I - O juiz conhece o direito, sendo livre de qualificar juridicamente os factos.
II - Perante uma acusação em que se conclui com a qualificação jurídica obscura, vaga, ociosa e apática de o arguido ter cometido «vários» crimes de difamação, deve o juiz presidente ao sanear o processo (artigo 311º do CPP) proceder à requalificação jurídica dos factos quanto ao número de crimes imputados na acusação.
Relator: William Themudo Gilman
1ª Adjunta: Paula Cristina Jorge Pires
2º Adjunto: Jorge Langweg
No processo n.º 807/23.0T9OAZ do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis, a Sra. Juiz proferiu despacho no qual decidiu rejeitar a acusação particular pelo crime de difamação agravada pela publicidade deduzida pelo assistente e determinou o arquivamento dos autos.
«1. A simples inserção do teor de uma acusação na previsão do artigo 283.º, n.º 3, do CPP não legitima, por si só, a sua rejeição, porquanto não é uma qualquer nulidade da acusação que pode alicerçar um despacho de rejeição.
2. Com efeito, apenas as formas extremas de nulidade permitem a rejeição da acusação. E essas encontram-se taxativamente previstas nas quatro alíneas do n.º 3 do artigo 311.º do CPP e constituem os casos que o legislador expressamente excluiu do julgamento, por entender que configuram uma “acusação manifestamente infundada”.
3. No caso concreto, os vícios alegados não se enquadram em nenhuma das hipóteses do artigo 311.º, n.º 3, pelo que não podem justificar a rejeição da acusação.
4. Além disso, conforme já se demonstrou, qualquer nulidade eventualmente existente estaria dependente de arguição por banda do Arguido, pelo que, nada tendo este invocado no prazo de 5 dias que a lei lhe concedia, encontra-se a mesma sanada por decurso do prazo legal.
5. Assim, não sendo aplicável qualquer das causas extremas de rejeição da acusação, deve o processo prosseguir os seus trâmites normais.
6. Por sua vez, cumpre aditar que a questão do aperfeiçoamento da acusação particular não encontra uma solução uniforme, nem na doutrina, nem na jurisprudência, sendo que entendimento do Tribunal a quo representa apenas uma das posições possíveis sobre o assunto.
7. Em sentido contrário, decidiu o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 246/2017, ao permitir a correção de vícios da acusação particular.
8. A lógica subjacente a essa decisão prende-se com a necessidade de evitar que o processo se arquive por meros lapsos ou imprecisões que podem ser superados, desde que os direitos do Arguido sejam respeitados.
9. Neste caso específico, consideramos que a correção da acusação, particularmente no que diz respeito à quantificação dos crimes, não prejudicaria os direitos do Arguido, uma vez que na acusação particular, estão detalhadamente elencadas todas as atuações do Arguido, permitindo-lhe conhecer de forma clara e precisa os factos e o número de crimes de que é acusado.
10. A acusação particular, entre os artigos 12º e 22º, descreve de forma minuciosa as publicações feitas pelo Arguido, o que possibilita uma perceção clara do número de crimes cometidos.
11. Os dias em que ocorreram as publicações e os atos do Arguido estão todos claramente evidenciados, e, com base nos documentos apresentados, é possível concluir que o Arguido é autor material de 8 crimes de difamação, agravados pela publicidade, conforme os artigos 180, n.º 1, 183, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal.
12. Pelo exposto, violou o despacho recorrido o disposto nos por ter feito dos mesmo uma errada interpretação.
TERMOS EM QUE
Deverá ser dado integral provimento ao presente recurso revogando-se, consequentemente, o despacho recorrido, assim se fazendo a sã e costumada JUSTIÇA!»
«Assim e em conclusão
a. A acusação particular deduzida pelo assistente identifica o arguido, contém a narração dos factos, quer objectivos, quer subjectivos, que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, o tempo e a motivação da sua prática, como resulta da descrição feita nos pontos 10, 12 a 14, 16 a 24 e 27 a 29, sendo que esses factos são susceptíveis de consubstanciarem crime de difamação com publicidade, bem como as provas que a sustentam, e indica as disposições legais aplicáveis, os art. 181.º nº 1 e 183.º nº 1 al. a) e 2, ambos do Código Penal.
b. Assim, não é ela manifestamente infundada e, por isso, inexistia fundamento para a sua rejeição, nos termos do art. 311.º nº 3 do Código de Processo Penal.
c. Nada impede que o Tribunal, no momento do saneamento do processo, proceda à alteração da qualificação jurídica dos factos constante da acusação.
d. Pelo que, perante a imprecisão da qualificação jurídica feita na acusação particular deduzida pelo assistente, se impunha ao Tribunal proceder à sua alteração.
Somos de parecer que
- deve ser dado provimento ao recurso;
- ser revogado o despacho proferido, substituindo-o por outro que receba a acusação particular deduzida pelo assistente e proceda à alteração da qualificação jurídica dos factos dela constante.
