CRÉDITO SOBRE A INSOLVÊNCIA
DÍVIDAS DA MASSA INSOLVENTE
ADMINISTRAÇÃO DA MASSA INSOLVENTE PELO DEVEDOR
ATO DE GESTÃO CORRENTE
RESPONSABILIDADE DO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
DEVER DE FISCALIZAÇÃO
Sumário

Sumário (da relatora) – artigo 663.º, n.º 7, do CPC[1]
I.  Serão tidos como créditos sobre a insolvência aqueles cujo fundamento já existia à data da declaração da insolvência (artigo 47.º do CIRE), sendo que serão já créditos sobre a massa insolvente os que se constituam na pendência do processo (artigo 51.º do CIRE).
II. Enquadram-se nestes últimos, entre outros, as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente, bem como as dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções – artigo 51.º, n.º 1, als. c) e d) do CIRE.
III. O facto de, num período inicial, a administração da massa insolvente ter ficado atribuída à devedora – artigo 224.º do CIRE –, não obsta a que as dívidas que, nesse âmbito tenham sido contraídas, sejam consideradas como crédito sobre a massa insolvente.
IV. Nos casos em que a administração da massa insolvente é atribuída à devedora, incumbe ao Administrador Judicial nomeado fiscalizar a mesma, reportando ao processo qualquer acto que entenda ser prejudicial àquela – artigo 226.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE.  
V. Estando em causa um crédito decorrente de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a sociedade devedora (já depois de a mesma ter sido declarada insolvente e enquanto a administração da massa lhe estava atribuída) e uma sociedade terceira, inexistindo oposição do administrador da insolvência logo que de tal negócio veio a ter conhecimento, estamos perante um crédito sobre a massa insolvente.
VI. Considerando o objecto social da sociedade insolvente (instalação, manutenção, reparação e comércio de sistemas de climatização, de sistemas de ar condicionado e electricidade, de sistemas de aspiração central e de equipamento eléctrico para aquecimento), a celebração de tal negócio (fornecimento e instalação de sistema Avac) e as obrigações daí decorrentes e assumidas pela devedora traduzem a prática de um acto de gestão corrente.
VII. Não obstante o descrito nos pontos anteriores, e de sobre o administrador da insolvência impender o ónus de fiscalização da administração levada a cabo pela insolvente, tendo o referido negócio ocorrido sem que aquele tenha sido previamente auscultado, não se tendo apurado qualquer conduta culposa, bem como qualquer nexo de causalidade entre a sua actuação e o prejuízo sofrido pelo credor, nenhuma responsabilidade (solidária) lhe poderá ser assacada, designadamente para efeitos de pagamento do montante em dívida.
VIII. Para que o mesmo pudesse ser condenado em tal pagamento, necessário seria que estivessem verificados todos os pressupostos inerentes à responsabilidade extracontratual por factos ilícitos – artigo 59.º do CIRE e artigo 483.º do CC -, incumbindo ao lesado tal prova.

[1] Por opção da relatora, o presente acórdão não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem.

Texto Integral

Acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.

I - RELATÓRIO
Por apenso aos autos de insolvência veio North Crown – Madeira Investiment Company, S.A. instaurar acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Massa Insolvente da FCC, Lda. (a qual se passará a identificar como MI), representada pelo administrador de insolvência LF, FCC, Lda e o referido administrador da insolvência LF (o qual se passará a identificar como AI), todos devidamente identificados nos autos, peticionando: “Condenar as rés, solidariamente com o administrador de insolvência, no pagamento da quantia de 30.000,00 EUR (trinta mil euros), a título de restituição da quantia em dinheiro paga pela autora, após da declaração da insolvência, por incumprimento definitivo do contrato bilateral em resultado da administração da devedora e da inobservância culposa dos deveres do 3º réu, acrescida dos juros moratórios, à taxa legal, desde o dia 22 de setembro de 2022 até integral pagamento, estando vencidos na presente data (16-10-2023) a quantia de 2 970,82 EUR. // Declarar, nos termos dos artigos 51º e 174º do CIRE, que a autora tem verificado o direito do seu crédito de ser pago, como crédito sobre a massa insolvente da FCC, Lda e na quantia de 30.000,00 EUR (trinta mil euros), acrescida dos juros moratórios, à taxa legal, nos termos da alínea anterior, antes dos créditos sobre a insolvência, de qualquer natureza. // Condenar os réus no pagamento das custas processuais da ação.”
Em síntese alegou ter contratado os serviços da Insolvente para instalar um sistema de AVAC no Hotel que explora, tendo efectuado o pagamento do valor de 30.000€. Contudo, o serviço nunca veio a ser prestado. A referida contratação ocorreu em data posterior à declaração de insolvência, pelo que defende estar em causa uma dívida da massa insolvente. Em face de assim ser, considera que também o AI deverá ser solidariamente responsabilizado pelo pagamento, porquanto sobre o mesmo recaía o dever de fiscalização.

Regularmente citados, a insolvente não contestou.
Já o AI, por si e em representação da MI, apresentou contestação, pugnando pela absolvição dos pedidos de ambos os réus.
Para tanto foi alegado que os serviços em apreço não foram contratados com o conhecimento e o consentimento do AI (o qual, no entanto, sempre diligenciou por obter as necessárias informações junto do gerente da insolvente e do seu contabilista, por forma a fiscalizar e controlar a administração que se encontrava a ser efectuada pela devedora). Mais foi defendido que, estando em causa actos de administração extraordinária, não consentidos pelo AI, serão os mesmos ineficazes com relação à MI.

Após outras vicissitudes processuais, realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual se procedeu ao saneamento dos autos, com fixação do objecto do litígio e elaboração dos temas da prova.

Realizou-se o julgamento e, por sentença proferida em 20/12/2024, o tribunal a quo decidiu:
Em face do exposto, decide este Tribunal: // Julgar a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência: // - condenar a Ré Massa Insolvente no pagamento à Autora a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), acrescida dos juros legais vencidos, à taxa comercial em vigor a cada momento, desde 21.12.2022 até integral e efectivo pagamento // - absolver a sociedade FCC, Lda e o Réu LF, do pedido. // Custas a cargo da Massa Insolvente e da Autora em proporção do respectivo decaimento (decaimento da Autora – juros peticionados desde 22.09.2022 até 20.12.2022).

