I - Quando concorrem circunstâncias agravativas e privilegiadoras do crime de tráfico de estupefacientes, constitui um erro na aplicação do direito eleger, à partida, como única aplicável a espécie mais grave do crime (art. 24º), em detrimento da menos grave (art. 25º), ou considerar que as duas se anulam mutuamente, sobrevindo o tipo simples (art. 21º).
II - A valoração da ilicitude como fortemente agravada ou como especialmente diminuída dependerá apenas da apreciação global de todos os elementos com incidência no elemento do tipo.
III - Assim, se, como no caso revidendo, ao nível da ilicitude dos factos, verificam-se apenas duas concretas circunstâncias que espelham uma mais significativa relevância: o local da prática dos factos ser um estabelecimento prisional – o que, apesar de não permitir a integração automática da qualificativa prevista na al.h), do art. 24º, do diploma legal em apreço, constitui, sem dúvida, uma agravação da ilicitude dos factos; e o transporte das 29, 759 g/l de cocaína – vulgarmente designada de “droga dura”, pelos seus mais nefastos efeitos na saúde pública;
IV - Mas, quanto ao mais, é manifesta a preponderância ou incidência de circunstâncias atenuativas, quais sejam a natureza da droga transportada em maior quantidade – canábis resina, ou haxixe, vulgarmente considerada de droga “leve”; o seu peso líquido – 41, 346 g/l -, que apenas permite a obtenção de 9 (nove) doses médias individuais diárias, o que se revela diminuto, até face à muito baixa qualidade do produto, que apresenta um ínfimo grau de pureza de 1,2% (THC); a também baixa qualidade da cocaína transportada – 16,1% (THC); tratar-se de uma conduta única, isolada, episódica e a forma tosca como a mesma foi levada adiante, sem qualquer sofisticação, de um modo que, como é consabido, é de detecção altamente previsível e, assim, com uma enorme taxa de insucesso; e o facto de o produto estupefaciente não ter saído da posse da arguida com a introdução na zona dos reclusos (ainda que na sala das visitas), de onde resulta que o perigo de disseminação da droga não se tenha concretizado; numa imagem global dos factos, impõe-se concluir que prevalece o tipo privilegiado ou atenuado, reconhecendo-se que o mesmo, tal como decidido pelo Tribunal a quo, constitui um caso de gravidade diminuída (art. 25º).
(Sumário da inteira responsabilidade da relatora)
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Criminal de ...
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum colectivo n.º 1950/19.6JAPRT que corre termos pelo Juízo Central Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em que é arguida AA, melhor identificada nos autos, foi proferido acórdão, no qual se decidiu [transcrição]:
“(…)
Nestes termos julga-se a douta acusação pública parcialmente procedente e, consequentemente, as Juízas que constituem o Tribunal Coletivo decidem:
1- Absolver a arguida AA, como autora, da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, agravado previsto e punível pelos artigos 21º, n.º 1 e 24º, al. h), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01.
2- Condenar a arguida pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22.01, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos.
3- Condenar a arguida em 3 UCs a título de taxa de justiça, sem prejuízo de eventual benefício do apoio judiciário de que goze.
(…)”
»
I.2 Recurso da decisão final
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
CONCLUSÕES
1 – O presente recurso vem invocar erro de direito, na parte em que se subsume os factos conhecidos ao crime de tráfico de menor gravidade, nos termos do art. 25º do DL 15/93, de 22.01.
2 – A convolação efectuada para um crime de menor gravidade do art. 25º do diploma citado, não tem justificação à luz dos factos provados.
3 –Os fundamentos para a desgraduação do crime imputado - a limitação do período de tempo da actividade ilícita a um acto isolado; o não apuramento do número de consumidores/adquirentes; a ausência de sinais concretos de enriquecimento ilegítimo; o facto de não se ter demonstrado que actue integrada em rede, não obnubilam a acrescida gravidade da conduta resultante da qualidade e quantidade dos produtos detidos, do local onde os factos foram cometidos, do modo de execução e da consciência de que os mesmos se destinavam a serem vendidos no EP, espaço que se pretende ser de ressocialização e de manutenção da ordem e da integridade pessoal dos reclusos.
4 - Assim, a arguida deveria sofrer uma pena, não detentiva, já que não se questiona a prognose realizada quanto à pena substitutiva obtida, mas doseada em função da moldura penal do crime concretamente praticado, ou seja, o do art. 21º do diploma citado, o que com o presente recurso se requer
5 – Considera-se ter a decisão recorrido feito errada aplicação das normas previstas nos arts. 21º, 24º e 25º do DL 15/93, de 22.01. .
Assim, deverá dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o Acórdão recorrido e substituí-lo por outro que, de harmonia com as conclusões expostas, considere integrarem os factos apurados o crime base do art. 21º do DL 15/93 e se condene a arguida numa pena, ainda que não detentiva e no limiar mínimo da moldura respectiva,
assim se fazendo Justiça.
(…)”
»
O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido em 28/04/2025, com os efeitos de subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.
»
I.3 Resposta ao recurso
Efectuada a legal notificação, a arguida não respondeu ao recurso interposto.
»
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição do Digno Magistrado do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.
»
I.5. Resposta
Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), foi apresentada resposta ao sobredito parecer pela arguida, a qual foi no sentido de declarar que “(…) não concorda com o mesmo, devendo, por outro lado, manter-se a decisão proferida pelo Douto Tribunal de primeira instância.”
»
I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do CPP.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
»
II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do CPP, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], e da doutrina[2], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do CPP[3], relativas a vícios que devem resultar directamente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do C.P.P.).