Porém, V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA»
Colhidos os vistos e indo os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir.
2.1-QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão a apreciar e decidir é a de se saber se face ao disposto no artigo 311º, n.º 3 do Código de Processo Penal, há ou não fundamento para rejeição da acusação, por ser manifestamente infundada, e para ordenar o oportuno arquivamento dos autos.
2.1- O teor do despacho recorrido é o seguinte:
«Registe e autue como processo comum com intervenção de Tribunal Singular.
Não existem nulidades insanáveis, nem exceções, questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa (cfr. artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, doravante CPP).
“a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime”.
Entre nós, vigora um processo penal de estrutura acusatória, consagrada no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, que pode ser resumido em dois princípios essenciais: por um lado, a entidade que desempenhará o papel de julgador é distinta da que desempenhou o papel de acusador; e por outro, o julgador, no desempenho das suas funções, encontrar-se-á limitado pelo princípio da acusação ou da vinculação temática. Com efeito, é o que consta da acusação, neste caso, deduzida pelo assistente, que constitui a base de trabalho do julgador para a fase seguinte.
Para além desta função delimitativa do objeto do processo, a acusação desempenha ainda uma função informativa, porquanto é através dela que o arguido fica a conhecer os factos que lhe são imputados, podendo, desse modo, preparar a sua defesa e exercer cabalmente o contraditório (cfr. J. Conde Correia in António Gama et all, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2022, p. 1189).
A ser assim, importa saber se da acusação particular constam todos os elementos que permitem o prosseguimento dos autos.
Ora, de acordo com o artigo 285.º, n.º 3, do CPP, à acusação particular deduzida pelo assistente por crimes de natureza particular é aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 283.º do CPP, nos termos do qual a acusação contém, sob pena de nulidade:
“a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado;
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;
e) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
f) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respetiva identificação;
g) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
h) A indicação do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, quando o arguido seja menor, salvo quando não se mostre ainda junto e seja prescindível em função do superior interesse do menor;
i) A data e assinatura.” (sublinhados nossos).
Daqui resulta, pois, que a acusação particular tem de conter, por si só, todos os elementos essenciais constitutivos de um ou vários crimes e a imputação do(s) mesmo(s) a um determinado agente ou a vários agentes determinados.
Revertendo ao caso dos autos, temos que o assistente imputa a um arguido determinado factos consubstanciadores, em abstrato, de preencherem os elementos objetivos e subjetivos do crime de difamação agravado pela publicidade. Temos também que indica as disposições legais que, no seu entender, são aplicáveis, a saber, os artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, ambos do Código Penal.
Todavia, e imputando ao arguido múltiplas condutas entre os dias 28/07/2023 e, pelo menos, o dia 19/08/2023, além de outras que não baliza temporalmente, não concretiza o assistente o número de crimes de difamação agravados pela publicidade imputados ao arguido. Na verdade, limita-se o assistente a imputar ao arguido a prática “de vários crimes de difamação, agravados pela publicidade”.
Facilmente se conclui, pois, que a acusação assim deduzida não dá cumprimento cabal aos preceitos legais vindos de aludir, porquanto não concretiza o número de crimes imputados ao arguido, impedindo-o não só de exercer em pleno o seu direito ao contraditório, e prejudicando, assim, a sua defesa, como impede que este Tribunal aquilate da sua competência material.
Note-se que, de acordo com o disposto no artigo 14.º, n.º 2, al. b), do CPP, é da competência do Tribunal Coletivo, além do mais, o julgamento dos processos que respeitem a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável seja superior a 5 anos de prisão mesmo quando, no caso de concurso de infrações, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime. In casu, considerando o crime imputado ao arguido, constata-se que o mesmo é punido com uma pena de prisão até dois anos. Donde, a imputação de três crimes é suficiente para que a pena máxima abstratamente aplicável seja superior a 5 anos de prisão e, não tendo sido feito uso da faculdade prevista pelo artigo 16.º, n.º 3, do CPP, a competência deixa de pertencer a este Tribunal Singular e passa a pertencer ao Tribunal Coletivo.
Ora, no caso dos autos, o assistente imputa atuações ao arguido ocorridas, pelo menos, nos dias 28/07/2023, 01/08/2023, 05/08/2023, 13/08/2023, 15/08/2023, 16/08/023 e 19/08/2023, o que poderia, em abstrato consubstanciar a prática de sete ilícitos criminais.
Por outro lado, a circunstância de o Ministério Público ter acompanhado a acusação particular “quanto à autoria material de um crime de difamação, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 183.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2 do Código Penal” em nada interfere com o que viemos de expender. Com efeito, ainda que se pudesse ver essa imputação de um crime único como uma “correção” da acusação particular – o que não nos parece que seja, e tampouco é apresentado o motivo para que seja apenas imputada a prática de um ilícito criminal –, tal não seria admissível, porquanto a acusação deduzida pelo Ministério Público nos termos do artigo 285.º, n.º 4, do CPP não serve para complementar as insuficiências da acusação particular (cfr. J. Conde Correia in António Gama et all, op. cit., pp. 1234-1235).