*
Inconformado com esta sentença dela interpôs RECURSO a MI, quanto ao segmento que a condenou no pagamento à autora da quantia de 30.000€, acrescida de juros de mora, tendo formulado as CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
“I. Vem o presente recurso interposto da Sentença proferida que condenou a ora Recorrente no pagamento à Autora da quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), acrescida dos juros legais vencidos, à taxa comercial em vigor a cada momento, desde 21.12.2022 até integral e efectivo pagamento.
II. A sentença recorrida fundamenta tal decisão no facto de entender que o crédito de que se arroga a Autora constitui uma divida da massa nos termos do Art.º 51.º n.º 1 al. c) do CIRE.
III. Ora, salvo melhor opinião, não pode a ora Recorrente concordar com este segmento decisório da sentença recorrida.
IV. No caso em apreço, estamos perante a celebração de um contrato de Fornecimento e Instalação e Sistema AVAC no valor global de € 60.732,08 (sessenta mil setecentos e trinta e dois euros e oito cêntimos), acrescido do respetivo IVA à taxa legal em vigor, conforme Ponto 5 e 6 dos Factos Provados na Sentença sub judice.
V. Sendo que, o orçamento foi apresentado pela gerência da Insolvente em 19.09.2022, ou seja, em data posterior a sua declaração de insolvência, apesar daquela manter as suas funções de administração, conforme resulta do Ponto 17 dos Factos Provados na Sentença em análise.
VI. Situação que se manteve até 20 de março de 2023, data em que se realizou a assembleia de credores que deliberou por unanimidade aprovar as propostas apresentadas pelo administrador de insolvência, designadamente, o enceramento do estabelecimento e liquidação do património apreendido, conforme Ponto 21 dos Factos Provados na Sentença em análise.
VII. Tendo, ainda, ficado provado que (Ponto 31 e 33 dos Factos Provados) que: “Todos os contactos anteriores a 3.07.2023, relativos à negociação, contratualização e execução do contrato em causa foram realizados entre o representante da Autora e o gerente da sociedade insolvente, sem intervenção do Administrador de Insolvência e sem que o gerente da sociedade insolvente tivesse informado previamente o Administrador da Insolvente ou solicitado o seu consentimento.” e “Previamente a 6.01.2023 o Gerente da insolvente não informou o Administrador da Insolvência dos actos de gestão praticados no que respeita ao contrato em questão.”.
VIII. Ou seja, ficou devidamente comprovado que todos os actos foram praticados sem o prévio conhecimento e consentimento do administrador de insolvência.
IX. Pelo que com o devido respeito, que é muito, não pode a Recorrente concordar com a Sentença em crise quando conclui que a celebração do contrato em causa pela gerência da Insolvente com a Autora “configuram um acto de gestão corrente praticado no âmbito da sua actividade de prestação de serviços de climatização e sistemas de ar condicionado, que se manteve até à deliberação que determinou o prosseguimento dos autos para liquidação”
X. Com efeito, a celebração deste contrato pela insolvente, atendo o respetivo valor, consubstancia a assunção de uma obrigação que, face ao impacto e consequências que a mesma poderia vir a ter na massa insolvente, não se enquadra, nem pode ser caracterizado com um acto de gestão de corrente.
XI. Se é verdade que o mesmo se inclui no âmbito da atividade da insolvente, a verdade é que estando a mesma numa situação de insolvência, a assunção por esta de uma obrigação do montante em causa, € 60.732,08 (sessenta mil setecentos e trinta e dois euros e oito cêntimos), acrescido do respetivo IVA à taxa legal em vigor, não pode caracterizar-se como um acto de gestão corrente, nos termos e para os efeitos do artº 226º nº 2 al. a) do CIRE.
XII. Cabendo, sim, ao gerente da Insolvente a comunicação prévia, bem como o envio da informação e pedido de consentimento para a prática de actos que se consubstanciassem actos de administração extraordinária, nos termos e para os efeitos do previsto na alínea b) da citada disposição legal.
XIII. A natureza extraordinária dos actos deve aqui aferir-se, através das consequências que dos mesmos poderão advir para a massa insolvente e não, com o devido respeito, pelos critérios em que o faz a Sentença recorrida.
XIV. Pois que, quanto à sociedade insolvente e o seu órgão de gestão, que foi mantido na administração, a sua atuação deverá ser limitada, principalmente no que tange à prática dos actos de gestão corrente e actos de administração extraordinários, uma vez que se entende que ficará dependente de manifestação do Administrador da insolvência para executá-los.
XV. Uma vez que, estando em causa a administração de um património que tem por objetivo a satisfação dos credores, a lei limita os poderes de administração, designadamente, no que respeita a contração de obrigações por parte da Insolvente.
XVI. Se, no que concerne aos actos de gestão corrente, o devedor poderá praticá-los ainda que destes actos resultem obrigações e, entretanto, pode o Administrador da insolvência se opor.  Sendo que, mesmo com a oposição, se o acto já estiver sido praticado será eficaz (art.º 226º, n.º 2, al. a). conclusão que decorre da leitura do dispositivo que indica que não haverá prejuízo da eficácia do acto.
XVII. Já o mesmo não se pode aplicar aos actos de administração extraordinária de que resultem obrigações, dado que nestas situações o desfecho é diferente, uma vez que conforme decorre do Art.º 226.º, n.º 2, al. b) do CIRE, estes actos necessitam de consentimento do Administrador da insolvência para que sejam executados, apesar de a falta desse consentimento não afetar a eficácia do acto com terceiros, a falta de consentimento prévio afeta a eficácia dos mesmos perante a massa insolvente.
XVIII. Com efeito, verificando-se a violação ao prescrito na regra acima mencionada, as consequências serão as previstas no Art.º 81.º, n.º 6 do CIRE.
XIX. Em síntese, estes actos não são inválidos, mas ineficazes em relação à massa insolvente.
XX. O CIRE não define o que deva ser considerado acto de administração ordinária ou corrente, e acto de administração extraordinária pelo que para o efeito será necessário socorrer-nos do conceito civilista.
XXI. Como refere o douto Acórdão do Supremo Tribunal de justiça supra citado, que aqui se dá por reproduzido, e os ensinamentos de Manuel de Andrade na obra, igualmente, supra citada, apenas se poderá qualificar como actos de mera administração, ou de gestão corrente os que correspondem a uma gestão patrimonial limitada e prudente em que não são permitidas operações que podem ocasionar graves prejuízos para o património administrado, o que não se enquadra no caso em apreço nos presentes autos, dado que a obrigação contraída pela insolvente, atendo o valor da mesma poderá (e acabou por a final ocasionar) prejuízos para o seu património.
XXII. Pois que como refere ainda, Manuel de Andrade, na mesma obra, a gerência da insolvente caberia apenas a gestão dos bens administrados, compete, em regra, “deferir ao expediente dessa gestão; numa palavra, de fazer o trivial. Nada de voos arriscados. Nada de aventurosos empreendimentos, de iniciativas não isentas de perigos consideráveis. Nada de altas cavalarias.”
XXIII. Pelo que, não restam dúvidas de que a celebração do contrato de Fornecimento e Instalação e Sistema AVAC celebrado com Autora e em causa nos presentes autos, não constitui um acto de administração corrente nos termos e para os efeitos do Art.º 226.º n.º 2 al. a) do CIRE, devendo sim caracterizar-se como um ato de administração extraordinária, enquadrável na alínea b) da referida disposição legal.
XXIV. Em conclusão, a Insolvente não poderia ter contraído a obrigação inerente ao mencionado contrato sem o consentimento prévio do administrador de insolvência, sob pena de ineficácia do acto para a massa insolvente.
XXV. Acresce a tudo o quanto ficou exposto, a postura assumida pela gerência da Insolvente, não só durante o período em que manteve a administração, mas também após esta ter cessado.
XXVI. Com efeito, veja-se que mesmo após a deliberação de encerramento de atividade e prosseguimento dos autos para liquidação, a gerência da Insolvente manteve conversações com a Autora, omitindo a sua situação de insolvência e a falta de legitimidade do gerente para a sua representação.
XXVII. Acrescendo que, pelo que se pode apurar nos presentes Autos, a informação e elementos remetidos ao Administrador de Insolvência a pedido deste para efeitos de fiscalização que lhe competia e informação aos credores e ao processo se revelaram falsas, o que acabou por inquinar as decisões tomadas pelo Administrador de Insolvência durante aquele período.
XXVIII. Por tudo o quanto ficou exposto, entende a ora Recorrente que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação dos factos e do respetivo enquadramento legal, devendo ser alterada na parte em que qualifica a celebração do contrato celebrado com Autora e objeto dos presentes autos, com o um acto de gestão corrente, passível de ser celebrado pela Insolvente sem o prévio consentimento do administrador de insolvência à luz do Art.º 226.º n.º 2 al. a) do CIRE e por isso eficaz, constituindo assim, ao abrigo do Art.º 51.º n.º 1 al. c) do CIRE uma divida da massa insolvente e, substituída por outra que qualifique o acto como um ato de gestão extraordinária, nos termos e para os efeitos previstos na al. b) do n.º 2 do Art.º 226.º do referido diploma legal, com todas as legais consequências, designadamente, a ineficácia do mesmo em relação à massa insolvente.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá o presente recurso merecer provimento, com as respetivas consequências legais, assim se fazendo a costumada, JUSTIÇA!.”

