:33, a suspeita BB, agindo sempre em comunhão de esforços com o arguido AA, vendeu canábis (erva) a WW, em quantidade e por preço não concretamente apurados, na residência daqueles, na Rua ..., Aveiro;
Vendas ao utilizador do número ... (…)
Vendas a desconhecidos(…)
Venda a LL
133 - No dia 30-03-2024, em hora e local não concretamente apurados, a arguida BB, agindo sempre em comunhão de esforços com o arguido AA, vendeu pelo menos 2 (duas) placas de canabis (resina) a LL, utilizadora do telemóvel nº ..., com peso não concretamente apurado, por valor unitário não inferior a €250,00 (duzentos e cinquenta euros), na residência daqueles, na Rua ..., em Aveiro.
Venda a XX
134 - No dia 28-04-2024, após as 16:18, a arguida BB, agindo sempre em comunhão de esforços com o arguido AA vendeu canabis (resina) a XX, utilizadora do telemóvel nº ..., em quantidade e por preço não concretamente apurados, na residência daqueles, na Rua ..., em Aveiro.
Vendas a “RR”
No período compreendido entre 07-09-2024 e 19-10-2024, os arguidos AA e BB venderam canabis (resina) a um indivíduo de identidade desconhecida, com a alcunha “RR”, utilizador do telemóvel nº ..., nos locais, data e hora que seguidamente se indicam, o que sucedeu pelo menos 2 vezes.(…)
Das buscas:
137 - No dia 27-01-2025, os arguidos AA e BB detinham: (…) Na garagem/lavandaria
- Uma caixa metálica contendo seis pequenos sacos herméticos e canabis (resina) com o peso de 12,2 gramas;
138 - Os arguidos AA e BB destinavam os produtos estupefacientes acima descritos em 137 à venda a terceiros indivíduos, consumidores dos mesmos que, para tanto, o procurassem.
139 – As quantias monetárias acima descritas em 137 eram provenientes da venda de produtos estupefacientes.
140 – E os telemóveis e tablet igualmente descritos em 137 eram, por sua vez, utilizados pelos arguidos para contactar os seus fornecedores e serem contactados pelos indivíduos que lhes adquiriam produto estupefaciente.
(…)
Os arguidos CC, YY, ZZ, AAA, AA, BB, BBB, CCC e DDD, conforme referido, destinavam os produtos estupefacientes acima referidos em A, B, C, D, E e F à venda a terceiros, consumidores e/ou revendedores de tais produtos, nos termos supra descritos, atuando, nos períodos e da forma que acima ficaram descritos, para assim obterem lucros, correspondentes à diferença entre o preço de custo daqueles produtos estupefacientes e o preço a que, a final, os venderam.
(…)
De idêntico modo, os arguidos AA e BB praticaram os factos supra descritos e que aos mesmos estão imputados, de forma livre, voluntária e consciente, em comunhão de esforços e na execução do entre ambos acordado.
(…)
Os arguidos CC, YY, ZZ, AAA, AA, BB, BBB, CCC e DDD agiram com o propósito logrado de adquirir produtos estupefacientes para cedência e venda a terceiros e de deterem e realizarem a venda desses produtos nos termos supra descritos, sabendo que os produtos estupefacientes por si vendidos eram distribuídos por diversas pessoas dependentes do consumo de tais substâncias, com o único intuito de obterem lucros monetários com a sua venda.
E fizeram-no conhecendo a natureza, qualidade, quantidade e composição estupefaciente dos produtos por si adquiridos, detidos, cedidos e vendidos e bem sabendo, ainda, que a sua aquisição, detenção e cedência a qualquer título sem autorização legal são proibidas, o que representaram.
Além desses factos, com relevância, indiciam ainda os autos que:
(…)
O arguido AA trabalha na Alemanha, geralmente por períodos de três meses. É soldador. Aufere cerca €3000,00 por mês.
Reside em casa que pertence à sua mãe.
Vive com a sua esposa BB e com os dois filhos de ambos, de seis e dez anos de idade.
Vive com o seu marido, AA, e com os dois filhos de ambos, de seis e dez anos de idade.
CC foi julgado e condenado (…)
BBB foi julgado e condenado (…)
Os restantes arguidos (incluindo o arguido AA) não têm averbadas no seu registo criminal condenações pela prática de crime de tráfico de estupefacientes.