»
II.2- Apreciação do recurso
Veio o Ministério Público recorrer unicamente da matéria de direito.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, a questão decidenda a apreciar é a seguinte:
- se a decisão recorrida incorreu em erro de direito ao convolar os factos provados para o crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º do DL. 15/93, de 22.01 devendo, antes, condenar-se a arguida pelo crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do referido diploma, com o necessário ajustamento da pena.
»
Vejamos.
II.3 - Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar a questão objecto de recurso]:
“(…)
1. Relatório
Para julgamento em processo comum e perante Tribunal Coletivo, o Ministério Publico acusou:
AA, filha de BB e de CC, nascida no dia ../../1981, desempregada, titular do cartão de cidadão n.º ..., residente na Rua ..., ... Porto.
Imputando-lhe a prática, um crime de tráfico, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º e 24.º, alínea h) ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, por referência à tabela I-B e I-C anexa àquele diploma legal.
Foi proferido despacho que recebeu a acusação e foi designada data para a realização da audiência de julgamento.
Não há nulidades insanáveis nem quaisquer outras questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer.
Procedeu-se a julgamento com a observância de todo formalismo legal como da ata se infere.
2.1. Os factos provados
Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
1. Pelo menos à data dos factos infra, era costume a arguida ir ao estabelecimento prisional ... porque o seu companheiro DD, então recluso número ... se encontrava ali preso.
2. Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 11 de maio de 2019, a arguida acordou com pessoa que se encontrava presa no referido estabelecimento prisional e cuja identificação não se veio a apurar que a, mesma, na visita a ter lugar no referido dia 11 de maio de 2019, levaria substâncias estupefacientes para o interior do Estabelecimento Prisional e, concretamente, para a zona do parlatório, a fim de, as mesmas, serem entregues ao referido recluso cuja identificação não se veio a apurar e a serem, em parte, vendidas a outros reclusos, o que fez a troco de 50€.
3. Assim, em execução do plano previamente traçado, no dia 11 de maio de 2019, pelas 14h, a arguida deslocou-se ao estabelecimento prisional ..., sito na área deste Município, a fim de visitar o seu companheiro.
4. Ali chegada, aquando da revista pessoal a que foi sujeita foi detetado um embrulho envolto num preservativo na zona genital da mesma.
5. O referido embrulho era composto por:
a) um produto sólido, com o peso líquido de 29, 759 g/l que se revelou ser cocaína (Éster metílico) com o grau de pureza de 16,1% (THC), em quantidade suficiente para 159 (cento e cinquenta e nove) doses médias individuais diárias;
b) um produto vegetal prensado, com o peso líquido de 41, 346 g/l que se revelou ser Canábis (Resina) com o grau de pureza de 1,2% (THC), em quantidade suficiente para 9 (nove) doses médias individuais diárias.
6. A arguida conhecia a natureza estupefaciente das substâncias em causa bem sabendo que a sua detenção e cedência a terceiros eram proibidas e punidas por lei.
7. A arguida atuou do modo supra descrito com o propósito de introduzir o produto estupefaciente no interior do Estabelecimento Prisional a fim de, as mesmas, serem entregues a pessoa cuja identificação ainda não foi possível apurar sendo que, as mesmas, se destinavam a ser vendidas a outros reclusos, o que a arguida sabia.
8. A arguida conhecia a ilicitude das suas condutas, e não se coibiu das mesmas, apesar de saber que as suas condutas eram particularmente censuradas em tais circunstâncias.
9. A arguida agiu de modo livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
10. Está desempregada e reside em casa arrendada e a renda suportada pela mãe. Tem 3 filhos.
11. A arguida já foi condenada anteriormente nos termos infra:
- No processo nº... Porto - JL CRIMINAL - JUIZ 6, por sentença de 2022/12/20, transitada em 2023/02/07, a arguida foi condenada pela prática em 2019/10/03 de um crime de desobediência na pena de 50 dias de multa à taxa diária de € 6,00, já extinta.
2.2. Os factos não provados
Inexistem.
3. De Direito
3.1. Enquadramento jurídico-penal
Perante o elenco factual provado, cumpre ora proceder, sem mais delongas, ao respectivo enquadramento jurídico-criminal.
À arguida vem imputada a prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado previsto e punido pelos art. 21º, nº 1 e 24º, al. h) do DL 15/93 de 22 de Janeiro.
Vejamos.
Importa, pois, verificar se estão ou não preenchidos os elementos objectivos e subjectivos daquele tipo de crime.
Prescreve o art. 21º, n.º 1, do referido diploma legal que “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser á venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
Por seu turno, o art. 24º do diploma sob a epígrafe da agravação postula que:
“As penas previstas nos artigos 21.º e 22.º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se:
a) As substâncias ou preparações foram entregues ou se destinavam a menores ou diminuídos psíquicos;
b) As substâncias ou preparações foram distribuídas por grande número de pessoas;
c) O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória;
d) O agente for funcionário incumbido da prevenção ou repressão dessas
infracções;
e) O agente for médico, farmacêutico ou qualquer outro técnico de saúde, funcionário dos serviços prisionais ou dos serviços de reinserção social, trabalhador dos correios, telégrafos, telefones ou telecomunicações, docente, educador ou trabalhador de estabelecimento de educação ou de trabalhador de serviços ou instituições de acção social e o facto for praticado no exercício da sua profissão;
f) O agente participar em outras actividades criminosas organizadas de
âmbito internacional;
g) O agente participar em outras actividades ilegais facilitadas pela prática da infracção;
h) A infracção tiver sido cometida em instalações de serviços de tratamento de consumidores de droga, de reinserção social, de serviços ou instituições de acção social, em estabelecimento prisional, unidade militar, estabelecimento de educação, ou em outros locais onde os alunos ou estudantes se dediquem à prática de actividades educativas, desportivas ou sociais, ou nas suas imediações – sublinhado nosso;
i) O agente utilizar a colaboração, por qualquer forma, de menores ou de
diminuídos psíquicos;
j) O agente actuar como membro de bando destinado à prática reiterada dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º, com a colaboração de, pelo menos, outro membro do bando;
l) As substâncias ou preparações foram corrompidas, alteradas ou adulteradas, por manipulação ou mistura, aumentando o perigo para a vida ou para a integridade física de outrem.”
