CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
EXAME SANGUÍNEO
DIREITO À NÃO AUTO INCRIMINAÇÃO
Sumário

Sumário:
(da responsabilidade do Relator)
I-A fiscalização da condução sob influência de álcool tem como objetivo a recolha de uma prova que, como sabemos, é rapidamente perecível e por isso de natureza urgente, que assegure o fim da descoberta da verdade no processo penal, a realização da justiça e, ainda, proteger bens jurídicos fundamentais, como é o caso da vida, saúde, integridade física e o património, ao impedir que um condutor influenciado pelo álcool persista numa condução suscetível de fazer perigar estes bens jurídicos.
II- A recolha de amostra de sangue, para deteção do grau de alcoolemia, em condutor incapaz de prestar ou recusar o seu consentimento, não implica uma violação do direito à não autoincriminação, sendo que tal recolha constitui a “base para uma mera perícia de resultado incerto”, não contendo qualquer declaração ou comportamento ativo do examinando no sentido de assumir factos conducentes à sua responsabilização.
III- Tendo a recolha de amostra de sangue decorrido nas condições previstas na lei, o exame em causa constituiu um meio de obtenção de prova legal, constituindo o respetivo resultado da pesquisa quantitativa de álcool efetuada nessa amostra um meio de prova válido, não se verificando, por isso, a violação do disposto no artigo 126º nº 3 do CPP e artigos 25º, 32º, n.ºs 1, 2, e 8 da CRP.

Texto Integral

Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
Por sentença proferida a ... de ... de 2025 foi o arguido, condenado pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário do artigo 291º, nº 1, al a) e nº 3 e 69º, nº 1, al. a) do CP na pena de 1 (um) ano de prisão que se substitui por 360 (trezentos e sessenta) dias de multa, nos termos do artigo 45º, nº 1 do CP, à taxa diária de €9,00 (nove euros), no total de €3.240,00 (três mil, duzentos e quarenta euros) e na pena acessória de proibição de condução pelo período de 12 (doze) meses.
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Não se conformando com essa decisão o arguido recorreu para este Tribunal da Relação.
Para o efeito, apresentou o arguido as seguintes conclusões (transcrição):
I - Foi dado como provado que “ No dia ... de ... de 2021, pelas 17h05, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-IR-.., na ..., ao Km 61,623, sentido ..., em ..., influenciado por álcool e por substâncias psicotrópicas, apresentando às 20h00 do mesmo dia, uma taxa de álcool de 1,69 (±0,22) g/l e uma taxa de D9-tetrahidrocanabinol (THC) de 2,6 (±0,9) nanogramas por mililitro de sangue e de 11-Nor-9-carboxi-D9-tetrahidrocanabinol (THC-COOH) de 15 (±5) nanogramas por mililitro de sangue.”
II. “O acidente e as suas consequências ficaram também a dever-se à circunstância de o arguido conduzir sob o efeito do álcool e de produtos estupefacientes, que lhe reduziu de forma significativa as suas capacidades de concentração e de reação na condução que efetuava, bem como à manifesta falta de cuidado e de atenção, e desrespeito pelas regras elementares de circulação rodoviária.”
III. “Quer o arguido quer AA que seguia com este no lugar do pendura ficaram gravemente feridos em consequência de tal despiste como se infere da documentação clínica constante dos autos e do relatório pericial de fls. 293 e ss, ao qual anuímos. Nenhum deles se recorda sequer do acidente apenas tendo uma vaga ideia do dia em questão, tratando-se de um comum dia de trabalho, na data era colegas de trabalho no ramo imobiliário, apesar de se conhecerem há pouco mais de um mês pelo que AA acerca do arguido, da sua personalidade e hábitos, pouco sabia. Tinham almoçado já tarde, tendo o acidente ocorrido quando regressaram ao trabalho. Apesar de nenhuma ingestão abusiva de álcool ter sido assinalada certo é que a mesma ocorreu por parte do arguido”
IV. Em direito processual apenas são admissíveis as provas que não sejam proibidas por lei (artigo 125.º, do Código de Processo Penal).