A)Elementos de prova que sustentam tais factos:
(…)
Os factos descritos acima descritos indiciam fortemente a prática pelos arguidos:
CC, YY, ZZ, AAA, AA e BB do crime de tráfico e outras atividades ilícitas (tráfico de droga), previsto e punível pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, na sua redação atual, introduzida pela Lei 25/2021, de 11/05.
(…)
Assim, neste momento, os indícios apontam, como defende o Ministério Público, quanto aos arguidos CC, YY, ZZ, AAA, AA e BB para um patamar superior da atividade de tráfico pelo que, os factos dos autos se inserem, relativamente aos arguidos referidos, no tráfico previsto no citado art. 21º n.º 1 do DL 15/93, de 22 de Janeiro, a que corresponde uma pena de 4 (quatro) a 12 (doze) anos de prisão.
(…)
Também quanto aos arguidos AAA e AA, não obstante a ausência de antecedentes criminais pela prática de idêntico ilícito, atendendo ao período longo em que os mesmos desenvolveram a actividade de tráfico (o primeiro pelo menos desde Março de 2023 a Janeiro de 2025 e o segundo tráfico pelo menos desde Julho de 2023 a Janeiro de 2025), ao elevado número de transações ilícitas indiciadas (mais de uma centena em relação a ambos, embora um muito maior número quanto ao arguido AAA), ao número de pessoas afetadas (estão já identificadas cerca de 40 pessoas a quem o arguido AAA vendia para consumo e/ou revenda e já apuradas 17 pessoas, ainda nem todas cabalmente identificadas, em relação ao segundo) e os valores envolvidos, apresenta-se como provável que estes arguidos possam vir também a ser condenados em penas de prisão efectiva.
Os restantes arguidos, com exceção de BBB, não são portadores de antecedentes criminais de natureza idêntica aos que aqui se apreciam e sendo-lhes atribuída uma menos relevante participação na atividade de tráfico de estupefacientes, tanto em relação a CC, que claramente liderou esta pequena rede criminosa, como em comparação à actividade desenvolvida por AAA e AA, com probabilidade verão as suas penas suspensas na execução.
E assim sendo, resta saber quais as exigências cautelares que o caso convoca e qual ou quais as medidas de coacção que se mostram adequadas, suficientes e necessárias para as acautelar.
Nesse particular, afigura-se-nos, salvo melhor entendimento, que o perigo de continuação da actividade criminosa no que concerne ao crime de tráfico de estupefacientes resulta bem evidenciado em relação a todos os arguidos, não só pela estrutura organizada que vivificam ter já estabelecida nas suas concretas áreas de atuação, mas pela panóplia de contactos que, cada um deles e por si, vêm firmando, ao longo do tempo, no prosseguimento desta atividade.
Na verdade, os arguidos dedicaram-se a esta actividade ilícita durante longos meses. E embora tenham todos (com exceção de YY) referido receber rendimentos do seu trabalho (ou pensão no caso de ZZ), certo é que tal não os impediu de prosseguirem com a actividade de tráfico de estupefacientes, de forma sistemática.
É, pois, previsível que os arguidos (especialmente os que já detém uma “boa carteira de clientes”/consumidores habituais a quem vendem) mantenham a venda de estupefacientes como a forma mais fácil para garantir rendimentos rápidos (tanto mais que em relação ao arguido CC e YY, os rendimentos que os mesmos declararam receber não serão suficientes para fazer face às suas despesas); este perigo de continuação da atividade criminosa desemboca, por sua vez, no perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas pela perigosidade e danosidade em termos sociais que a conduta dos arguidos representa – note-se que os arguidos CC, YY e os arguidos AA e BB vendem não só derivados de canábis, mas também cocaína, um tipo de estupefaciente conhecido pelas suas consequências nefastas na saúde, a quem o procure.
Por seu turno, o arguido CC, estando a cumprir pena prisão suspensa na execução, não se coibiu de praticar factos do mesmo tipo, o que mostra a sua incapacidade de agir em conformidade com a Lei. Também quanto a BBB em nada lhe serviu a sua recente condenação.
Em suma, embora por razões distintas, é em relação a todos os arguidos real e iminente o perigo de continuação da actividade criminosa, com o inerentemente associado perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, também pelo desassossego gerado na população (e até nas localidades pequenas em que habitam os arguidos) face a um aberto e fácil transaccionar deste tipo de substâncias lesivas da saúde.
