ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
DOLO
REENVIO
Sumário

Sumário:
[da inteira responsabilidade da relatora]
I. O erro notório na apreciação da prova, é erro que se vê logo, o erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta e que abrange, ainda, as hipóteses em que se violam as regras da experiência comum.
II. O reenvio será sempre de evitar e por isso apenas admissível quando não for, de todo, possível decidir a causa.
II. Assim, se se verificar tal vício e contendo os autos todos os elementos necessários para o efeito, impõe-se ao Tribunal Superior proceder à alteração da matéria de facto e determinação das consequências jurídico-penais dessa alteração, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 426.º, n.º 1, a contrario sensu, 428.º e 431.º, al. a), todos do CPP.

Texto Integral

Acordam, em conferência, as Juízas Desembargadoras da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
No processo sumário n.º 288/25.4PASNT do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local de Pequena Criminalidade de Sintra - Juiz 1, consta da parte decisória da sentença datada de ........2025, o seguinte (na parte que interessa):
«Por todo o exposto julgo a acusação improcedente, por não provada e, em consequência decido:
a) Absolver o Arguido AA da prática, em ...-...-2025, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, por referência ao artigo 121.º, n.º 1, do Código da Estrada.»
*
Inconformado com a decisão absolutória quanto a um dos crimes por que vinha acusado, veio o MINISTÉRIO PÚBLICO interpor recurso, formulando as seguintes conclusões [que se transcrevem]:
«I. O arguido vem acusado pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, conjugado com o disposto nos artigos 121.º, n.ºs 1 e 4 e 123.º, n.º 1 do Código da Estrada (doravante C.E.).
II. A sentença proferida pelo Tribunal a quo deu provado toda a factualidade descrita no libelo acusatório, com a excepção da actuação do arguido não preencher o elemento subjectivo do tipo legal, por o mesmo não ter tido a convicção de que tal comportamento lhe era permitido, ou seja, actuou convencido de que podia exercer a condução daquele veículo automóvel em território nacional.
III. Da factualidade julgada provada, o Tribunal a quo considerou não estar preenchido o elemento subjectivo do tipo, absolveu pela prática do crime pelo qual vinha acusado.
IV. O Tribunal a quo fundamente a sua decisão, por analisar da prova produzida de que o arguido não tinha qualquer consistência da prática de um ilícito criminal.
V. Ora, não é esse o entendimento do Ministério Público, considerando as declarações do arguido e do que resulta dos autos que o arguido tinha consciência da ilicitude da prática de um ilícito criminal, dado que já no passado tinha sido interceptado e pelo o sistema judicial tinha sido advertido para o cometimento de crime de condução sem habilitação, tendo beneficiado do instituto da suspensão provisória do processo.
VI. Resulta das declarações do arguido dos autos que o arguido é titular de cartão de cidadão português, falante e nacional português, frequentou o 12.º ano na ... (...), com família residente em Portugal, pais, esposa e filhos e que residiu em Portugal ... a ..., adquiriu cartão cidadão português e emigrou para Europa, tendo ultimamente residido e trabalhado na Suíça.
VII. O arguido afirmou em audiência saber e quer estar a par das exigências legais para conduzir na Suíça, embora não tenha em Juízo comprovado a posse de qualquer título de condução que o habitasse a conduzir naquele país.
VIII. Consideramos que o arguido não está de passagem por Portugal, pois tem família em Portugal, estou e trabalhou neste país, companheira e filhos aqui residentes.
IX. O Ministério Público fez consignar no despacho de acusação que não se optou e foi proposto o instituto da suspensão provisória do processo, porque o arguido já tinha beneficiado desse mesmo instituto pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, no Proc. n.º 402/16.2..., que correu termos no DIAP da Amadora.
X. No final das declarações do arguido prestadas em audiência, este afirma que o mesmo desde o ano passado tinha conhecimento que um seu tio estaria a tratar da alteração do título de condução na IMT, e que já tinha aconselhado uma advogada para ser mandatada para instruir esse procedimento.
XI. Ora, o arguido estava ciente e, pelo menos desde ..., já tinha tido contacto como sistema judicial e foi advertido para o facto da carta de condução guineense não ter validade em Portugal, aquando a aplicação da suspensão provisória processo.
XII. Importa aferir da censurabilidade do erro sobre a ilicitude, devendo ter necessariamente em consideração o tipo social ou a “posição social” do agente, relevando, a partir daí, verificar se o agente, por referência a um juízo aproximativo que tem por objecto as suas capacidades sociais, juízo que se elabora através da sua inserção social, grau de formação, cultura, inteligência, conhecimentos, situação cultural e socioeconómica, etc., e o “uso exigível” (i.e., esforço razoável de compreensão) do seu entendimento, percepção e das suas representações axiológico-normativas, teria tido a possibilidade de aceder à consciência da ilicitude do facto que realizou, como refere WESSELS.
XIII. Não podemos crer que o arguido mudou a sua a percepção da ilicitude, que se sedimentou ao longo de toda a vida do arguido em Portugal.
XIV. Aliás, não podemos admitir que o arguido tem conhecimento de todas as regras para dar equivalência da carta de condução guineense que é titular e modo de ser validada no território suíço, como descreveu em audiência, e em Portugal onde é nacional, falante da mesma língua, onde residiu a maior parte do tempo da vida adulta, tem família mais próxima residente, desconhece as exigências para ser validamente encartado.
XV. Não pode resultar provada qualquer erro sobre a ilicitude da conduta.
XVI. O arguido titular de uma carta de condução guineense titulada do arguido, emitida por país da C.P.L.P., ciente e relativamente ao qual não se verificam as condições cumulativas previstas no artigo 125.º, n.º 1, alínea c) do Código da Estrada (doravante C.E.), não é título habilitante para a condução de veículo a motor, razão pela qual deveria o arguido ter procedido à respetiva troca por carta de condução portuguesa, nos termos do artigo 125.º, n.º 4, conjugado com o disposto no n.º 2 do mesmo artigo e o artigo 14.º do Regulamento da Habilitação Legal Para Conduzir (doravante R.H.L.C.).