Porém, tudo se pode resumir no conceito de saúde pública em geral.
No que respeita à natureza do crime de tráfico, na dogmática das qualificações penais, pode dizer-se que se trata de um crime de perigo abstracto, na medida em que se não exige, para a sua consumação, o dano ou o perigo de dano de um dos concretos bens jurídicos protegidos com a incriminação, mas somente a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos.
A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para os supra mencionados bens, a que acrescem valores de tranquilidade e coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade, considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine.
Esclarecida a natureza do crime, cumpre analisar os seus elementos, quer objectivos, quer subjectivos.
São elementos objectivos do crime previsto no art. 21º, o cultivo, a produção, a extracção, a venda, a distribuição, a cedência, a detenção (entre outras situações também previstas pelo legislador) sem autorização, fora dos casos previstos no art. 40º (consumo) de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III.
A estes elementos objectivos deve, naturalmente, acrescer o elemento subjectivo, o dolo.
A natureza ilegal da substância apreendida tem que estar demonstrada no processo, isto para todos os crimes relativos a estupefacientes. Por isso é necessário proceder ao exame laboratorial das substâncias apreendidas, em conformidade com o art. 62º do D.L. nº 15/93, de 22/01 e, bem ainda, art. 10º, n.º 1, da Portaria n.º 94/96 de 26.03, segundo o qual «na realização do exame laboratorial referido nos nºs 1 e 2 do artigo 62º (…) o perito identifica e quantifica a planta, substância ou preparação examinada, bem como o respectivo princípio activo ou substância de referência».
Já em relação à agravação postulada pelo art. 24º “As circunstâncias de agravação, que, como tal, integram o tipo agravado, e pertencem, num certo limite, ainda à tipicidade, têm refracções consequenciais na ilicitude por adensarem o nível do ilícito, revelando maior contributo na dimensão do perigo para os bens jurídicos que as incriminações dos tráficos de estupefacientes se destinam a tutelar.
A maior dimensão da ilicitude que a agravação traduz há-de ser essencial para a interpretação e integração da referida noção indeterminada, que, por integrar ainda por si um elemento do tipo agravado, requer a definição segundo o modelo de rigor que tem de ser próprio à definição dos elementos da tipicidade.
A agravação supõe, pois, uma exasperação do grau de ilicitude já definido e delimitado na muito ampla dimensão dos tipos base - os artigos 21º, 22º e 23º do referido Decreto-Lei, e consequentemente, uma dimensão que, moldada pelos elementos específicos da descrição das circunstâncias, revele um quid específico que introduza uma medida especialmente forte do grau de ilicitude que ultrapasse consideravelmente o círculo base das descrições-tipo. A forma agravada há-de ter, assim, uma dimensão que, segundo considerações objectivas, extravase o modelo, o espaço e o grau de ilicitude própria dos tipos base…” – assim, Ac. do STJ no âmbito do processo n.º 04P4221, datado de 26.01.2005, em que foi relator o Sr. Juiz Conselheiro Dr. Henrique Gaspar.
Dito isto, e analisada criticamente toda a prova produzida nos moldes supra enunciados, resulta que apesar da arguida ter detido o produto estupefaciente apreendido e cuja introdução no EP inicialmente pretendia, efectivamente esta não veio a suceder pois o produto foi entretanto apreendido.
Destarte, e tendo presente o teor do exame efectuado pelo LPC, não se nos oferece dúvidas a natureza e quantidade do produto apreendido; e que a arguida conhecia as características estupefacientes de tal substância, tal como admitiu, assim como sabia que tal posse era proibida.
Perante a quantidade de estupefaciente apreendido e número de doses a que se destinava, facilmente se constata encontrar-se ultrapassada a quantidade aceitável como necessária para consumo médio individual durante o período de 10 dias.
A questão dos valores constantes do mapa anexo à Portaria nº 94/96 de 26/3 foi, além do mais, discutida no Tribunal Constitucional no âmbito do Acórdão nº 534/98, proferido no Proc. nº 545/98 da 3ª Secção, datado de 7/8/98 tendo-se ali decidido “interpretar a norma constante da alínea c) do nº1 do artigo 71 do DL nº 15/93 no sentido de que, ao remeter para a portaria nela referida, a definição dos limites quantitativos máximos do princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes da tabela I a IV, de consumo mais frequente, anexas ao mesmo diploma, o faz com o valor de prova pericial”. E na respectiva fundamentação refere-se expressamente que “os limites fixados na portaria, tendo meramente um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, (…), assim, devendo entender-se que faz “a remissão para valores indicativos, cujo afastamento pelo tribunal é possível, embora acompanhada da devida fundamentação”.
A arguida não se encontrava autorizada para tal conduta e sendo destino desse estupefaciente um fim que vai para além do consumo, encontra-se, pois, preenchido o elemento típico objectivo do crime de tráfico.
A arguida nunca deixou de estar consciente da ilicitude da sua conduta, conformando-se com ela.
A questão coloca-se em saber se a aplicação das circunstâncias agravantes previstas nas suas várias alíneas é, ou não, de funcionamento automático.
