PERDA DE VANTAGENS
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Sumário

Sumário:
(da responsabilidade da Relatora)
I. Ao instituto da perda de vantagens do crime presidem finalidades preventivas - o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade que da prática de um ilícito não subsistirá qualquer benefício - revestindo, pois, natureza afim da medida de segurança.
II. Na sequência da controvérsia jurisprudencial suscitada a propósito da compatibilidade entre a perda de vantagens e o pedido de indemnização cível o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou jurisprudência, com o Acórdão de 11 de Abril de 2024, processo n.º 1105/18.7T9PNF.P1-A. S1, in www.dgsi.pt., tendo decidido que: «Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto».
III. Ora, in casu, o recorrente não questiona, fundadamente, o preenchimento dos pressupostos inerentes à declaração de perda a favor do Estado e/ou à condenação em sede de pedido de indemnização civil.
IV. O dissenso cinge-se à alegada incompatibilidade de cumulação das (duas) decisões e sem que o recorrente, em abono, descole do argumentário já dissecado e desconsiderado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que procedeu à uniformização de jurisprudência.
V. Como decorre das disposições legais aplicáveis e conforme jurisprudência uniformizada, o recorrente jamais se confrontará com a possibilidade de pagar em dobro, isto é, pagar ao Estado a quantia declarada perdida e, simultaneamente, à demandante aquela que foi fixada a título de indemnização civil.
VI. Com efeito, o Estado apenas poderá receber subsidiariamente a quantia fixada, ou seja, somente no caso de a demandante civil não vir a ser ressarcida voluntária ou coercivamente pelo demandado civil e, sempre, em estreita correlação com os direitos que assistem àquela.
VII. À mingua de qualquer fundamento que inovatoriamente suscite divergência e/ou desvio à jurisprudência uniformizada, resta-nos acompanhá-la, nos termos e ao abrigo do preceituado no art. 445.º, n.º 3 do C.P.P.
VIII. Termos em que, é de concluir que o recurso deve ser rejeitado, nos termos das disposições conjugadas dos art. 417º, n.º 6, al. b) e d) e 420º, n.º 1 ambos do C.P.P.

Texto Integral

DECISÃO SUMÁRIA
I. RELATÓRIO
1. Nos autos em referência, precedendo audiência de julgamento, os Senhores Juízes e a Sra. Juíza do Tribunal a quo, por acórdão de 12 de Março de 2025, para o que agora releva, decidiram:
«Condenar o arguido AA a pagar ao estado o valor das vantagens que com o crime obteve, no montante de €78.141,26 (setenta e oito mil cento e quarenta e um euros e vinte e seis cêntimos) - artº.110º, nº.1 do CP;
C. Condenar o arguido AA a pagar à demandante BB o montante de €78.141,26 (setenta e oito mil cento e quarenta e um euros e vinte e seis cêntimos) em razão dos prejuízos por ela sofridos a que acrescem os juros, calculado à taxa civil, que se venceram da data da notificação do PIC ao arguido e os que se vencerem até integral pagamento».
2. AA interpôs recurso deste despacho. Extrai da motivação as seguintes conclusões:
«A) O recorrente apropriou-se da verba de 78.141,26 € (setenta e oito mil cento e quarenta e um euros e vinte e seis cêntimos) no período compreendido entre 2017 e 2018 que destinou ao pagamento de bens e serviços, liquidação de dividas, incluindo ao Estado, bem como transferências favor de terceiros.
B) Foi condenando, em sede responsabilidade civil ao pagamento dessa quantia - 78.141,26 €- acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento;
C) No mesmo passo, foi condenado “ao pagamento ao Estado do valor das vantagens que com o crime obteve, no montante de 78.141,26 € (setenta e oito mil cento e quarenta e um euros e vinte e seis cêntimos)”.
D) Com a obrigação legal do recorrente proceder ao pagamento à assistente das quantias -acrescidas de juros de mora legal - que àquela pertenciam e o arguido indevidamente fez suas, acrescidas de juros de mora legal, nenhuma vantagem o recorrente obteve do ilícito e nenhuma quantia remanescente é devida ao Estado,
E) Sendo, sempre salvo melhor opinião, censurável a fundamentação a decisão recorrida segundo a qual essa “vantagem “assenta em ter pago ao Estado quando a aceitar-se essa tese vai implicar o pagamento em dobro das mesmas quantias com um enriquecimento (sem causa) a favor do Estado que no caso concreto ronda os 450%.