V. Os métodos proibidos de prova estão previstos no artigo 126.º do mesmo diploma.
VI. O Tribunal a quo validou a recolha de sangue e subsequente relatório pericial da mesma, a qual foi obtida ilegalmente.
VII. É proibida e consequentemente nula a recolha de sangue efetuada ao arguido no Hospital ..., para efeitos de determinação da taxa de álcool no sangue do arguido.
VIII. Pelas regras da experiência comum seria muito improvável que o arguido soubesse que lhe havia sido efetuada a dita recolha de sangue para efeitos de determinação da taxa de álcool e estupefacientes.
IX. A recolha de sangue para exame como procedimento de prova, implica necessariamente uma violação da integridade física da pessoa.
X. A recolha de sangue para efeitos de determinação da taxa de álcool, não tem objetivo terapêutico, razão pela qual tem que ser consentida pelo arguido, e se assim não for, a recolha é proibida, e consequentemente é nula a prova obtida e a sua valoração para condenação de um arguido é inconstitucional.
XI. A utilização de prova extraída do corpo do arguido sem consentimento deste viola este princípio e viola a integridade moral do arguido a qual é também protegida constitucionalmente pelo artigo 25º, nº 1 da CRP, em anotação ao qual os Autores Jorge Miranda e Rui Medeiros (in Constituição Portuguesa Anotada), consideram que os testes de alcoolemia que vão para além da pesquisa do teor de álcool no ar expirado "não resistem ao crivo do juízo de inconstitucionalidade".
XII. Ao aceitar a admissibilidade da prova obtida através de recolha e análise de sangue a arguido sem lhe ser dado conhecimento e sem a sua autorização, estar-se-ia a violar o princípio fundamental e estruturante da proibição de diligências conducentes à autoincriminação do arguido e por arrasto ver-se-iam violados os princípios da dignidade da pessoa, o princípio da presunção da inocência e o princípio do contraditório, declarados e garantidos nos artigos 1º, 25º, 32º, n.ºs 1, 2, e 8 da CRP e no artigo 126º do CPP in totum.
XIII. Para que o arguido pudesse recusar a colheita de sangue ou para se entender que o mesmo consentiu em tal recolha, o arguido tinha que saber, estar informado do fim a que se destinava tal colheita, o que não aconteceu.
XIV. Tanto mais que é normal experiência e prática hospitalar, que em situações de internamento em consequência de acidentes, retirar sangue ao doente para efeitos de diagnóstico.
XV. Qualquer condutor ao ser submetido ao teste de pesquisa de álcool por ar expirado sabe perfeitamente a que se destina tal exame, o mesmo não se pode dizer quando se está internado num hospital e é feita uma colheita de sangue. O arguido encontrava-se na qualidade de paciente e é nessa qualidade que se deve presumir qualquer consentimento seu, ainda que tácito, quanto aos atos médicos.
XVI. Era importante que o Tribunal a quo tivesse dado como provado ou não provado que o arguido havia sido informado da finalidade da recolha de sangue.
XVII. Porquanto não poderia o tribunal “a quo” deixar de entender que o exame de recolha de sangue, pela forma como foi obtido – ilegalmente -, não constitui meio válido de prova e assim sustentar a condenação do arguido.
XVIII. O Tribunal a quo para determinar a taxa de álcool no sangue do arguido baseou-se no exame pericial sendo certo que a julgar-se procedente a alegada invalidade da prova de recolha de sangue, sobrevirá a invocada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
XIX. Sem a admissão e validação da recolha de sangue, não se poderiam dar como provados factos que serviram de base e fundamentação à condenação do ora recorrente.
XX. Os factos provados da sentença recorrida resultaram provados apenas pelas regras da experiência comum, da qual se socorreu o Tribunal, inexistindo qualquer outro elemento de prova que confirme que o arguido conduzia de forma imprudente, desatenta e descuidada, não estando em condições de conduzir por ter ingerido bebidas alcoólicas, razão pela qual devem tais factos ser dados como não provados.