Conclui-se, portanto, que a acusação particular deduzida é nula, por se verificar a falta dos elementos constantes do artigo 283.º, n.º 3, al. b), em conjugação com a al. d), do CPP, por não serem quantificados o número de ilícitos criminais imputados ao arguido. Naturalmente, não pode o assistente limitar-se a imputar a prática de “vários crimes”, sob pena de não ser suficiente a concretização do objeto a submeter a julgamento. Vários, são quantos crimes? Mais do que um será certamente, mas serão dois, serão três, serão sete? Não é possível saber.
Por força da redação do artigo 311.º, n.º 3, do CPP, os vícios estruturais da acusação converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do Tribunal, determinando a rejeição da acusação.
Acresce que, “perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta, o tribunal, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido” (sublinhado nosso) (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/05/2022, processo n.º 565/20.0T9ALM.L1-5, disponível em www.dgsi.pt).
Consequentemente, em face da consagração da estrutura acusatória e da estabilidade do objeto do processo, é inadmissível que o juiz ordene a quem deduz a acusação os termos em que a deve (re)formular, não podendo também suprir os vícios da mesma, sob pena de contornar o princípio da acusação, com respaldo na Constituição da República Portuguesa.
Resulta, deste modo, vedado qualquer convite de aperfeiçoamento, a dirigir ao assistente, por modo a indicar o concreto número de crimes imputado ao arguido.
Face ao exposto, rejeita-se a acusação particular pelo crime de difamação agravada pela publicidade deduzida pelo assistente.
2.2- Ocorrências processuais relevantes:
1- Nos presentes autos, o Ministério Público proferiu despacho de encerramento do inquérito, no qual concluiu terem sido recolhidos indícios suficientes da verificação do crime de difamação, por parte de AA, p. e p. pelos artigos 180º, nº1 e 183º, nº 1, al.a) e nº 2, ambos do Código Penal (nº2, do artigo 285º do Código de Processo Penal).
Como o procedimento criminal por este tipo de crimes depende de acusação particular., foi ordenada a notificação nos termos do art. 285º, nº1, do CPP, do assistente para, querendo, deduzir acusação particular, no prazo de dez dias.
2- O assistente deduziu acusação particular nos seguintes termos:
«BB, Assistente e Lesado nos autos de inquérito à margem referenciados, tendo sido notificado do despacho proferido pelo Ministério Público em sede de Inquérito em cumprimento do disposto no artigo 285º do Código de Processo Penal (CPP), vem nos termos dos artigos 285º, n.º 1 e 77º, n.º 1 do mesmo Código, deduzir
ACUSAÇÃO PARTICULAR
e apresentar
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL,
Contra
AA, Arguido devidamente id. nos autos,
nos termos e com os seguintes fundamentos:
DA ACUSAÇÃO PARTICULAR
1. Face à notificação feita do teor do despacho que antecede, e que consignou o entendimento da existência da recolha de indícios suficientes da prática dos factos suscetíveis de integrar o crime de difamação vem o Assistente BB, deduzir acusação particular contra o Arguido AA (cfr. artigo 285º, n.º 1 do CPP).
Contexto:
2. Em 30 de agosto de 1970, por herança de CC, o Assistente veio a adquirir, por força de testamento então exarado, a nua propriedade dos bens, móveis e imóveis, sitos em Oliveira de Azeméis, que pertenciam ao seu então falecido primo, conforme consta do referido testamento e da relação de bens apresentada em 18 de novembro do mesmo ano.
3. Na sequência dos factos descritos, a sua prima, DD, foi constituída usufrutuária vitalícia dos bens supra referidos, tendo sido quem, até 13 de agosto de 2019, fez a gestão do património, nessa qualidade.
4. A morte da sua prima na data referida, implicou que o Assistente, proprietário de raiz, readquirisse a plenitude dos poderes, até então paralisados, inerentes ao seu direito de propriedade.
5. O facto de o Assistente se encontrar a residir no estrangeiro comprometeu a sua deslocação, logo após o decesso da sua prima, até à Quinta ..., bem imóvel do qual é legítimo proprietário, para a conhecer, tomar posse da mesma e para se inteirar do seu estado.
6. Aquando da sua visita inteirou-se de todos os aspectos relacionados com o mencionado imóvel: conheceu os caseiros que aí viviam e também o Arguido, AA, que compareceu na qualidade de representante do Grupo Folclórico ..., uma vez que o Rancho tinha vindo a utilizar o espaço da Quinta conhecido como ... (ou ...) para aí realizar os seus ensaios.