XVII. O arguido à data da prática dos factos, o arguido tinha pleno conhecimento de que a sua carta de condução, emitida pelo seu país de origem, não o habilitava a conduzir em território nacional, bem como, tinha conhecimento do processo de troca de títulos de condução estrangeiros que deveria ter observado.
XVIII. Em face do exposto, a título de conclusão, a argumentação expendida a respeito da qualificação jurídica dos factos, impõem, a nosso ver, decisão diversa da recorrida, devendo dar-se como provada a matéria de facto não provada, julgando-se concretamente que a mesma deve assumir natureza condenatória do arguido pela prática do crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal por qual deve ser condenado e, não, natureza absolutória.
XIX. Sopesando o exposto, entendemos que a douta sentença proferida nos presentes autos, ao absolver o arguido da prática do crime por que foi condenado, desrespeita o disposto nos artigos 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, 121.º, n.ºs 1 e 4, 123.º, n.º 1 e 125.º a contrario do C.E. e 8.º e Anexo III do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, revogar-se a douta sentença, substituindo-a por douto acórdão que condene o arguido numa pena de multa, com quantitativo próximo dos 60 (sessenta ) dias, à taxa diária de €6,50 (seis euros e meio), considerando as condições económicas declaradas em sede de audiência.
Nestes termos e no mais de Direito, deverá o presente recurso do Ministério Público merecer provimento de V.Exas., determinando-se a revogação da douta decisão recorrida e a consequente substituição por douto acórdão que condene o arguido numa pena de multa, com quantitativo próximo dos 60 (sessenta) dias, à taxa diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos).
Assim decidindo, Venerandos Juízes Desembargadores farão a costumada JUSTIÇA!»
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho datado de ........2025, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
*
O recorrido apresentou resposta, tendo formulado as seguintes conclusões [transcrição]:
«1) Com o devido respeito que é muito, o Recorrido não pode de todo concordar com as ilações/conclusões retiradas pelo Recorrente de forma a colocar em crise a sentença ora recorrida.
2) O arguido não subscreve de todo a tese do ora Recorrente.
3) O arguido em sede de julgamento, esclareceu o tribunal sobre a sua situação familiar e económica, nomeadamente, que não obstante ter família em Portugal, designadamente mulher e filhos, reside em permanência na Suíça, onde trabalha.
4) O arguido esclareceu igualmente, que veio a Portugal para o nascimento do filho, e aqui permaneceu cerca de vinte dias, não mais.
5) Esclareceu igualmente, que na Suíça pode conduzir com a carta da Guiné-Bissau.
6) Esclareceu igualmente o tribunal que não sabia que não podia conduzir.
7) Informou igualmente o tribunal que já se encontrava a tratar da troca da carta, juntando comprovativo do agendamento no IMTT.
8) Não mencionou o Recorrente, que foi ouvido o agente BB, testemunha arrolada pela acusação, que prestou um testemunho, isento, claro, esclarecido, disponível na aplicação informática do tribunal, com início pelas 11.46h e término pelas 11.49h. que frisou que o arguido se mostrou muito surpreendido, desconhecendo que não podia conduzir.
9) O tribunal a quo decidiu com base no conjunto de prova produzida, analisada criticamente, à luz das regras do bom senso e da experiência comum.
10) Aliás a douta Sentença ora em crise é justa, equilibrada e está bem fundamentada, não merecendo qualquer reparo, ao contrário do alegado pelo Recorrente.
Assim sendo, a douta sentença ora recorrida, não merece qualquer reparo.
Face ao supra exposto, a douta sentença deverá ser mantida na íntegra, sendo o recurso ora interposto considerado totalmente improcedente.
Assim, se fazendo a costumada Justiça!»
*
Nesta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
*
Foi cumprido o estabelecido no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP).
*
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
**
II. OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso é definido, como é sobejamente sabido, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, cumpre apreciar:
- se se verifica erro notório na apreciação da prova;
- em caso afirmativo, se o arguido deve ser condenado pelo crime de condução sem habilitação legal, com a consequente determinação concreta da pena.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação e enquadramento jurídico-penal [transcrição]:
«A. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Da discussão da causa e com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos: «1. No dia ...-...-2025, pelas 18h15, o AA conduziu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula VS… pelo ..., em ....
2. O AA não era, naquela data, titular de carta de condução válida, nem de qualquer outro documento que o habilitasse à condução do referido veículo.
3. O AA conhecia as características do referido veículo e do local onde conduzia, e sabe que para conduzir veículos motorizados na vida pública necessita de ser titular de carta de condução ou de qualquer outro documento que o habilite a conduzir o mesmo.
4. O AA agiu sempre de forma livre, voluntaria e consciente.
Mais se provou que:
5. O AA é titular de uma carta de condução emitida pela Guiné Bissau.
6. O AA conduz habitualmente na Suíça, e por esse motivo, achava que estaria habilitado a conduzir em Portugal.
7. O AA agiu da forma descrita convencido de que podia exercer a condução daquele veículo automóvel em território nacional.
8. O AA trabalha na Suíça, onde aufere cerca de 3.000,00€ a 3.200,00€ por mês.
9. O AA tem 2 filhos (com 17 e 4 anos) e aguarda o nascimento de uma outra filha.
10. O AA suporta os seguintes gastos mensais:
a. 500,00€ (quinhentos euros) pela renda da habitação;
b. 120,00€ (cento e vinte euros) pela creche de um dos filhos;
11. Com uma frequência não concretizada, o AA envia cerca de 300,00€ (trezentos) euros para ajudar nas despesas de um dos filhos que reside na ....
