INJÚRIA AGRAVADA
LEGITIMIDADE
DEMANDANTE CIVIL
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
DOLO DIRECTO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EXERCÍCIO DE FUNÇÕES PÚBLICAS
Sumário

Sumário:
– Reafirma-se a legitimidade processual restrita dos demandantes civis, que apenas podem intervir no processo penal em sede recursiva para defesa do pedido de indemnização, nos termos dos artigos 74.º e 401.º do Código de Processo Penal.
– Esclarece-se que a valoração probatória assenta no princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP), não configurando qualquer vício a condenação baseada em depoimentos dos ofendidos, desde que consistentes e corroborados por outros elementos.
– Interpreta-se o princípio in dubio pro reo como aplicável apenas perante dúvida séria e insanável quanto aos factos essenciais, não se confundindo com mera discordância do arguido quanto à apreciação da prova ou à credibilidade das testemunhas.
– Confirma-se a possibilidade de qualificar como dolo directo a conduta em que o agente, mesmo num contexto emocional adverso, profere intencionalmente expressões ofensivas, com consciência da sua ilicitude e aptidão para lesar a honra alheia.
– Reconhece-se a admissibilidade de indemnização por danos não patrimoniais, nos termos do artigo 496.º do Código Civil, sempre que se prove lesão relevante da honra ou dignidade, designadamente no exercício de funções públicas.

Texto Integral

Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

1 - RELATÓRIO
I - Nestes autos, que correram termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - JL Criminal - Juiz 13, em que é Arguida AA, com os restantes sinais dos autos, foi proferida sentença, que decidiu nos seguintes termos: (transcrição)
“(…)
Condenar a arguida AA, como autora material e na forma consumada, pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de injúria agravados, p. e p. pelos artigos 181.º n.º 1 e 184.º, por referência ao disposto no artigo 132.º n.º 2 alínea l), todos do Código Penal, conjugados com o disposto no art.º 1.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 327/98, de 2 de Novembro, na pena, por cada um deles, de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante total de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros).
2) Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares, condena-se a arguida na pena única de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante total de € 700,00 (setecentos euros).
3) Condenar a arguida AA nas custas criminais e demais encargos com o processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.
4) Condenar a arguida/demandada a pagar à demandante BB a quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da conduta ilícita da arguida, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados desde a data da notificação da presente decisão e até efetivo e integral pagamento.
5) Condenar a arguida/demandada a pagar ao demandante CC a quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da conduta ilícita da arguida, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados desde a data da notificação da presente decisão e até efetivo e integral pagamento.
Sem custas quanto aos pedidos de indemnização civis – art.º 4.º n.º 1 alínea n) do RCP.
(…)”
*
II- Não se conformando com esta decisão, dela interpôs recurso a Arguida, com as seguintes conclusões: (transcrição)
“(…)
a) Vem o Recurso interposto da douta sentença proferida nos presentes autos.
b) A Arguida discorda da decisão proferida, por considerar que a prova produzida em julgamento é insuficiente para sustentar a sua condenação.
c) A fundamentação do Tribunal revela manifesta insuficiência na explanação da origem da sua convicção.
d) A decisão assenta exclusivamente nas declarações dos ofendidos.
e) A valoração da prova realizada pelo Tribunal baseia-se unicamente nas declarações dos ofendidos, que são partes interessadas no desfecho do processo.
f) Tal circunstância deve ser ponderada, sob pena de comprometer a imparcialidade na apreciação da prova.
g) A inexistência de outros testemunhos que confirmem os factos imputados à arguida impõe a aplicação do princípio in dubio pro reo, consagrado como garantia fundamental no direito penal.
h) E caso assim não se entenda, terá sempre de se ter em conta o contexto emocional e situacional do facto, sendo o bloqueio do veículo, pelo critério do homem médio, uma situação geradora de frustração e irritação momentânea, levando a reacções impulsivas.
i) As palavras proferidas pela Arguida ocorreram num momento de tensão e devem ser entendidas como um desabafo emocional, sem intenção deliberada de ofender os funcionários da ....
j) O crime de injúria exige a verificação do dolo, nos termos do artigo 14.º do Código Penal, que pode ser direto, necessário ou eventual.
k) No caso concreto, não se verifica dolo direto, pois a arguida não teve intenção consciente de ofender, podendo, no máximo, considerar-se dolo eventual, por resultar de um impulso momentâneo.
l) A Arguida não visava rebaixar, humilhar publicamente ou atingir a honra dos funcionários, tratando-se de uma reação instintiva à frustração.
m) Além de que, não há registo de condutas similares por parte da Arguida, demonstrando que este foi um episódio isolado e sem impacto efetivo na honra dos ofendidos.
n) Devido à baixa ilicitude da conduta e ao reduzido grau de culpa, deve aplicar-se a atenuação especial da pena nos termos do artigo 72.º CP.
o) As penas aplicadas são excessivas, devendo ser concedida a dispensa de pena nos termos do artigo 74.º CP ou, em alternativa, ser fixada a pena mínima possível.
p) A arguida é primária e não foram apuradas as suas despesas mensais, tornando impossível a correta quantificação da pena.
q) Assim, requer-se a repetição do julgamento para apurar esses valores.
r) A arguida reitera que na sua convicção não praticou qualquer ilícito criminal ou civil, devendo ser absolvida de ambos.
s) A sentença não avalia o caso concreto e, ainda que se admitisse a existência de um facto enquadrável nos artigos 181.º e 184.º do Código Penal, não há dano concreto e efetivo sofrido pelos funcionários da ....
t) O simples desconforto emocional causado por um desabafo momentâneo não justifica indemnização, pois não há impacto patrimonial ou moral relevante.
u) Nos termos do artigo 496.º do Código Civil, a indemnização por danos não patrimoniais exige gravidade suficiente, o que não se verifica no caso.
v) Assim, deve ser revogada a decisão que condena a arguida ao pagamento de indemnizações, substituindo-se por decisão absolutória.
(…)”
*
III- O Ministério Público respondeu ao recurso mas não foi admitido por extemporâneo.
Os demandantes apresentaram resposta ao recurso onde sumariamente expenderam o seguinte:
Sustentam que não se verifica qualquer vício de erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c) do CPP).
Defendem a suficiência da fundamentação da sentença quanto à formação da convicção do tribunal.
Rejeitam a invocação do princípio in dubio pro reo, alegando inexistência de dúvida razoável sobre os factos.
Defendem a existência de dolo directo na conduta da arguida, com ofensa consciente e deliberada à honra e reputação dos ofendidos.
Argumentam que a conduta da arguida, enquanto ofensiva da integridade moral, merece dignidade penal, enquadrando-se nos crimes de injúria agravada.
Consideram adequadas e proporcionais as penas de multa aplicadas, rejeitando a pretensão da arguida quanto à atenuação especial (art. 72.º do CP) ou à dispensa de pena (art. 74.º do CP).
Defendem a existência de dano não patrimonial relevante e a proporcionalidade das indemnizações fixadas.
Sustentam o preenchimento dos requisitos do art. 496.º do Código Civil.
Pugnam pela total improcedência do recurso e pela manutenção da sentença na ordem jurídica.
*
IV - Neste tribunal a Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer nos seguintes termos:
A sentença está devidamente fundamentada, em conformidade com o artigo 374.º n.º 2 do CPP.
Não se detectam vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto, nem erro notório na apreciação da prova.
Cita jurisprudência consolidada (Acórdão TRL, 9-3-2023, Proc. n.º 220/19.4GAMTA.L1-9), segundo a qual:
A mera discordância do recorrente quanto à convicção formada pelo tribunal de primeira instância não configura erro notório.
O princípio in dubio pro reo só é violado quando da motivação da sentença resulta que o tribunal, tendo dúvidas razoáveis, decidiu contra o arguido, o que não se verifica no caso.