Esta querela tem sido amplamente discutida pela Jurisprudência, com a prolação de decisões dos Tribunais superiores num e noutro sentido, remetendo, por questões de celeridade, para os que vêm enunciados nas contestações.
Alguns dos principais fundamentos em ordem a não considerar o efeito agravativo automático no caso de o facto ilícito ter sido praticado em Estabelecimento Prisional vêm sintetizados no segmento vertido no Ac. do STJ proferido no âmbito do Proc. n.º 52/07.2PEPDL.S1, datado de 07.07.2009:
“I - A razão de ser da agravação por via da al. h) do art. 24.º do DL 15/93, por efeito da conduta integrante haver tido lugar em estabelecimento prisional reside na perturbação do processo de ressocialização dos reclusos e no grave transtorno da ordem e organização das cadeias que o tráfico comporta. Os estabelecimentos prisionais face aos inevitáveis problemas e questões que a clausura gera, estados de depressão e inactividade dos reclusos, concentração e massificação das pessoas, conflitos pessoais, carências afectivas, sentimentos de frustração, perda de auto-estima, são particularmente propícios ao consumo de estupefacientes e, consequentemente, constituem um dos alvos prioritários dos traficantes.
II - Sendo essa a razão de ser daquela agravante modificativa, e não o desrespeito pela autoridade do Estado, a mesma só deverá funcionar perante comportamentos através dos quais se haja processado a difusão de substâncias estupefacientes pelos estabelecimentos prisionais ou, pelo menos, face a condutas potenciadoras desse perigo.”.
Mesmo em decisões mais recentes onde não se regista tout court a adesão ao preenchimento não automático, ainda assim não deixa de se salvaguardar o pendor excepcional que o caso concreto pode assumir.
Chamamos, pois a atenção para o decidido no Ac. do STJ datado de 19.05.2021 no âmbito do Proc. n.º 888/19.1JAPDL.S1 em que é relator o Sr. Juiz Conselheiro Dr. Nuno Gonçalves, de que destacamos os seguintes arestos:
“… Alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal tem interpretado que os factos tipificados no art. 24º do DL n.º 15/93 tornam, de per si, imediatamente, a ilicitude do tráfico especialmente grave. Foi esse o entendimento adotado no acórdão recorrido. Também assim se entende, ainda que se admitam situações excecionalmente raras que tornem excessivamente insuportável, do ponto de vista da justa medida, a aplicação da moldura penal agravada, como adiante se justifica…”, e mais à frente “… Admitindo-se que o tráfico de muito baixa importância ou dimensão no qual concorre um facto agravante, possa, muito excecionalmente e no limite, não ser punido no âmbito da moldura agravada…”.
Do que a nós nos incumbe dizer:
Dada a iminência de nos confrontarmos com situações como a que ora apreciamos (como ao diante veremos), ou outras de contornos semelhantes, não podemos deixar de sufragar a corrente que defende a vertente não automática do funcionamento da(s) circunstância(s) qualificativa(s).
Neste mesmo sentido, salientamos a profusão de decisões dimanadas do STJ, especialmente activo neste desiderato, das quais destacamos os Ac. de 14.07.2004 (proc. n.º 2147/04), de 30.03.2005 (proc. n.º 3963/04), de 21.04.2005 (proc. 1273/05), de 08.02.2006 (processo 399/04), de 07/07/2009 (proc. 52/07.2PEPDL.S1 supra aludido), e mais recentemente, o Ac. de 14.07.2021 relatado pela Sr.ª Juíza Conselheira Dr.ª Teresa Féria (proc. n.º 4171/17.9T9CBR.C1.S1) passíveis de consulta em www.dgsi.pt.
Em particular, o que vem dito nos Acórdãos mais recentes do STJ, o primeiro datado de 10.10.2018, no âmbito do processo n.º 5/16.0GAAMT.S1:
«“Quanto à verificação das circunstâncias agravantes previstas no art. 24º, não são de funcionamento automático, devendo ser analisadas tendo em consideração o princípio da proporcionalidade, conforme estabelece o art. 3º, n.º 4, da Convenção da ONU de 20.12.1988, ratificada por Portugal, e que esteve na base do Dec.-Lei n.º 15/93, conforme se refere no respetivo preâmbulo.
Assim, só haverá agravação do tráfico de estupefacientes nas situações em que a conduta do agente revele, em concreto, um particular desprezo ou desrespeito pelos objetivos perseguidos pela norma penal agravante.”.
«… e o segundo datado de 15.01.2020, no âmbito do processo n.º 23/07.0PEBJA.S1 relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Dr. Raúl Borges, com especial enfoque para o estudo aturado e completo acerca das várias correntes da nossa jurisprudência:
“… É uniforme neste Supremo Tribunal o entendimento de que a circunstância de a infracção ter sido cometida em estabelecimento prisional não produz efeito qualificativo automático, antes exigindo a sua interpretação teleológica, por forma a verificar se a concreta modalidade da acção, a concreta infracção justifica o especial agravamento da punição querida pelo legislador.”
No caso em apreço, demonstrou-se que o produto estupefaciente apreendido à arguida destinava-se a ser entregue a outros reclusos que se encontravam no interior do EP. Porém, se por um lado o produto não chegou a ser introduzido efectivamente no EP, por outro, desconhece-se se o mesmo se destinava a uma disseminação do consumo pela população prisional do EP em geral, pelo que não vislumbramos a possibilidade de conferir suficiente gravidade à conduta da arguida, nos termos e para os efeitos da agravação prevista na al. h) do art. 24º do Decretolei n.º 15/93 que, por esta via, se afasta.
Ao assim dispor, a factualidade provada é repristinada ao enquadramento legal do crime comum do art. 21º.