Igualmente inconformada com a sentença dela interpôs RECURSO SUBORDINADO a autora, quanto ao segmento que absolveu o AI do pedido, tendo formulado as CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
“I. O presente recurso visa a reapreciação da douta sentença recorrida, na parte que afastou a responsabilidade civil extracontratual do administrador de insolvência, tendo-o absolvido do pedido, formulado no petitório da ação.
II. A douta decisão recorrida, nessa parte, com a qual respeitosamente se discorda, entendeu que o administrador de insolvência não praticou atos ou omissões que justificassem a sua condenação porque não se mostram reunidos cumulativamente os pressupostos da sua condenação.
III. A matéria de fato dada como provada, com base nos documentos juntos dos autos, dos depoimentos das testemunhas e das confissões de parte, comprovam que o administrador de insolvência não agiu da forma diligente, nem como seria expectável em face das suas especiais responsabilidades, tendo adotado uma postura omissa dos seus deveres, por vezes grosseira, para com o tribunal, credores e com a massa insolvente.
IV. O administrador optou culposamente por não exercer o controlo e a fiscalização a que estava obrigado, pela lei e por determinação do tribunal, em acompanhar e controlar a atividade desenvolvida pelo devedor, ao menos desde a declaração de insolvência e desde que foi deferida a administração pelo devedor, até ao encerramento e liquidação da atividade da mesma, num período que mediou quase um ano.
V. Ao ter concordado e recomendado que a administração da massa insolvente fosse deferida ao devedor o administrador de insolvência sabia que existia um estabelecimento em funcionamento, que no âmbito da atividade corrente da sociedade insolvente, estavam a ser desenvolvidos projetos de execução em diversas obras, que existiam trabalhadores afetos a essa atividade, que haveria necessidade de se receber pagamentos da atividade, gerir contas bancárias, efetuar pagamento de salários, controlar fornecimentos e encomendas de bens e equipamentos para execução das obras, proceder a declarações, liquidações e pagamentos de contribuições sociais e impostos.
VI. O administrador de insolvência, em violação dos seus deveres legais, admitiu que jamais comunicou ao tribunal que não controlava os pagamentos, as contas bancárias da insolvente, nem as encomendas ou mesmo os fornecimentos da insolvente.
VII. Mesmo quando a empresa se encontrava de fato encerrada, e pouco tempo antes de ser decido o encerramento e liquidação do estabelecimento, o administrador de insolvência foi capaz de emitir parecer no sentido da viabilidade da empresa, através de reforço de capitais por um investidor desconhecido e possivelmente inexistente e pronunciou-se sobre as “obras em curso”, sem conhecimento direto do estado das mesmas, revelando uma falta de rigor e cuidado inaceitáveis.
VIII. O administrador de insolvência através do seu comportamento conscientemente omissivo, sabia, nem podia ignorar, que estava a violar a norma jurídica do artigo 226º do CIRE, que determina o seu dever de fiscalizar a administração do devedor, destinada a proteger os interesses dos credores e o direito de terceiros que negociaram com a devedora, sendo o seu comportamento culposo, ainda que negligente e por vezes grosseiro, digno de censura.
IX. A conduta do administrador de insolvência preenche todos os requisitos do artigo 483º do Código Civil, que determinam existir responsabilidade civil extracontratual, por parte de quem pratica atos ilícitos, com dolo ou mera culpa, que violem o direito de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios, ficando obrigado a indemnizar o lesado dos danos resultantes da violação.
X. O douto tribunal a quo não efetuou um enquadramento legal correto dos fatos provados, nomeadamente, dos que constam dos números 19 a 22, 24, 25, 32, 34, 35, da douta sentença de 20-12-2024, nem interpretou de forma juridicamente correta as normas dos artigos 59º e 226º do CIRE e artigos 483º, 562º, 564 e 566º do Código Civil.
XI. Impõe-se a reformulação, nessa parte, da douta decisão recorrida, reconhecendo-se que o administrador de insolvência agiu em violação dos seus deveres de forma voluntária, ilícita e culposa, tendo causado à autora/recorrente, um dano relevante, condenando-se o réu LF, solidariamente com a ré Massa Insolvente, no pagamento da quantia de 30.000,00 EUR peticionada na ação, acrescida de juros moratórios legais, desde 21 de dezembro de 2022 até integral pagamento,
Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, determinando-se a alteração da douta sentença recorrida, exclusivamente na parte indicada e colocada em crise pelo presente recurso.”