Concorda com a fundamentação da sentença, que deu como provado o dolo directo da arguida, salientando que:
i. As expressões proferidas foram dirigidas intencionalmente aos ofendidos, com o propósito consciente de ofender a sua honra e reputação.
ii. Os ofendidos estavam identificados e uniformizados como agentes de fiscalização da ..., sendo equiparados, nos termos da lei, a agentes da autoridade administrativa, conforme o artigo 132.º n.º 2 al. l) do Código Penal e o Decreto-Lei n.º 327/98.
Rejeita a aplicação do artigo 72.º (atenuação especial) e do artigo 74.º (dispensa de pena) do Código Penal, fundamentando que:
i. O grau de ilicitude é mediano, atendendo à natureza das expressões e ao contexto.
ii. O dolo foi directo, configurando a modalidade mais grave.
iii. A culpa é significativa, pois a arguida podia e devia ter adoptado conduta diferente, sendo-lhe exigível autocontrolo, mesmo perante o desconforto ou frustração resultantes do bloqueio do veículo.
Cita ainda o Acórdão TRL de 24-4-2019 (Proc. 240/15.8GASRE.C1), sublinhando que a atenuação especial da pena só se justifica perante uma diminuição acentuada da ilicitude, culpa ou necessidade da pena, o que não se verifica no presente caso.
Conclui no sentido da total improcedência do recurso da arguida, propondo a manutenção integral da sentença.
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V - No âmbito do disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi junta qualquer resposta ao parecer.
*
VI - Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do citado código.
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2. QUESTÃO PRÉVIA
2.1. Interesse em agir
Nos presentes autos, sob o Processo n.º 3255/22.6T9LSB, tramitados no Juízo Local Criminal de Lisboa, encontram-se em apreciação, em sede de recurso, as questões suscitadas pela arguida AA, na sequência da sentença proferida que a condenou pela prática de dois crimes de injúria agravada, bem como ao pagamento de indemnizações cíveis aos demandantes BB e CC.
Na sequência da interposição do recurso pela arguida, vieram os demandantes apresentar resposta, pugnando pela improcedência do mesmo e pela manutenção integral da decisão recorrida.
Todavia, importa proceder a uma rigorosa análise da legitimidade processual dos demandantes para efeitos de apresentação de resposta ao recurso, especialmente considerando que a sua intervenção, conforme se extrai da peça recursória apresentada, não se circunscreve ao âmbito do pedido de indemnização civil, mas antes incide de forma ampla sobre matérias de natureza penal, concretamente sobre:
i. A apreciação da prova quanto à verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime;
ii. A conformidade da sentença com o princípio in dubio pro reo;
iii. A adequação da medida da pena aplicada;
iv. A subsunção jurídica da conduta imputada à arguida no quadro dos crimes de injúria agravada.
Assim, impõe-se determinar se assiste ou não aos demandantes legitimidade para, fora do estrito âmbito cível, intervir no processo penal em sede recursiva.
Nos termos do disposto no artigo 401.º do Código de Processo Penal:
"1 - Têm legitimidade para recorrer:
a) O Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido;
b) O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas;
c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;
d) Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afetado pela decisão.
2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir."
Em conjugação com o preceituado no artigo 74.º do mesmo diploma, determina-se que:
"1 - O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente.
2 - A intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes."
Resulta do quadro normativo supracitado que, em matéria penal, apenas o Ministério Público, o arguido e o assistente detêm legitimidade activa ampla para recorrer e intervir na tramitação recursiva do processo. Por sua vez, as partes civis (designadamente o lesado ou demandante cível) encontram a sua intervenção estritamente balizada à vertente cível, ou seja, à sustentação e prova do pedido de indemnização civil.
Em conformidade com esta limitação, também a possibilidade de resposta ao recurso interposto pela arguida, por parte dos demandantes civis, encontra-se circunscrita, nos termos da lei, à defesa do segmento da decisão que lhes diz directamente respeito, ou seja, à condenação da arguida no pagamento de indemnizações civis.
A intervenção processual do demandante cível em matérias de natureza penal está legalmente vedada, salvo se o ofendido se tiver constituído assistente, o que não é o caso dos autos.
Como decorre da peça recursória apresentada pelos demandantes em resposta ao recurso, verifica-se que:
A totalidade da argumentação expendida pelos demandantes incide sobre matéria penal, nomeadamente quanto à apreciação da prova produzida em julgamento, à valoração do depoimento dos ofendidos, à configuração do dolo da arguida, à subsunção jurídica dos factos aos crimes de injúria agravada e à determinação da medida da pena;
Apenas em fase final da resposta se aborda, de forma residual, a defesa do pedido de indemnização civil.
Esta actuação revela uma ultrapassagem clara dos limites da intervenção processual permitida aos demandantes cíveis, uma vez que, como se referiu, os lesados não assistentes carecem de legitimidade para se pronunciarem em sede penal no recurso, salvo na medida em que tal intervenção se limite à sustentação do pedido de indemnização civil.
Aliás, importa sublinhar que o interesse em agir, enquanto requisito de admissibilidade processual previsto no artigo 401.º, n.º 2 do CPP, exige uma conexão directa, concreta e efectiva entre a decisão proferida e a esfera jurídica do interveniente, o que, in casu, inexiste no que respeita às matérias de natureza penal abordadas pelos demandantes.
A sua qualidade de ofendidos não se confunde, juridicamente, com a titularidade dos direitos processuais atribuídos ao assistente, cuja constituição depende de formalidade própria, nos termos do artigo 68.º e seguintes do Código de Processo Penal, o que, repete-se, não se verifica.
Assim, a resposta ao recurso apresentada pelos demandantes enferma de vício de ilegitimidade e falta de interesse em agir, o que impõe o seu desentranhamento dos autos, por inadmissibilidade jurídica, à luz do disposto nos artigos 74.º e 401.º do Código de Processo Penal.
Nessa medida, impõe-se o imediato desentranhamento da resposta ao recurso apresentada pelos demandantes, devendo a mesma ser junta à capa dos autos, salvaguardando o registo e controlo documental, mas sem que possa ser objecto de apreciação ou valoração pelo Tribunal da Relação.
*
3. OBJECTO DO RECURSO
I - De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a apreciar são:
a. Insuficiência da fundamentação da sentença e erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º n.º 2 als. a) e c) do CPP);
b. Violação do princípio in dubio pro reo;
c. Inexistência de dolo directo, defendendo, quanto muito, a existência de dolo eventual, em contexto emocional de stress e frustração;
d. Exagero e desproporção das penas aplicadas, peticionando a atenuação especial da pena (artigo 72.º do CP) ou, subsidiariamente, a dispensa de pena (artigo 74.º do CP);
e. Inexistência de danos não patrimoniais com gravidade suficiente para justificar indemnização, nos termos do artigo 496.º do Código Civil.
*
3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. Na sentença recorrida deram-se como provados e não provados os seguintes factos: (transcrição)
“(…)
Factos provados
Com interesse para a boa decisão da causa, dão-se como provados os seguintes factos:
Da acusação pública:
1) No dia ... de ... de 2022, pelas 20h18, na ..., sita na freguesia da ..., em …, os ofendidos DD e CC, funcionários da ... – ..., , no exercício das suas funções de agentes de fiscalização de estacionamento, devidamente uniformizados e identificados, procediam ao desbloqueio dos veículos aí estacionados em desrespeito das normas vigentes do Código da Estrada.
2) Nestas circunstâncias de tempo e lugar, concretamente, em frente ao n.º …, dirigiram-se ao veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca “...”, modelo “...”, de cor preta, com a matrícula ..-MQ-.., da propriedade da arguida, que tinha sido bloqueado cerca das 15h22, por se encontrar em zona de estacionamento de duração limitada, sem que tivesse sido efetuado o correspondente pagamento.
3) Volvidos alguns minutos, a arguida chegou ao local e pediu que os agentes lhe facultassem o livro de reclamações.
4) Tendo sido informada no sentido de que eram um posto móvel, pelo que teria que fazer uma exposição posteriormente, a arguida, com foros de seriedade e elevando o tom da sua voz, proferiu as expressões que lhes dirigiu: “Não vou fazer nada!; Vocês são uns merdas!; Devem ser felizes com o trabalho que fazem!;”
5) De seguida, os ofendidos prosseguiram com o desbloqueamento do veículo em causa, passando o processo para o desktop.