Mas não é de excluir também o perigo de perturbação do decurso do inquérito, na vertente da aquisição da prova, aqui considerando ser de esperar que o inquérito prossiga necessariamente com as inquirições testemunhais dos muitos consumidores adquirentes de estupefacientes a estes arguidos que, como nos diz a experiência, têm já por natureza relutância em colaborar com a Justiça, prestando depoimentos consistentes e verdadeiros, mas que se sentirão certamente mais pressionados sabendo os seus fornecedores em liberdade e, porventura, ainda capazes de lhes fornecer o desejado estupefaciente.
Para fazer face a estes perigos, afigura-se-nos que apenas uma medida privativa da liberdade será adequada e suficiente, sendo ainda proporcional às penas que previsivelmente virão a ser aplicada aos arguidos CC, AAA e AA.
Com efeito, apenas a efectiva privação da liberdade obviará de forma eficaz aos indicados perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação da aquisição e conservação da prova.
Note-se que, em face do modus operandi do tipo de actividade levada a cabo por esses arguidos, e especialmente pelo arguido CC, a mera obrigação de permanência na habitação mostrar-se-ia insuficiente para este efeito.
Na realidade, mesmo a partir de casa, nomeadamente naquelas onde praticaram muitos dos factos indiciados, não seria difícil aos arguidos manter os contactos telefónicos com “clientes”, encontrando forma de adquirir a fornecedores e fazer as entregas a clientes a partir dessa habitação.
Note-se que em relação à medida de obrigação de permanência no caso do crime de tráfico de estupefacientes, mesmo com utilização de controlo electrónico, não atenua, em muitas situações, de forma suficiente a existência daqueles perigos, principalmente a continuação da actividade criminosa. Este crime pode perfeitamente ser levado a cabo na residência sem conhecimento da entidade vigilante, já que não é possível efectuar qualquer “fiscalização” através do meio técnico de controlo. Mesmo não sendo praticados na residência os actos materiais, sempre o “negócio” pode ser dirigido da residência (sobretudo para quem assume a posição de liderança).
Acresce que em relação a CC verifica-se ainda um concreto perigo de fuga. Com efeito, sendo agora este arguido confrontado com a vasta prova carreada, e com a possibilidade de vir a ser julgado pela prática do ilícito grave em questão e de lhe vir a ser aplicada uma pena de prisão entre 4 a 12 anos (sabendo que já têm antecedentes criminais pela prática deste ilícito), é de antever que, caso permaneça em liberdade, se coloque em fuga (ou em local desconhecido/inacessível as autoridades), porquanto possui capacidade para o fazer e encontraria aí a forma de se eximir às consequências que lhe poderão advir da presente investigação criminal (cfr. alínea a) do artigo 204.º do Código de Processo Penal).
Mais importa ressaltar neste conspecto que resulta dos autos, mais precisamente da sessão 02150 (fls. 4 e 5 do anexo E) das transcrições das interceções telefónicas, que o arguido já verbalizou “muitas vezes” que se “apanhar alguma pena de prisão” foge; que se for condenado, põe-se “a monte logo que é um instante”; mencionado ainda a arguida YY nessa conversação (mantida com a sua filha) que o mesmo vai “pra Guiné”, “ninguém lhe põe a mão”, “aquilo não é homem de tar preso”. E o próprio arguido, quando confrontado com tal escuta no âmbito do presente interrogatório, também referiu que teria sido melhor o casal ter ido para o estrangeiro…demonstrando estar consciente da gravidade da sua situação processual.
Já quanto aos arguidos AAA e AA crê-se ser bastante mais ténue este perigo de fuga. AAA estará, pelas suas declarações, muito enraizado no local em que sempre viveu e AA também, pela forte ligação familiar que mantém (não obstante a sua capacidade de movimentação para o estrangeiro, designadamente para a Alemanha).
Por este motivo, apenas quanto a estes dois arguidos, caso os mesmos indicassem uma alternativa concreta de residência, distante dos locais onde frequentemente eram procurados por adquirentes de produtos estupefacientes (de forma a mitigar o risco de continuação da actividade criminosa), o que por ora não sucede, poderia colocar-se a hipótese de poder vir a ser aplicada a obrigação de permanência na habitação (art. 201.º, n.º 1, do CPP), fiscalizada através da utilização de meios técnicos de controlo à distância (art. 201.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e art. 1.º, al. a), da Lei 33/2010 de 02/09). Todavia, tal fiscalização está dependente do consentimento do arguido e das pessoas maiores de 16 anos que com ele coabitem, bem como de prévio relatório dos serviços de reinserção social sobre a situação pessoal, familiar, laboral e social dos arguidos e da sua compatibilidade com as exigências da vigilância eletrónica e os sistemas tecnológicos a utilizar.