12. O AA estudou até ao 12.º ano.
13. O AA marcou atendimento para troca de título estrangeiro junto do IMT para 31.03.2025.
14. O AA não tem antecedentes criminais.
*
B. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Não se provaram todos os demais factos, designadamente:
1. Que o Autor sabia que não estava legalmente habilitado a conduzir o veículo em território nacional.
2. Que o Autor agiu de forma descrita bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
C. MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal formou a sua convicção com base na prova produzida em audiência, a qual foi livremente valorada de acordo com o artigo 127.º, do Código de Processo Penal.
Assim, foram tidas em consideração as declarações do AA que confirmou que no dia ...-...-2025, pelas 18h15 conduziu o veículo com a matrícula VS… (factualidade n.º1).
O facto de não ser titular, naquela data, de carta de condução válida, nem de qualquer outro documento que o habilitasse à condução do referido veículo resulta da informação prestada pelo IMT, fls 9.
A factualidade vertida no ponto n.º 3 e 4 resulta das mais elementares regras da experiência comum quando confrontadas com os dados objetivos dados como provados, porquanto é do conhecimento geral e acessível ao cidadão comum que para conduzir veículos motorizados na via pública é necessário estar munido do respetivo título/carta de condução válida, emitida por organismo competente. Sendo certo que, o AA, sendo detentor de carta de condução emitida pela Guiné Bissau, tem conhecimento da necessidade de ser titular de carta de condução para conduzir veículos motorizados, tendo, nessa medida, exercido a condução do veículo de forma livre, voluntária e consciente.
O facto n.º 5 referente à circunstância de o AA ser titular de carta de condução emitida pela Guiné Bissau resulta da cópia da referida carta junta aos autos pelo AA, ref.ª citius ....
Por outro lado, o Tribunal socorreu-se ainda do depoimento da testemunha BB que confirmou que o AA foi abordado porquanto se encontrava a estacionar em local destinado a cargas e descargas e que terá sido nessa circunstância que lhe foi solicitada a apresentação da carta de condução, tendo o AA entregue a carta de condução emitida pela Guiné Bissau. Mais referiu a testemunha que o AA mostrou-se surpreendido quando a testemunha lhe comunicou que tal carta não o habilitava a conduzir em Portugal, pois, de acordo com o relatado pela testemunha e confirmado pelo AA em sede de audiência de julgamento, o AA acreditava que ao conduzir na Suíça com a referida carta também estaria habilitado a conduzir em Portugal [facto n.º 6 e 7] .
No que diz respeita às condições socioeconómicas e pessoais, valorou-se positivamente as declarações do AA, as quais foram credíveis e não foram infirmadas por quaisquer outros elementos probatórios [factos n.º 8 a 13].
Em conjugação com os elementos supra referidos, valorou-se ainda o teor do auto de notícia que ajudou a circunstanciar a ação; a cópia da carta de condução emitida na Guiné-Bissau, [ref.ª citius ...], o comprovativo de marcação para alteração/ troca da carta junto do IMT [ref.ª citius ...], a informação do IMT [fls 9] e o certificado de Registo Criminal que revelou que o AA não possui antecedentes criminais.
Quanto aos factos não provados, os mesmos assim resultaram porquanto foi feita prova da realidade contrária, ou seja, que o AA estava convencido que estava habilitado a conduzir em Portugal e, portanto, que a sua conduta era lícita e criminalmente inócua.
É, pois, esta a convicção do Tribunal.
*
IV. DO DIREITO
1. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Fixados os factos provados, cumpre proceder ao seu enquadramento jurídico-penal e verificar se estão preenchidos os elementos constitutivos do crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, nºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de janeiro.
Dispõe o referido artigo que quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com pena de prisão até 2 (dois) anos ou com pena de multa até 240 (duzentos e quarenta dias).
Os elementos objetivos constitutivos do tipo deste crime são a condução de veículo automóvel ou motociclo, na via pública ou equiparada, sem estar habilitado nos termos do Código da Estrada, sendo que, o documento que titula a habilitação para conduzir tais veículos, denomina-se carta de condução.
Deste modo, o AA só poderia conduzir o veículo em causa se fosse detentor de carta de condução, de acordo com o disposto nos artigos 105.º, 107.º e 121.º, n.ºs 1 e 4 do Código da Estrada, o que não sucedia no caso ora em apreço.
Para além do exposto, importa considerar que, nos termos do artigo 125.º do Código da Estrada, além da carta de condução são, ainda, títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes:
a) Títulos de condução emitidos pelos serviços competentes pela administração portuguesa do território de Macau;
b) Títulos de condução emitidas por outros Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu;
c) Títulos de condução emitidos por outros Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), desde que verificadas as seguintes condições cumulativas:
i) O Estado emissor seja subscritor de uma das convenções referidas na alínea seguinte ou de um acordo bilateral com o Estado Português;
ii) Não tenham decorrido mais de 15 anos desde a emissão ou última renovação do título;
iii) O titular tenha menos de 60 anos de idade;
d) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária;
e) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro, desde que em condições de reciprocidade;
f) [Revogada.]
g) Licenças internacionais de condução, desde que apresentadas com o título nacional que as suporta;
h) Licenças especiais de condução;
i) Autorizações especiais de condução;
j) Licença de aprendizagem.
Por sua vez, nos termos do n.º 3 da referida norma, os titulares das licenças referidas nas alíneas d), e) e g) do n.º 1 estão autorizados a conduzir veículos a motor em Portugal durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não sejam residentes.”