6) Em ato contínuo, a arguida colocou-se em frente à porta lateral da carrinha de serviço dos ofendidos.
7) Nesta sequência, os ofendidos solicitaram à arguida que facultasse a sua documentação pessoal, ao que a mesma informou que apenas dispunha de fotografias dessa mesma documentação.
8) Após, uma vez que a ofendida DD informou a arguida de que as fotografias em causa não eram nítidas e de que seria necessário que a mesma chamasse alguém ao local que pudesse trazer os correspondentes originais, a arguida elevou novamente o seu tom de voz e, dirigindo-se a ambos, proferiu a expressão “Filhos da puta”.
9) Expressão que a arguida voltou a dirigir-lhes por mais uma vez, volvidos alguns momentos, depois de lhe ter sido solicitado por CC que se desviasse para fecharem a porta da carrinha.
10) De seguida, tendo os ofendidos deslizado ligeiramente a referida porta, a arguida, elevando o seu tom de voz, proferiu a expressão “Estão-me a agredir”.
11) Ao atuar da forma descrita, a arguida agiu bem sabendo que as expressões por si proferidas eram adequadas a ofender a estima e consideração pessoal e profissional de DD e CC, resultado esse que logrou, fazendo com que aqueles se sentissem vexados, humilhados e denegridos na sua imagem pessoal e enquanto agentes de fiscalização.
12) Mais atuou a arguida bem sabendo que os ofendidos eram funcionários da ... – ...,, e que os mesmos se encontravam no exercício das suas funções de agentes de fiscalização de estacionamento, devidamente uniformizados e identificados.
13) A arguida agiu de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Dos antecedentes criminais:
14) A arguida não tem antecedentes criminais registados no seu Certificado de Registo Criminal.
Dos pedidos de indemnização civis
15) Em consequência da conduta da arguida, os Demandantes sentiram-se profundamente afetados por sentimentos de angústia, medo e injustiça, o que afetou a sua prestação de serviço no referido dia.
*
Factos não provados
Com relevância para a decisão a proferir, inexistiram factos que ficassem por provar.
(…)”
*
3.2. Quanto à motivação da decisão de facto: (transcrição)
“(…)
Para formar a convicção do Tribunal, no que respeita aos factos provados e não provados, procedeu-se a uma análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em audiência de julgamento. Foi ainda tida em consideração toda a restante prova constante dos autos, tendo o Tribunal apreciado toda a prova, tendendo às regras da experiência comum, tendo sempre em consideração o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Nomeadamente foram valorados os depoimentos prestados em audiência de julgamento pelos demandantes BB e CC, lesados nos autos que descreveram o modo de produção dos factos constantes da acusação e as consequências dos mesmos, os quais, pela forma espontânea, clara, credível e circunstanciada como foram prestados, mereceram plena credibilidade pelo Tribunal.
Foi ainda valorada a demais prova documental constante dos autos, nomeadamente, as descrições da ocorrência junto da ..., de fls 9 a 20, o detalhe da denúncia, de fls. 21 a 23, o resultado da pesquisa no registo automóvel relativamente ao veículo automóvel com a matrícula ..-MQ-.., de fls. 32, o histórico de contratos para a matrícula, de fls. 33, o resultado de pesquisa na base de dados do ..., relativamente a AA, de fls. 34, assim como os Detalhes do número ..., de fls. 35 e 36.
Os factos n.ºs 1 a 13 foram dados como provados pela concatenação dos depoimentos dos demandantes DD e CC, os quais, de forma concordante e complementar, referiram que, como agentes de fiscalização de estacionamento que prestam as suas funções para a ... – ..., S.A., pertencentes à equipa noturna para o desbloqueio de viaturas, deslocaram-se, devidamente identificados e uniformizados, na data dos factos, à ..., em …, com vista a proceder ao desbloqueio de viaturas aí estacionados em incumprimento das condições de estacionamento na referida artéria, a solicitação formulada junto da sua entidade empregadora pelos proprietários das mesmas. Assim, em cumprimento de tal solicitação, dirigiram-se ao veículo automóvel de matrícula ..-MQ-.., de marca “...” e modelo “...”, de cor preta, propriedade da arguida, o qual havia sido bloqueado horas antes por se encontrar em zona de estacionamento sujeito a pagamento, sem que o mesmo houvesse sido realizado.
Aquando da execução desse serviço, a arguida ter-lhes-á exigido a apresentação do livro de reclamações, com vista a efetuar uma reclamação no mesmo. Prontamente, segundo os ofendidos/demandantes, lhe terá sido explicado que a equipa em questão tratava-se de um posto móvel de desbloqueio de viaturas, pelo que não dispunham para o efeito do livro de reclamações consigo, sendo que a arguida teria que efetuar uma exposição posterior da sua reclamação diretamente nos serviços da .... A arguida, em ato contínuo terá proferido as expressões “não vou fazer nada”, “vocês são uns merdas” e “devem ser felizes com o trabalho que fazem”.
Mais referiram que deslocando-se a ofendida DD para a carrinha de serviço, para o tratamento do procedimento de desbloqueamento do veículo, solicitaram à arguida, colocando-se esta em frente à porta lateral da referida carrinha, que lhes facultasse os seus documentos de identificação, apresentando esta fotografias dos mesmos que, atenta a sua falta de nitidez, não possibilitavam a consulta dos elementos dos mesmos, terá esta ofendida indicado que dever-lhe-iam ser presentes os originais. Insatisfeita com tal resposta, terá a arguida dirigido a ambos a expressão “filhos da puta”.
Impossibilitados de assim procederem ao desbloqueio da viatura terão os ofendidos pretendido fechar a porta lateral da carrinha de serviço, o que lhes foi impedido pela arguida, já que esta se colocou o seu pé no caminho da mesma, com vista a impedir o seu fecho, e, em resposta ao movimento do ofendido CC de pretender fechar essa porta, terá a arguida proferido a expressão “Estão-me a agredir”.
Os ofendidos abandonaram o local, tendo regressado mais tarde junto do veículo da arguida, tendo esta apresentado os originais da sua carta de condução e cartão de cidadão, vindo os ofendidos a desbloquear a viatura em questão.
A descrição dos factos relatada pelos ofendidos encontra-se integralmente suportada pela prova documental constante dos autos, nomeadamente, a descrição da ocorrência pelos ofendidos de fls. 9 a 20, assim como no detalhe da denúncia de fls. 21 a 23.
A identificação da arguida constante dos autos foi realizada por consulta dos ofendidos do seu cartão de cidadão para o desbloqueio da viatura revelando-se ser a arguida a autora dos mesmos, assim como por referência ao resultados das pesquisas nas bases de dados do registo automóvel, do histórico de contratos do veículo, da pesquisa na base de dados do ... e dos detalhes da base de dados “...”, constantes dos autos de fls. 32 a 36.
As expressões utilizadas foram verbalizadas pelos ofendidos nos seus depoimentos, inexistindo qualquer motivo para duvidar que os mesmos tenham sido proferidos pela arguida.
Resulta, assim, sobejamente e por referência às regras da normalidade da vida e da experiência comum, que a arguida sabia que, com as expressões que proferiu e dirigiu aos ofendidos, eram adequadas a honra e a consideração destes, os quais se encontravam no exercício da sua atividade profissional como agentes de , o que fica demonstrado pelo facto de estes se encontrarem devidamente identificados e uniformizados, pretendendo com tal conduta vexá-los, humilha-los e afetar a sua integridade moral. É igualmente indubitável que a arguida sabia, como qualquer cidadão médio saberá, que as expressões que foram por esta dirigidas aos ofendidos, constituem conduta proibida e punida por lei penal, e, ainda assim, não se coibiu de as proferir e dirigir aos ofendidos.