XXI. Ao aceitar a admissibilidade da prova obtida através de recolha e análise de sangue ao arguido, que estava consciente, sem que lhe tivesse sido dado conhecimento e sem a sua autorização, o Tribunal violou igualmente o princípio da presunção de inocência e do contraditório e o princípio in dúbio pro reo.
XXII. Como não fosse suficiente, e ainda associada à recolha de amostra sanguínea, verifica-se o incumprimento grosseiro de outros procedimentos legalmente previstos, cuja inobservância não pode deixar de ser igualmente cominada com a proibição de valoração da prova assim obtida, ou seja do relatório pericial a que se refere o auto de notícia e a acusação e a sentença recorrida.
XXIII. Mais, o modelo do anexo não está correta nem completamente preenchido, não indicando a medicação ministrada ao arguido antes da recolha de sangue e bem assim nas 48 h anteriores, questão não despicienda na medida em que alguma medicação pode influir com o resultado do exame;
XXIV. O original do modelo do anexo não contém a vinheta do profissional de saúde, à revelia do disposto na alínea b) daquele diploma legal, desconhecendo-se quem fez a recolha, se foi médico ou outro profissional de saúde.
XXV. O duplicado do impresso não foi entregue ao arguido nem ao seu representante legal, o qual não contém a assinatura do mesmo nem de testemunha conforme possibilidade constante do formulário, questão, de natureza procedimental mas concomitantemente de natureza substantiva já que associado ao direito de informação que assiste ao arguido.
XXVI. Tudo verdadeiros atropelos aos invocados diplomas legais e arbitrariedades das quais não se poderá deixar de retirar consequências jurídicas,
XXVII. Impunha-se ao Tribunal a quo a aplicação ao caso presente do mencionado princípio in dúbio pro reo.
XXVIII. Efetivamente não foi seguido o procedimento técnico estabelecido na lei o que põe em causa a integridade da amostra e por maioria de razão inquina o valor probatório do relatório de exame sanguíneo, impondo-se – repita-se - a absolvição do arguido.
XXIX. O arguido não prestou – nem verbalmente nem por escrito de forma expressa e/ou presumida - o seu consentimento à recolha de sangue.
XXX. Pelo que deve o exame ser declarado inválido, porquanto representa um meio de prova proibido, que não pode ser valorado, nos termos dos artigos 1º, 2º, 18º, 25º nº 1, 26º nº 1 e 32º nº 8 da Constituição e 126º nº 1 do Código de Processo Penal,
XXXI. Ainda que se aceitasse como escusada a necessidade consentimento expresso deve ainda o exame e respetivo relatório pericial ser considerado inválido e de nenhum valor probatório,
XXXII. Porquanto, independentemente do consentimento expresso, deve o arguido/sinistrado ser sempre informado do fim a que a recolha de sangue se destina, designadamente a finalidade de a mesma instruir eventual processo de natureza criminal contra si. – neste sentido vide Acórdão Tribunal Relação de Guimarães com data de 02/05/2018 proferido no âmbito do processo 34/17.6GCGMR.G1.
XXXIII. De contrário, a não ser necessário prestar informação ao recorrente sinistrado acerca da recolha, não teria o mesmo a possibilidade de se pronunciar sobre o exame, e se bem entendesse de se lhe opor, ainda que sob pena de incorrer num crime de desobediência. Sendo certa que tal possibilidade não lhe foi sequer facultada.
XXXIV. Mais acresce que foi violado o disposto no número 3 do artigo 6º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas,
XXXV. Na medida em que o resultado do exame Toxicológico de sangue para quantificação da taxa de álcool não foi enviado à entidade fiscalizadora no prazo máximo de 30 dias a contar da data da receção, mas antes passados quase dois meses da receção.