Assim, apesar de a medida de coação de prisão preventiva constituir a ultima ratio, mas uma vez que se mostra esgotada a possibilidade de aplicação de medidas não detentivas da liberdade e que não se mostra, pelo menos por ora, viável a aplicação de OPHVE a qualquer um dos arguidos, a medida de coacção de prisão preventiva é actualmente a única medida de coação que se mostra adequada e proporcional as exigências cautelares do caso.
Quanto aos arguidos CCC, DDD e BBB muito embora se verifiquem idênticas exigências cautelares, aos mesmos terão de ser necessariamente aplicadas medidas não detentivas, em face da qualificação jurídica das suas condutas.
No que concerne aos restantes arguidos - BB, YY e ZZ - muito embora se verifiquem igualmente idênticas exigências cautelares, crê-se que a prisão preventiva não se mostraria proporcional à pena que previsivelmente viria a ser-lhes aplicada em julgamento.
Relativamente ao arguido ZZ, salienta-se a sua participação coadjuvante e submissa em relação ao irmão CC. Também quanto a YY, dos autos decorre que CC detém sobre esta uma clara ascendência, até pela dependência/fragilidade económica em que aquela se encontra.
No que tange à arguida BB, se é certo que a mesma participou muito activamente no negócio liderado pelo seu marido AA (com uma atividade ilícita muito mais relevante, e quanto a nós mais censurável, do que a empreendida por YY) não deixa de ser verdade que revela, quanto a nós, uma posição mais recuada (e portanto também menos visível) e de apoio ao seu companheiro, conforme decorre da prova até agora reunida (não se pode escamoteando porém que a arguida mesmo no período em que o arguido AA estava ausente do País continuou a actividade ilícita, nomeadamente levando os seus filhos consigo).
De qualquer modo, afigura-se-nos não se mostrar a prisão preventiva, quanto a estes três arguidos, ainda necessária para atalhar ao perigo de continuação da actividade criminosa e inerente perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, mas também ao perigo de perturbação do decurso do inquérito na modalidade de aquisição e conservação da prova.
Para fazer face a estes perigos, afigura-se-nos que as medidas de coacção adequadas e suficientes, sendo ainda proporcionais às penas que previsivelmente virão a ser aplicadas aos arguidos, são as que infra se detalharão, de apresentações periódicas (com diversa periodicidade, atentando aos crimes concretamente imputados, participação de cada um e actuais condições de vida, nomeadamente de saúde), de obrigação de não contactarem entre si e de não se deslocarem a locais conotados com o tráfico. Tudo sem prejuízo, obviamente de, no decurso da vigência do estatuto coactivo a que ficarem sujeitos, se vir a verificar ser o mesmo insuficiente para fazer face a estas exigências cautelares, designadamente por verificada continuação criminosa.
Como tal e por tudo o exposto, os arguidos aguardarão os ulteriores termos do processo:
1) YY, ao abrigo do disposto nos arts. 192º, 193º, 196º, 198º, 200º/1,a) e d) e 204º/b) e c), do Código de Processo Penal, para além do TIR:
a. Obrigação de não permanecer nem se deslocar a locais conotados com o consumo/tráfico de estupefacientes;
b. Obrigação de não contactar por qualquer meio com qualquer dos restantes arguidos (com exceção de CC), nem com as testemunhas e consumidores já identificados nos autos;
c. Obrigação de apresentação semanal junto do posto policial mais próximo da área da sua residência;
2) ZZ, ao abrigo do disposto nos arts. 192º, 193º, 196º, 198º, 200º/1,a), d), e 204º/b) e c), do Código de Processo Penal, para além do TIR:
a. Obrigação de apresentação tri-semanal (segundas, quartas e sextas) junto do posto policial mais próximo da área da sua residência;
b. Obrigação de não permanecer nem se deslocar a locais conotados com o consumo/tráfico de estupefacientes;
c. Obrigação de não contactar por qualquer meio com os restantes arguidos, nem com as testemunhas e consumidores já identificados nos autos;
3) BB, ao abrigo do disposto nos arts. 192º, 193º, 196º, 198º, 200º/1,a) e d), e 204º/b) e c), do Código de Processo Penal, para além do TIR:
a. Obrigação de apresentação tri-semanal (segundas, quartas e sextas), junto do posto policial mais próximo da área da sua residência;
b. Obrigação de não permanecer nem se deslocar a locais conotados com o consumo/tráfico de estupefacientes;
c. Obrigação de não contactar por qualquer meio com qualquer dos restantes arguidos (com execeçao de AA), nem com as testemunhas e consumidores já identificados nos autos;
4) BBB, ao abrigo do disposto nos arts. 192º, 193º, 196º, 198º, 200º/1,a) e d), e 204º/b) e c), do Código de Processo Penal, para além do TIR:
a. Obrigação de apresentação bi-semanal (em dia a articular com o OPC competente), junto do posto policial mais próximo da área da sua residência;
b. Obrigação de não permanecer nem se deslocar a locais conotados com o consumo/tráfico de estupefacientes;
c. Obrigação de não contactar por qualquer meio com qualquer dos restantes arguidos, nem com as testemunhas e consumidores já identificados nos autos.