Já quanto ao facto n.º 14, respeitante à ausência de antecedentes criminais da arguida, a sua prova foi alcançada pelo teor do Certificado de Registo Criminal da arguida, junto aos autos a 05-11-2024, sob a ref.ª Citius 40941700.
A prova do facto n.º 15, respeitante às consequências da conduta da arguida nas pessoas dos demandantes, assentou, essencialmente, nos depoimentos destes prestados em audiência de julgamento, os quais referiram que as expressões que lhes foram dirigidos pela arguida os afetaram nas suas considerações pessoal e profissional, sentindo-se incutindo-lhe sentimentos de angústia, medo e injustiça.
(…)”
*
4. APRECIANDO
4.1. Insuficiência da fundamentação da sentença e erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º n.º 2 als. a) e c) do CPP)
A admissibilidade e o âmbito de cognição do recurso penal encontram consagração no artigo 410.º do Código de Processo Penal (CPP). Nos termos da respectiva redacção, o recurso visa o controlo jurídico da decisão proferida pela instância, admitindo-se, para além da reapreciação de questões de direito, a sindicância de determinadas irregularidades ou vícios decisórios evidenciados pelo próprio texto da sentença.
Em especial, o n.º 2 do referido preceito elenca as situações em que, independentemente das conclusões da motivação do recorrente, o tribunal de recurso pode - e deve - conhecer oficiosamente de vícios materiais da decisão recorrida, os denominados vícios de julgamento. Estes vícios constituem patologias intrínsecas da decisão judicial, detectáveis a partir do seu próprio texto, sem necessidade de reexame alargado da prova gravada, configurando uma excepção ao princípio da limitação do recurso às questões expressamente suscitadas pelas partes.
O n.º 2 do artigo 410.º do CPP dispõe:
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
A interpretação e aplicação destas duas alíneas – a) e c) - assumem importância relevante na dogmática dos recursos penais, constituindo meios fundamentais para garantir a legalidade, a coerência e a racionalidade das decisões penais, além de assegurarem o respeito pelos princípios constitucionais do processo justo e equitativo, consagrados nos artigos 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito consubstancia uma das mais relevantes patologias decisórias previstas na lei processual penal portuguesa, sendo um vício que compromete a estrutura lógica e jurídica da sentença, implicando, em regra, a sua anulação, com o consequente reenvio dos autos para novo julgamento.
Este vício distingue-se, pela sua natureza e alcance, das nulidades formais ou processuais e não se confunde com o mero erro de julgamento ou com divergências interpretativas sobre a prova produzida, antes correspondendo a uma lacuna substancial na factualidade apurada que impede, de forma objectiva, a aplicação rigorosa da lei ao caso concreto.
Nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, o tribunal de recurso deve conhecer, oficiosamente, da existência de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, independentemente das conclusões do recorrente. Esta previsão consagra, assim, uma cláusula de controlo alargado sobre a consistência material da decisão de primeira instância, visando salvaguardar o princípio da descoberta da verdade material e o direito a um julgamento justo e completo.
A insuficiência da matéria de facto provada ocorre quando os factos considerados provados na sentença são manifestamente incompletos, omissos ou insuficientes para permitir a subsunção jurídica pretendida pelo tribunal, gerando uma situação em que a decisão de direito é proferida sem o necessário suporte fáctico.
Em termos dogmáticos, este vício assenta na violação do dever de investigação exaustiva dos factos relevantes, inerente ao princípio da verdade material consagrado no artigo 340.º do CPP, que impõe ao tribunal o dever de determinar todos os factos essenciais para a justa composição do litígio penal, não podendo decidir com base em factualidade insuficiente, incompleta ou lacunar.
Trata-se, assim, de um vício que não se refere à insuficiência de prova, no sentido de ausência de elementos probatórios para dar como provados determinados factos, mas antes à insuficiência da própria factualidade constante da sentença para permitir uma decisão jurídica globalmente fundamentada.
Para que se verifique o vício em apreço, a decisão deve padecer, cumulativamente, das seguintes características:
i. Existência de lacunas, omissões ou deficiências objectivas na factualidade dada como provada;
ii. Impossibilidade de extrair, com base nos factos provados, uma conclusão jurídica rigorosa e fundada;
iii. Necessidade objectiva de apuramento de outros factos ou circunstâncias essenciais, que o tribunal deveria ter indagado oficiosamente, ao abrigo do princípio da investigação.
Não obstante, o erro de julgamento sobre a matéria de facto — designadamente, a discordância quanto à valoração de meios de prova — não se confunde com a insuficiência da fundamentação, sendo necessário distinguir:
i. Por um lado, os vícios estruturais da sentença, que comprometem a lógica da decisão e determinam a sua anulação;
ii. Por outro lado, as divergências sobre a apreciação da prova, que se situam no plano da impugnação ampla da matéria de facto, regulada pelo artigo 412.º do CPP.
O erro notório na apreciação da prova constitui outro dos vícios materiais mais relevantes no contexto do recurso penal.
Este vício incide sobre a valoração da prova realizada pelo tribunal de julgamento e visa assegurar que a decisão assenta numa apreciação racional, lógica e conforme às regras da experiência comum dos elementos probatórios produzidos em audiência, prevenindo decisões arbitrárias, ilógicas ou desconformes com o standard de razoabilidade jurídica exigível num Estado de Direito.
Trata-se de um vício que respeita à forma como o tribunal valorou os elementos probatórios disponíveis, não incidindo sobre a suficiência ou insuficiência dos factos apurados, mas antes sobre a racionalidade e coerência do processo decisório.
A expressão "erro notório" traduz, em termos técnico-jurídicos, uma anomalia ou disfunção evidente e perceptível na valoração da prova, que se revela de forma clara e inequívoca através do texto da sentença, dispensando análises subjectivas ou meramente interpretativas.
O tribunal de recurso, ao conhecer deste vício, actua como instância de controlo da racionalidade decisória e da conformidade da sentença com os princípios da lógica, da razoabilidade e da justiça material.
O erro notório na apreciação da prova não deve ser confundido com:
i. O simples erro de julgamento, que corresponde a uma divergência interpretativa sobre a valoração da prova e se situa no âmbito da impugnação ampla prevista no artigo 412.º do CPP;
ii. A insuficiência da matéria de facto provada, que se traduz em omissão ou incompletude de factos essenciais;
iii. As nulidades processuais, que respeitam a vícios formais ou procedimentais.
Neste quadro, o tribunal de recurso deve actuar com ponderação, reservando a intervenção correctiva para os casos em que o erro notório comprometa a racionalidade, a justiça e a coerência da decisão, respeitando, em simultâneo, a autonomia da instância de julgamento na livre apreciação da prova, consagrada no artigo 127.º do CPP.
O sistema processual penal assenta, em matéria de valoração probatória, no princípio da livre apreciação da prova, consagrado expressamente no artigo 127.º do Código de Processo Penal, o qual dispõe que “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Este princípio consubstancia um dos pilares fundamentais do processo penal, atribuindo ao juiz de julgamento a prerrogativa de formar livremente a sua convicção quanto aos factos, com base na prova produzida em audiência e segundo a sua experiência e racionalidade jurídicas.
A livre apreciação da prova implica que:
i. O juiz não está vinculado a critérios rígidos ou tabelas legais de valoração probatória (com excepção das provas vinculadas previstas em lei, como certas perícias ou exames laboratoriais);
ii. A decisão sobre a matéria de facto deve reflectir uma convicção racional, lógica e fundamentada, formada à luz das provas produzidas e das regras da experiência comum;
iii. O tribunal superior, em sede de recurso, deve respeitar, em regra, a autonomia do julgador de primeira instância na formação da sua convicção, intervindo apenas em casos de vício evidente ou erro material grave.
Neste contexto, a identificação e correcção dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, als a) e c) do CPP (insuficiência da matéria de facto e erro notório na apreciação da prova) não pode, sob pena de violação do princípio da livre apreciação da prova, transformar-se numa reavaliação global e subjectiva da prova produzida, reservada às hipóteses de impugnação alargada nos termos do artigo 412.º do CPP.