XXXVI. Tudo verdadeiros atropelos aos invocados diplomas legais e arbitrariedades das quais não se poderá deixar de retirar consequências jurídicas,
XXXVII. Pois que efetivamente não foi seguido o procedimento técnico estabelecido na lei o que põe em causa a integridade da amostra e por maioria de razão inquina o valor probatório do relatório de exame sanguíneo de fls. .. , impondo-se – repita-se - a absolvição do arguido.
Termos em que se deve conceder integral provimento ao recurso, modificando-se a douta Sentença recorrida, considerando-se, nos termos supra expostos, julgar procedente a errada subsunção jurídicas dos factos provados e em consequência, absolver o arguido do crime pelo qual foi condenado por assim ser de lei de inteira Justiça!»
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Recebido o recurso, o Ministério Público na primeira instância, na sua resposta, pugnou pelo não provimento do recurso apresentado tendo alegado o seguinte:
Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos supra mencionados, tendo por base a alegação de que o exame de pesquisa no sangue no Hospital sem consentimento do visado viola o disposto no artigo 126º do Código de Processo Penal, sendo prova proibida e em consequência, viola o disposto nos artigos 25º nº 1 , 32º nº 1 2 da CRP.
Não assiste razão ao Recorrente, tendo em conta que tal exame, encontra-se regulado nos artigos 156º e 157 º do Código da Estrada.
Pelo que o recurso deve ser rejeitado, nos termos do artigo 420º nº1 a) do CPP.
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A Sra. PGA junto deste Tribunal da Relação pronunciou-se pela improcedência do recurso aderindo à resposta apresentada pelo MP em primeira instância.
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Não foi cumprido o artº 417º, n.º 2 do C.P.P uma vez que não foi emitido parecer autónomo quanto à resposta do MP na primeira instância.
II - Questões a decidir:
Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. Art.º 119º, nº 1; 123º, nº 2; 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/6/1998, in BMJ 478, pp. 242, e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Tendo em conta este contexto normativo e o teor das conclusões apresentadas pelos arguidos recorrentes, há que analisar e decidir:
Validade da prova relativa ao exame de pesquisa no sangue realizado no Hospital sem consentimento do visado.
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III – FUNDAMENTAÇÃO:
A decisão recorrida tem o seguinte teor no que concerne à fundamentação (transcrição):
1º No dia ... de ... de 2021, pelas 17h05, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-IR-.., na ..., ao Km 61,623, sentido ..., em ..., influenciado por álcool e por substâncias psicotrópicas, apresentando às 20h00 do mesmo dia, uma taxa de álcool de 1,69 (±0,22) g/l e uma taxa de D9-tetrahidrocanabinol (THC) de 2,6 (±0,9) nanogramas por mililitro de sangue e de 11-Nor-9-carboxi-D9-tetrahidrocanabinol (THC-COOH) de 15 (±5) nanogramas por mililitro de sangue.
2º No veículo conduzido pelo arguido encontrava-se AA, que era transportado no lugar de passageiro frontal.
3º Ao descrever uma curva ligeira à direita, o arguido perdeu o controlo do veículo, despistou-se, seguindo em frente, e colidiu frontalmente contra a esplanada e entrada principal do “...”, local onde se encontravam clientes.
4º A faixa de rodagem naquele local tem uma largura de 6,5m, sendo constituída por uma via de trânsito em cada sentido de circulação, separada por uma linha longitudinal continua marca M1, de cor branca
5º A via naquele local é constituída por uma recta em patamar seguida de uma ligeira curva à direita, no sentido ..., sendo a velocidade máxima permitida no local de 50 km/h - dentro de localidade- Alvarinhos que se encontrava devidamente sinalizada.
6º O pavimento da via é constituído por um aglomerado betuminoso, o qual não apresentava, à data dos factos, qualquer deformação ou obstáculo que dificultasse a atividade de condução.
7º Na data do sinistro não chovia, o piso encontrava-se seco, oferecendo boas condições de visibilidade e aderência em toda a sua largura e extensão sem obstáculos naturais ou obstruções visuais.
8º O trânsito à hora que ocorreu o acidente era pouco intenso.