F) Estado que para além de receber valores que nunca foi titular pois são pertença de terceiros vai, discricionariamente, assumir a posição processual daqueles.
G) Destarte e porquanto, a assistente deduziu pedido de indemnização cível que foi integralmente considerado procedente. Com essa condenação em sede de responsabilidade civil ficou apurado não existir qualquer lucro ilícito remanescente e/ou vantagem indevida a favor do recorrente,
H) Por falta de preenchimento dos pressupostos a que alude o art.º 110º do C. Penal, violação de jurisprudência uniforme fixada em Acórdão (5/2024) e erro manifesto na interpretação do Direto, deverá o segmento da decisão recorrida ser revogado.
Termos em que pelas razões de facto e de Direto invocadas e aqui dadas por transcritas, deverá o presente recurso ser considerado procedente e, por essa via, o segmento da decisão recorrida que condena o arguido a pagar ao Estado o valor das vantagens que obteve com o crime, no montante de 78.141,26 € (setenta e oito mil cento e quarenta e um euros e vinte e seis cêntimos) ser revogado assim se fazendo a habitual e costumada».
3. O recurso foi admitido, por despacho de ... de ... de 2025.
4. O Ex.mo Magistrado do Ministério Público, na primeira instância, apresentou resposta ao recurso interposto. Aparta da respectiva minuta as seguintes conclusões:
«1. A questão objeto do presente recurso versa exclusivamente sobre saber se há lugar a perda das vantagens obtidas através de facto ilícito típico, nos termos do disposto no art.º 111.º, do Código Penal, nas situações em que o arguido foi condenado a pagar essa quantia a título de indemnização civil à assistente.
2. Dito de outra forma, impõe-se averiguar se o valor dessas vantagens obtidas através da prática de crime, uma vez reclamado em pedido de indemnização civil ou por outra via alternativa de cobrança de crédito, poderá, ainda, constituir objeto de declaração de perda de vantagem a favor do Estado, uma vez requerida pelo Ministério Público, no âmbito do processo-crime.
3. No caso concreto no acórdão proferido, ao contrário do que alega o recorrente, o juiz não pode deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime. Pois tal medida de carácter obrigatório, subtraída a qualquer critério de oportunidade ou utilidade.
4. A perda de vantagem patrimonial decorrente do crime insere-se ainda na reação jurídico-penal à prática de ilícito criminal enquanto a indemnização integra enxerto civil do processo penal e constitui reparação ou compensação, de natureza civil, dos prejuízos causados ao lesado mediante o cometimento do crime.
5. Salvo o devido respeito por opinião diversa, o recorrente, carece inteiramente de razão. No âmbito do processo penal, a perda de vantagens relacionadas com a prática do facto ilícito deverá ser objeto do conhecimento e decretamento pelo Tribunal, independentemente da formulação de pedido do lesado, bastando-se com o requerimento efetuado pelo Ministério Público – no exercício da ação penal –, e com a prova da ocorrência do facto ilícito típico e de que dele resultaram vantagens que vieram a ser adquiridas pelo agente.
6. E, mesmo que a vantagem obtida corresponda integralmente ao prejuízo causado ao lesado, cremos que, ainda nesses casos, deverá ser decretada a perda da vantagem.
7. Ou seja, deverá ocorrer sempre condenação na perda de vantagem, sem prejuízo de, em fase de execução de sentença, ser possível deduzir oposição à execução, por facto extintivo da obrigação – cf. artigo 729.º, al. g), do CPC.
8. Em suma, a declaração da perda de bens é independente de qualquer ponderação sobre a sua utilidade prática, pois é alheia a juízos de oportunidade, de conveniência, eficácia ou de utilidade.
9. Além disso, ainda que a decretação de perda de vantagens como providência de carácter criminal possa, à primeira vista, parecer inútil e inconsequente – como é defendido pelo recorrente que entende que as vantagens adquiridas não devem ser declaradas perdidas a favor do Estado quando já integram a indemnização judicialmente pedida, precisamente por se traduzir na aquisição de mais um desnecessário título executivo –, a mesma sempre se justifica pelo valor pedagógico da decisão e não é absurda.