Sendo que, nos termos do n.º 4 “após fixação da residência em Portugal, o titular das licenças referidas no número anterior deve proceder à troca do título de condução, no prazo de 90 dias”.
Assim, não estando abrangidas nas alíneas d), e) e g) do n.º 1, as cartas de condução dos países da CPLP não precisam de ser trocadas por carta portuguesa, para serem consideradas válidas, ao contrário do que acontecia anteriormente.
No entanto, têm que cumprir os requisitos constantes na alínea c), sendo que a Guiné Bissau não cumpre logo o primeiro requisito, uma vez que não subscreveu qualquer das convenções (Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária), nem tão pouco celebrou qualquer acordo bilateral com o Estado Português.
Nesta medida, as cartas de condução emitidas pela Guiné-Bissau não habilitam a conduzir em Portugal, porquanto, não se enquadram nas situações previstas neste artigo 125.º do Código da Estrada.
Considerando o exposto, dúvidas não existem de que, no caso em apreço, estão verificados todos os elementos objetivos que configuram o crime de condução de veículo sem habilitação legal n.º 2, do artigo 3.º, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de janeiro de que o AA vem acusado.
Com efeito, provou-se que o AA, na ocasião acima descrita, conduzia um veículo automóvel na via pública, sem para tanto estar habilitado com a devida carta de condução (cfr. arts. 85.º, n.º 1, al. b), 105.º, 121.º, n.º 1, 122.º, nºs 1 e 2, e 123.º, todos do Código da Estrada).
Por sua vez, o tipo subjetivo deste ilícito criminal pressupõe por parte do agente uma conduta dolosa, em qualquer das modalidades de dolo previstas no artigo 14.º do Código Penal, enquanto conhecimento pelo agente de que não dispõe de documento válido para a prática da condução de tal veículo, sabendo que tal ato é punido por lei. Estamos, assim, perante um ilícito punido apenas a título doloso.
Sucede que o AA é titular de carta de condução emitida pelas autoridades competentes da Guiné-Bissau, tendo agido da forma descrita convencido de que podia exercer a condução daquele veículo automóvel em território nacional, em virtude de exercer atividade laboral na Suíça e aí conduzir com a referida carta.
Deste modo, cumpre aferir se no caso sub judice o desconhecimento do AA se integra na previsão do artigo 16.º ou 17.º do Código Penal, daí retirando as devidas consequências legais.
Estabelece o referido artigo 16.º, no seu n.º 1, que “o erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo”.
Nos termos do artigo 14.º do Código Penal, o dolo é direto quando o agente prevê e tem como fim a realização do facto criminoso (n.º1), o dolo é necessário quando o agente sabe que em consequência de uma sua conduta realizará um facto que preenche um tipo legal de crime e, ainda assim, não se abstém de a pratica (n.º 2); por fim, o dolo é eventual, quando o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta, mas não se abstém de a empreender, conformando-se com a produção do resultado (n.º3).
Ora, o dolo é constituído pelo elemento intelectual (conhecimento dos elementos objetivos do tipo de ilícito) e pelo elemento volitivo (que compreende a direção de uma vontade para um determinado comportamento), e está dividido em três modalidades: dolo direto, dolo necessário e dolo eventual – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. 157/22.0GDCBR.C1, de 13-12-2023, relator José Eduardo Martins, disponível em www.dgsi.pt.
Deste modo, “quanto ao elemento intelectual do dolo, torna-se necessário, para que o dolo se afirme, que o agente conheça e represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo. Com a consequência de que sempre que o agente represente erradamente, ou não represente, um qualquer dos elementos típicos objectivos, o dolo terá de ser afastado.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 141/16.2PAAMD.L1-5, de 24-04-2018, relator Jorge Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt.
Assim, o agente ao atuar deve ter conhecimento de todos os factos necessários a uma correta orientação da sua consciência ética e do desvalor jurídico da sua conduta, pois só quando a totalidade dos elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá afirmar que ele decidiu pela prática do ilícito e que, nessa medida, deverá responder por uma atitude contrária ao bem jurídico lesado pela conduta.
Por este motivo, “sempre que o agente não represente, ou represente erradamente, um qualquer dos elementos do tipo de ilícito objectivo, o dolo terá, desde logo, de ser negado” - cfr. FIGUEIREDO DIAS, apud – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 141/16.2PAAMD.L1-5, de 24-04-2018, relator Jorge Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt.
Já o artigo 17.º do Código Penal estipula que: “1- Age sem culpa quem atuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável. 2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respetivo, a qual pode ser especialmente atenuada”.
No que toca à censurabilidade do erro sobre a ilicitude, o erro será censurável, ou não, “consoante ele próprio seja, revelador e concretizador de uma personalidade indiferente perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente” – Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. 253/11.9GACBT.G1, de 05-11-2012, relator João Lee Ferreira, disponível em www.dgsi.pt.
Por conseguinte, a imputação do erro sobre a ilicitude ao agente é fundamentalmente decidida em função de um juízo sobre as características da atitude pessoal do agente, isto é, no apuramento de uma atitude de fidelidade ou de contradição ou indiferença ao Direito
Com efeito, o que distingue o erro sobre o facto típico, previsto na primeira parte do n.º 1 do artigo 16.º do erro sobre a ilicitude, previsto no artigo 17.º, é o respetivo objeto.
“O primeiro tem por objeto os mala prohibita, os crimes cuja ilicitude não se presume conhecida de todos os cidadãos, nem lhes é de exigir tal conhecimento”, enquanto que “o segundo tem por objeto os mala in se, os crimes cuja ilicitude se presume conhecida de todos os cidadãos, sendo-lhes exigível tal conhecimento”. – veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. 60/16.2GCSCD.C1, de 08-11-2017, relator Vasques Osório, disponível em www.dgsi.pt.