9º Em consequência do embate, resultaram ferimentos no corpo de AA que careceu de assistência médica e foi transportado para o Hospital ..., em Lisboa.
10º Como consequência direta e necessária do embate, AA sofreu traumatismo crânio-encefálico - hematoma da região frontal, fratura com afundamento da parede anterior dos seios frontais, sem atingimento da tábua interna da calote frontal, com hemossinus, fratura tipo III do côndilo occipital esquerdo, com ligeiro desvio contralateral da apófise odontóide; traumatismo torácico-abdominal, fratura dos 6º e 7º arcos costais anteriores atelectasia dos lobos inferiores de ambos os pulmões com fina lâmina de hemotórax esquerdo; fratura burst incompleta de L5 com afundamento do planalto superior; do traumatismo dos membros resultou fratura desalinhada do terço médio da clavícula esquerda, fratura cubital esquerda, fratura dos acetábulos, à direita descoaptada e com corpos livres intra-articulares e desalinhada à esquerda; fratura-luxação da anca direita, ferida sangrante da região maleolar esquerda com fratura exposta do calcâneo.
11º As lesões descritas demandaram 630 dias para a cura, todos com afetação da capacidade para o trabalho geral.
12º Como consequência direta e necessária do embate, o “...” sofreu danos estruturais no edifício, cuja reparação ascendeu a €9.500,00 (nove mil e quinhentos euros).
13º Ao atuar da forma supra descrita, o arguido agiu sem a cautela que lhe era exigível no exercício de uma condução prudente, sem tomar a devida atenção aos obstáculos da via pela qual seguia, circulando na mesma de forma desatenta e omitindo o dever geral de cuidado a que estava obrigado.
14º O acidente e as suas consequências ficaram também a dever-se à circunstância de o arguido conduzir sob o efeito do álcool e de produtos estupefacientes, que lhe reduziu de forma significativa as suas capacidades de concentração e de reação na condução que efetuava, bem como à manifesta falta de cuidado e de atenção, e desrespeito pelas regras elementares de circulação rodoviária.
15º Ao agir como descrito, o arguido sabia que podia colocar, como efetivamente colocou, em perigo a vida e a integridade física dos demais utentes da via, nomeadamente, de AA, bem como de bens de valor elevado, como efetivamente sucedeu no “...”, resultado esse que no entanto não quis e com o qual não se conformou.
16º O arguido sabia que não lhe era permitida a condução de veículos automóveis na via pública, após a ingestão de bebidas alcoólicas, e que a quantidade de bebidas alcoólicas que havia ingerido antes de conduzir lhe determinavam necessariamente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l, e como tal criminalmente punível.
17º O arguido previu e quis conduzir o veículo na via pública, apesar de saber que tinha consumido substâncias estupefacientes, designadamente, canabinóides, e que conduzia sob a ação das mesmas, tendo apresentado os valores supra referenciados por mililitro de sangue.
18º O arguido tinha perfeito conhecimento dos princípios ativos, das características químicas e psicotrópicas, natureza e efeitos das substâncias que consumiu, e que o respetivo consumo o impedia de conduzir com a devida segurança, atenção e previdência, diminuindo a capacidade de reação e reflexo, colocando, assim, em causa a segurança no exercício da condução e, não obstante, decidiu agir conforme descrito. E, ciente de tal, o arguido conduziu o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas.
20º O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
21º O arguido regista os seguintes antecedentes criminais: Por sentença transitada em julgado em ........2003 proferida no processo 794/01.6... foi condenado pela prática em ........2001, de um crime de roubo na pena de 3 meses de prisão, substituída por 60 dias de multa Por sentença transitada em julgado em ........2009 proferida no processo 516/04.0... foi condenado pela prática em ........2004 de um crime de recetação na pena de 210 dias de multa. Por sentença transitada em julgado em ........2017 proferida no proc. 639/14.7... foi condenado pela prática em ........2014 de um crime de tráfico de estupefacientes na pena de 15 meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período. Por sentença transitada em julgado em ........2022 proferida no proc. 137/22.5... foi condenado pela prática em ........2022 por crime de consumo de estupefacientes na pena de 80 dias de multa.