7. Ora, nessa data foi esclarecido, com a aparente compreensão e total aceitação do Arguido, que o contrato de comodato, existente e celebrado pela sua prima do Assistente, caducara por morte desta, mas que o Rancho poderia continuar a usufruir da ..., a título gracioso, ainda que precário, até ser dado um destino à propriedade. Situação que se manteve por mais de quatro anos desde a extinção do contrato.
8. Mais: ciente desta circunstância – e grato pela oferta feita – o Arguido sugeriu que o Assistente remetesse uma carta à Direção do Grupo Folclórico a comunicar a cessação do contrato celebrado anteriormente para que, em posse do mesmo e no seu dizer, pudesse: “pressionar o Senhor Presidente da Câmara para arranjar um espaço alternativo para a sede do Rancho”.
9. No dia 24 de julho de 2023, a Mandatária do Assistente através de e-mail e carta dirigida à Direção do Grupo Folclórico ..., interpelou à entrega e libertação, até ao final do mês de agosto de 2023, do espaço apelidado de ..., propriedade do Assistente.
10. No entanto, o Arguido, de modo totalmente inusitado e, atento o contexto supra descrito, absolutamente incompreensível, reagiu à comunicação que lhe foi feita pela mandatária do Assistente, e desde a data da comunicação referida, de forma diária e incessante, utilizou o seu perfil na rede social Facebook, com o nome AA, para partilhar vários dizeres sobre o assunto em causa constando, entre eles, considerações em tom ameaçador, difamatório e ofensivo, sobre a pessoa do Assistente, que se passam a descrever infra.
11. Mas mais: de notar que, ainda que tivesse sido notificado para a entrega do espaço até ao final de agosto 2023, efectivamente o Arguido só libertou esse espaço em 31 maio 2024, só para demonstrar de uma forma provocatória e acintosa a sua oposição à decisão do Assistente, apesar das insistências frequentes ao longo dos vários meses por parte da Mandatária deste para que o espaço da ... fosse libertado com premência.
Vejamos:
12. Na manhã do dia 28 de julho de 2023, o Arguido através da sua página pessoal, com acesso ao público em geral, dá conta da notificação recebida e em tom de ameaça, escreve que “Muita tinta vai “CORRER” nos meios de “INFORMAÇÃO, caso o assunto, não se resolva “PACIFICAMENTE”.” (Cfr. Doc. n.º 1 da Queixa-Crime)
13. Nesse mesmo dia, numa outra publicação diferente, refere-se o Arguido, insultuosa e diretamente, ao aqui Assistente e à Quinta ..., como “uma "QUINTA com um PATRIMÓNIO HISTÓRICO", digno da " PROTEÇÃO da UNESCO", mas... Entregue a "PESSOAS" com "ESPÍRITO" ... pequeno. Claro que, o "€ _ FALA + ALTO". (destaques e sublinhados nossos) (Cfr. Doc. n.º 2 da Queixa-Crime)
14. Cumprindo com a sua palavra, a 1 de agosto de 2023, o Arguido fez acontecer. Foram publicadas duas notícias, uma no jornal ... e outra no ..., com reprodução repetida das asserções feitas pelo Arguido na sua página pessoal do Facebook, perpassando as mesmas, o mesmo tom ofensivo, ameaçador e prejudicial ao bom nome e honra do Assistente. (Cfr. Docs. n.ºs 3 e 4 da Queixa-Crime).
15. E que compeliu o Assistente, no âmbito do direito de resposta legalmente concedido, a requerer a publicação de uma notícia no ..., de modo a clarificar e corrigir as asserções difamatórias da lavra do Arguido que tinham sido anteriormente publicadas, ainda que com um delay de mais de 30 dias
16. A 5 de agosto de 2023, pelas 19h02m, publicou novo comentário da sua autoria conjuntamente com a partilha da notícia publicada pelo jornal ..., difundindo tal publicação, pelo menos setenta e cinco vezes, por diversos grupos da rede social Facebook (Cfr. Doc. n.º 5 da Queixa-Crime)
17. Na mencionada publicação pode ler-se: “A «FORÇA» adquirida pelos "ORGÃOS SOCIAIS do GRUPO FOLCLÓRICO ... _ da CIDADE ..." após a receção da NOTIFICAÇÃO" do "HERDEIRO da Quinta ..." _ QUINTA não "REGISTADA" até à data de hoje, como "PATRIMÓNIO CULTURAL", pelas " ENTIDADES ESTATAIS COMPETENTES", devido a _ "interesses de desconhecidos ou NÃO", colocando em " ALERTA " a ENTIDADES RESPONSÁVEIS pelo PATRIMÓNIO LOCAL, havendo um "PROCESSO nas FINANÇAS e IMI's em relaxe, por " CULPA" ou "NÃO" de alguém...” [quer dizer: o Assistente] (destaque e sublinhado nossos)
18. Metaforicamente, acrescenta ainda, o Arguido: “Vivi na Quinta ..., sei as «infiltrações» e os prejuízos adquiridos, após as «CHUVAS» mais ou menos intensas, não só de "INVERNO" tocadas pelos ventos a NORTE, mas mais, pelos ventos de SUL.”