E há, ainda, outras diferenças entre ambos: “no primeiro deles estamos ainda – tal como no caso de erro sobre os elementos do tipo – perante uma falta de conhecimento que deve ser imputada a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, conforme o específico tipo de censura da negligência. Pelo contrário, no segundo caso, estamos perante uma deficiência da própria consciência ético-jurídica do agente, que não permite apreender corretamente os valores jurídico-penais, e que por isso, quando censurável, conforma o específico tipo de censura do dolo” – FIGUEIREDO DIAS, Pressupostos da Punição, 73 apud SIMAS SANTOS E LEAL – HENRIQUES, Noções de direito penal, 7ª edição, Rei dos Livros, 2020, p. 141
Assim, o erro previsto no artigo 16.º, n.º1 e no artigo 17.º, do Código Penal, releva de modo diferente: nos casos previstos no artigo 16.º, n.º1, o erro afasta o dolo, mesmo que censurável, ressalvando-se a punibilidade da negligência; nos casos previstos no artigo 17.º, o erro não censurável afasta a culpa, tendo o efeito de uma causa de exclusão da culpa; mas se o erro for censurável, há culpa e o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso, a qual pode ser especialmente atenuada.
Considerando o exposto e retomando a análise do 16.º do Código Penal, importa considerar que há, portanto, três situações em que o erro pode excluir o dolo: quando verse sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime; quando verse sobre os pressupostos objetivos de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa (erro de representação da realidade); ou quando verse sobre proibições (ou imposições, no caso de omissão) cujo conhecimento seria razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência do ilícito.
O erro sobre a factualidade típica versa sobre a falta de representação dos elementos do tipo e sobre a representação errada destes elementos. Assim, “havendo por parte do sujeito uma representação errada ou uma falta de representação, o dolo é afastado” – MIGUEZ GARCIA CASTELA RIO, Código Penal, Parte geral e especial, Almedina, p. 158
O erro sobre as circunstâncias inclui, assim, o erro sobre os elementos que já existem no momento em que o agente inicia a sua conduta, os elementos produzidos pela sua conduta, o processo causal, quando elemento constitutivo do crime, os elementos jurídicos utilizados pela lei, os pressupostos de facto ou de direito de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. – neste sentido, v. SIMAS SANTOS E LEAL – HENRIQUES, Noções de direito penal, 7ª edição, Rei dos Livros, 2020, p. 14.
Por outro lado, o artigo 16.º, n.º 1, do Código Penal, reconhecendo ainda o erro sobre a proibição, afirma que a sua existência exclui o dolo, equiparando-o ao erro sobre a factualidade típica, quando o seu conhecimento “for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto”, ficando ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.
Assim, “o conhecimento da proibição legal, que não é exatamente equivalente a “consciência da ilicitude” existe nos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito.” – cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, tomo I, apud Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. 430/15.3GEGMR.G1, de 19-06-2017, relator Jorge Bispo, disponível em www.dgsi.pt.
A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contraordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também ao nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, em especial no que toca à proteção de bens jurídicos cuja consciência não se encontra ainda suficientemente consolidada na sociedade.
Por isso, o desconhecimento deste tipo de proibição impede o conhecimento total do substrato de valoração e determina uma incorreta ou insuficiente orientação da consciência ética do agente para a ilicitude da sua conduta.
Com efeito, nos presentes autos está em causa um erro, não sobre a necessidade de o condutor ser detentor de carta ou título que o habilite a conduzir o veículo, mas da validade e admissibilidade da carta por si detida e, consequentemente, da proibição de utilização da carta emitida na Guiné Bissau, não, estando, assim, em causa nos autos um qualquer erro de valoração ética.
Com efeito, o AA estava ciente que para conduzir veículos na via pública é necessário estar habilitado com documento emitido pelas autoridades competentes, mas agiu convicto de que a conduta que levou a cabo lhe era permitida, porque conduzia com caráter regular na Suíça, país onde trabalha.
O desconhecimento deste regime, que pode, inclusive, representar uma falta de cuidado ou negligência por parte do AA que não se informou adequadamente sobre a validade à luz da lei portuguesa de condução com a carta de condução por si detida, em nada significa uma menor adesão aos valores éticos em que assenta a ordem jurídica, pelo que estamos no campo de aplicação do artigo 16.º, n.º 1 e 3, do Código Penal.
Por outras palavras, afigura-se-nos tratar-se de um erro da consciência psicológica e não de um erro da consciência ética do AA, não existindo nesta situação qualquer personalidade indiferente para os bens jurídicos da norma, mas antes uma errada representação de um elemento normativo do tipo – o estar habilitado a conduzir nos termos da legislação estradal. – em sentido idêntico, v. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 141/16.2PAAMD.L1-5, de 24-04-2018, relator Jorge Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt
É certo que o AA deveria ter diligenciado no sentido de se informar sobre a sua situação, mas como o crime de condução sem habilitação legal é um crime doloso (cfr. 13.º do Código Penal), a conduta em apreço não é punível, mesmo que se considere que o desconhecimento em que o AA atuou traduz um comportamento negligente.
Entende o Tribunal que, no caso concreto do AA, que se encontra a trabalhar em país estrangeiro, visitando só ocasionalmente Portugal e sobretudo de avião (tendo, desta vez vindo de carro pelo facto de a sua esposa se encontrar à espera de bebé), demonstrou não ter a sua obrigação de conhecer a legislação em causa, antes tendo confiado que poderia conduzir em Portugal, por poder fazê-lo no país onde reside.
Ademais, mostrou uma personalidade em nada indiferente ao direito, ao diligenciar de imediato pela troca de carta guineense pela portuguesa, após a ocorrência da fiscalização.
Deste modo, reportando-nos ao caso dos autos verifica-se, assim, que o elemento subjetivo não se mostra preenchido. Efetivamente, provou-se que o AA agiu de modo livre, voluntário e consciente.