10. No fundo o que o recorrente quer é o seguinte: sendo o direito à indemnização, mesmo quando já se mostra judicialmente estabelecido, é livremente renunciável e negociável, o mesmo não acontecendo com as medidas de carácter sancionatório, ou seja mesmo havendo condenação no pedido de indemnização a assistente, (ex-companheira do recorrente), pode vir a prescindir da mesma ou permanecer inativa com vista à sua cobrança e, nesse caso, inexistindo declaração de perda da vantagem a favor do Estado e condenação do arguido nesse pagamento, ficariam frustradas as finalidades preventivas do instituto.
11. Assim, não existe qualquer violação dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação da aplicação das sanções, como defende o recorrente.
12. Não merece, pois, censura nesta parte o acórdão recorrido.
13. Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pelo recorrente., pelo que o recurso não merece provimento».
5. Neste tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta, louvada na resposta apresentada, é de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente.
6. Realizado o exame preliminar decidiu-se proferir decisão sumária, pois que o recurso deve ser rejeitado, nos termos das disposições conjugadas dos art. 417º, n.º 6, al. b) e d) e 420º, n.º 1 ambos do C.P.P.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. O objecto do recurso, tal como demarcado pelo teor das conclusões da respectiva motivação, reporta ao exame da questão de saber se o Tribunal Colectivo a quo incorreu em erro de jure ao declarar a perda de vantagens, ao abrigo do disposto no art. 110.º, do C.P. (a par da condenação no pagamento da mesma quantia a título de indemnização civil).
2. A fundamentação trazida, com relevância para os segmentos decisórios em crise, é do seguinte teor:
«Da declaração de perda das vantagens:
O Ministério Público, nos termos e ao abrigo do disposto no artº.110º do CP, promoveu que se declarasse a perda das vantagens obtidas pelo arguido com a prática dos factos referidos na acusação pública, em concreto, o valor de €78.141,26 (setenta e oito mil cento e quarenta e um euros e vinte e seis cêntimos).
De acordo com o disposto no artº.110º, nº.1, al. b) do CP são declarados perdidas a favor do Estado as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
Dispõe o nº.4 do mesmo artigo que se os produtos ou vantagens referidas nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artº.112º-A.
A comprovada vinculação entre o objeto e a prática do crime constituiu, durante muito tempo, o fundamento para a declaração de perda de bens a favor do Estado.
A posição do objeto perante a catividade criminosa é, ainda hoje, o elemento que permite determinar em qual das categorias sistemáticas ele se integra, ou seja, se se trata de um “objeto”, “instrumento” ou “vantagem” da prática do facto ilícito típico (Hélio Rodrigues e Carlos Rodrigues, Recuperação de Ativos na Criminalidade Económico-Financeira, SMMP, 2013, págs. 175 e ss.).
Ora, a perda de vantagens, tal como está estabelecida no artº.110º do CP, abrange os designados “efeitos patrimoniais” do crime.
Neste conceito estão incluídas quer as vantagens obtidas “com o crime”, numa visão tradicional de “fruto”, quer aquelas que são obtidas “pela prática do crime”, ou seja, tudo aquilo que possa ser considerado preço ou recompensa de carácter económico que alguém entrega a outrem para que cometa um ilícito penal.
Faz-se, pois, apelo à ideia de benefício ou enriquecimento patrimonial resultante ou alcançado através da prática do facto ilícito típico, podendo tal benefício consistir num aumento do ativo, numa diminuição do passivo, no uso ou consumo de coisas ou direitos alheios ou na mera poupança ou supressão de despesas (João Conde Correia, Da proibição do confisco à perda alargada, INCM, 2012, págs. 80 e ss.).
A vantagem patrimonial pode ser instantânea, continuada ou diferida.
O legislador nacional subdividiu as vantagens do crime em duas categorias, distinguindo entre as recompensadas dadas ou prometidas e as restantes vantagens.
E prevê a lei nacional (artº.110º, nº.4 do CP), a possibilidade de substituir a perda das vantagens pelo seu valor.
In casu, deu-se como provado que o arguido teve no seu património ou no de terceiro para quem transferiu parte do valor de que se apropriou, uma vantagem de pelo menos €78.141,26 (setenta e oito mil cento e quarenta e um euros e vinte e seis cêntimos).