O que agora importa saber é se a mesma é passível de subsunção ao tipo legal previsto no art. 25º do D-L 15/93 denominado “Tráfico de menor gravidade”, certos que, na verificação dos seus elementos objectivos e subjectivos e, acompanhando de perto corrente jurisprudencial que o não descarta, será tal regime de aplicar – cfr. Ac. do STJ datado de 02.05.2007 proferido no âmbito do Proc. n.º 1013/07, e no processo 23/07.0PEBJA.S1 a que acima fizemos referência.
Vejamos então.
Ab initio, teremos de ter sempre presente que o art. 25º pressupõe a verificação dos elementos do art. 21º ou do art. 22º. A sua diferença encontra-se num menor grau da ilicitude, que pode ficar a dever-se a diversos factores, nomeadamente, dos meios utilizados, da modalidade ou das circunstâncias da acção, da qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
Assim, para se determinar se o tráfico é apenas de menor gravidade, na nossa opinião tem interesse, essencialmente, o período de tempo da actividade, o número de pessoas adquirentes da droga, a repetição de vendas ou cedências, os montantes envolvidos no negócio de tráfico e a natureza dos produtos.
Ao criar o crime privilegiado previsto e punido pelo art. 25º do Decreto-lei n.º 15/93, o legislador pretende evitar que situações de menor gravidade sejam punidas com penas desproporcionadas ou que se utilize indevidamente uma atenuação especial da pena, configurando-se esse preceito como válvulas de segurança do sistema.
Revertendo novamente ao caso dos autos, é de salientar a menor expressividade dos elementos apurados, como sejam, entre outros: a limitação do período de tempo da actividade ilícita a um acto isolado; o não apuramento do número de consumidores/adquirentes e, nessa medida, das transacções efectuadas, a existirem; a ausência de sinais concretos de enriquecimento ilegítimo à custa desta actividade; o facto de não se ter demonstrado que actue integrada em rede humana e/ou organizacional na compra e venda, para revenda; não se ter descoberto a sua inclusão em estrutura consistente de corte e embalamento, fosse onde fosse, que denote planeamento.
Deste modo, o único factor a ter em linha de conta é a quantidade do produto estupefaciente apreendido, cuja expressividade é inegável mas não o bastante para, só por si, suportar a tipificação base do art. 21º.
Encontram-se, pois, reunidos os pressupostos para a condenação da arguida, todavia e, por se constatar a presença dos legais requisitos, levar por diante alteração da qualificação jurídica dos factos, não o condenando pelo crime de tráfico p. e p. pelo art. 21º do Decreto-Lei n.º 15/93.
Donde, a condenação da arguida pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, n.º 1, do Código Penal.
Feito, por esta forma, o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar-lhe.
Dispõe o art. 40, n.º 1 que “a aplicação das penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. E no seu n.º 2, plasma-se que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Daqui resulta que é a prevenção geral positiva ou de reintegração o factor primacial a ter em conta na aplicação da pena. No quadro da moldura penal abstracta existe um mínimo correspondente às expectativas comunitárias em face da norma jurídica violada e um limite máximo balizado pela culpa do agente e em caso algum ultrapassável. É precisamente entre estes limites, mínimo e máximo, que se satisfazem as necessidades de prevenção especial ou de socialização.
Vale isto por dizer que a pena não mais é entendida como um factor de repressão ou mesmo de retribuição. Tem, isso sim, um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador. As penas aplicam-se tendo em vista restabelecer a confiança colectiva na norma violada e em última análise a ressocialização e integração do delinquente na sociedade.
Nesta perspectiva, a medida das penas é determinada em função da culpa do agente, das exigências de prevenção, no caso concreto (cfr. art. 71, n.º 1), levandose em linha de conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente (art.º 71, n.º 2).
Na determinação da medida das penas parcelares há que ter em conta as penas abstractas, estatuídas pelas normas incriminadoras, em conjugação com o preceituado nos arts. 41º e 47º sendo certo que, para o crime em causa, se mostra previsto apenas pena de prisão entre um e cinco anos.
Vejamos então,
Sem prejuízo da operada desqualificação jurídica, não se pode concluir por diminuta ilicitude, embora se afaste a presença do seu grau máximo; para tanto basta atender à quantidade total de estupefaciente envolvido.
O dolo é directo e intenso, e a culpa grave.
Já o modo de execução do facto apresenta-se de relevante ilicitude, para o que temos em devida conta não apenas os padrões comportamentais para este tipo de crime se ponderada a dinâmica da actividade de compra e venda, detenção, cedência de estupefacientes, etc., como também o facto de essa detenção ter ocorrido no interior do Estabelecimento Prisional.
São consideráveis as exigências de prevenção geral dado que urge por termo a estes comportamentos reprováveis; não há como desvalorizar a difusão e o incremento do tráfico de droga, que tanto alarme e rejeição social, suscita, a par dos perigos que representa para a saúde pública.
No âmbito das exigências da prevenção especial, importa salientar que a à data da prática dos factos a arguida era primária.
A seu favor milita a sua confissão e o seu arrependimento.
Tudo ponderado, não olvidando a condição económica, social e familiar da arguida, crê-se ajustada a pena de 2 (dois) anos de prisão.
Contudo, face ao vindo de expor aquando da fixação da medida concreta da pena, que agora se reitera, e porque se tratou de uma situação isolada na vida da arguida, entendemos que a simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que se conclui pela suspensão da execução da pena.
»
II.4- Apreciemos, então, a questão a decidir.