No entanto, o AA fê-lo na convicção de que tal comportamento lhe era permitido, ou seja, atuou convencido de que podia exercer a condução daquele veículo automóvel em território nacional.
Deste modo, perante a factualidade julgada provada, não estando preenchido o elemento subjetivo do tipo, terá o AA de ser absolvido pela prática do crime pelo qual vem acusado.
*
Em face do exposto, deve o AA ser absolvido da prática de um crime de condução sem habilitação legal, nos termos do disposto nos artigos 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01 e 14.º, n.º 1, do Código Penal.»
**
APRECIAÇÃO DO RECURSO
1. Do erro notório na apreciação da prova, nos termos do art. 410.º, n.º 2 al. c) do CPP:
Os vícios decisórios - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova - previstos no n.º 2 do art. 410.º do CPP, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum.
Não é permitido, para a demonstração da sua verificação, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida. O vício que estiver em causa, tal como resulta da norma, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos à decisão, mesmo constantes do processo.
Estes vícios, não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, inscrito no art. 127.º do CPP. Pois o que releva “é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do art.º 410º, nº 2 do C.P.P, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos” (Cfr. Acórdão do STJ, referente ao proc. nº 3453/08-3, referido por Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 9.ª Ed., 2020, pág. 76).
Estes vícios, que também são de conhecimento oficioso, têm, pois, a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorre do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da decisão que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
Caso não seja possível demonstrar o vício em que incorreu o julgador sem recurso ao registo áudio ou outro elemento, então é porque o erro não emana directamente do texto da sentença recorrida, ficando logo definitivamente afastada a sua integração no art. 410.º, n.º 2 do CPP, como vício decisório.
Vejamos, então.
O erro notório na apreciação da prova, é erro que se vê logo, o erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta. Este erro ainda abrange as hipóteses de, quando se retira de um facto provado, uma conclusão logicamente inaceitável; o vício de raciocínio, na apreciação das provas; quando se dá como assente algo patentemente errado; quando se retira de um facto provado uma conclusão arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras de experiência comum; ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida; ou, finalmente, quando se violam as regras da prova vinculada, as regras da experiência; as legis artis ou quando o tribunal se afasta, sem fundamento, dos juízos dos peritos, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
Assim, a notoriedade deste erro basta-se com que ele ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada a matéria de facto, não passando assim desapercebido ao comum dos observadores e resulta do próprio texto da decisão sopesada à luz de regras de experiência.
Ora, da leitura da motivação, verifica-se que a testemunha BB, agente da PSP limitou-se a descrever o estado de surpresa em que ficou o arguido quando este lhe transmitiu que a condução do veículo com a carta guineense que lhe exibiu era proibida. Ou seja, das diligências de aquisição e conservação de prova que necessariamente fez, levaram a que, em determinado momento, o então suspeito, ora arguido, tivesse exteriorizado uma reacção de surpresa, tendo aquele ficado convicto, por aquilo que viu, de que o mesmo desconhecia a proibição.
Como é obvio e pese embora tenha ficado convicto da sua versão, não lhe cabia decidir da veracidade ou inverdade da mesma, devendo, no estrito cumprimento das suas funções, dar, naturalmente, conhecimento às autoridades do que se havia passado, o que, aliás, fez. Mais se lhe impunha relatar, em sede de julgamento, o que presenciou directamente e transmiti-lo ao tribunal, o que também fez.
A pergunta que, agora, se impõe é a de saber se com tal depoimento poderia o tribunal ter chegado à conclusão a que chegou.
Pensamos que não.
Na verdade, sendo cidadão português era conhecedor da necessidade de ter carta de condução portuguesa – como lhe explicitado aquando da suspensão provisória do processo, ainda que aí não possuísse mesmo qualquer título de condução, nem sequer guineense -, como também é conhecedor que na Suíça não pode conduzir com o título de condução da Guiné-Bissau, como pretendeu fazer crer.
É que a Suíça é membro da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), e Portugal facilita a troca de cartas de condução para cidadãos de países da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) e OCDE. Isso significa que, em retornar a Portugal existem facilidades na troca da carta de condução, mas isso não se aplica na legislação suíça.
Ou seja, este título de condução não é automaticamente válido na Suíça, porquanto os cidadãos de nacionalidade guineense precisam de um visto para aí entrar; além disso, para aí conduzirem, necessitam de trocar a carta de condução estrangeira por uma suíça ou obter uma licença de condução internacional.
Diga-se, aliás, que os próprios cidadãos portugueses portadores de carta de condução nacional - sendo Portugal membro da União Europeia, como quem a Suíça tem mantido relações de proximidade e abertura -, só poderão conduzir na Suíça até um ano após a sua chegada ao país, após o que terão, forçosamente, de trocar tal carta perla carta suíça.
Dito isto, não podemos deixar de concluir que as declarações do arguido visaram apenas “enganar” o tribunal de 1.ª instância, faltando à verdade no tocante à possibilidade de conduzir na Suíça com a sua carta de condução guineense, por forma a encontrar “uma desculpa” que pudesse criar a dúvida no espírito de julgador acerca da sua verdadeira intencionalidade e conhecimento.
Ora, na actualidade, não cremos que haja imigrantes que ignorem que lhes está vedada a condução em Portugal a não ser que sejam detentores de carta internacional ou que não se informem acerca de tal possibilidade, até porque no caso, como bem adianta o Ministério Público, o arguido já vivia no país há algum tempo, local onde completou, inclusivamente, o 12.º ano de escolaridade.