Ambas as recorrentes apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência dos recursos apresentados pela parte contrária. 

Ambos os recursos foram devidamente admitidos.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II – DO OBJECTO DOS RECURSOS
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes - artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC.
Assim, as questões a decidir são:
Com relação ao recurso da MI
- Se o negócio que está subjacente ao crédito aqui em causa ocorreu no âmbito do exercício da gestão corrente ou se traduz já a prática de um acto de administração extraordinária;
- Se tal crédito traduz uma dívida da insolvente ou uma dívida da massa insolvente.
Com relação ao recurso da autora
Se o AI deverá ser solidariamente responsabilizado pelo pagamento de tal crédito.

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III – FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida considerou-se provada a seguinte factualidade.
1. A autora tem como objecto social o exercício da actividade industrial e comercial de investimentos imobiliários, designadamente, a construção, compra e venda e revenda de bens imóveis, respectiva exploração e arrendamento; compra, venda, aluguer e gestão de qualquer tipo de embarcações; indústria de transportes marítimos, actividades de promoção, marketing, prospeção e agenciamento de embarcações.
2. A autora é proprietária de um prédio urbano, composto por oito pisos, com a área total de 544 metros quadrados, localizado na Rua Ivens números 19 e 21, Rua do Conselheiro José Silvestre Ribeiro números 49, 51 e 53, e Rua Nova de São Pedro números 31 e 33, freguesia da Sé, concelho do Funchal, inscrito na matriz sob o artigo 1563º, e descrito com o número 299, na Conservatória do Registo Predial do Funchal onde se mostra instalado um estabelecimento comercial de hotelaria, denominado Hotel Madeira.
3. A autora desenvolveu obras de remodelação e modernização no edifício do Hotel Madeira, incluindo o projecto de introdução de um sistema integrado de climatização e de ventilação do prédio.
4. No âmbito da actividade referida em 3. a autora consultou entidades especializadas no fornecimento e montagem daqueles sistemas.
5. Em 19 de Setembro de 2022, a devedora FCC, Lda, apresentou à autora uma proposta, com a epígrafe “Fornecimento e Instalação de Sistema Avac”, no valor global de €60.732,08 (sessenta mil, setecentos e trinta e dois euros e oito cêntimos), aos quais acresceria o IVA à taxa legal em vigor.
6. O orçamento referido em 5. englobava o fornecimento e instalação de ar condicionado através de diversas unidades interiores e exteriores, instalação de condutas, tubagens e sistemas de condensados, instalação de sistema de renovação do ar, difusão, registo de corta-fogo, incluindo manuais e telas finais no piso -1, rés-do-chão, recepção ginásio e sala multifunções, no prédio do Hotel Madeira e Restaurante.
7. No dia 20 de Setembro de 2022, a devedora FCC, Lda emitiu em nome da autora a Factura n.º 351 (fatura FX série 21/FT 2022A21/351), com vencimento na mesma data, da qual consta a descrição relativa à “1ª prestação para fornecimento e instalação de sistema AVAC”, “Fase 1 Hotel Madeira”, com o valor de €30.000,00 e indicação do IBAN PT50 0018 0003 3918 4239 0204 5.
8. No dia 22 de Setembro de 2022, a autora, através da sua conta no Novo Banco, procedeu ao pagamento da Fatura n.º 351, na quantia de €30.000,00, através de transferência bancária para a conta bancária da devedora, indicada no mesmo documento, a que corresponde o Recibo 4/232/2022 datado de 23.09.2022.
9. O valor referido em 8. deveria ter sido aplicado na aquisição de uma parte do material e equipamentos a serem usados na obra acordada.
10. As obras deveriam iniciar-se em 15 de Novembro de 2022 e estarem concluídas até 20 de Dezembro de 2022.
11. Em Abril de 2023, a Autora tomou conhecimento de que a sociedade devedora havia sido declarada insolvente, facto que não constava dos documentos que lhe foram apresentados (orçamento e factura).
12. A sociedade FCC, Lda, cujo objecto é a instalação, manutenção, reparação e comércio de sistemas de climatização, de sistemas de ar condicionado e electricidade, de sistemas de aspiração central e de equipamento eléctrico para aquecimento, foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 13.05.2022, pelas 18h:13m, publicado o anúncio no portal CITIUS no dia 16.05.2022, tendo sido nomeado administrador de insolvência LF.
13. A insolvência da empresa foi declarada na sequência da não aprovação do Plano em Processo Especial de Revitalização, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo de Comércio do Funchal, Juiz 2, sob o nº 4576/21.0T8FNC, no qual foi nomeado administrador judicial provisório LF.
14. A Lista de Créditos Reconhecidos foi junta aos autos em 5.07.2022 e sujeita a rectificação por requerimento e lista junta aos autos em 24.11.2022 e a Autora não consta da mesma.[1] Facto alvo de rectificação oficiosa
15. No âmbito do processo a que este segue apenso, por requerimento de 9.05.2022 a devedora insolvente solicitou que a administração da massa insolvente fosse efectuada pela própria comprometendo-se com a apresentação de um plano de insolvência, tendo o Administrador da Insolvência sido notificado para informar se dava o seu acordo a tal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 224º do CIRE.
16. Por requerimento de 19 de Maio de 2022 o Administrador da Insolvência informou o tribunal que concordava que a administração da massa insolvente fosse efectuada pela devedora, com efeitos a partir da sentença de declaração de insolvência.
17. Por despacho de 26.05.2022, foi determinado que a administração da massa insolvente fosse assegurada pela Devedora.
18. Na assembleia de credores para apreciação do relatório realizada em 04/07/2022 foi deliberado “quanto à proposta apresentada pelo senhor administrador judicial e pela Insolvente, de apresentação de um novo plano de insolvência, resultou a mesma aprovada por unanimidade dos presentes a qual resultou a aprovação da mesma, nos termos do art.º 209.º do CIRE.”
19. Da acta de assembleia de credores para discussão e apreciação da proposta do plano de insolvência realizada em 11/01/2023, consta que:
“Da informação veiculada nesta assembleia pelo legal representante da insolvente resulta que a Insolvente se encontra em plena atividade, tem trabalhadores ao seu serviço e, bem assim, trabalhos em curso, os quais previsivelmente estarão concluídos no final de fevereiro.”
“..Atento à continuidade da atividade proponho que a administração fique a cargo do devedor, como até esta data, e em data a definir seja apreciada a continuidade ou encerramento e liquidação dos presentes autos nos termos do art.º 158º e seguintes do CIRE.
Foi determinada a elaboração do relatório com a seguinte informação: i) a identificação dos serviços que a insolvente se encontra a executar na presente data; ii) custos e proventos que advirão dos mesmos, termos e cópias dos contratos que estão subjacentes às prestações dos serviços; iii) informação relativa a eventuais negociações de novos contratos com indicação expressa se estão em causa prestações de serviços ou venda de equipamentos, com toda a informação respeitante aos mesmos, com vista a permitir uma tomada de posição relativa à sua aceitação ou não, por parte dos credores; iv) situação dos leasings incidentes sobre os veículos.
(Acta da Assembleia de Credores realizada em 11/01/2023, cujo teor se dá por integralmente reproduzida)