22º O arguido reside com a mulher, que se encontra empregada, uma enteada maior de idade e dois filhos menores em habitação própria. Gere uma empresa no ramo imobiliário e declara o ordenado mínimo apesar de suportar despesas de habitação no mensal de €1.250,00.
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Cumpre apreciar os fundamentos do recurso.
O arguido/recorrente insurge-se por a prova da taxa de álcool no sangue (TAS) de 1,69, que apresentava, ter sido feita com base nos resultados de exame toxicológico por colheita de sangue, sem que tivesse prestado consentimento – nem verbalmente, nem por escrito de forma expressa e/ou presumida - para a recolha de sangue.
Deste modo, a questão suscitada pelo recorrente consiste em saber se a colheita ao sangue a que foi sujeito constituiu, ou não, um método proibido de prova, nos termos dos artigos 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa e 126.º do Código de Processo Penal, determinante da nulidade da prova através desse meio obtida.
O exame de pesquisa de álcool encontra-se previsto e regulado por lei, nos artigos 152.º, n.º 1, a), 153.º e 156.º do Código da Estrada e no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Lei n.º 18/2007, de 17 de maio).
Destas disposições legais decorre a obrigatoriedade da fiscalização para os condutores, assim como para os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito, e as pessoas que se propuserem iniciar a condução.
A obrigatoriedade para a realização dos exames em causa é reforçada com a cominação, com o crime de desobediência, nas situações de recusa de submissão às provas previstas na lei para a deteção de álcool, bem como com o impedimento de iniciarem a condução por parte das pessoas que se propuserem a iniciar condução.
A fiscalização do álcool no sangue, como resulta da lei, envolve a medição da taxa de álcool no sangue (TAS) de condutores para verificar se estão dentro dos limites legais permitidos. A TAS é expressa em gramas de álcool por litro de sangue (g/l) sendo que a lei estabelece os diferentes limites.
Assim, a fiscalização da condução sob influência de álcool tem como objetivo a recolha de uma prova que, como sabemos, é rapidamente perecível e por isso de natureza urgente, que assegure o fim da descoberta da verdade no processo penal, a realização da justiça e, ainda, proteger bens jurídicos fundamentais, como é o caso da vida, saúde, integridade física e o património, ao impedir que um condutor influenciado pelo álcool persista numa condução suscetível de fazer perigar estes bens jurídicos.
Conforme resulta da lei – artigos 153º nº 8 e 156º nº 2 do Código da Estrada - o exame de sangue constitui um meio excecional para a recolha de prova, estando apenas reservado para as situações expressamente previstas na lei, nomeadamente quanto o estado de saúde do visado não permite a realização do exame por ar expirado ou esse exame não for possível.
Dispõe o artigo 4º nº 1 da lei n.º 18/2007, de 17 de maio que:
Quando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste, é realizada análise de sangue.
Quanto a esta norma, cumpre recuperar aqui o teor da decisão proferida pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 418/2013, no qual consta o seguinte: “não julgar inconstitucional a interpretação normativa, extraída da conjugação do artigo 4.º, n.os 1 e 2, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, e do artigo 156.º, n.º 2 do Código da Estrada, segundo a qual o condutor, interveniente em acidente de viação, que se encontre fisicamente incapaz de realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, deve ser sujeito a colheita de amostra de sangue, por médico de estabelecimento oficial de saúde, para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, nomeadamente para efeitos da sua responsabilização criminal, ainda que o seu estado não lhe permita prestar ou recusar o consentimento a tal colheita.”.
Tendo em conta o caso concreto, está demonstrado, conforme resulta do auto de notícia de fls. 2 e ss., exame toxicológico de fls. 5) e parecer médico-legal junto aos autos em ........2024, que o arguido foi interveniente num acidente de viação, quando conduzia na via pública um veículo automóvel; tendo sofrido ferimentos graves e por causa deles sido de imediato conduzido ao Hospital ..., em veículo do INEM, onde foi atendido na urgência.