Veio o Ministério Público recorrente alegar [no que foi acompanhado pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta, no seu parecer, junto deste Tribunal da Relação], que a convolação efectuada pelo Tribunal a quo para um crime de menor gravidade não tem justificação à luz dos factos provados. Aduz que os fundamentos do Tribunal recorrido para a desgraduação do crime imputado, ou seja, a limitação do período de tempo da actividade ilícita a um acto isolado; o não apuramento do número de consumidores/adquirentes; a ausência de sinais concretos de enriquecimento ilegítimo; o facto de não se ter demonstrado que actue integrada em rede, não obnubilam a acrescida gravidade da conduta resultante da qualidade e quantidade dos produtos detidos, do local onde os factos foram cometidos, do modo de execução e da consciência de que os mesmos se destinavam a serem vendidos no EP, espaço que se pretende ser de ressocialização e de manutenção da ordem e da integridade pessoal dos reclusos.
Conclui, assim, que a arguida deveria ser condenada pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do DL 15/93, de 22.01, numa pena não detentiva, mas doseada em função da moldura penal do crime concretamente praticado.
Não houve resposta ao recurso, por parte da arguida.
Cumpre apreciar.
Não tendo sido colocada em causa, por via do presente recurso, a decisão do Tribunal recorrido de considerar que a factualidade apurada não se integra na previsão do crime de tráfico de estupefacientes agravado, nem tão-pouco se reconhecendo qualquer erro de direito em tal decisão, cumpre, então, apreciar se a conduta da arguida, dada como provada, recai na previsão do tipo fundamental - crime base/essencial/nuclear, do artigo 21.º [como o pretende o Ministério Público recorrente], ou se diversamente a integração é de fazer no tipo privilegiado do artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, procedendo-se à convolação para o crime de tráfico de menor gravidade [como o decidiu o Tribunal a quo].
Ora e adiantando já, não se verificando a agravação e reconduzidos os factos ao crime comum do art. 21º do DL nº15/93, nada obsta a que eles possam ser subsumidos ao art. 25º do mesmo diploma legal, desde que, evidentemente, os respectivos pressupostos (menor gravidade) estejam reunidos e sem prejuízo, naturalmente, de a circunstância de os factos terem ocorrido em estabelecimento prisional ser levada, depois, em conta, ao nível da determinação da medida concreta da pena.
É pacífico que o artigo 21.º é a norma referência a partir da qual se constroem as figuras dos artigos 24.º, 25.º, 26.º e 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Segundo Hans Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Edição Bosch, tradução de S. Mir Puig e F. Muñoz Conde, pág. 363, a modificação dos tipos tem lugar através de «variantes dependentes do tipo básico completamente reguladas, que constituem por sua vez tipos qualificados ou privilegiados», ou pelo recurso a «causas inominadas de agravação ou de atenuação da pena», que a lei designa como «casos especialmente graves» ou «casos menos graves».
Assim, quando concorrem circunstâncias agravativas e privilegiadoras do crime de tráfico de estupefacientes, constitui um erro na aplicação do direito eleger, à partida, como única aplicável a espécie mais grave do crime (art. 24º), em detrimento da menos grave (art. 25º), ou considerar que as duas se anulam mutuamente, sobrevindo o tipo simples (art. 21º).
A valoração da ilicitude como fortemente agravada ou como especialmente diminuída dependerá apenas da apreciação global de todos os elementos com incidência no elemento do tipo.
Será, pois, a análise do caso concreto que determinará a integração dos factos na modalidade tipo ou na modalidade privilegiada.
O critério a seguir será a avaliação do conjunto da acção, tendo em conta o grau de lesividade ou de perigo de lesão (o crime de tráfico é um crime de perigo abstracto) do bem jurídico protegido (saúde pública).
Esta é a tese que preconizamos, que encontra sustentação numa posição que se vê fortemente defendida pelo Colendo STJ, do qual destacamos o Acórdão datado de 15/01/2020, P. nº 23/17.0PEBJA.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges, publicado in www.dgsi.pt., em cujo sumário se lê:
«(…) Como vem entendendo este Supremo Tribunal de Justiça, quando o legislador prevê um tipo simples, acompanhado de um tipo privilegiado e um tipo agravado, é no crime simples ou no crime tipo que desenha a conduta proibida enquanto elemento do tipo e prevê o quadro abstracto de punição dessa mesma conduta. Depois, nos tipos privilegiado e qualificado, vem definir os elementos atenuativos ou agravativos que modificam o tipo base conduzindo a outros quadros punitivos. E só a verificação afirmativa, positiva desses elementos atenuativo ou agravativo é que permite o abandono do tipo simples. Assim foi entendido nos acórdãos de 23-11-2000, proferido no processo n.º 2766/00, de 22-02-2001, processo n.º 4129/00, de 25-01-2001, processos n.º 3710/00 e n.º 3557/00, de 18-10-2001, processo n.º 1188/01, de 23-05-2002, processo n.º 1687/02 e de 24-10-2002, processo n.º 3211/02.
Versando sobre a concorrência de circunstâncias agravativas e privilegiadoras, decidiu o acórdão deste Supremo Tribunal de 14-07-2004, da 3.ª Secção, publicado nos Sumários de Julho/Setembro 2004: “Concorrendo no caso a decidir circunstâncias previstas, umas, como qualificativas, outras, como privilegiadoras, constitui erro na aplicação do direito eleger, à partida, como (única) norma aplicável a que contempla as circunstâncias de uma espécie – desde logo, as da primeira – e postergar a que prevê as da outra ou considerar que os efeitos de ambas, de sinal contrário, se anulam algebricamente, com a consequente reversão ao tipo simples. A valoração da ilicitude como fortemente agravada ou como especialmente diminuída dependerá da apreciação global de todos os elementos com incidência nesse elemento do tipo».