19. Novamente, o Arguido, em 13 de agosto de 2023, volta a publicar outro dos seus “pensamentos” dedicado a “TÓTÓS” indiciando maleficamente, alguma ligação por banda do Assistente ao momento da morte da sua prima, D. DD, usando o seguinte dizer: “Uma «morte» em circunstâncias "DUVÍAS". Não comunicado às «AUTORIDADES» no momento, por "OCULTAÇÃO" de «alguém próximo ...» (destaque e sublinhado nossos) (Cfr. Doc. n.º 6 da Queixa-Crime).
20. Afirmação que, dois dias depois se concretiza numa acusação absolutamente infundada e aviltante à pessoa do Assistente: “A "Quinta ..." está à venda por 490.000€, no entanto, há um "PROCESSO ANTIGO nas FINANÇAS de OLIVEIRA de AZEMÉIS, por _ ilegalidades cometidas por alguém..., assim como ainda o herdeiro, legal ou não, tenho algumas dúvidas, não participou a _ morte de D. DD, que faleceu a 13 de Agosto de 2019, havendo "IMI's" em relaxe ...” (destaque e sublinhado nossos) (Cfr. Doc. n.º 7 da Queixa-Crime)
21. E, no dia seguinte, uma vez mais, colocou em crise a qualidade de Herdeiro do Assistente, que no seu dizer recebeu uma “herança envenenada” e aproveita para tecer suposições sobre a situação fiscal do referido imóvel. Mais refere que sente, atendendo à sua “perceção de POLÍCIA”, que existe algo de “ILEGAL”. (Cfr. Doc. n.º 8 da Queixa-Crime)
22. No dia 19 de agosto de 2023, o Arguido, enquanto realiza a contagem decrescente para a entrega do referido imóvel, faz mais uma publicação intimidatória, acompanhada de algumas fotografias – o calendário do mês de agosto, a carta recebida pela Direção do Rancho enviada pela Mandatária do Assistente, o anúncio da venda do imóvel, etc... – a par das seguintes expressões:
a. “"como dizia a minha AVÓ - EE (em memória) _ TUDO se PAGA nesta VIDA terrena".;
b. “(...) espero que as * COISAS se RESOLVAM a BEM, numa base de CONFIANÇA. Caso contrário, "VAI cair alguém, ligado à POLÍTICA, ao DIREITO, exceto aqueles que já partiram, " ESSES não falam..., mas tem os seus descendentes (pessoas com um CURRÍCULO invejável no passado e ligado ao ESTADO PORTUGUÊS).”. (destaques e sublinhados nossos) (Cfr. Doc. n.º 9 da Queixa-Crime).
23. O Arguido, nas suas publicações, estende diretamente e indiretamente considerações desrespeitosas, difamatórias, altamente ofensivas da honra e da consideração do Assistente enquanto pessoa reputada e considerada no contexto profissional em que se encontra inserido, profundamente lesivas da sua dignidade pessoal e social e do seu bom nome.
24. Com o único intuito de o descredibilizar, ofender, desprestigiar e humilhar na sua honra e respeitabilidade, tecendo comentários desprimorosos, imputando factos e juízos inverídicos porquanto não se conforma com a interpelação para abandonar o espaço de que o Grupo Folclórico ..., gratuitamente, usufruiu.
25. Mas mais: ao afirmar publicamente haver dúvidas sobre a legalidade e o direito de propriedade do Assistente sobre a Quinta ..., que na altura se encontrava já em processo de venda tal como dois outros prédios, igualmente pertencentes ao Assistente e situados numa rua vizinha à Quinta ... (i.e. na Rua ..., ...), denegriu igualmente a reputação e a atractividade da Quinta ... e das duas outras propriedades junto de potenciais interessados na sua aquisição, prejudicando a promoção das respetivas vendas pela agência imobiliária mandatada.
26. Atente-se no teor de outros comentários que o Arguido fez nas redes sociais e jornais locais, respetivamente:
• No Facebook:
- “Se estivesse no lugar do dito herdeiro… tinha feito contas com a A...… e entregue … ao Munícipio”
- “Atendendo às Leis claras e atuais … o suposto herdeiro legal da Quinta ... já não tem direito ao imóvel… na Rua ...…”
- “Este Senhor...o Herdeiro Professor Doutor Engenheiro BB… ainda não participou a morte de D. DD… havendo IMIs em relaxe”
- “A Quinta ... está à venda por… no entanto há uma processo antigo nas Finanças… por ilegalidades cometidas por alguém… assim como, ainda o herdeiro (“legal” ou não”).”