Mostra-se consignado, de forma expressa, pelo militar da GNR que se deslocou ao local, verificou a existência do acidente e verificou que os ocupantes do veículo, incluindo o arguido, sofreram ferimentos graves e que, por esse motivo, não foi aí submetido ao controlo de álcool.
Assim sendo, mostra-se justificado nos autos a previsão do n.º 2 do artigo 156.º do Código da Estrada e artigo 4º nº 1 da Lei 18/2007, de 17 de maio, ou seja, mostram-se preenchidas as excecionais circunstâncias justificadoras da colheita de amostra de sangue ao arguido com vista à realização do exame de diagnóstico destinado a detetar a taxa de álcool, do qual resultou que era portador de uma taxa de 1,69 g/l de álcool no sangue.
Apesar de nos autos nada resultar que o arguido tenha dado o seu consentimento para a realização do exame, o que é certo é que também não consta que o exame realizado tenha sido efetuado contra a sua vontade. Em todo caso, considerando as circunstâncias em que foi realizada a colheita, a qual teve lugar em ambiente hospitalar e com a observância das legis artis médicas e envolveu um grau de afetação da integridade física muito reduzido, não se poderá considerar que houve uma direta violação da vontade do arguido. O que se verificou foi apenas uma impossibilidade de consideração da vontade do arguido.
Quanto a esta questão, o tribunal Constitucional, nos acórdãos nº 155/2007 e 418/2013, já se pronunciou no sentido que a recolha de amostra de sangue, para deteção do grau de alcoolemia, em condutor incapaz de prestar ou recusar o seu consentimento, não implica uma violação do direito à não autoincriminação, sendo que tal recolha constitui a “base para uma mera perícia de resultado incerto”, não contendo qualquer declaração ou comportamento ativo do examinando no sentido de assumir factos conducentes à sua responsabilização.
No mesmo sentido, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem considerado que o direito à não autoincriminação não se estende à utilização, num processo criminal, de meios de prova que possam ser obtidos do arguido e que existam independentemente da sua vontade, por exemplo, recolha de amostras de sangue (cfr. caso Saunders v. Reino Unido, decisão de 17 de dezembro de 1996).
Com efeito, a colheita de sangue realizada ao arguido, com vista à realização da prova pericial, não contém em si qualquer declaração autoincriminadora, na medida em que a mesma visa apenas apurar, com recurso a prova pericial, se o arguido estava a conduzir sob a influência do álcool.
Quanto à alegada violação da integridade física do arguido seguiremos. uma vez mais, aquilo que o Tribunal Constitucional já se pronunciou a este propósito. Com efeito, no acórdão nº 418/2013 é dito o seguinte: “Na verdade, como acabámos de recensear, a jurisprudência deste Tribunal tem vindo a considerar que a Constituição autoriza, atendendo às finalidades em causa, e respeitadas as demais exigências constitucionais, a restrição dos direitos fundamentais à integridade pessoal, à reserva da vida privada ou à autodeterminação informativa (v.g., Acórdãos n.º 254/99 e n.º 155/2007, citados).
E a recolha de amostra de sangue, nas específicas circunstâncias em análise no presente recurso, apesar de contender com o direito à integridade pessoal e o direito à reserva da vida privada do examinando, igualmente não comporta um juízo de desconformidade constitucional.
A intervenção nos referidos direitos fundamentais dirige-se à salvaguarda da eficácia da pretensão punitiva do Estado, relativamente a normas sancionatórias criadas como garantia de efetiva tutela material de outros direitos fundamentais valiosos - a vida, a integridade física, a propriedade privada - abarcados pela proteção da segurança da circulação rodoviária”
(…)
Por último, apesar de corresponder a uma ingerência no direito à esfera pessoal de privacidade do examinando, tem um alcance intrusivo reduzido, porquanto apenas implica a recolha, para fins restritos e legalmente delimitados, de uma amostra de um material biológico preciso, revelador de limitadas informações acerca da vida privada do visado, realizada no recato conatural ao contexto hospitalar, por pessoal de saúde sujeito a segredo profissional.