Por tudo quanto dissemos, discordamos do que se diz na sentença quando se refere que «Com efeito, o AA estava ciente que para conduzir veículos na via pública é necessário estar habilitado com documento emitido pelas autoridades competentes, mas agiu convicto de que a conduta que levou a cabo lhe era permitida, porque conduzia com caráter regular na Suíça, país onde trabalha.».
Assim, considerando que o arguido:
i. viveu em Portugal e possuía um título de residência, tornando-se, entretanto, cidadão de nacionalidade portuguesa,
ii. estava em território nacional desde, pelo menos, o ano de 2009, de forma ininterrupta até 2017, data em que emigrou para a Suíça, não deixando, contudo de vir a Portugal, local onde permanece a sua família
é forçoso concluir - sem margem para dúvidas -, em conjugação com as regras da experiência comum e normalidade do suceder, que o arguido conhecia e estava ciente da proibição de conduzir naquelas circunstância concretas.
Aqui chegados há que relembrar que, estabelece o art. 426.º, n.º 1 do CPP que “sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.”.
Isto significa que «a decisão de reenvio só tem lugar se “não for possível decidir a causa” no tribunal de recurso. Isto é, só se procede ao reenvio quando for objectivamente “impossível” ao tribunal de recurso, com todos os elementos que dispõe, decidir a causa (sublinhado nosso) - neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 3.ª Ed., Abril de 2009, pág. 1150.
Ou, ainda, como refere José Mouraz Lopes (In “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, Artigos 399.º A 524.º, Almedina, Maio de 2024, pág. 302) «“§ 3 O que deve daqui retirar-se é sempre a exigência do conhecimento do recurso de que o reenvio será sempre de evitar e por isso apenas admissível «quando não for possível decidir a causa». Ou, por outras palavras, a repetição do julgamento é sempre «um mal necessário» e só deve ocorrer quando no processo não se dispõe dos elementos necessários para sanar os vícios ocorridos a que se refere o art. 410.º/2. Este princípio orientador de qualquer decisão recursiva, quando se analisa a possibilidade de reenvio para novo julgamento, ainda que parcial. PEREIRA MADEIRA, assertivamente, sublinha que o reenvio só deve ser «prescrito em caso de necessidade absoluta, e assim, com muita parcimónia» (Gaspar e A., 2022, p. 1424). Nesse sentido e de forma concordante, acs. STJ, 4.12.2015 (SOUSA FONTE) e RG, 9.03.2020 (CÂNDIDA MARTINHO), aqui se referindo expressamente que «verificado tal vício e contendo os autos todos os elementos necessários para o efeito, impõe-se nos termos das disposições conjugadas dos artigos 426, n.º 1, “a contrario”, 428.º e 431.º, al. a), todos do Código de Processo Penal, proceder à alteração da matéria de facto e determinação das consequências jurídico-penais dessa alteração» (sublinhados nossos) – este último acórdão publicado em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/c5166f4098ae68c68025853100390b25?OpenDocument&Highlight=0,c%C3%A2ndida,martinho .
Concordámos, em absoluto, com tal posição, em particular esta última.
Na verdade, o tribunal de 1.ª instância, perante os meios probatórios elencados na motivação, não podia ter deixado de dar como provado que o arguido sabia que não estava legalmente habilitado a conduzir o veículo em território nacional e que agiu de forma descrita bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Não tendo qualquer correspondência à realidade que arguido conduzisse habitualmente na Suíça com a carta de condução guineense e que, por esse motivo, achasse que estaria habilitado a conduzir em Portugal e que agisse da forma descrita convencido de que podia exercer a condução daquele veículo automóvel em território nacional.
Assim, verificado tal vício e contendo os autos todos os elementos necessários para o efeito, impõe-se proceder à alteração da matéria de facto e determinação das consequências jurídico-penais dessa alteração, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 426.º, nº 1, a contrário sensu, 428.º e 431.º, al. a), todos do CPP.
Como se escreveu no ac. do STJ de 17.01.2008, proferido no âmbito do proc. n.º 2696/07 “A Relação, concluindo que a decisão da 1ª instância padece do vício de “erro notório na apreciação da prova” e verificando que os autos possibilitam a modificação da matéria de facto e a determinação das consequências jurídico-penais dessa alteração, pode modificar a matéria de facto constante da decisão da 1ª instância, ainda que não tenha sido impugnada a matéria de facto nos termos do art. 412.º,n.º 3, do C.P.P., nem se tenha procedido à renovação da prova” (citado pela Sr. Juíza Desembargadora, Cândida Martinho, no acórdão supra referido).
Procedendo-se, assim, à modificação da matéria de facto em conformidade com a verificação do aludido vício, haverá que eliminar da factualidade assente dois factos e aditar e alterar outra factualidade assente, nos seguintes termos:
i. Aditamento do facto provado 3-A, com a consequente eliminação dos pontos 1 e 2 da matéria de facto não provada, e alteração do facto n.º 4:
«3-A. O arguido sabia que não estava legalmente habilitado a conduzir o veículo em território nacional.
4. O arguido quis actuar da forma supra descrita bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.»
ii. Eliminação dos factos 6 e 7 da matéria de facto provada, os quais passarão a constar da matéria de facto não provada sob os alíneas a) e b):
«a) o AA conduzisse habitualmente na Suíça, e por esse motivo, achasse que estava habilitado a conduzir em Portugal;
b) O arguido tivesse agido da forma descrita convencido de que podia exercer a condução daquele veículo automóvel em território nacional.»
2. Do enquadramento jurídico e determinação da pena concreta:
Assente que se mostra, agora, a matéria de facto provada nos presentes autos, importa proceder ao seu enquadramento jurídico quanto ao crime de condução sem habilitação legal e depois, à graduação da pena a aplicar ao recorrido, sendo certo que os autos contêm todos os elementos para tal.