- “Eu, AA, tenho algumas dúvidas sobre a legalidade de herdeiro…”
- “...vou rezar… para que as coisas se resolvam pacificamente.”
- “...caso a situação da sede do grupo folclórico… não se resolver pacificamente, muita informação vai ser entregue à comunicação social e justiça.”
- “Caso não se resolva há diversas ferramentas que o Grupo lesado vai ativar… Preparar um ofício ao Tribunal Unesco:
• No jornal “...”
- “A Folclórica ...… recebeu uma carta da A... onde é intimidada a abandonar…”
- “Dúvidas sobre o herdeiro e promessa de defesa”
- “Ponho as minhas reservas sobre o estatuto de herdeiro da Quinta ...”
- “O escritório A... enviou uma intimidação…”
- “Muito há para explicar, mesmo na PJ caso já não haja um processo a decorrer no Ministério Público…”
- “Nunca vi um documento que que validava o… BB como herdeiro legal…”
- “muita tinta vai correr nos meios e informação caso o assunto não se resolva pacificamente.”
27. O Arguido agiu, sem qualquer dúvida, tendo em conta o teor das suas publicações, com a intenção de divulgar, quer na rede social supra referida, quer nos meios de comunicação social indicados, as asserções transcritas cujos prints constam dos autos, pretendendo, intencionalmente, com as expressões usadas e nelas descritas, ofender deliberadamente a honra e o bom nome pessoal, familiar, social e profissional do Assistente, e por em causa a sua seriedade.
28. Mais: o Arguido, de antemão, sabia que a partilha dos seus comentários é pública, desde logo acessível a qualquer pessoa que consulte o seu perfil, independentemente de haver conexão estabelecida. Tanto assim é que o Arguido não se abstém da sua partilha noutros grupos, também acessíveis a todas as pessoas.
29. O Arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, não se coibindo da sua prática.
30. O Arguido agiu com dolo direto e necessário, pois quis praticar as referidas condutas constituindo-se assim como autor material, na forma consumada, de vários crimes de difamação, agravados pela publicidade, p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1, 183º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 todos do Código Penal.
Nestes termos e nos mais de Direito deve ser recebida a presente acusação e, consequentemente, ser o Arguido condenado em autoria material pela prática de vários crimes de difamação, p. e p. pelo art.º 180º, n.º 1 nos termos agravados do 183º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal.
Meios de prova:
Documental: 9 documentos já juntos.
Prova testemunhal que indica:
Dr. FF, casado, com domicílio profissional na Av. ..., Loja ..., ... Coimbra.
*
Conforme referimos acima, a questão a apreciar e decidir é a de se saber se, face ao disposto no artigo 311º, n.º 3 do Código de Processo Penal, há ou não fundamento para rejeição da acusação por manifestamente infundada e para ordenar o oportuno arquivamento dos autos.
Dito de outro modo, que fazer a uma acusação em que se imputa a um arguido o cometimento de «vários crimes de difamação, agravados pela publicidade, p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1, 183º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 todos do Código Penal.»: rejeitá-la ou recebê-la?
A Sra. Juíza a quo entendeu ser de rejeitar a acusação por manifestamente improcedente e mais determinando o oportuno arquivamento dos autos.
O recorrente entende que não, que é possível a correção da acusação, particularmente no que diz respeito à quantificação dos crimes, a qual não prejudicaria os direitos do arguido, uma vez que na acusação particular estão detalhadamente elencadas todas as atuações do arguido. Diz agora no recurso que os «vários crimes de difamação» são oito crimes de difamação.
O Ministério Público na primeira instância refere que a acusação não é manifestamente infundada e não podia ter sido rejeitada, nos termos do artigo 311.º nº 3 do Código de Processo Penal, nada impedindo que o Tribunal, no momento do saneamento do processo, proceda à alteração da qualificação jurídica dos factos constante da acusação, o que deveria ter sido feito.
O Ministério Público na segunda instância, em profundamente fundamentado parecer, depois de considerar, entre outras questões relevantes, a de que “«Isto de imputar a alguém a «pratica de vários crimes de difamação» é inconcebível e inaceitável num Estado Constitucional de Direito Material que o nosso pretende ser.”, termina concluindo que:
«Este adensar da incerteza sobre a melhor interpretação das possibilidades modificativas da qualificação jurídica feita na acusação e/ou na pronúncia pelo juiz do julgamento por ocasião da prolação do despacho previsto e regulado no artigo 311º do Código de Processo Penal – C.P.P., precisamente porque a “clareza do direito não é indiscutível”, e a adesão à posição de Paulo Pinto de Albuquerque, citada e acolhida na fundamentação do AFJ 11/2013, apesar desta, por não constituir o seu “thema decidendum”, não vincular, mesmo que apenas tendencialmente, o intérprete e aplicador do direito ao caso sub judice, conduz-me, sem prejuízo de reconhecer a pertinência e proficiência da motivação e resposta do recurso em apreço e a possibilidade séria de o mesmo poder vir a merecer provimento, imbuído do espírito e dever colaborativo e de lealdade processual supra referidos, expostas que estão as questões controvertidas que se afigura deverem equacionar-se na sua apreciação, a emitir parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente, com a natural e consequente manutenção da douta decisão recorrida.»