Vejam-se, ainda, também neste sentido, entre outros, o Ac. RP, datado de 05/06/2024, P. nº 5090/20.7JAPRT.P1; o Ac. RP, datado de 19/01/2022, P. nº 771/20.8PAESP.P1; o Ac. RP, datado de 10/05/2023, P. nº 2569/19.7JAPRT.P1, todos publicados in www.dgsi.pt..
O crime de tráfico de menor gravidade contempla, como a própria denominação indica, situações em que o tráfico de estupefacientes, tal como se encontra definido no tipo base, se processa de forma a ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude, ou seja, em que se mostra diminuída a quantidade do ilícito.
A título exemplificativo, indicam-se no preceito como índices, critérios, exemplos padrão, ou factores relevantes, de graduação da ilicitude, circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações objecto do tráfico, os quais devem ser analisados numa relação de interdependência, já que há que ter uma visão ou perspectiva global, uma mais ampla e correcta percepção das acções desenvolvidas (actividade disseminadora de produtos estupefacientes) pelo agente, de modo a concluir-se se a conduta provada fica ou não aquém da gravidade do ilícito justificativa da integração no tipo essencial, na descrição fundamental do artigo 21.º, n.º 1.
Revertendo ao caso revidendo, cumpre proceder a uma valorização global do episódio.
Revisitemos a decisão recorrida, no que à matéria de facto provada respeita [que deverá ter-se como imodificável e definitivamente assente, já que não foi objecto de recurso, nem padece de qualquer vício decisório ou nulidade, de conhecimento oficioso], com relevo para a presente questão:
“(…)
1. Pelo menos à data dos factos infra, era costume a arguida ir ao estabelecimento prisional ... porque o seu companheiro DD, então recluso número ... se encontrava ali preso.
2. Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 11 de maio de 2019, a arguida acordou com pessoa que se encontrava presa no referido estabelecimento prisional e cuja identificação não se veio a apurar que a, mesma, na visita a ter lugar no referido dia 11 de maio de 2019, levaria substâncias estupefacientes para o interior do Estabelecimento Prisional e, concretamente, para a zona do parlatório, a fim de, as mesmas, serem entregues ao referido recluso cuja identificação não se veio a apurar e a serem, em parte, vendidas a outros reclusos, o que fez a troco de 50€.
3. Assim, em execução do plano previamente traçado, no dia 11 de maio de 2019, pelas 14h, a arguida deslocou-se ao estabelecimento prisional ..., sito na área deste Município, a fim de visitar o seu companheiro.
4. Ali chegada, aquando da revista pessoal a que foi sujeita foi detetado um embrulho envolto num preservativo na zona genital da mesma.
5. O referido embrulho era composto por:
a) um produto sólido, com o peso líquido de 29, 759 g/l que se revelou ser cocaína (Éster metílico) com o grau de pureza de 16,1% (THC), em quantidade suficiente para 159 (cento e cinquenta e nove) doses médias individuais diárias;
b) um produto vegetal prensado, com o peso líquido de 41, 346 g/l que se revelou ser Canábis (Resina) com o grau de pureza de 1,2% (THC), em quantidade suficiente para 9 (nove) doses médias individuais diárias.
6. A arguida conhecia a natureza estupefaciente das substâncias em causa bem sabendo que a sua detenção e cedência a terceiros eram proibidas e punidas por lei.
7. A arguida atuou do modo supra descrito com o propósito de introduzir o produto estupefaciente no interior do Estabelecimento Prisional a fim de, as mesmas, serem entregues a pessoa cuja identificação ainda não foi possível apurar sendo que, as mesmas, se destinavam a ser vendidas a outros reclusos, o que a arguida sabia.
8. A arguida conhecia a ilicitude das suas condutas, e não se coibiu das mesmas, apesar de saber que as suas condutas eram particularmente censuradas em tais circunstâncias.
9. A arguida agiu de modo livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
(…)”
Relembremos também, por sua vez, o que, a este respeito, se refere na decisão recorrida, na fundamentação de Direito, quanto à actuação da arguida, com relevo para a decisão:
“(…)
No caso em apreço, demonstrou-se que o produto estupefaciente apreendido à arguida destinava-se a ser entregue a outros reclusos que se encontravam no interior do EP. Porém, se por um lado o produto não chegou a ser introduzido efectivamente no EP, por outro, desconhece-se se o mesmo se destinava a uma disseminação do consumo pela população prisional do EP em geral, pelo que não vislumbramos a possibilidade de conferir suficiente gravidade à conduta da arguida, nos termos e para os efeitos da agravação prevista na al. h) do art. 24º do Decretolei n.º 15/93 que, por esta via, se afasta.
Ao assim dispor, a factualidade provada é repristinada ao enquadramento legal do crime comum do art. 21º.
O que agora importa saber é se a mesma é passível de subsunção ao tipo legal previsto no art. 25º do D-L 15/93 denominado “Tráfico de menor gravidade”, certos que, na verificação dos seus elementos objectivos e subjectivos e, acompanhando de perto corrente jurisprudencial que o não descarta, será tal regime de aplicar – cfr. Ac. do STJ datado de 02.05.2007 proferido no âmbito do Proc. n.º 1013/07, e no processo 23/07.0PEBJA.S1 a que acima fizemos referência.
Vejamos então.
Ab initio, teremos de ter sempre presente que o art. 25º pressupõe a verificação dos elementos do art. 21º ou do art. 22º. A sua diferença encontra-se num menor grau da ilicitude, que pode ficar a dever-se a diversos factores, nomeadamente, dos meios utilizados, da modalidade ou das circunstâncias da acção, da qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
Assim, para se determinar se o tráfico é apenas de menor gravidade, na nossa opinião tem interesse, essencialmente, o período de tempo da actividade, o número de pessoas adquirentes da droga, a repetição de vendas ou cedências, os montantes envolvidos no negócio de tráfico e a natureza dos produtos.