20. Em 26.01.2023, foi junto aos autos de insolvência relatório, do qual consta a seguinte informação:
“No que concerne à identificação dos serviços/obras que a insolvente se encontra a executar na presente data, segue infra o quadro discriminativo dos clientes, o valor das adjudicações das empreitadas em curso e o prazo da sua conclusão.”
… “Hotel Madeira restaurante” a informação veiculada foi que a proposta ascendia ao valor de € 60.732,05 (sessenta mil setecentos e trinta e dois euros e cinco cêntimos) e a mesma seria finalizada em finais de Fevereiro.
Foi informado que a sociedade insolvente já havia recebido por conta da mesma o montante de €30.000,00 (trinta mil euros) e efectuado uma encomenda €31.497,46.
“Relativamente aos custos e receitas que advirão dos mesmos (empreitadas e serviços técnicos) apresenta-se no quadro infra os valores já recebidos, valores por receber e os custos associados à encomenda do material para conclusão das referidas obras.
Verifica-se, assim, que pelas obras em curso a sociedade prevê receber aquando da conclusão dos trabalhos receitas no valor de € 71.902,12, aos quais acrescerão € 5.931,44, pelos contratos de assistência (em Janeiro: € 2510,61, em Fevereiro: € 2.284,75 e em Março: 1.136,08), totalizando a quantia de € 77.833,56.”
21. Na assembleia de credores de 20 de Março de 2023 foi aprovado, por unanimidade dos credores presentes, as propostas do administrador de insolvência de encerramento do estabelecimento e liquidação do património apreendido, tendo, em consequência sido proferido o seguinte despacho: “considerando a posição manifestada pelos credores presentes, determino o encerramento do estabelecimento insolvente. Dê cumprimento ao disposto no artigo 65º n.º 3 do CIRE, enviando cópia da presente ata à Autoridade Tributária, informando que o encerramento foi deliberado em sede de assembleia de credores realizada a 20 de março de 2023. Face ao deliberado, determino o prosseguimento dos autos para a fase de liquidação do activo apreendido a favor da massa insolvente”.
(acta da assembleia de credores realizada em 20.03.2023, cujo teor se dá por reproduzida)
22. Na assembleia referida em 21. ficou decidido que o Administrador deveria apresentar uma actualização sobre os seguintes pontos:
a. Informação específica sobre o estado de conclusão das obras, i.é., para além da % que nos indica no ficheiro em anexo, peço-lhe que nos informe no campo das observações (do referido ficheiro em excel) concretamente o que será necessário para a conclusão das obras (mão de obra, instalação de “n” equipamentos….)
b. Apresentação dos comprovativos de pagamento das encomendas efetuadas e respetivos recibos (as mencionadas no ficheiro em excel e outras que, eventualmente, tenha feito posteriormente).
c. Informação sobre o estado das encomendas, nomeadamente, tendo em consideração as encomendas que foram feitas (no excel em anexo cifravam-se em € 82.886,67 para 4 obras), as que foram recebidas, se foram entregues e aplicadas ao cliente.
d. Informação sobre o contrato de locação nº 124-008064 celebrado com a Grenke Rentig, S.A. (que teve por objecto locado a impressora multifunções Toshiba E-Studio Cores 3005 AC, e que em Junho de 2022 referiu que pretendia cumprir), nomeadamente, se foram pagas as rendas Junho/22 a 31/01/2023. Em caso positivo, remeta-nos uma conta corrente com os pagamentos efetuados e respetivos comprovativos.
e. Contactos (telefone e email) do senhorio das instalações e menção das rendas não pagas ( de acordo com informação que nos remeteu em Janeiro parece-nos que não foi paga a renda de Outubro ).
23. As informações e esclarecimentos referidos em 22. foram solicitados ao gerente da insolvente em 21.03.2023 por email e posteriormente por indicação telefónica dirigido à funcionária da insolvente PP (funcionária/administrativa da FCC), tendo a mesma respondido por email de 24.03.2023 que apenas o gerente poderia transmitir as informações solicitadas, não tendo, contudo, sido enviada qualquer informação ou esclarecimento às questões colocadas pelo gerente da insolvente.
24. Com data de 12 de Abril de 2023, o administrador da insolvência apresentou um relatório que incidia sobre a gestão da insolvente no período compreendido entre 26.02.2023 até ao encerramento da actividade, no qual indica como “empreitadas em curso” as obras no Hotel Madeira Restaurante, no valor de € 60.732,08 e 20% como percentagem de finalização, constando como observação que “a obra foi adiada por parte do cliente”.
Consta ainda no item “Estado do fornecimento” que “chega a finais de janeiro; ainda faltou efetuar o pagamento” e em “Observações”: “A obra foi adiada por parte do cliente. Foi feita a encomenda, mas não foi feito qualquer pagamento ao fornecedor”.
“no que concerne aos clientes da sociedade insolvente Hotel Madeira Restaurante (…), terão sido efetuadas encomendas de material, não tendo ocorrido o respetivo pagamento”
“as informações constantes no presente requerimento foram prestadas pelo legal representante da empresa”
25. As informações constantes do relatório referido em 24. foram obtidas pelo Administrador através do legal representante da empresa, não se tendo munido de outra documentação, seja contabilística ou informação junto das empresas adjudicantes mencionadas no relatório.
26. No dia 29 de Junho de 2023, em reunião conjunta com a autora, o gerente da sociedade devedora, Eng. BB, disse que os equipamentos foram pagos ao fornecedor e entregues na Madeira e que estava agora pronto a entregar ao cliente.
27. No dia 3 de Julho de 2023, através do seu mandatário, a Autora enviou um correio-electrónico ao administrador da insolvência no qual refere o pagamento efectuado e que aguarda o início da obra contratada.
28. Em resposta de 11 de Julho de 2023 o administrador da insolvência informou que “a empresa foi declarada insolvente tendo sido determinado o prosseguimento dos autos para liquidação dos activos apreendidos”.
29. No dia 12.07.2023, renovado no dia 11.09.2023, foi solicitado ao administrador de insolvência que fosse indicada uma data para o início da obra e agendada uma reunião de coordenação dos trabalhos.
30. Na resposta de 13.09.2023 o administrador de insolvência declarou ser “manifesta a impossibilidade da prossecução da obra atentando à situação da insolvência da empresa que se encontra encerrada, sem actividade e em liquidação…”.
31. Todos os contactos anteriores a 3.07.2023, relativos à negociação, contratualização e execução do contrato em causa foram realizados entre o representante da Autora e o gerente da sociedade insolvente, sem intervenção do Administrador de Insolvência e sem que o gerente da sociedade insolvente tivesse informado previamente o Administrador da Insolvente ou solicitado o seu consentimento.
32. O Administrador da Insolvência não controlou o pagamento, nem as contas bancárias da insolvente, nem as encomendas e os fornecimentos realizados até 31 de março de 2023.
33. Previamente a 6.01.2023 o Gerente da insolvente não informou o Administrador da Insolvência dos actos de gestão praticados no que respeita ao contrato em questão.
34. Em 10 de Abril de 2023 e após o despacho de prosseguimento dos autos para liquidação, o Administrador da Insolvente teve acesso às contas da Insolvente.
35. O Administrador comunicou ao tribunal a informação que lhe foi sendo solicitada pelos credores e as informações das obras que lhe eram transmitidas pelo gerente.
36. A Autora solicitou ao administrador a entrega de materiais ou equipamento ou devolução da quantia paga.