Vejamos.
Antes de avançarmos pelo direito aplicável à situação dos autos, cabe dizer que nunca tínhamos visto, em mais de 30 anos de judicatura, uma acusação em que se imputa a alguém, sem dizer quantos são, o cometimento de «vários crimes …».
É certo que há sempre uma primeira vez …
Foi o que sucedeu com o presente caso.
Claro que compreendemos a ideia expressa pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto quando diz que “«Isto de imputar a alguém a «pratica de vários crimes de difamação» é inconcebível e inaceitável num Estado Constitucional de Direito Material que o nosso pretende ser.”
Uma acusação por «vários crimes …», é caso para se dizer que ele há ideias que não lembram nem ao mais ‘imaginativo’ dos juristas.
Bem, mas passado o espanto, desçamos ao direito e vejamos qual a solução a dar a uma acusação em que, não obstante ter a narração de factos suficientes para serem considerados como criminosos, se conclui com a imputação vaga, ociosa e apática de «vários» crimes de difamação.
Que custava ao assistente contar o número de crimes de difamação que narrou na acusação, partindo do pressuposto que dizendo «vários» quis dizer mais que um, pelo menos dois.
Não sabemos.
O que sabemos é que resulta do artigo 311º, n.º 2 al. a) do CPP que o Juiz presidente, recebidos os autos no tribunal, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
E a acusação é manifestamente infundada, nos termos do n.º 3 do artigo 311º do CPP: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime.
Entendeu-se no despacho recorrido, em suma, que o assistente imputa ao arguido factos suscetíveis, em abstrato, de preencher os elementos objetivos e subjetivos do crime de difamação agravado pela publicidade, mais indicando as disposições legais que, no seu entender, são aplicáveis. Todavia, imputando ao arguido múltiplas condutas, não concretiza o número de crimes de difamação imputados. Limita-se a imputar ao arguido a prática “de vários crimes de difamação, agravados pela publicidade”, o que no entendimento do despacho recorrido resulta em a acusação não dar cumprimento cabal ao artigo 285º-3 do CPP, porquanto não concretizando o número de crimes imputados ao arguido, impede-o não só de exercer em pleno o seu direito ao contraditório, prejudicando a sua defesa, como também impede que o Tribunal aquilate da sua competência material. O facto de o Ministério Público ter acompanhado a acusação particular quanto ao cometimento de um crime de difamação não corrige a acusação particular. Daqui conclui o despacho recorrido pela rejeição da acusação.
Temos por certo que a qualificação jurídica obscura e instável de ‘vários’ crimes feita pelo assistente na acusação particular não passa no crivo dos direitos de defesa constitucionalmente garantidos, designadamente o direito do arguido a uma defesa técnica, que implica se saiba qual a qualificação jurídica dos factos imputados, designadamente quanto ao número de crimes que a acusação entende terem sido cometidos[1].
Resta saber se, face ao facto processual de estarem narrados factos suscetíveis, em abstrato, de preencherem os elementos objetivos e subjetivos do crime de difamação, estando os preceitos incriminadores deste tipo de ilícito também enunciados, não será possível ao tribunal proceder à alteração da qualificação jurídica, tanto mais quanto o Ministério Público fez qualificação jurídica diversa quando acompanhou a acusação, imputando apenas um crime.
Ora, se é certo que de acordo com o artigo 285º, n.º 3, d) do CPP a acusação contém, sob pena de nulidade a indicação das disposições legais aplicáveis, a verdade é que a acusação particular deduzida nos autos tem as disposições legais fundamentais aplicáveis, as correspondentes ao tipo de ilícito em causa, os artigos 180º e 183º do Código Penal.
Daqui resulta que não há motivo para, por falta de indicação das disposições legais aplicáveis, a rejeição da acusação nos termos da alínea c), do n.º 3 do artigo 311º do CPP.
Assim, face à obscura, vaga e instável qualificação jurídica dos factos feita na acusação particular quanto ao número de crimes cometidos, a qual se é certo que em termos comuns pode ser entendida como sendo uma ‘nulidade de uma acusação’, a verdade é que em termos jurídicos, face ao princípio da taxatividade das nulidades - artigo 118º, n.º 1 e 2 do CPP-, a deficiência duma acusação por «vários crimes», não enumerando o número concreto de crimes imputados, não passará quando muito de uma ‘acusação irregular’.
