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QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL
ADVOGADO
INTERESSE PREPONDERANTE
RECUSA
Sumário
Sumário: (da responsabilidade do Relator) I. O segredo profissional do advogado não é absoluto, podendo excecionalmente ser autorizado o seu levantamento ou quebra quando, de acordo com o princípio da prevalência do interesse preponderante, a referida quebra visa proteger um interesse superior ao visado com a preservação do segredo profissional. II. Para a aferição do interesse preponderante, nos termos do artº 135º, nº 3 do Código de Processo Penal, deve-se, exemplificativamente, a critérios como (1) a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, (2) a gravidade do crime e (3) a necessidade de proteção de bens jurídicos. III. Em se tratando de crime punível com multa ou pena baixa de prisão, face ao critério da moldura da pena aplicável, estamos perante crime tido pelo legislador como de relativamente baixa gravidade. IV. Quando os factos sobre que deve incidir o depoimento (coberto pelo sigilo) resultam do teor de documentos, ou há mais testemunahs indicadas para sobre eles deporem, temos de concluir que o depoimento coberto pelo sigilo não é imprescindível para a descoberta da verdade, nem necessário para a proteção de bens jurídicos.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
No âmbito do processo de intrução nº 3793/20.5T9LSB, do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa – Juiz 1, em que é arguido AA, tendo este requerido a abertura de instrução, indicou como testemunha o Dr. BB, advogado de profissão, para depôr sobre os factos constantes dos arts 36º a 51º, 55º, 56º a 62º, 68º a 95 e 100º a 104º do seu requerimento de abertura de instrução (doravante designado por RAI).
Chamada a depor, a referida testemunha recusou-se, alegando que os factos sobre os quais é pretendido o seu depoimento estão cobertos por sigilo profissional por deles ter tomado conhecimento no exercício das suas funções de advogado.
Por despacho do Mmo Juiz de Intrução Criminal de .../.../2025, que reconheceu a legitimidade da recusa a em depor como testemunha do Senhor Advogado Dr. BB, foi suscitado o presente incidente de quebra de segredo profissional e remetido a esta Relação para apreciação.
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Foi emitido parecer pela Ordem do Advogados, pugnando pelo não levantamento do sigilo.
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Após os vistos, foram os autos à conferência.
Nada obsta à prolação de acórdão.
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II. QUESTÃO A DECIDIR
Importa apreciar e decidir se se verificam ou não os requisitos legais para a quebra do sigilo profissional por parte do Senhor Advogado.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
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A) FACTOS A CONSIDERAR
a) O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, dois crimes de participação fraudulenta em assembleia social, p. e p. pelo artigo 517.º do Código das Sociedades Comerciais, com base nos seguintes factos:
«1. A partir de ... de ... de 2017, a sociedade CC, Lda. tinha como sócios o arguido AA, com 40% das participações social, DD, com 40% das participações sociais, e EE, com 20% das participações sociais.
2. A ... de ... de 2018, e no âmbito de um acordo parassocial para aquisição da sociedade FF, Lda., o sócio EE emitiu uma declaração, na qual constitui seu procurador o arguido, a quem conferiu “todos os poderes necessários para exercer, nos termos que entender, e no seu interesse, os direitos sociais e conexos conferidos por Lei ou resultantes do contrato social e do acordo parassocial, correspondentes a metade da sua participação social de 20% (vinte por cento) na sociedade por quotas CC, Lda.. (…)”.
3. Consta ainda da referida declaração que “a presente procuração caducará logo que seja assinado pelos sócios a alteração do acordo parassocial que se encontra a ser negociado.”
4. O acordo parassocial da sociedade FF, Lda. foi concluído e assinado a ... de ... de 2018.
5. A ... de ... de 2020, o sócio EE dividiu a sua quota, de € 8.400,00 (oito mil e quatrocentos euros), em duas novas quotas, uma de € 3.781,00 (três mil setecentos e oitenta e um euros), que ficou para si, e outra de € 4.620,00 (quatro mil, seiscentos e vinte euros), que cedeu ao sócio DD.