Em face do exposto, estando demonstrado aquele incremento na esfera patrimonial do arguido, à conta do crime por que vai condenado, declara-se a perda a favor do Estado daquela quantia de €78.141,26 (setenta e oito mil cento e quarenta e um euros e vinte e seis cêntimos), quantia em que se condena o arguido a pagar ao Estado [artº.110º nºs.1 al.b), 4 e 5 do CP]…uma vez que não descortinamos quaisquer circunstâncias, nem foram avançadas pelo arguido, que nos levem a lançar mão dos limites a que se reportam os artºs.112º e 112º-A, ambos do CP…e não se diga que a isso se opõe qualquer acórdão de uniformização de jurisprudência que conheçamos…pois, com o instituto aqui em causa pretende-se, como bastamente é referido pela jurisprudência de pela doutrina, colocar o arguido na posição financeira e patrimonial que tinha antes da apropriação…coisa que a condenação dele a devolver o valor à demandante não se alcança pois, com o valor de que se apropriou liquidou dívidas, nomeadamente ao estado, que se saldaram o que, mau grado aquela devolução, é benefício efetivo que deve ser anulado. Efetivamente o arguido deve reintegrar na esfera patrimonial da lesada o valor de que se apropriou e, para lá disso deve compensar o valor das dívidas que saldou e o valor do incremento patrimonial que proporcionou a terceiros.
Não se vendo nisto qualquer contradição com jurisprudência fixada.
D - Quanto ao PIC:
Dispõe o artº.129º do CP que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
Têm aplicação, assim, as regras da responsabilidade civil previstas nos artºs.483º e ss. do Código Civil (por diante CC), e da obrigação de indemnizar previstas nos artºs.562º e ss. do mesmo Código.
De acordo com o preceituado no primeiro referido comando legal, são pressupostos da responsabilidade civil: (i) a existência de um facto voluntário do agente; (ii) a ilicitude de tal facto (mediante a violação de um direito de outrem ou violação de lei que protege interesses alheios); (iii) a culpa (ou nexo de imputação do facto ao lesante, enquanto juízo ou censura ético-jurídica por o mesmo não ter agido de modo diverso ao exigido pela ordem jurídica); (iv) o dano (isto é, que o facto ilícito tenha causado um prejuízo a alguém); e (v) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Ora, provou-se que o arguido, por conta dos factos que praticou e que constituem crime causou à demandante um prejuízo de €78.141,26 (setenta e oito mil cento e quarenta e um euros e vinte e seis cêntimos), valor que, para lá dos juros devidos, é pedido pela demandante.
Assim…mostrando-se preenchidos os suprarreferidos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, procederá o pedido pelo valor referido a que acrescerão os juros, à taxa legal civil, calculados sobre aquele montante desde a data da notificação do arguido para contestar o PIC e até efetivo e integral pagamento».
2. Do recurso interposto
Conforme resulta do argumentário recursivo, o recorrente insurge-se contra o segmento decisório da declaração de perda aduzindo, em abreviada síntese, que «Com a obrigação legal do recorrente proceder ao pagamento à assistente das quantias -acrescidas de juros de mora legal - que àquela pertenciam e o arguido indevidamente fez suas, acrescidas de juros de mora legal, nenhuma vantagem o recorrente obteve do ilícito e nenhuma quantia remanescente é devida ao Estado», concluindo adrede que «a aceitar-se essa tese vai implicar o pagamento em dobro das mesmas quantias com um enriquecimento (sem causa) a favor do Estado».
Vejamos, então.
Dispõe o art. 110º do C.P. que:
«1 – Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito e típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.
2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa-fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.
3- O disposto nos números anteriores aplica-se às coisas ou aos direitos obtidos mediante transacção ou troca com as coisas ou direitos directamente conseguidos por meio do facto ilícito típico.
4 - Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor».
Consabidamente, ao instituto da perda de vantagens do crime presidem finalidades preventivas - o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade que da prática de um ilícito não subsistirá qualquer benefício - revestindo, pois, natureza afim da medida de segurança.
Na sequência da controvérsia jurisprudencial suscitada a propósito da compatibilidade entre a perda de vantagens e o pedido de indemnização cível o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou jurisprudência, com o Acórdão de 11 de Abril de 2024, processo n.º 1105/18.7T9PNF.P1-A. S1, in www.dgsi.pt.1, tendo decidido que: «Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto».