5) CCC, ao abrigo do disposto nos arts. 192º, 193º, 196º, 198º, 200º/1,a) e d), e 204º/b) e c), do Código de Processo Penal, para além do TIR:
a. Obrigação de apresentação bi-semanal (em dia a articular com o OPC competente), junto do posto policial mais próximo da área da sua residência;
b. Obrigação de não permanecer nem se deslocar a locais conotados com o consumo/tráfico de estupefacientes;
c. Obrigação de não contactar por qualquer meio com qualquer dos restantes arguidos, nem com as testemunhas e consumidores já identificados nos autos;
6) DDD, ao abrigo do disposto nos arts. 192º, 193º, 196º, 198º, 200º/1,a) e d), e 204º/b) e c), do Código de Processo Penal, para além do TIR:
a. Obrigação de apresentação semanal (em dia a articular com o OPC competente), junto do posto policial mais próximo da área da sua residência;
b. Obrigação de não permanecer nem se deslocar a locais conotados com o consumo/tráfico de estupefacientes;
c. Obrigação de não contactar por qualquer meio com qualquer dos restantes arguidos, nem com as testemunhas e consumidores já identificados nos autos;
7) CC, ao abrigo do disposto nos arts. 192º, 193º, 196º, 200º/1 d), 202.º n.ºs 1 al. a) e b) e 204º a), b) e c), do Código de Processo Penal:
a. Prisão preventiva;
b. Obrigação de não contactar por qualquer meio com os restantes arguidos (com exceção dos contatos com a sua companheira YY).
8) AAA, ao abrigo do disposto nos arts. 192º, 193º, 196º, 200º/1 d), 202.º n.ºs 1 al. a) e b) e 204º b) e c), do Código de Processo Penal:
a. Prisão preventiva;
b. Obrigação de não contactar por qualquer meio com os restantes arguidos.
9) AA, ao abrigo do disposto nos arts. 192º, 193º, 196º, 200º/1 d), 202.º n.ºs 1 al. a) e b) e 204º b) e c), do Código de Processo Penal:
a. Prisão preventiva;
b. Obrigação de não contactar por qualquer meio com os restantes arguidos (com exceção dos contatos com a sua esposa BB).
*»
*
Vejamos então se, como pretende o recorrente, as medidas de coação aplicadas ao arguido AA - medida de coação de obrigação de permanência na habitação, mediante fiscalização com recurso a meios técnicos de controlo à distância; e obrigação de não contactar por qualquer meio com os restantes arguidos (com exceção dos contatos com a sua esposa BB) - se mostram insuficientes para as exigências cautelares dos autos, devendo o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que sujeite o arguido à medida de coação de prisão preventiva.
Argumenta o recorrente que a medida de obrigação de permanência na habitação, mediante vigilância eletrónica, não é suficiente nem adequada a impedir o arguido de continuar a atividade de tráfico, tornando-se, por isso, necessária a prisão preventiva, pois que: o arguido já anteriormente foi condenado na pena efetiva de quatro anos e seis meses de prisão, pela prática de um crime de idêntica natureza, cuja condenação não poderá ser valorada para efeitos de medida de coação a impor e da pena previsivelmente a aplicar ao arguido por ter sido cancelada no seu certificado de registo criminal, mas é a mesma reveladora da personalidade desconforme ao Direito que o recorrente tem assumido, sendo incapaz de interiorizar o desvalor da sua conduta, pese embora a reclusão sofrida na sequência dessa condenação; a permanência na habitação não seria proporcional à gravidade daquele crime e à respetiva sanção; nem o impede de continuar atividades delituosas de tráfico; existe o sério risco de contatar as testemunhas e coagi-las e perturbar o inquérito.