E como não provado que:
A. A Devedora não teve o propósito de executar a obra no Hotel Madeira.

Em complemento da facticidade descrita, acrescenta-se:
37. No despacho proferido nos autos principais em 26/05/2022, ao qual se alude no facto provado n.º 17, consignou-se: “Em conformidade com o vindo de expor e tendo presente que na massa insolvente se encontra compreendida uma empresa (art.º 223.º do CIRE), verificados os respectivos pressupostos, ao abrigo do disposto no art.º 36.º, n.º1, al. e) e do art.º 224.º n.º2, ambos do CIRE, determino que a administração da massa insolvente seja assegurada pela Devedora. // O administrador da insolvência fiscaliza a administração da massa insolvente pela devedora e comunica imediatamente ao juiz e à comissão de credores quaisquer circunstâncias que desaconselhem a subsistência da situação, sendo que na falta de comissão de credores, a comunicação é feita a todos os credores que tiverem reclamado os seus créditos (art.º 226.º n.º 1 do CIRE). // Notifique.”
38. O despacho a que se alude no facto provado n.º 19, proferido no âmbito da assembleia de credores para discussão e apreciação da proposta do plano de insolvência realizada em 11/01/2022, tem o seguinte teor integral: “Em face da posição assumida pela insolvente ao admitir a sua incapacidade para cumprir o plano apresentado, atenta a falta de investimento externo, encontra-se inviabilizada a concretização do objeto da presente assembleia de credores, a saber, a apreciação do plano apresentado. // Tendo em conta esse mesmo objeto e que nesta assembleia não se encontram presentes a totalidade dos credores com créditos reconhecidos nos autos, entendemos encontrar-se também inviabilizada neste momento a apresentação e votação de qualquer proposta para o destino a dar ao presente processo ou seja encerramento/liquidação do activo. // Da informação veiculada nesta assembleia pelo legal representante da insolvente resulta que a Insolvente se encontra em plena atividade, tem trabalhadores ao seu serviço e, bem assim, trabalhos em curso, os quais previsivelmente estarão concluídos no final de fevereiro. // Tendo em conta o supra exposto, impõe-se neste momento designar data para a realização de nova assembleia de credores com vista à apreciação do relatório a que alude o art.º 155º do CIRE. // Sucede também que, como resultou patente nesta assembleia, o relatório apresentado pelo sr. administrador da insolvência, ao abrigo da norma citada, encontra-se desajustado à realidade atual da insolvente. // Isto posto, determino: // (i)que no prazo de 15 dias, o Sr. Administrador apresente relatório do qual deve constar, além do mais, a identificação dos serviços que a insolvente se encontra a executar na presente data, custos e proventos que advirão dos mesmos, termos e cópias dos contratos que estão subjacentes à prestações dos serviços. // O relatório em causa deverá conter informação relativa a eventuais negociações de novos contratos com indicação expressa se estão em causa prestações de serviços ou venda de equipamentos, com toda a informação respeitante aos mesmos, com vista a permitir uma tomada de posição relativa à sua aceitação ou não, por parte dos credores. // Mais deverá constar esclarecimento quanto à situação dos leasings incidentes sobre os veículos. // (ii)que no prazo legal (art.º 155.º, n.º 3 do CIRE), por referência à data da assembleia de credores que se agendará infra, o sr. administrador da insolvência, apresente o relatório a que alude o art.º 155º do CIRE, devidamente actualizado à realidade actual da Insolvente. // Para a realização da assembleia de credores, designo o dia 06-03-2023, pelas 14h30m para apreciação do relatório final a apresentar nos termos do n.º 3 do art.º 155º do CIRE.”
39. Em 26/02/2023, o AI juntou relatório complementar ao apresentado para efeitos do artigo 155.º do CIRE, no qual, para além do mais, pode ler-se: “Empreitadas em curso // Obras: Hotel Madeira Restaurante // Valor proposta (s/IVA) 60 732,08 // % finalizado 20% // Observações A obra foi adiada por parte do cliente”.

*
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

DO RECURSO INTENTADO PELA REQUERIDA/MI, REPRESENTADA PELO AI:

Importa, desde já, referir que se mostra assente (nem sendo agora questionado) que, entre a devedora e a autora/recorrida, foi celebrado um contrato de prestação de serviços, na modalidade de contrato de empreitada – cfr. artigos 1154.º, 1155.º e 1207.º, todos do CC. Concretizando, foi acordado o fornecimento e instalação de sistema Avac[2].
No âmbito das negociações entre ambas ocorridas, a devedora apresentou a competente proposta/orçamento em 19/09/2022, no valor de 60.732,08€ (factos n.º 5 e 6), emitindo no dia seguinte uma factura com vencimento na própria data e referente ao pagamento da 1.ª prestação, no valor de 30.000€ (facto n.º 7). Tal factura foi paga pela recorrida em 22/09/2022, destinando-se tal montante à aquisição de material (factos n.º 8 e 9). No entanto, a obra não foi realizada.
Igualmente é pacífico que, aquando da referida contratação, a devedora havia já sido declarada insolvente (por sentença proferida em 13/05/2022, publicitada no dia 16 do mesmo mês), mantendo, contudo, a administração da massa insolvente.
Por fim, ficou demonstrado que o negócio foi celebrado sem o prévio conhecimento/consentimento do AI.