Com efeito, prevaleceu o entendimento de que:
«(…) a redacção do art.º 111.º, n.º 2, do CP é assertiva e não permite leituras ambíguas, referindo de forma imperativa: “São também perdidos a favor do Estado”. Esta redacção atesta, inequivocamente, que toda e qualquer vantagem patrimonial obtida por meio de prática de facto ilícito típico, possa e deva ser declarada perdida a favor do Estado. A lei não criou qualquer ressalva ou exigiu como requisito do instituto, a dedução de pedido de indemnização civil ou a falta dele, ou a existência de um título executivo prévio, como pressupostos negativos. De resto, quando conjugada com o citado art.º 130.º, n.º 2, do CP, permite facilmente constatar o modo como o legislador separou o confisco do pedido de indemnização civil.
Igualmente, também não procede o argumento da reserva prevista no art.º 110.º, n.º 6 do CP, (anterior art.º 111.º, n.º 2, do CP), em benefício dos direitos do ofendido, pois não se prevê qualquer derrogação legal das medidas de perda de vantagens. Tal normativo, apenas, significa que, concorrendo a execução do pedido de indemnização civil com a do valor da perda de vantagens, prevalecerá a primeira. Ou seja, remete para uma fase de tramitação posterior, a executiva, em que já estão atribuídos e delimitados os valores da indemnização do ofendido ou de terceiro, e o valor das vantagens, que poderão não coincidir.
(…) Donde sai reforçada, mais uma vez, a conclusão de que, “(…) o pedido de declaração de perda de vantagens não depende de qualquer pedido de indemnização, do qual é autónomo/independente, o que não significa que, caso esse pedido exista, deva ser ignorado. (…)
Com efeito, no caso da perda de produtos e vantagens estão sempre ressalvados os direitos do ofendido, nos termos do n.º 6 do artigo 110.º do Código Penal (cf. também artigo 8.º, n.º 10 da Directiva 2014/42/EU).”. Neste sentido, MARIA DO CARMO SILVA DIAS, “«Perda alargada» prevista na Directiva 2014/42/EU (artigo 5.º) e «Perda do Valor de Vantagem de Actividade criminosa» prevista na Lei n.º 5/2002 (artigos 7.º a 12.º)”, em O Novo Regime de Recuperação de Activos à Luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a Transpôs, cit., págs. 94-97, citada no já indicado Ac. do STJ, de 29/04/2020, Proc. n.º 928/08.0TAVNF.G1.S1.
(…) não existe qualquer violação dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação da aplicação das sanções, como é comummente defendido pela posição que não admite a compatibilidade entre a perda de vantagens e o pedido de indemnização civil. Por outro lado, também não se assiste ao efeito desta medida apenas com a verificação dos pressupostos formais – a declaração de perda de vantagens não é automática – tem de ser requerida pelo Ministério Público, no exercício da acção penal, em conformidade com o sistema sancionatório penal que é orientado pelos princípios constitucionais da fragmentaridade e do mínimo de intervenção do direito penal.
Em conclusão, o Estado deverá proceder ao confisco, sem constrangimento e independentemente da dedução de pedido de indemnização cível, quando os bens não possam ser restituídos ao lesado.
Se houver pedido de indemnização cível deduzido, o Tribunal poderá atribuir ao lesado, a requerimento deste, até ao limite do dano causado, as vantagens declaradas perdidas – art.ºs. 110.º, 111.º, e 130.º, n.º 2, do CP.
No entanto, se o lesado puder beneficiar do regime de reparação oficiosa da vítima – art.º 82.º-A, do CPP – ou tiver deduzido pedido de indemnização cível ou puder deduzi-lo em separado, nos termos do art.º 72.º, do CPP, sempre poderá requerer ao Estado a atribuição dos bens perdidos ou o produto da sua venda, por força do disposto no art.º 130.º, nº 2, do CP. Caso os bens possam ser restituídos ao lesado – art.º 186.º, n.º 1, do CPP – e, com isso, o agente for colocado na situação patrimonial em que estaria antes da ocorrência do facto ilícito, nada mais haverá a fazer. Se a vantagem for de valor superior ao prejuízo causado ao lesado, deverá o Estado confiscar o seu excesso.