Ao criar o crime privilegiado previsto e punido pelo art. 25º do Decreto-lei n.º 15/93, o legislador pretende evitar que situações de menor gravidade sejam punidas com penas desproporcionadas ou que se utilize indevidamente uma atenuação especial da pena, configurando-se esse preceito como válvulas de segurança do sistema.
Revertendo novamente ao caso dos autos, é de salientar a menor expressividade dos elementos apurados, como sejam, entre outros: a limitação do período de tempo da actividade ilícita a um acto isolado; o não apuramento do número de consumidores/adquirentes e, nessa medida, das transacções efectuadas, a existirem; a ausência de sinais concretos de enriquecimento ilegítimo à custa desta actividade; o facto de não se ter demonstrado que actue integrada em rede humana e/ou organizacional na compra e venda, para revenda; não se ter descoberto a sua inclusão em estrutura consistente de corte e embalamento, fosse onde fosse, que denote planeamento.
Deste modo, o único factor a ter em linha de conta é a quantidade do produto estupefaciente apreendido, cuja expressividade é inegável mas não o bastante para, só por si, suportar a tipificação base do art. 21º.
Encontram-se, pois, reunidos os pressupostos para a condenação da arguida, todavia e, por se constatar a presença dos legais requisitos, levar por diante alteração da qualificação jurídica dos factos, não o condenando pelo crime de tráfico p. e p. pelo art. 21º do Decreto-Lei n.º 15/93.
Donde, a condenação da arguida pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, n.º 1, do Código Penal.
(…)”
Ora, vistos os factos provados, não descortina este Tribunal superior o proclamado erro de direito por parte do Tribunal a quo.
É que, no caso revidendo, ao nível da ilicitude dos factos, verificam-se apenas duas concretas circunstâncias que espelham uma mais significativa relevância: o local da prática dos factos ser um estabelecimento prisional – o que, apesar de não permitir a integração automática da qualificativa prevista na al.h), do art. 24º, do diploma legal em apreço, constitui, sem dúvida, uma agravação da ilicitude dos factos; e o transporte das 29, 759 g/l de cocaína – vulgarmente designada de “droga dura”, pelos seus mais nefastos efeitos na saúde pública.
Ocorre que, quanto ao mais, é manifesta a preponderância ou incidência de circunstâncias atenuativas, quais sejam a natureza da droga transportada em maior quantidade – canábis resina, ou haxixe, vulgarmente considerada de droga “leve”; o seu peso líquido – 41, 346 g/l -, que apenas permite a obtenção de 9 (nove) doses médias individuais diárias, o que se revela diminuto, até face à muito baixa qualidade do produto, que apresenta um ínfimo grau de pureza de 1,2% (THC); a também baixa qualidade da cocaína transportada – 16,1% (THC); tratar-se de uma conduta única, isolada, episódica e a forma tosca como a mesma foi levada adiante, sem qualquer sofisticação, de um modo que, como é consabido, é de detecção altamente previsível e, assim, com uma enorme taxa de insucesso; e o facto de o produto estupefaciente não ter saído da posse da arguida com a introdução na zona dos reclusos (ainda que na sala das visitas), de onde resulta que o perigo de disseminação da droga não se tenha concretizado.
Portanto, numa imagem global dos factos, impõe-se concluir que, no caso revidendo, prevalece o tipo privilegiado ou atenuado, reconhecendo-se que o mesmo, tal como decidido pelo Tribunal a quo, constitui um caso de gravidade diminuída.
A avaliação global da conduta da arguida, olhada no contexto em que a mesma operou, permite a sua integração ainda no espectro do tráfico de menor gravidade, aceitando-se, assim, como boa a decisão da 1ª instância, ao integrar a conduta da arguida no tipo privilegiado do artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, não se reconhecendo, pois, o invocado erro na aplicação do direito com a convolação operada.
Naturalmente, as duas circunstâncias acima expendidas – local dos factos (EP) e o transporte das 29,759 g/l de cocaína -, que agravam a ilicitude dos factos, ainda que dentro do espectro do tipo privilegiado do art. 25º, deveriam ter tido um maior reflexo ao nível da determinação da medida concreta da pena, o que, no caso, claramente não aconteceu, sobrevindo alguma brandura no quantum penal concretamente aplicado. No entanto, encontrando-se o Tribunal superior limitado quer pelas conclusões recursivas, que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os seus poderes de cognição, quer pelo princípio da reformatio in pejus, nada mais se apreciará quanto a tal matéria. Sublinha-se que o recorrente Ministério Público apenas questiona a dosimetria penal no circunstancialismo da requalificação dos factos no crime base do art. 21º do diploma em apreço, o que, como vimos, não se operou.
Prejudicada fica, pois, a reapreciação da dosimetria penal aplicada à arguida, porquanto tal desiderato, nos termos do recurso, como dissemos, encontrava-se condicionada à requalificação dos factos apurados no âmbito do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01.
Improcede, pois, o recurso.
»
III - DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam as Juízas da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
- negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Sem tributação.
Notifique nos termos legais.
»
Porto, 09 de Julho de 2025
(O presente acórdão foi processado em computador pela relatora, sua primeira signatária, e integralmente revisto por si e pelas Exmas. Juízas Desembargadoras Adjuntas – art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)
As Juízas Desembargadoras,
Fernanda Sintra Amaral (Relatora)
Elsa Paixão (1ª Adjunta)
Maria Deolinda Dionísio (2ª Adjunta)
_______________________________________
[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[2] Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
[3] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.