Ora, sendo a acusação quando muito meramente irregular, não se vê como o Juiz, não havendo norma legal que permita rejeitar a acusação, não possa ou até mesmo deva ao abrigo do artigo 311º, n.º 1 do CPP proceder à qualificação jurídica que surja como correta, assim ficando sanado o defeito criativo da acusação, a ‘irregularidade’ ou deficiência de uma acusação por «vários crimes».
Desde logo, com a referida correção o princípio do acusatório não é beliscado uma vez que se sabe de antemão que «a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia» (artigo 339º, n.º 4 do CPP)[2].
Depois, “Iura novit curia”. O juiz conhece o direito e não está restrito às normas ou à interpretação apresentadas pelos intervenientes processuais, sendo livre de qualificar juridicamente os factos. A determinação do direito constitui o cerne da função judicial e incumbe ao julgador efetuá-la livremente, em obediência aos artigos 202º a 205º da Constituição, quando é chamado a interpretar e aplicar a lei aos factos de que lhe é lícito conhecer[3].
Acresce que na decisão de saneamento do processo, ainda que tivesse sido concretizado na acusação - de acordo com a normalidade do suceder das coisas na prática judiciária - um número exato de crimes imputados, sempre se imporia a confirmação do número de ilícitos imputados, de modo a se poder apurar qual o tribunal competente (singular ou coletivo).
Ora, no caso dos autos, face à multiplicidade de crimes imputados de forma instável, a diferença é que ainda mais se justifica se proceda no momento do despacho do artigo 311º do CPP, na fase de saneamento do processo, à correta qualificação jurídica dos factos.
Mas assim sendo, procedendo o juiz presidente nos termos do artigo 311º do CPP à requalificação jurídica dos factos imputados, designadamente quanto ao número de crimes de difamação imputados na acusação, satisfeitas ficarão as garantias de defesa do arguido, não tendo sido beliscado o princípio do acusatório, o princípio do contraditório ou outro.
Acresce que esta requalificação jurídica promove a legalidade da tramitação processual, os princípios da celeridade processual e da economia processual, donde resulta que quando o tribunal ao fazer o primeiro exame da acusação der conta de que a qualificação jurídica dos factos imputados está errada, deve proceder de imediato à sua requalificação, com benefício para todos os outros sujeitos processuais, especialmente para o arguido cuja defesa poderá ser melhor organizada[4].
Resumindo, a instabilidade da qualificação jurídica dos factos feita na acusação particular quanto ao número de crimes cometidos, limitando-se a dizer «vários», embora em termos comuns possa ser entendida como sendo uma ‘nulidade de uma acusação’, em termos jurídicos, face ao princípio da taxatividade das nulidades - artigo 118º, n.º 1 e 2 do CPP-, tal deficiência constituirá quando muito uma mera ‘acusação irregular’.
O juiz conhece o direito e não está restrito às normas ou interpretação apresentadas pelos demais intervenientes processuais, sendo livre de qualificar juridicamente os factos.
Perante uma acusação em que, não obstante ter a narração de factos suficientes para serem considerados criminosos, se conclui com a qualificação jurídica obscura, vaga, ociosa e apática de o arguido ter cometido «vários» crimes de difamação, p. e p. pelo art.º 180º, n.º 1 nos termos agravados do 183º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, deve o juiz presidente ao sanear o processo no momento do despacho do artigo 311º do CPP proceder à requalificação jurídica dos factos imputados, designadamente quanto ao número de crimes de difamação imputados na acusação, deste modo satisfazendo os interesses da legalidade da tramitação processual, os princípios da celeridade processual e da economia processual e as garantias de defesa do arguido, não sendo beliscando o princípio do acusatório, o princípio do contraditório ou outro dos princípios conformadores do processo penal.
Pelo exposto, é de conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro que após proceder à requalificação jurídica dos factos imputados, designadamente quanto ao número de crimes imputados, proceda ao restante saneamento do processo, incluindo na questão da competência do tribunal coletivo ou singular.
3- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido, devendo este ser substituído por outro que após proceder à requalificação jurídica dos factos imputados, designadamente quanto ao número de crimes imputados, proceda ao restante saneamento do processo, incluindo na questão da competência do tribunal coletivo ou singular.
Sem custas.
Notifique.
Porto, 9 de julho de 2025
William Themudo Gilman
Paula Pires
Jorge Langweg
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[1] Cfr. sobre o direito a uma defesa técnica, Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª ed., 2023, p.224.
[2] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª ed., 2023, p.222.
[3] Cfr. neste sentido o Ac. TRG de 14.09.2020, proc. 715/19.0PCBRG.G1 (António Teixeira), in https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/0efe59b135848042802585ec002d3ea9?OpenDocument .
[4] Cfr. neste sentido, Nuno Brandão, A alteração da qualificação jurídica dos factos no saneamento do processo penal, Catolica Law review, VOLUME V \ n.º 3 \ novembro 2021 \ 135-149 https://revistas.ucp.pt/index.php/catolicalawreview/article/view/10321/10386 .