Importa, pois, compatibilizar estes dois domínios:
i. Por um lado, assegurar que o tribunal de julgamento aprecia livremente a prova e fundamenta racionalmente a sua convicção;
ii. Por outro, garantir que essa apreciação não enferma de vícios estruturais que comprometam a coerência, a legalidade e a justiça da decisão.
Esta compatibilização exige do tribunal de recurso uma actuação prudente, intervindo apenas nos casos em que:
i. Se verifiquem omissões objectivas de factos essenciais (insuficiência da matéria de facto);
ii. Se detectem conclusões manifestamente ilógicas, arbitrárias ou contraditórias (erro notório na apreciação da prova);
iii. A fundamentação da decisão seja insuficiente ou incoerente ao ponto de inviabilizar a aplicação correcta do direito ao caso concreto.
Por conseguinte, a actuação do tribunal de recurso nestes casos não viola, antes concretiza, o princípio da livre apreciação da prova, ao assegurar que tal apreciação respeita os limites da racionalidade, da coerência e da legalidade processual.
Este equilíbrio é essencial para salvaguardar simultaneamente:
i. O direito do arguido a um julgamento justo, com decisões fundamentadas e conformes à prova;
ii. O dever do tribunal de perseguir a descoberta da verdade material;
iii. A integridade e estabilidade das decisões judiciais, protegendo-as de revisões arbitrárias ou infundadas.
In casu, da leitura da sentença recorrida resulta que o seu texto e sentido da decisão são claros, com observância das regras da lógica e clareza de raciocínio. Clareza essa que resulta desde logo da simplicidade factual e jurídica do caso, não se vislumbrando qualquer obscuridade ou contradição. Trata-se de um texto integralmente lógico, bem estruturado e fundamentado.
Em suma, a decisão impugnada mostra-se correctamente fundamentada quer no aspecto de facto quer no direito aplicado, de forma a poder apreender-se plenamente os motivos e o processo lógico-formal que o julgador usou para, de acordo com as regras da experiência comum, formar a sua livre convicção.
Em suma, a sentença sob censura não enferma dos vícios de erro notório da apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nem do vício da alínea b) do nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal, que embora não tenha sido invocado cabe no conhecimento oficioso deste tribunal ad quem.
Assim, improcede, nesta parte, o recurso da arguida.
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4.2. Violação do princípio in dubio pro reo
O Princípio in dubio pro reo, consagrado de forma expressa no ordenamento jurídico português, constitui uma das pedras angulares do direito processual penal e integra o núcleo essencial das garantias processuais do arguido, funcionando como corolário directo do princípio da presunção de inocência e da protecção dos direitos fundamentais. A sua consagração resulta, simultaneamente, da ordem jurídica interna, nomeadamente da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do Código de Processo Penal (CPP), bem como dos instrumentos internacionais de protecção dos direitos humanos, de entre os quais avulta a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).
A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 32.º, n.º 2, estabelece o princípio da presunção de inocência, determinando que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Esta presunção não se reduz a uma mera formalidade abstracta, antes se concretiza em diversas vertentes do processo penal, assumindo o princípio in dubio pro reo o papel fundamental de norma de decisão em caso de dúvida insanável quanto aos factos essenciais à condenação. Tal princípio impõe ao julgador o dever de decidir a favor do arguido sempre que, finda a produção da prova e esgotados os meios probatórios legalmente admissíveis, subsistam dúvidas sérias e objectivamente justificadas sobre a veracidade dos factos constitutivos da responsabilidade penal.
Importa referir que o princípio in dubio pro reo não configura uma regra de valoração da prova no sentido estrito, nem interfere directamente no processo de formação da convicção do juiz. Pelo contrário, este princípio assume natureza residual e opera exclusivamente como critério de desempate ou de orientação decisória nos casos em que, após a apreciação de toda a prova produzida, subsista uma dúvida objectiva e insanável quanto à existência ou inexistência de factos essenciais à imputação penal. Deste modo, o princípio constitui um limite jurídico ao poder discricionário do julgador, assegurando que nenhuma condenação penal seja proferida com base em presunções, suposições ou margens de incerteza inadmissíveis em matéria de direitos fundamentais.
À luz deste quadro normativo, torna-se imprescindível distinguir o princípio in dubio pro reo de outros institutos ou critérios jurídicos, de modo a evitar confusões conceptuais e aplicações desviantes. Desde logo, o referido princípio não se identifica com a livre apreciação da prova, prevista no artigo 127.º do CPP, que confere ao julgador a prerrogativa de valorar livremente os elementos probatórios à luz das regras da experiência e da sua convicção racional. Pelo contrário, o princípio in dubio pro reo só se activa após o exercício dessa apreciação livre e responsável, constituindo um limite à decisão condenatória nos casos em que a prova produzida não permita afastar, de forma segura e inequívoca, a dúvida quanto aos factos essenciais.
Também se impõe clarificar que o princípio em causa não abrange dúvidas jurídicas ou de qualificação legal dos factos, mas apenas incertezas relativas à existência, inexistência ou caracterização dos factos materiais, designadamente aqueles que integram o tipo legal de crime, as circunstâncias agravantes, atenuantes ou os pressupostos da responsabilidade penal.
Por conseguinte, o princípio in dubio pro reo aplica-se em situações objectivamente verificáveis de dúvida quanto aos factos constitutivos da infracção penal, obrigando o tribunal a decidir a favor do arguido, seja absolvendo-o, seja afastando qualificações agravadas ou circunstâncias desfavoráveis cuja verificação não resulte de forma segura e inequívoca da prova produzida.
Este entendimento encontra-se em plena conformidade com o princípio da legalidade penal, consagrado no artigo 29.º da CRP, e com as exigências de um processo penal democrático e justo, impondo que a restrição de direitos fundamentais, designadamente a liberdade individual, apenas possa ocorrer com base em prova certa, inequívoca e conclusiva quanto à prática do crime.
A aplicação prática do princípio in dubio pro reo exige, por parte do tribunal de julgamento, um exercício de elevada responsabilidade e rigor, no qual se distingue, com precisão, entre a convicção racional e fundamentada do julgador, resultante da livre apreciação da prova, e a existência de uma dúvida séria, objectiva e insanável quanto aos factos essenciais à imputação penal. Esta distinção assume particular importância na fase decisória, sendo o princípio convocado exclusivamente nos casos em que a prova produzida não permite, de forma segura, afastar a incerteza quanto à veracidade dos factos determinantes da responsabilidade criminal do arguido.
É precisamente nesta dimensão que o princípio in dubio pro reo não se confunde com o processo de valoração da prova, mas antes opera como um critério de decisão final, aplicável apenas quando subsistem dúvidas sérias e insuperáveis, não bastando, para a sua invocação, meras discordâncias ou interpretações divergentes quanto à prova apreciada.
Esta orientação coaduna-se com a função garantística do princípio em apreço, assegurando que nenhuma condenação penal pode ser proferida com base em juízos especulativos, inferências subjectivas ou presunções infundadas, sendo imperativo que a condenação se apoie numa convicção formada de modo racional, lógico e ancorado nos elementos de prova validamente produzidos em audiência.
Por outro lado, a invocação do princípio in dubio pro reo em sede de recurso deve ser devidamente concretizada, cabendo ao recorrente indicar, de forma objectiva e fundamentada, os elementos dos autos ou as passagens da decisão recorrida que revelem a subsistência de dúvida séria e não superada quanto aos factos relevantes. A mera alegação genérica de violação do princípio, desacompanhada de demonstração concreta, não é suficiente para determinar a procedência do recurso ou a anulação da decisão impugnada.
Paralelamente, é igualmente relevante sublinhar que o princípio in dubio pro reo não constitui uma imposição de absolvição automática sempre que subsistam dúvidas quanto a determinados aspectos acessórios ou marginais dos factos provados, mas apenas se aplica em relação aos factos essenciais à constituição da infracção penal, ao preenchimento do tipo legal de crime ou aos pressupostos de aplicação da pena. Dúvidas sobre elementos não essenciais, circunstâncias irrelevantes ou aspectos secundários da narrativa fáctica não são susceptíveis de mobilizar o princípio, não afectando, em regra, a validade da condenação.