Seguiremos de perto o que já anteriormente decidimos no acórdão proferido em 23/04/2024[3].
A atribuição da administração da massa insolvente à devedora encontra-se prevista e regulada nos artigos 223.º e ss. do CIRE[4], constituindo uma excepção ao estatuído no n.º 1 do artigo 81.º[5].
 Prescreve o artigo 224.º, n.ºs 1 e 2, que assim poderá suceder desde que estejam preenchidos os seguintes pressupostos: “a) O devedor a tenha requerido; b) O devedor tenha já apresentado, ou se comprometa a fazê-lo no prazo de 30 dias após a sentença de declaração de insolvência, um plano de insolvência que preveja a continuidade da exploração da empresa por si próprio; c) Não haja razões para recear atrasos na marcha do processo ou outras desvantagens para os credores; d) O requerente da insolvência dê o seu acordo, caso não seja o devedor”.
Não obstante, a administração levada a cabo pela devedora ficará sujeita à fiscalização do AI que tenha sido nomeado, o que deverá suceder nos moldes previstos pelo artigo 226.º.
Resulta deste artigo que o AI “fiscaliza a administração da massa insolvente pelo devedor e comunica imediatamente ao juiz e à comissão de credores quaisquer circunstâncias que desaconselhem a subsistência da situação; não havendo comissão de credores, a comunicação é feita a todos os credores que tiverem reclamado os seus créditos” (n.º 1); bem como que, “Sem prejuízo da eficácia do acto, o devedor não deve contrair obrigações: a) se o administrador da insolvência se opuser, tratando-se de actos de gestão corrente; b) sem o consentimento do administrador, tratando-se de actos de administração extraordinária” (n.º 2). Mais se prevê no seu n.º 7 que “A atribuição ao devedor da administração da massa insolvente não prejudica o exercício pelo administrador da insolvência de todas as demais competências que legalmente lhe cabem e dos poderes necessários para o efeito, designadamente o de examinar todos os elementos da contabilidade do devedor”.[6]
No caso, não sendo controvertido qual o montante do crédito aqui em causa, também o não é a sua origem, bem como que o mesmo foi contraído após a declaração da insolvência.
Mas traduzirá tal negócio a prática de um acto de gestão corrente ou tratar-se-á já de um acto de administração extraordinária?
Na sentença recorrida entendeu-se tratar-se da primeira hipótese, para tanto defendendo-se:
“A gestão corrente compreende a prática de todos os actos que integram a actividade de uma empresa diariamente. // Ora, os serviços contratados com a Insolvente inserem-se no âmbito da actividade desta, que se manteve a operar após a declaração da insolvência. // Assim sendo, considerando que após a declaração de insolvência a Insolvente prosseguiu com a sua actividade, com vista à apresentação de um plano de insolvência, entendemos que os serviços que a Autora contratou com a Insolvente configuram um acto de gestão corrente praticado no âmbito da sua actividade de prestação de serviços de climatização e sistemas de ar condicionado, que se manteve até à deliberação que determinou o prosseguimento dos autos para liquidação. De resto, a par desta obra existiam outras que se encontravam em curso com o intuito de manter a actividade da empresa até à apresentação de um plano de insolvência. // Entendemos assim que a Devedora poderia ter celebrado o contrato em causa, sendo certo, que ao mesmo o Sr. Administrador não se opôs. Repare-se que nos relatórios apresentados pelo Sr. Administrador nos autos de insolvência, é feita menção a várias obras em curso, nomeadamente à obra a realizar no Hotel Madeira, e objecto destes autos. Ou seja, o Sr. Administrador considerou o acto aqui em causa perfeitamente adequado e aceitável, no âmbito da gestão levada a efeito pela Devedora. // Acresce dizer, que não resulta dos autos que o Sr. Administrador tenha exigido que os recebimentos ficassem a seu cargo.”
Também nós subscrevemos tal posição.
Considerando que, por actos de gestão corrente se deverão entender os actos de administração ordinária (por oposição aos actos de administração extraordinária)[7], sempre nos estaremos a reportar aos actos/decisões necessários à normal gestão da vida societária (sem qualquer alteração da sua estrutura ou do seu objecto social).
Como tal, a celebração do negócio aqui em causa configura um acto de gestão corrente, tanto mais que, se assim se não entendesse, nem sequer seria possível levar a cabo a administração da massa insolvente (nos moldes em que foi atribuída à devedora), isto é, que fossem praticados os actos imprescindíveis à organização e ao funcionamento normal e regular da sociedade.
Não nos poderemos alhear do objecto social da insolvente e do tipo de contrato que a mesma celebrou com a autora, sendo que sempre a administração teria que passar pelas negociações tendentes à prestação de serviços como os aqui em causa, porquanto correspondem precisamente à actividade económica desenvolvida por aquela – o que implicava necessariamente a negociação de contratos que viabilizassem a prestação dos seus serviços (execução do respectivo objecto social), bem como a movimentação das contas bancárias por forma a que fossem reunidas as condições para que tais serviços pudessem ser prestados (recebimentos de clientes, pagamentos a fornecedores, entre outros). Atente-se que, no caso, o AI nem sequer terá exigido que ficassem a seu cargo todos os recebimentos em dinheiro, bem como a realização de todos os pagamentos (como previsto no n.º 3 do artigo 226.º).   
Não estamos perante um acto que envolva qualquer decisão estratégica, excepcional à actividade desenvolvida, mas antes perante um acto tendente à manutenção da sua actividade diária. A não ser possível a contratação da prestação de serviços como a que foi acordada com a autora da presente acção, sempre a gestão da sociedade (normal desenvolvimento da vida/actividade da insolvente) ficaria fortemente limitada, para não dizer, obstaculizada. Veja-se que, como resulta do artigo 259.º do CSC, no que concerne à administração da sociedade, deve o gerente “praticar os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, (…)”.
Recorrendo aos ensinamentos de Catarina Serra[8], “pode considerar-se que incumbe, designadamente, ao devedor exercer os poderes conferidos ao administrador da insolvência no quadro dos negócios em curso (basicamente, decidir se aceita ou recusa o cumprimento dos negócios em curso)”, estando reservada ao AI “a tarefa de fiscalizar a administração da massa e de comunicar ao juiz e aos credores quaisquer circunstâncias que desaconselhem a manutenção da administração nas mãos do devedor. (..) deve considerar-se que ele pode exercer todas as suas competências típicas que não contendam com a situação de administração pelo devedor”.
Nada há, pois, a censurar ao entendimento da 1.ª instância.