No longo, mas sintético, completo e equilibrado despacho sobre as medidas de coação proferido após primeiro interrogatório, em 30.01.2025, a Sra. Juíza de Instrução ponderou a probabilidade de o arguido vir a ser condenado em pena de prisão efetiva, o perigo de continuação de atividade criminosa, algum desassossego da população e de perturbação do inquérito, concluindo pela necessidade de ser aplicada uma medida privativa da liberdade, sendo que o perigo de fuga é reduzido, dada a forte ligação familiar que mantém, sendo que caso o arguido viesse a indicar uma alternativa concreta de residência, distante dos locais onde frequentemente era procurado por adquirentes de produtos estupefacientes (de forma a mitigar o risco de continuação da atividade criminosa), o que por ora não sucede, poderia colocar-se a hipótese de poder vir a ser aplicada a obrigação de permanência na habitação, fiscalizada através da utilização de meios técnicos de controlo à distância. Assim, tendo vindo a verificar-se tal situação de indicação de uma morada fora do concelho de Aveiro, mais precisamente em ..., entendeu a Juíza de Instrução no despacho recorrido que ficavam acautelados os perigos apontados em sede de primeiro interrogatório judicial, seja pela utilização dos meios de vigilância eletrónica e permanência na habitação (que precatam os perigos de perturbação do decurso do inquérito e de fuga), seja pela distância geográfica que existe entre a morada agora indicada pelo arguido em ... e a sua residência/local da prática dos factos indiciados (distância que mitiga o perigo de continuação da atividade criminosa e a perturbação da ordem e tranquilidade públicas). Considerou então a Sra. Juíza estarem criadas condições mínimas para substituição da prisão preventiva pela medida de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios eletrónicos, pelo que em obediência a um fundamental princípio de adequação e proporcionalidade – arts. 18º da Constituição e 193º do Código de Processo Penal - procedeu à referida substituição da prisão preventiva pela OPHVE.
Vejamos.
Como é sabido, a lei processual penal sujeita a aplicação das medidas de coação a um conjunto de princípios – os princípios da legalidade, necessidade, adequação, proporcionalidade, subsidiariedade da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação e precaridade[1].
Sendo a prisão preventiva a medida de coação mais grave, porque mais restritiva do direito à liberdade, a sua aplicação depende da verificação de pressupostos legais de carácter geral (cfr. artigo 204º do CPP) e de carácter específico (cfr. artigo 202º nº1, als. a e b do CPP).
São pressupostos de carácter geral, não cumulativos:
- Fuga ou perigo de fuga;
- Perigo de perturbação da investigação;
- Perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da atividade criminosa.
São pressupostos de carácter específico, cumulativos:
- A existência de fortes indícios da prática de crime;
- Que o crime indiciado seja doloso;
- Que o crime indiciado seja punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos, ou, tratando-se de criminalidade violenta, de máximo igual ou superior a 5 anos, ou ainda, em casos de crime de terrorismo ou criminalidade altamente organizada, de máximo superior a 3 anos.
Para além destes pressupostos, a lei faz depender a aplicação desta medida de coação da verificação das seguintes condições: - A inadequação ou insuficiência das outras medidas de coação – cfr. artigo 202º nº1 do CPP; - A necessidade, adequação e proporcionalidade da medida – artigo cfr. 193º nº1, do CPP.
Dentro das medidas privativas da liberdade – a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação – há uma preferência legal quanto à obrigação de permanência na habitação, decorrente do princípio da subsidiariedade e da excecionalidade da prisão preventiva consagrada no artigo 28º, n.º 2 da CRP. Assim, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação, se esta medida também couber no caso, sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares – artigo 193º, n.º 3 do CPP.
Quanto ao primeiro argumento apresentado pelo Ministério Público nas conclusões do seu recurso, diremos já que é de difícil compreensão, pois que além do modo enviesado e contraditório como é apresentado, o lugar onde vai dar é absolutamente contrário a um dos pilares fundamentais que sustentam a visão marcadamente humanista[2] que preside à política-criminal revelada pelo nosso sistema penal: o instituto da reabilitação.