Este critério restritivo e rigoroso visa assegurar que o princípio in dubio pro reo não é deturpado ou alargado para além dos seus contornos constitucionais e processuais legítimos, preservando o equilíbrio entre as garantias de defesa do arguido e o dever do tribunal de promover a descoberta da verdade material e a realização da justiça penal.
O princípio in dubio pro reo, enquanto corolário da presunção de inocência e do direito a um processo justo, não pode ser analisado isoladamente, devendo ser enquadrado na arquitectura dogmática do processo penal, onde se interliga com os princípios da legalidade, da verdade material, da livre apreciação da prova e da imparcialidade judicial. Esta inter-relação normativa e sistemática permite compreender a função garantística do princípio, prevenindo abusos e assegurando que o exercício do poder jurisdicional em matéria penal se conforma aos limites constitucionais e às exigências do Estado de Direito.
Desde logo, importa sublinhar que o princípio in dubio pro reo articula-se com o princípio da legalidade, consagrado no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa que determina que ninguém pode ser condenado por factos que não constituam crime à luz da lei pré-existente. Esta articulação implica que, na presença de dúvida objectiva quanto aos factos constitutivos do crime, o tribunal deve decidir a favor do arguido, abstendo-se de aplicar sanções penais baseadas em presunções, inferências não comprovadas ou margens de incerteza incompatíveis com o rigor e a segurança exigíveis em matéria de restrição de direitos fundamentais.
Por outro lado, o princípio em apreço também se insere na lógica do princípio da verdade material, previsto no artigo 340.º do Código de Processo Penal, o qual impõe ao tribunal o dever de investigar exaustivamente os factos relevantes para a decisão, de forma a alcançar o apuramento da realidade dos acontecimentos e assegurar uma decisão fundada e justa. Não obstante, este dever de descoberta da verdade material não autoriza o tribunal a ultrapassar, por via de presunções infundadas ou juízos especulativos, as fronteiras da dúvida racional e objectiva, devendo, sempre que subsistam incertezas insanáveis, aplicar o princípio in dubio pro reo em benefício do arguido.
Esta tensão entre o dever de busca da verdade e a imposição de limites protectores da inocência constitui uma das marcas distintivas do processo penal moderno, orientado não apenas para a responsabilização penal de culpados, mas, sobretudo, para a protecção dos direitos fundamentais e para a garantia de que nenhuma condenação se baseia em juízos arbitrários, presunções infundadas ou margens de incerteza inaceitáveis num Estado de Direito.
Em paralelo, o princípio in dubio pro reo deve ser compatibilizado com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, o qual reconhece ao julgador a prerrogativa de formar a sua convicção quanto à matéria de facto com base na prova produzida em audiência, de acordo com as regras da experiência e a sua racionalidade jurídica. Esta compatibilização exige um equilíbrio técnico e rigoroso, permitindo ao juiz valorar livremente a prova, mas impondo-lhe, simultaneamente, o dever de decidir a favor do arguido sempre que, finda a apreciação racional dos elementos probatórios, subsistam dúvidas objectivas e insuperáveis quanto à veracidade dos factos relevantes.
No plano internacional, o princípio em apreço encontra consagração expressa e consolidada em diversos instrumentos jurídicos de protecção dos direitos humanos, nomeadamente:
i. O artigo 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), que estatui que qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente provada;
ii. O artigo 14.º, n.º 2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966 e ratificado por Portugal, que consagra a presunção de inocência em termos análogos;
iii. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que tem afirmado de forma constante que o princípio da presunção de inocência e o in dubio pro reo proíbem condenações baseadas em incertezas ou provas insuficientes, exigindo um standard elevado de prova em matéria penal.
Esta consagração internacional reforça o carácter vinculativo e inderrogável do princípio in dubio pro reo no sistema jurídico português, integrando-se plenamente no bloco de constitucionalidade e conformando a actuação dos tribunais nacionais, que devem interpretar e aplicar as normas processuais e substantivas em conformidade com os standards internacionais de protecção dos direitos fundamentais.
Conclui-se, assim, que o princípio in dubio pro reo constitui uma garantia essencial no processo penal, assegurando a prevalência da inocência sempre que subsistam dúvidas objectivas e insuperáveis quanto aos factos determinantes da responsabilidade criminal, funcionando como limite jurídico à condenação e como expressão máxima do respeito pelos direitos fundamentais e pela justiça material.
In casu:
A arguida, inconformada com a sentença proferida pelo Juízo Local Criminal de Lisboa, alega, entre outros fundamentos, que o tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo ao valorar as provas produzidas em julgamento e ao proferir decisão condenatória, sustentando que subsistiam dúvidas quanto à veracidade dos factos imputados, nomeadamente no que concerne à utilização das expressões ofensivas e à configuração do dolo.
Da análise rigorosa dos autos e da sentença recorrida resulta, porém, que a invocação do princípio in dubio pro reo pela arguida não encontra suporte fáctico ou jurídico idóneo que sustente a sua procedência.
Em primeiro lugar, cumpre sublinhar que o tribunal de primeira instância fundamentou a sua convicção de forma detalhada, lógica e coerente, valorizando os depoimentos das testemunhas, designadamente dos ofendidos, que prestaram declarações claras, congruentes e isentas de contradições, corroboradas pelos elementos documentais juntos aos autos, incluindo os registos das ocorrências e demais documentos probatórios relevantes.
O tribunal explicou, de forma articulada e racional, as razões pelas quais conferiu credibilidade aos depoimentos dos ofendidos, destacando a coerência interna das declarações, a sua consonância com a prova documental e a inexistência de animosidade ou interesse pessoal que pudesse desvirtuar a sua veracidade. Simultaneamente, a sentença analisou as circunstâncias do caso, incluindo o contexto de actuação dos ofendidos, devidamente identificados como agentes de fiscalização da ..., e o comportamento da arguida, evidenciando a intencionalidade ofensiva das expressões proferidas.
Neste quadro, não se vislumbra, da leitura objectiva da sentença nem dos elementos probatórios disponíveis, a existência de uma dúvida séria, objectiva e insuperável quanto aos factos constitutivos dos crimes de injúria agravada imputados à arguida. Pelo contrário, a convicção formada pelo tribunal assenta numa apreciação racional da prova, compatível com o princípio da livre apreciação, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, e respeitadora dos standards de fundamentação exigíveis.
A mera discordância da arguida quanto à valoração das provas, ou o inconformismo com a credibilidade atribuída aos depoimentos dos ofendidos, não configura, em termos técnico-jurídicos, uma violação do princípio in dubio pro reo, mas antes revela uma divergência interpretativa subjectiva, que não encontra eco nos requisitos estritos e objectivos daquele princípio.
No caso vertente, a sentença recorrida não revela qualquer expressão de dúvida objectiva por parte do tribunal, antes evidenciando a formação de uma convicção firme, fundamentada e compatível com a prova produzida, circunstância que afasta, de forma inequívoca, a possibilidade de invocação legítima do princípio in dubio pro reo.
Adicionalmente, importa destacar que o tribunal valorou a prova segundo critérios racionais e em conformidade com as regras da experiência comum, não se verificando ilogicidade, contradições insanáveis ou inferências arbitrárias que pudessem indiciar a existência de uma dúvida séria quanto à prática dos factos ou à configuração do dolo da arguida.
Por conseguinte, conclui-se que:
i. Não se verifica, nos autos, uma situação de dúvida objectiva e insuperável quanto à veracidade dos factos imputados;
ii. A decisão do tribunal de primeira instância foi proferida com base numa convicção racional e fundamentada, respeitadora do princípio da livre apreciação da prova;
iii. A invocação do princípio in dubio pro reo pela arguida revela-se infundada, não podendo determinar, por si só, a anulação ou revogação da decisão recorrida.
Nesta medida, e em aplicação estrita dos critérios jurídicos analisados, julga-se improcedente a pretensão da arguida quanto à alegada violação do princípio in dubio pro reo.