Tudo ponderado, resulta que a restrição obedece ao princípio da proporcionalidade, sendo adequada – correspondendo a meio idóneo à prossecução do objetivo de proteção dos direitos fundamentais em análise – bem como necessária – por corresponder ao único meio, face ao caráter perecível da prova, que ainda permite a satisfação da pretensão punitiva do Estado – e proporcional, em sentido estrito, apresentando-se como equilibrada e correspondente à justa medida imposta pela proteção dos direitos que cumpre acautelar”
Assim sendo, na senda da jurisprudência do Tribunal Constitucional acima mencionada, tendo a recolha de amostra de sangue decorrido nas condições previstas na lei, o exame em causa constituiu um meio de obtenção de prova legal, constituindo o respetivo resultado da pesquisa quantitativa de álcool efetuada nessa amostra um meio de prova válido, não se verificando, por isso, a violação do disposto no artigo 126º nº 3 do CPP e artigos 25º, 32º, n.ºs 1, 2, e 8 da CRP.
Cumpre dizer, ao contrário do que pretende o arguido, que as circunstâncias de onde decorre a validade de um meio de prova, embora devam constar dos autos, não têm que ser alegadas na acusação nem de constar do elenco dos factos provados e não provados que devem constar na sentença.
Com efeito, o artigo 368º nº 2 do CPP, onde são expressa e taxativamente enunciados os factos entre os alegados pela acusação, pela defesa e resultantes da discussão da causa a incluir na fundamentação factual da sentença, não inclui aqueles de onde decorram os pressupostos da validade de cada meio de obtenção de prova que for considerado pelo tribunal para formar a sua convicção.
Por fim, quanto ao alegado incumprimento grosseiro de outros procedimentos legalmente previstos, como seja, o modelo do anexo não estar correta nem completamente preenchido, não indicando a medicação ministrada ao arguido antes da recolha de sangue e bem assim nas 48 h anteriores, o original do modelo do anexo não conter a vinheta do profissional de saúde, desconhecendo-se quem fez a recolha, se foi médico ou outro profissional de saúde, o duplicado do impresso não ter sido entregue ao arguido nem ao seu representante legal, o qual não contém a assinatura do mesmo nem de testemunha conforme possibilidade constante do formulário, e o resultado do exame Toxicológico de sangue para quantificação da taxa de álcool não ter sido enviado à entidade fiscalizadora no prazo máximo de 30 dias, a contar da data da receção, mas antes passados quase dois meses da receção, cumpre dizer que os invocados vícios, a existirem, não teriam a virtualidade, como pretende o arguido, de conduzir ao vício de prova proibida nos termos do artigo 126º nº 3 do CPP.
Na verdade, os invocados vícios reportam-se não à obtenção da prova em si, mas sim quanto aos procedimentos administrativos relativos à forma como essa prova é documentada e transmitida, sendo que em nenhum momento a lei comina como nulidade a inobservância dos alegados procedimentos.
Deste modo, os alegados vícios seriam, conforme resulta do princípio da legalidade previsto no artigo 118º do CPP, meras irregularidades sujeitas ao regime de arguição e sanação previstos no artigo 123º do CPP.
Nesta conformidade, dado que o arguido não invocou, como lhe competia, perante o tribunal recorrido e dentro do prazo previsto no artigo 123º do CPP, as alegadas irregularidades, não compete a este Tribunal da Relação conhecer, em primeira mão, de uma irregularidade, tanto mais que a mesma mostra-se sanada.
Assim sendo, o recurso terá de improceder.
IV – Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção desta Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido BB e manter a sentença recorrida.
Custas relativas ao recurso a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).
Notifique

Lisboa, 10 de julho de 2025
Processado por computador e revisto pelo Relator (cf. art.º 94º, nº 2, do CPPenal).
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Marlene Fortuna