O arguido vem acusado da prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3º., n.º 2 do Decreto-lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro, segundo o qual quem conduzir motociclo ou automóvel na via pública ou equiparada, sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com pena de prisão até 2 anos ou com multa até 240 dias.
São, portanto, elementos objectivos do tipo: a condução, de automóvel ou motociclo, na via pública ou equiparada, sem habilitação legal.
Conforme resulta dos factos provados o arguido conduzia um veículo automóvel na via pública, sem que para tal estivesse habilitado já que, conforme dispõe o art. 121.º, n.º 1 do Código da Estrada (doravante CE), onde se diz que só pode conduzir veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito e tal habilitação é conferida pela concessão da respectiva carta de condução nos termos do disposto pelo art. 122.º, n.º 1 do CE.
Apurou-se, ainda, que o arguido sabia que não podia circular com o referido veículo automóvel sem ser titular de carta de condução nacional (trocada) e actuou querendo fazê-lo, sabendo que o seu comportamento era proibido por lei. Ao agir do modo descrito agiu com dolo directo - cfr. art. 14.º, n.º 1 do Código Penal (doravante CP).
Além de típica é a conduta do arguido ilícita, porque violadora de um bem jurídico-penalmente tutelado.
Inapuradas ficaram quaisquer circunstâncias susceptíveis de afastarem a ilicitude e/ou a culpa do agente.
Além disso, verifica-se ainda que a conduta do arguido é culposa, dado que o mesmo é imputável e agiu com consciência da ilicitude (cfr. pontos 3-A e 4 da matéria de facto provada).
Donde se conclui ter o arguido cometido o crime de condução sem habilitação legal de que vinha acusado.
*
Uma vez feita a qualificação jurídica dos factos, é chegado o momento de determinar a medida concreta da pena aplicável ao arguido.
Atendendo à moldura penal abstractamente prevista, prisão até dois anos ou multa até 240 dias e, tendo em conta o prescrito pelo art. 70.º do CP, há que concluir que, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa ou pena não privativa da liberdade, o tribunal dará preferência a esta última “sempre que ela se mostre suficiente para promover a recuperação social do delinquente e satisfaça as exigências de reprovação e prevenção do crime”.
No caso concreto, além da preferência pela pena não detentiva traduzir a filosofia subjacente ao código ao reagir contra as curtas penas de prisão, a aplicação ao arguido de uma pena de multa mostra-se mais adequada, por suficiente, às sobreditas finalidades da punição, a sua aplicação representa uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada.
A fixação da multa processa-se através de duas operações sucessivas e autonomizadas: uma primeira, através da qual se fixa o número dos dias de multa em função dos critérios gerais de determinação da pena (culpa e prevenção); uma segunda, através da qual se fixa o quantitativo de cada dia de multa em função da capacidade económico-financeira do agente (cfr. Figueiredo Dias, in “As consequências jurídicas do crime”, pág. 116).
Cumpre, então, atentos os factores a que alude o art. 71.º do CP, proceder à determinação da medida da pena de multa dentro dos limites legalmente prescritos: 10 a 240 dias (art. 3.º, n.º 2 do DL 2/98 de 3/1 e art. 47.º, n.º 1 do CP).
A determinação do número de dias de multa terá que se fazer, nos termos do referido preceito, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção de futuros crimes, servindo como factores de doseamento da pena as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham contra ou a favor do agente.
Em desfavor do arguido valora-se o grau de ilicitude do facto, elevado, a intensidade do dolo, directo, e as exigências de prevenção geral serem muito acentuadas dado o elevado número de crimes da mesma natureza praticados.
A favor do arguido valora-se o facto de se encontrar social, familiar e profissionalmente inserido e de não lhe serem conhecidos antecedentes criminais.
A determinação do quantitativo diário é fixada, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 47.º do CP entre € 5 e € 500 em função da situação económica e financeira e dos encargos pessoais do arguido resultantes da factualidade provada.
Assim, julga-se adequada a aplicação da pena de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de 6.50€ (seis euros e cinquenta cêntimos), como propôs o recorrente.
**
O arguido será, ainda, condenado nas custas do processo, cuja taxa de justiça se fixa em 3 Uc (art. 513.º, n.º 1 do CPP e arts. 8.º, n.º 9, do RCP, com referência à Tabela III).
***
IV. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:
A. julgar verificado o vício decisório de erro notório na apreciação da prova, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. c) do CPP e, em consequência:
i. proceder à alteração da matéria de facto provada, aditando o facto 3-A:
«3-A. O arguido sabia que não estava legalmente habilitado a conduzir o veículo em território nacional.
ii. proceder à alteração da redacção do facto 4 da matéria de facto provada, que passará a ter a seguinte redacção:
«4. O arguido quis actuar da forma supra descrita bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.»
iii. proceder à eliminação dos factos 6 e 7 da matéria de facto provada, os quais passarão a constar da matéria de facto não provada sob os alíneas a) e b), nos seguintes termos:
«a) o AA conduzisse habitualmente na Suíça, e por esse motivo, achasse que estava habilitado a conduzir em Portugal;
b) O arguido tivesse agido da forma descrita convencido de que podia exercer a condução daquele veículo automóvel em território nacional.»;
B. condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, por referência ao disposto no art. 121.º, n.º 1 do Código da Estrada, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos), num total de 390,00 (trezentos e noventa euros);
c) condenar, ainda, o arguido nas custas do processo, cuja taxa de justiça se fixa em 3 UC (art. 513.º, n.º 1 do CPP e arts. 8.º, n.º 9, do RCP, com referência à Tabela III).
Sem custas, por delas estar isento.
Notifique.
**
Lisboa, 10 de Julho de 2025
As Juízas Desembargadoras,
Marlene Fortuna
Isabel Maria Trocado Monteiro
Rosa Maria Cardoso Saraiva