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4.3. Inexistência de dolo directo, defendendo, quanto muito, a existência de dolo eventual, em contexto emocional de stress e frustração
O dolo, enquanto elemento subjectivo do tipo legal de crime, constitui um dos alicerces fundamentais da imputação jurídico-penal, sendo condição sine qua non da responsabilidade criminal, em conformidade com o artigo 14.º do Código Penal. Nos termos do referido artigo 14.º, o dolo pode assumir diversas formas, designadamente o dolo directo e o dolo eventual, categorias que se distinguem em função da intensidade da consciência e da vontade do agente quanto à realização do facto típico e à produção do resultado ilícito.
O dolo directo configura-se quando o agente, com plena consciência dos elementos constitutivos do facto ilícito, age com a vontade firme e deliberada de concretizar o resultado, sendo este o objectivo visado ou assumido como certo na sua conduta. Trata-se da forma mais intensa e evidente de dolo, caracterizada pela convergência entre o conhecimento da ilicitude e a vontade de praticar o facto, não se exigindo que o agente deseje o resultado no sentido estrito, mas antes que o aceite como consequência inevitável ou pretendida da sua actuação.
Já o dolo eventual corresponde a um grau menos intenso de intenção criminosa, pressupondo que o agente, embora não pretendendo directamente o resultado típico, prevê como possível a sua verificação e, não obstante essa previsão, prossegue na sua conduta, aceitando ou resignando-se à possibilidade da ocorrência do facto ilícito. O dolo eventual implica, pois, uma atitude de indiferença ou de conformação perante a possibilidade do resultado, sendo suficiente a aceitação do risco inerente à conduta, desde que tal aceitação revele a adesão consciente ao tipo de ilícito.
Na distinção entre dolo directo e dolo eventual, tem-se adoptado critérios substanciais e não meramente formais, valorizando o grau de adesão volitiva do agente à produção do resultado e o contexto em que a conduta se desenvolve, incluindo os factores emocionais, motivacionais e circunstanciais que possam influenciar a consciência e a vontade do agente. Importa, contudo, sublinhar que o contexto emocional, designadamente estados de stress, frustração, irritação ou descontrolo momentâneo, não afasta, por si só, a configuração do dolo, seja ele directo ou eventual, devendo ser analisado em conjugação com os restantes elementos subjectivos e objectivos do tipo legal de crime.
Neste domínio, os estados emocionais ou impulsivos do agente, ainda que possam atenuar o grau de culpa ou justificar a aplicação de medidas penais menos gravosas, não excluem automaticamente o dolo, sendo irrelevantes para efeitos de qualificação jurídica do elemento subjectivo do crime quando o agente, apesar do contexto emocional, actua com plena consciência da ilicitude e da lesividade da sua conduta.
Aplicando este enquadramento ao caso concreto dos autos do Processo n.º 3255/22.6T9LSB, constata-se que a arguida, AA, foi condenada pela prática de dois crimes de injúria agravada, tendo o tribunal de primeira instância considerado provado que, no contexto da fiscalização de estacionamento realizada pelos ofendidos, proferiu expressões graves e ofensivas dirigidas directamente aos mesmos, nomeadamente "Vocês são uns merdas!" e "Filhos da puta!", com o propósito consciente de ofender a honra, a consideração e a dignidade dos ofendidos, no exercício das suas funções.
A arguida, no recurso interposto, defende que, no máximo, terá agido sob dolo eventual, invocando um contexto emocional de stress e frustração decorrente do bloqueio do seu veículo e do confronto com os agentes de fiscalização, o que, segundo a sua perspectiva, afastaria a existência de dolo directo e determinaria, eventualmente, uma atenuação da responsabilidade penal.
Todavia, da análise exaustiva dos factos provados e da fundamentação da sentença, não resulta qualquer elemento que sustente a versão da arguida quanto à inexistência de dolo directo. Pelo contrário, a decisão recorrida fundamenta, de forma lógica e coerente, a conclusão de que a arguida agiu com plena consciência do significado ofensivo das expressões proferidas, dirigidas directamente aos ofendidos, no exercício das suas funções, e com a vontade deliberada de os insultar, humilhar e desprestigiar.
O tribunal a quo valorou, com base nos depoimentos dos ofendidos e nos elementos documentais, que a arguida se encontrava em condições de autocontrolo, compreendia o contexto da fiscalização e, apesar disso, optou conscientemente por proferir insultos de elevada gravidade, demonstrativos de uma intenção deliberada de ofender a honra e o bom nome dos ofendidos, revestindo, assim, a sua conduta de dolo directo na modalidade mais intensa.
O simples facto de a arguida se sentir frustrada ou desagradada com a actuação dos agentes da ... não ilide a configuração do dolo directo, sendo assente que o desagrado, o stress ou a irritação momentânea não impedem, por si só, a formação de uma vontade consciente e voluntária de concretizar a ofensa, sobretudo quando, como no presente caso, a arguida dirigiu as expressões ofensivas de forma directa, pública e reiterada aos ofendidos, conhecendo a sua qualidade de agentes de fiscalização.
Consequentemente, conclui-se que:
i. O contexto emocional invocado pela arguida não exclui, nem atenua, o dolo directo, desde que se comprove a consciência e a vontade de concretizar o facto ilícito;
ii. No caso concreto, resultou provado que a arguida actuou com plena consciência da ilicitude da sua conduta e com o propósito deliberado de ofender os ofendidos;
iii. Não se verificam elementos objectivos ou subjectivos que justifiquem a qualificação da conduta como dolo eventual, sendo evidente a adesão volitiva ao resultado ofensivo.
Por conseguinte, a invocação pela arguida da inexistência de dolo directo e da mera existência de dolo eventual, sustentada num suposto estado emocional de stress e frustração, revela-se manifestamente improcedente, não merecendo acolhimento jurídico.
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4.4. Exagero e desproporção das penas aplicadas, peticionando a atenuação especial da pena (artigo 72.º do CP) ou, subsidiariamente, a dispensa de pena (artigo 74.º do CP)
A arguida/recorrente invoca, sob o argumento de desproporção e exagero das penas de multa que lhe foram aplicadas (140 dias de multa à taxa diária de € 5,00), a aplicação do regime de atenuação especial da pena, previsto no artigo 72.º do Código Penal, ou, subsidiariamente, a dispensa da pena, ao abrigo do artigo 74.º do mesmo diploma legal, sustentando que as circunstâncias do caso e o contexto emocional em que actuou justificariam uma resposta penal menos gravosa ou mesmo a não aplicação de pena.
Vejamos:
Nos termos do artigo 72.º do Código Penal, pode ser especialmente atenuada a pena quando, por força de circunstâncias anteriores ou posteriores ao facto, ou na sua execução, se verificar uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena. Esta norma consagra um regime excepcional, de carácter restritivo, que visa acomodar situações em que, não obstante a verificação do crime e da responsabilidade penal, factores relevantes conduzem a uma diminuição substancial da censurabilidade ou das exigências preventivas, justificando a aplicação de uma pena inferior ao limite legalmente previsto.
A atenuação especial da pena pressupõe, assim, uma análise concreta e rigorosa das circunstâncias do caso, impondo-se que a diminuição da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena seja de tal ordem que, objectivamente, justifique a aplicação de um regime penal mais favorável ao arguido.
No caso concreto dos autos, não se vislumbram elementos fácticos ou jurídicos que justifiquem a aplicação do regime excepcional da atenuação especial da pena. Com efeito, a sentença recorrida considerou, com base na prova produzida, que:
i. A arguida proferiu expressões ofensivas de elevada gravidade dirigidas directamente aos ofendidos, no exercício das suas funções públicas, enquanto agentes de fiscalização da ..., revestindo as ofensas de particular censurabilidade e lesividade;
ii. O dolo da arguida foi directo, traduzindo a vontade deliberada de insultar e ofender a honra e consideração dos ofendidos;
iii. A arguida compreendia o contexto da sua actuação, encontrava-se em condições de autocontrolo e, não obstante, optou por adoptar uma conduta ofensiva e socialmente reprovável;
iv. Não foram apuradas circunstâncias que, de forma acentuada, diminuíssem a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
Nesta medida, a invocação pela arguida do seu estado emocional de stress ou frustração, alegadamente resultante do bloqueio do veículo, não assume relevo jurídico suficiente para justificar a atenuação especial da pena, tanto mais que o contexto emocional ou reactivo não exclui a responsabilidade penal, quando o agente age com consciência e vontade de concretizar o facto ilícito, como sucede no presente caso.