6. A ... de ... de 2020, o sócio EE convocou uma assembleia geral extraordinária para o dia ... de ... de 2020.
7. No entanto, por não ter sido a convocatória regularmente efetuado, foi a referida assembleia dada sem efeito, por email de ... de ... de 2020, remetido pelo sócio EE ao sócio DD e ao arguido.
8. No entanto, o arguido, no dia ... de ... de 2020, sem a presença dos restantes sócios, realizou a assembleia geral extraordinária que havia sido desconvocada, na qual alegou estar investido de poderes de representação do sócio EE, apresentando a declaração referida em 2.
9. Fez o arguido constar da ata daquela assembleia que “Efetivamente, AA é detentor de quota no valor nominal de € 16.800,00 (dezasseis mil e oitocentos euros) e é ainda representante de 10% da participação social de EE, detentor de uma quota no valor nominal de € 8.400,00, cfr. Declaração/Procuração anexa (…)”.
10. Na sua qualidade de sócio e na qualidade de representante de 10% da participação social de EE, que assumiu, o arguido votou diversas deliberações, que posteriormente levou a registo sob o Av. 1 AP. …07 e Av. 1 AP. …05.
11. No dia ... de ... de 2020, o sócio EE convocou nova assembleia geral extraordinária, a realizar no dia ... de ... de 2020.
12. No dia ... de ... de 2020, o arguido, sem a presença dos outros sócios, realizou a referida assembleia, na qual alegou estar investido de poderes de representação do sócio EE, apresentando a declaração referida em 2..
13. Fez o arguido constar da ata daquela assembleia que “Efetivamente, AA é detentor de quota no valor nominal de € 16.800,00 (dezasseis mil e oitocentos euros) e é ainda representante de 10% da participação social de EE, detentor de uma quota no valor nominal de € 8.400,00, cfr. Declaração/Procuração anexa (…)”.
14. Na sua qualidade de sócio e na qualidade de representante de 10% da participação social de EE, que assumiu, o arguido votou diversas deliberações, que posteriormente levou a registo sob o V. 3 AP. …26 e Insc. 7 – AP. …27.
15. Bem sabia o arguido que declaração emitida pelo sócio EE tinha sido feita apenas para os efeitos da negociação e realização de acordo parassocial para aquisição da sociedade FF, Lda., concluído em ..., e que caducava quando estivesse cumprido o seu escopo.
16. Ao arrogar-se representante de 10% da participação social de EE, sabia o arguido que tal não era verdade e que agia contra a vontade daquele.
17. Não obstante, o arguido quis e concretizou o seu desiderato de votar e fazer aprovar deliberações que sabia que de outra forma não o seriam, por não ter percentagem de participações sociais suficiente para o efeito.
18. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem que a sua conduta proibida e punível por lei.»
b) O arguido requereu a abertura de instrução, tendo arrolado como testemunha, entre outras pessoas, o Dr. BB, advogado de profissão, indicando (em requerimento posterior) que seria para depôr sobre os factos constantes dos arts 36º a 51º, 55º, 56º a 62º, 68º a 95 e 100º a 104º do seu RAI, tal como outra testemunha.
c) Chamada a depor, a referida testemunha recusou-se, alegando que os factos sobre os quais é pretendido o seu depoimento estão cobertos por sigilo profissional por deles ter tomado conhecimento no exercício das suas funções de advogado.
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B) APRECIAÇÃO DO INCIDENTE
Nos termos do artº 135º, nº 1 do Código de Processo Penal, “os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos”.
Se a autoridade judiciária perante a qual a recusa a depor se tiver verificado, considerar legítima a recusa, suscita, oficiosamente ou a requerimento e perante o Tribunal Superior (que, em se tratando do STJ, será o pleno das secções criminais), a apreciação da possibilidade de prestação do depoimento com quebra do segredo profissional, para remetendo os autos do incidente, conforme resulta das disposições conjugadas nos nºs 2 e 3 do citado artigo.
Será determinada “a prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos” (cfr. artº 135º, nº 3 do Código de Processo Penal).