A coexistência entre a perda de vantagens e a pretensão indemnizatória é, pois perfeitamente admissível. Tal não significa que o arguido possa vir a ser executado por ambos os títulos, mas nada impede que o ofendido/lesado os utilize alternativamente, pois têm âmbitos subjectivos distintos, não estando a sentença que condena no pagamento da indemnização apta a assegurar as finalidades pretendidas com o confisco.
Como se disse no recente Ac. do STJ, de 02/06/2022, Proc. n.º 61/21.9GBMTS.S1, em www.dgsi.pt,O pedido de indemnização não é uma espécie de questão prejudicial que impeça o confisco prévio dos instrumentos, produtos e vantagens decorrentes da prática do crime. Ou seja, a declaração de perda de vantagens é independente do pedido de indemnização civil e do interesse ou não do lesado na reparação do seu prejuízo.”.
O art. 130.º do CP, particularmente do seu n.º 2, ao estabelecer que “Nos casos não cobertos pela legislação a que se refere o número anterior, o tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os instrumentos, produtos ou vantagens declarados perdidos a favor do Estado ao abrigo dos artigos 109.º a 111.º, incluindo o valor a estes correspondente ou a receita gerada pela venda dos mesmos”, consagra a preferência da perda de bens sobre o pedido de indemnização, além de salvaguardar o direito dos lesados, que poderiam ver dificultada a execução dos bens do arguido em face da declaração do confisco.
Importa demonstrar ao arguido que o crime não compensa e, por outro lado, que se houver bens obtidos através da prática do crime devem ser usados para indemnizar os lesados.
Deste modo, nem o Estado está impedido de confiscar os proventos do crime, nem o lesado vê a sua compensação dificultada, nem o arguido pode ser constrangido a pagar duas vezes.”»
Ora, in casu, como decorre cristalinamente da motivação e conclusões recursórias, o recorrente não questiona, fundadamente, o preenchimento dos pressupostos inerentes à declaração de perda a favor do Estado e/ou à condenação em sede de pedido de indemnização civil.
Ao invés, deveras, o dissenso cinge-se à alegada incompatibilidade de cumulação das (duas) decisões e sem que o recorrente, em abono, descole do argumentário já dissecado e desconsiderado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que procedeu à uniformização de jurisprudência e a que atrás se aludiu.
Na verdade, como decorre das disposições legais aplicáveis e conforme jurisprudência uniformizada, o recorrente jamais se confrontará com a possibilidade de pagar em dobro, isto é, pagar ao Estado a quantia declarada perdida e, simultaneamente, à demandante aquela que foi fixada a título de indemnização civil.
Com efeito, o Estado apenas poderá receber subsidiariamente a quantia fixada, ou seja, somente no caso de a demandante civil não vir a ser ressarcida voluntária ou coercivamente pelo demandado civil e, sempre, em estreita correlação com os direitos que assistem àquela2.
Vale por dizer que, inolvidavelmente, a jurisprudência uniformizada «responde e resolve a questão suscitada pelo recorrente»3.
Assim sendo, à mingua de qualquer fundamento que inovatoriamente suscite divergência e/ou desvio à jurisprudência uniformizada, resta-nos acompanhá-la, nos termos e ao abrigo do preceituado no art. 445.º, n.º 3 do C.P.P.4
Termos em que, sem outros considerandos, é de concluir que o recurso deve ser rejeitado, nos termos das disposições conjugadas dos art. 417º, n.º 6, al. b) e d) e 420º, n.º 1 ambos do C.P.P.

III. DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
a) Rejeitar o recurso interposto por AA;
b) Condenar o recorrente no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 3 UC.
Comunique à primeira instância e notifique, de imediato.

Lisboa, 7 de Julho de 2025
Ana Marisa Arnêdo
____________________________________
1. Acórdão n.º 5/2024, publicado no Diário da República n.º 90/2024, Série I de 9/5/2024.
2. Art. 130º, n.º 2 do C.P.
3. Na expressão do Acórdão do S.T.J. de 19/6/2024, processo n.º 180/20.9TMCN.P1.S1, in www.dgsi.pt., prolatado a respeito.
4. Neste sentido, entre outros, o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/6/2025, processo n.º 1712/19.0T9FNC.L1-5, in www.dgsi.pt.