Acresce que a natureza dos crimes em causa — injúria agravada contra agentes no exercício de funções — reveste-se de particular gravidade social, afectando o respeito pelas instituições e o normal funcionamento dos serviços públicos, o que potencia as exigências de prevenção geral e especial, afastando, assim, o juízo de diminuição acentuada da necessidade da pena.
Por conseguinte, e à luz dos pressupostos legais conclui-se que não se encontram verificados os requisitos para a aplicação da atenuação especial da pena prevista no artigo 72.º do Código Penal.
No que respeita à pretensão subsidiária de aplicação da dispensa de pena, prevista no artigo 74.º do Código Penal, cumpre recordar que esta medida constitui uma forma excepcional de exclusão da sanção penal, apenas admissível quando:
i. A ilicitude do facto e a culpa do agente sejam diminutas;
ii. O dano tiver sido reparado;
iii. As necessidades de prevenção se apresentem reduzidas;
iv. E se possa fundadamente esperar que o agente se abstenha de cometer novos crimes.
Este regime destina-se a situações de reduzidíssima gravidade e perigosidade, funcionando como medida de política criminal orientada para evitar a aplicação desnecessária de penas em casos marginais ou de insignificante censurabilidade. A sua aplicação depende de uma ponderação criteriosa dos elementos objectivos e subjectivos do caso, devendo existir uma diminuição clara e relevante da ilicitude e da culpa, conjugada com a ausência de exigências preventivas significativas.
In casu, os factos provados revelam uma conduta dolosa, consciente e ofensiva, dirigida a agentes públicos no exercício das suas funções, com lesão efectiva da honra e dignidade dos ofendidos, não se demonstrando a existência de circunstâncias que diminuam, de forma acentuada, a ilicitude e a culpa da arguida, nem se constatando uma ausência de necessidades de prevenção geral, tanto mais que os crimes de injúria contra agentes públicos atentam contra o respeito e o prestígio das instituições.
Deste modo, a pretensão da arguida de ver aplicada a dispensa de pena revela-se juridicamente infundada, não se encontrando preenchidos os pressupostos legais para a sua concessão, devendo, assim, ser mantida a pena aplicada na sentença recorrida.
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4.5. Inexistência de danos não patrimoniais com gravidade suficiente para justificar indemnização, nos termos do artigo 496.º do Código Civil
A responsabilidade civil por danos não patrimoniais constitui uma das figuras jurídicas mais relevantes na tutela dos direitos de personalidade e dos bens jurídicos imateriais, sendo especialmente significativa em casos de ofensas à honra, ao bom nome, à dignidade e à integridade moral dos indivíduos. A configuração desta responsabilidade civil emerge, em sede normativa, dos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, que consagram o regime geral da responsabilidade extracontratual, e encontra no artigo 496.º do mesmo diploma legal a previsão específica da indemnização por danos não patrimoniais.
Preceitua o artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil:
1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.
4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.
Resulta desta disposição legal que a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais não decorre automaticamente da mera verificação de uma conduta ilícita, sendo imprescindível que se demonstre a existência de um dano não patrimonial efectivo e de gravidade suficiente que justifique a atribuição de compensação pecuniária, numa lógica de equidade e ponderação prudencial do tribunal.
A arguida, no recurso que interpôs, sustenta que as expressões ofensivas que proferiu, ainda que consideradas ilícitas, não originaram danos não patrimoniais de gravidade tal que legitimem a atribuição de indemnização aos ofendidos, devendo, assim, ser revogada a decisão de condenação cível proferida em primeira instância.
Cumpre, assim, proceder à análise jurídico-material da questão, aferindo se, no caso concreto, se encontram preenchidos os pressupostos para a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais.
Em primeiro lugar, é incontroverso que, no presente caso, se verificou uma conduta ilícita e culposa por parte da arguida, consubstanciada na prolação de expressões gravemente ofensivas da honra e consideração dos ofendidos, no exercício das suas funções de fiscalização, conduta essa qualificada penalmente como crime de injúria agravada, previsto nos artigos 181.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal. A ilicitude penal da conduta constitui, desde logo, um forte indício da ilicitude civil, preenchendo o primeiro requisito da responsabilidade por danos não patrimoniais.
No que respeita à verificação do dano não patrimonial, não se exige, para a atribuição de indemnização, a demonstração de danos físicos ou materiais, sendo suficiente a comprovação de lesões a direitos imateriais, como a honra, a reputação, a dignidade ou a integridade moral do lesado, desde que tais lesões revistam gravidade justificada.
In casu, a sentença recorrida, ao condenar a arguida no pagamento de indemnizações por danos não patrimoniais no valor de € 250,00 a cada um dos demandantes, fundamentou tal condenação na verificação dos seguintes pressupostos:
i. A prolação, pela arguida, de expressões públicas gravemente ofensivas da honra e consideração dos ofendidos, dirigidas directamente aos mesmos no exercício das suas funções enquanto agentes de fiscalização da ...;
ii. O impacto emocional e psicológico sofrido pelos ofendidos, consubstanciado em sentimentos de humilhação, vexame e desconsideração social, com repercussões na sua integridade moral e percepção pública;
iii. A especial gravidade social das ofensas, atendendo ao contexto de exercício de funções públicas e ao necessário respeito pela autoridade administrativa, cuja dignidade institucional foi afectada.
A arguida alega que tais circunstâncias não configuram um dano não patrimonial de gravidade suficiente para justificar a tutela do direito, nos termos do artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, pugnando, em consequência, pela revogação da condenação cível.
Importa, porém, rejeitar tal pretensão à luz do quadro normativo aplicável. Como referido, o dano não patrimonial que justifica indemnização não se limita a situações de sofrimento físico ou psicológico extremo, abrangendo igualmente as lesões relevantes à esfera da honra, do bom nome e da dignidade pessoal e profissional dos indivíduos, sobretudo quando afectados em contexto público ou institucional, como sucede no caso vertente.
No caso sub judice, os factos provados demonstram que os ofendidos, enquanto agentes da ..., identificados e uniformizados, foram publicamente insultados pela arguida, com expressões que, objectivamente, atentam contra a sua honra, o seu prestígio profissional e a percepção social da sua função, gerando um sentimento de humilhação, vexame e desprestígio, com consequências relevantes à sua integridade moral.
Este impacto, pela sua natureza e extensão, ultrapassa manifestamente o limiar do mero incómodo ou aborrecimento, justificando, à luz dos critérios do artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais.
Acresce que o montante fixado na sentença (€ 250,00 por demandante) revela-se ajustado, prudente e proporcional à gravidade dos factos, não podendo ser qualificado como excessivo, desproporcionado ou juridicamente censurável.
Em conclusão, verifica-se que:
i. A conduta da arguida gerou danos não patrimoniais com gravidade suficiente para merecer tutela jurídica;
ii. A indemnização fixada respeita os critérios legais de equidade, proporcionalidade e razoabilidade, em conformidade com o artigo 496.º do Código Civil;
iii. A pretensão da arguida de afastar a condenação cível revela-se infundada, devendo ser integralmente mantida a decisão recorrida.
O recurso não obtém provimento, in totum.
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5. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso, e confirmar integralmente a sentença sob censura.
Custas a cargo da recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4UCs.
Notifique.

Tribunal da Relação de Lisboa, data e assinatura digitais
Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP)
Ortografia pré-acordo
10 de Julho de 2025
Alfredo Costa
Francisco Henriques
Cristina Almeida e Sousa