Não é fácil de entender qual a lógica de se dizer que uma condenação anterior «não poderá ser valorada para efeitos de medida de coação a impor e da pena previsivelmente a aplicar ao arguido por ter sido cancelada no seu certificado de registo criminal, mas é a mesma reveladora da personalidade desconforme ao Direito que o recorrente tem assumido, sendo incapaz de interiorizar o desvalor da sua conduta, pese embora a reclusão sofrida na sequência dessa condenação».
A única lógica que se consegue divisar é a da utilização da conhecida figura retórica da Apophasis ou Paralipse, artifício retórico através do qual se expõe determinada matéria ou se faz determinada afirmação, mas dizendo ao mesmo tempo que não se vai expor a matéria em causa ou que não se pode fazer tal afirmação[3].
Com efeito, o que o recorrente faz é chamar a atenção do tribunal de recurso para algo que é expressamente proibido ter em conta e que serviria para valorar desfavoravelmente a personalidade do arguido quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa.
Ora, mas se é proibido ter-se tal ‘pretensa condenação’, tal ‘coisa proibida de conhecer’ em conta, não se atira com ela para cima da ‘mesa da conferência do tribunal de recurso’ para que este acabe por a ter em conta.
Tanto mais, quanto os certificados do registo criminal juntos aos autos nas datas de ambos os despachos atrás referidos referem correta e em estrita obediência à lei (conforme podemos constatar do expediente junto nesta instância) que: nada consta da pessoa acima identificada.
Com efeito, por força do instituto da reabilitação jurídico-penal, a inscrição das condenações no registo criminal caducam nos termos do artigo 11º da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio (LEI DA IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL), norma que rege o cancelamento definitivo do registo criminal, o qual dispõe que «1 - As decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal nos seguintes prazos: a) Decisões que tenham aplicado pena de prisão ou medida de segurança, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5, 7 ou 10 anos sobre a extinção da pena ou medida de segurança, se a sua duração tiver sido inferior a 5 anos, entre 5 e 8 anos ou superior a 8 anos, respetivamente, e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza.»
O cancelamento definitivo da decisão no registo criminal constitui uma das expressões práticas do princípio político-criminal da reintegração do agente na sociedade, manifestada através da sua reabilitação jurídico-penal, impondo que o ex-condenado, decorrido determinado período de tempo sem cometer crimes, seja recolocado na situação jurídica anterior à sentença. Esta reabilitação constitui um verdadeiro direito subjetivo de todo o ex-condenado já reintegrado socialmente[4].
E tal cancelamento definitivo da inscrição da decisão no registo criminal tem por efeito impedir a transmissão válida do seu conteúdo, independentemente da finalidade que presida ao seu pedido de informação, ficando o seu beneficiário, como refere Figueiredo Dias, não só reinvestido no exercício dos direitos de que se achava privado, mas ainda terá de ser tratado como delinquente primário no caso de tornar a figurar como arguido num novo processo[5]. Acresce que o cancelamento definitivo da inscrição da decisão no registo criminal constitui uma autêntica proibição de prova[6], relativamente à utilização do registo como meio de prova dos factos relativos às inscrições canceladas.
Assim, tal referência apofásica ou paralíptica, sem sentido e proibida, a anterior condenação feita pelo recorrente no recurso e nas conclusões do mesmo tem-se por não escrita e o recorrido afinal de contas, tal como se considerou na decisão recorrida, é um delinquente primário.
Passemos agora ao argumento esgrimido pelo recorrente de que a «permanência na habitação não seria proporcional à gravidade daquele crime e à respetiva sanção».
A uma primeira leitura dir-se-ia que o recorrente ao invocar o princípio da proporcionalidade estaria a propugnar a aplicação de uma medida menos gravosa, não privativa da liberdade. Mas, afinal de contas a proporcionalidade invocada é no sentido inverso, no sentido da gravidade do crime e da respetiva sanção: a medida de coação privativa da liberdade aplicada (OPHVE) é insuficiente para (prevenir?) o crime de tráfico de estupefacientes indiciado e para a sanção (aplicável ou a aplicar?).