O segredo profissional do advogado está regulado no artº 92.°, nº 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, nos termos do qual, “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente: por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais, comunicados por colega, com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo”.
Esclarece o nº 2 do mesmo artigo que, “a obrigação do segredo profissional existe, quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indireta mente, tenham qualquer intervenção no serviço”. Sendo que, por força do nº 3, “o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo”.
Em consequência, nos termos do nº 5, “os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”.
Porém, o sigilo profissional do advogado não é absoluto, podendo haver situações em que o seu levantamento ou quebra se poderá excecionalmente justificar, de acordo com o princípio da “prevalência do interesse preponderante”. Isto é, quando a referida quebra visa proteger um interesse superior ao visado com a preservação do segredo profissional.
Para a aferição do interesse preponderando, o artº 135º, nº 3 do Código de Processo Penal, indica, a título exemplificativo (“nomeadamente”), como critérios a atender:
- a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade;
- a gravidade do crime; e
- a necessidade de proteção de bens jurídicos.
Como se bem se explicita no Acórdão desta Relação e Secção de 06/03/2025 (relatado por Isabel Monteiro e proferido no processo nº 6134/24.9T9SNT-A.L1) “para se concluir pela existência de um interesse preponderante que justifique a quebra do sigilo haverá de ser verificar: i) que o depoimento é absolutamente necessário para a descoberta da verdade material, e neste particular, haverá, nos termos do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série -, que verificar se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste de: a) imprescindibilidade: o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objetivo de prova visado; b) Essencialidade: o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; c) Exclusividade: pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo. (ii) o crime apresenta uma gravidade tal que implicará a quebra do dever de sigilo profissional, dever este que, conforme tem sido referido em diversa doutrina e jurisprudência, quer dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados, quer dos Tribunais, se reveste de interesse público (o que, desde logo, afastará a possibilidade de quebra em crimes de menor danosidade social); e (iii) a necessidade da proteção dos bens jurídicos afetados (tendo em conta a importância destes).”
No caso em análise estamos no âmbito da instrução, visando sindicar a decisão do Ministério Público de submeter o arguido a julgamento, imputando-lhe a prática de dois crimes de participação fraudulenta em assembleia social, p. e p. pelo artº 517.º do Código das Sociedades Comerciais. Tais crimes são puníveis, nos termos da citada norma, “com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa”.
Face ao critério da moldura da pena aplicável a este crime, estamos perante crime tido pelo legislador como de relativamente baixa gravidade.
Conforme se pode ler nos artigos arts 36º a 51º, 55º, 56º a 62º, 68º a 95 e 100º a 104º do RAI, cujos factos ali relatados estão corporizados nos documentos ali referidos ou resultam do teor de tais documentos, para a prova de tais factos não é essencial, nem imprescindível o depoimento da testemunha Dr. BB, porquanto, tal prova pode ser efetuada por outros elementos de prova e essencialmente pela análise de tais documentos per si e conjugados entre si e com as regras da experiência.
Por outro lado, esta não é a única testemunha indicada pelo arguido aos mesmos factos.
Acresce que, conforme se refere no artº 41º, pelos factos de que se pretende o depoimento da ora testemunha, corre termos no DIAP processo em que a mesma é arguida, o que igualmente lhe permite se recusar a depôr, desta feita sem possibilidade de remoção de tal recusa.
Podemos, assim, concluir com segurança que, o depoimento da testemunha em causa não é imprescindível para a descoberta da verdade, nem necessário para a proteção de bens jurídicos e o crime em instrução não se reveste de especial gravidade
É quanto basta para se concluir pela improcedência do pedido de dispensa de sigilo, por injustificado, não se determinando que a testemunha em causa preste depoimento em violação do sigilo profissional de advogado.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordamos em recusar a solicitada quebra de segredo profissional em, em consequência, não determinamos que o Senhor Advogado Dr. BB preste depoimento como testemunha no processo principal, aos factos indicados.
Sem custas.
Comunique de imediato aos autos principais.
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Lisboa, 10 de julho de 2025.
Os Juízes Desembargadores, Eduardo Sousa Paiva André Alves Paula Cristina Bizarro