Ora, desde logo, é preciso não confundir a medida de coação com a condenação, sendo que na medida em que a sujeição a uma medida de coação tem de ser comunitariamente suportável face à possibilidade de estar a ser aplicada a um inocente a exigência de proporcionalidade no sentido de se fazer o mínimo mal possível ao sujeito passivo da medida acentua-se ainda mais. Acresce que em termos de medidas privativas da liberdade a exigência de proporcionalidade implica também a subsidiariedade destas medidas. Assim, não há proporcionalidade que imponha uma medida mais grave, designadamente a prisão preventiva, apenas podendo implicar o contrário, a aplicação de uma medida menos grave. Não tem, pois, sentido a invocação de que «a permanência na habitação não seria proporcional à gravidade daquele crime e à respetiva sanção».
Quanto ao argumento de que a obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica não impede o recorrido de continuar atividade delituosas de tráfico e o sério risco de contatar as testemunhas e coagi-las e perturbar o inquérito, haverá de se considerar que, como bem ponderou a Sra. Juíza de Instrução nos seus despachos (após primeiro interrogatório e despacho de alteração das medidas de coação), os perigos apontados de continuação da atividade criminosa, da ordem e tranquilidade pública e de perturbação da aquisição e conservação da prova, se é certo que exigem a aplicação de uma medida privativa da liberdade, podem ser atenuados pela utilização dos meios de vigilância eletrónica e permanência na habitação (que precatam os perigos de perturbação do decurso do inquérito e de fuga) e pela distância geográfica que existe entre a morada agora indicada pelo arguido em ... e a sua residência/local da prática dos factos indiciados (distância que mitiga o perigo de continuação da atividade criminosa e a perturbação da ordem e tranquilidade públicas).
É certo que não há garantias de que com a obrigação de permanência na habitação tais perigos desapareçam por completo, pois que, vista a realidade, até na cadeia o recorrido (como qualquer outro recluso) poderia continuar com a atividade de tráfico ou proceder à intimidação de testemunhas através de terceiro. Mas o que importa é encontrar a justa medida das coisas, sem nunca esquecer que deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sobre a prisão preventiva. E certo nos parece que, conforme razoável e equilibradamente considerado pela Juíza de Instrução, as medidas de coação aplicadas de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica a que acresce a também aplicada proibição de contactos com os outros arguidos com exceção da sua companheira e coarguida, mitigam de forma acentuada os referidos riscos.
Não nos podemos esquecer que além da imobilização numa residência sita em diferente concelho e da proibição de contatos, o arguido também sabe que já ficou no radar das autoridades e que corre o risco de se desrespeitar as medidas impostas ser de imediato sujeito a prisão preventiva. Ora, alguma racionalidade e consciência dos riscos que corre caso desrespeite as medidas haverá de ter o arguido. Finalmente, também a própria comunidade haverá de se manter calma com a privação da liberdade a que o arguido fica sujeito.
Tudo visto, afigura-se que as medidas de coação aplicadas pela primeira instância - medida de coação de obrigação de permanência na habitação, mediante fiscalização com recurso a meios técnicos de controlo à distância; e obrigação de não contactar por qualquer meio com os restantes arguidos (com exceção dos contatos com a sua esposa BB) – se mostram suficientes, necessárias, adequadas e proporcionais às exigências cautelares do processo.
Concluindo, a aplicação neste momento da medida de coação prisão preventiva violaria os princípios da necessidade, subsidiariedade e proporcionalidade, pelo que não merece censura a equilibrada decisão tomada pela Sra. Juíza de Instrução, nem se mostra violado o disposto nos artigos 191º, 192º, 193º, 201º, nº1 e 2, 202º e 204º, nº1, als b) e c), todos do Código de Processo
Assim, não merecendo a decisão recorrida qualquer censura, conclui-se pela improcedência do recurso.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida
Sem custas.
Porto, 15 de julho de 2025
William Themudo Gilman
Cláudia Rodrigues
Maria dos Prazeres Silva
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[1] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p.166.
[2] Cfr. Sobre esta visão humanista o preâmbulo do Código Penal, I-Introdução, 1- (2º parágrafo).
[3] Cfr.: https://en.wikipedia.org/wiki/Apophasis#:~:text=Apophasis%20(%2F%C9%99%CB%88p%C9%92,it%20should%20be%20brought%20up . https://dicionario.priberam.org/paralipse#:~:text=Origem%3A%20grego%20par%C3%A1leipsis%2C%20%2Deos,%2C%20neglig%C3%AAncia%2C%20esquecimento%2C%20omiss%C3%A3o.
[4] Cfr. sobre a reabilitação jurídico-penal e o cancelamento da inscrição no registo criminal, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p.653-654.
[5] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p.656.
[6] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p.645-646 e 656.