Ultrapassada esta questão, vejamos agora se estamos em face de uma dívida da insolvente ou uma dívida da massa insolvente.
De acordo com o artigo 47.º, “1. Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio. 2. Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respectivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência. (…)”[9]. Já no seu n.º 3, o mesmo artigo refere que os créditos sobre a insolvência podem ser: a) Garantidos e privilegiados, b) subordinados, ou c) comuns (sublinhado nosso).
Já no artigo 51.º, n.º 1 o legislador qualificou, a título exemplificativo, como sendo dívidas da massa insolvente as seguintes: “a) As custas do processo de insolvência; b) As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores; c) As dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente; d) As dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções; e) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência; f) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração; g) Qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objecto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório; h) As dívidas constituídas por actos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes; i) As dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente; j) A obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do artigo 93º.”
Daí que, como Catarina Serra[10] escreve: “Distingue-se agora entre os «créditos sobre a massa insolvente» (ou «dívidas da massa insolvente») e «créditos sobre a insolvência» (ou «dívidas da insolvência») e, em conformidade com isso, entre «credores da massa» e «credores da insolvência». Os «créditos sobre a massa» são os créditos constituídos no decurso do processo (cfr. art. 51º, nºs. 1 e 2) e os «créditos sobre a insolvência» são os créditos cujo fundamento já existe à data da declaração de insolvência (cfr. art. 47º, nºs. 1 e 2). Dentro dos «créditos sobre a insolvência», distingue-se por seu turno, entre «créditos garantidos», «créditos privilegiados», «créditos subordinados» e «créditos comuns».”
Vigora aqui o princípio da precipuidade, devendo as dívidas da massa insolvente ser pagas com prioridade relativamente às demais – artigo 46.º, n.º 1[11].
E, enquanto os créditos sobre a insolvência deverão ser reclamados (em conformidade com o disposto no artigo 128.º, sem prejuízo de também o poderem ser no âmbito de uma acção de verificação ulterior de créditos, ao abrigo do artigo 146.º - cfr., ainda, artigo 173.º), já os créditos sobre a massa insolvente não terão que ser objecto de qualquer reclamação.
Quanto a estes, considerando que os mesmos deverão ser pagos nas datas dos respectivos pagamentos (regra da pontualidade[12]), independentemente do estado do processo (artigo 172.º, n.º 3), caso o não sejam, terá o respectivo titular de intentar uma acção nos moldes previstos pelo artigo 89.º. 
Reportando ao caso, constata-se que o crédito de que autora/recorrida se arroga não foi efectivamente reclamado, tendo-se constituído na pendência do processo (após a declaração da insolvência), crédito esse que respeita a um contrato de prestação de serviços celebrado entre aquela e a devedora, no âmbito da administração da massa insolvente levada a cabo pela segunda.
Ora, sendo certo que são dívidas da massa as emergentes dos actos de administração da massa insolvente - al. c) do n.º 1 do artigo 51.º - também assim deverão ser consideradas as dívidas que resultam da actuação da devedora enquanto administradora da massa insolvente[13].
Note-se que o despacho que determinou o encerramento da actividade da devedora e o prosseguimento dos autos para liquidação apenas foi proferido em 20/03/2023. Sendo que a massa insolvente “abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo” (haja ou não, desde logo, apreensão de bens) – artigo 46.º, n.º 1.
Em face do anteriormente exposto, bem andou a 1.ª instância quando considerou estarmos em face de uma dívida da massa insolvente, a qual, para além de ter sido contraída no âmbito da gestão corrente da devedora, nem sequer mereceu qualquer discordância do AI ao longo do processo (sendo certo que este último não foi previamente auscultado quanto à celebração do negócio, não se poderá deixar de realçar que nunca manifestou qualquer posição contrária ao mesmo, o que, dir-se-á, se mostra em consonância com o facto de ter sido favorável à atribuição da administração da massa insolvente à devedora. Ora, para que tal administração pudesse ser levada a cabo, sempre a sociedade teria de estar activa, ou seja, em funcionamento, logo, negociando a prestação dos respectivos serviços a terceiros).
Citando, uma vez mais, Catarina Serra[14], aludindo às alíneas do n.º 1 do artigo 51.º: “Agrupando os casos atendendo ao seu denominador comum, é possível concluir, em primeiro lugar, que a classificação como dívidas da massa assenta, predominantemente, na existência de uma espécie de nexo causal (ou nexo de derivação) com o processo de insolvência. As dívidas da massa são, na sua esmagadora maioria, previsíveis e naturais ao processo de insolvência, sejam elas absolutamente necessárias para a abertura e o curso do processo de insolvência (como as resultantes das custas), sejam elas meramente eventuais (como as que derivam da actividade dos órgãos e, em particular, do exercício, pelo administrador da insolvência, das suas funções) – são as dívidas da massa por natureza.
Por pertinente, veja-se, ainda, o constante do acórdão da Relação de Guimarães de 01/07/2021: “A atribuição desta qualificação é explicitada por Catarina Serra com a indicação de duas razões fundamentais: primeiro, dada a analogia destas dívidas com as reguladas nas als. d) e h) do n.º 1 do art. 51.º do CIRE, respeitantes às dívidas resultantes da atividade (análoga) do administrador da insolvência e do administrador judicial provisório; segundo, por uma razão prático-teleológica, se as dívidas fossem qualificadas como dívidas da insolvência ninguém concederia crédito ao devedor; sem crédito não haveria empresa, ainda para mais insolvente, que pudesse continuar em atividade e aí é que o instituto da administração pelo devedor estaria definitivamente condenado. // A circunstância de não haver lugar à apreensão de bens quando a administração seja assegurada pelo devedor, não conduz à “inexistência” da massa insolvente (…). // A massa insolvente é integrada por todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. // Está claro que a atribuição da administração ao devedor ao diferir a apreensão de bens para a massa insolvente, obriga a que o regime da administração tenha de ser entendido em termos hábeis, pois na verdade o devedor continua a administrar todo o seu património, mantendo-se a empresa insolvente no comércio jurídico. // Como afirma Carvalho Fernandes “Pelo que respeita à administração da massa insolvente pelo devedor, importa ter presente que a referência a massa insolvente tem aqui de ser tomada como feita ao conjunto de bens que podem (vir a) se apreendidos no processo de insolvência, uma vez que (…) na generalidade dos casos em que a administração desse conjunto patrimonial é atribuído ao devedor, a sua efectiva apreensão ainda não se verificou“ // Todavia, praticado ato pelo devedor a quem foi confiada a administração, gerador de consequências sobre o património os encargos que daí decorram projetam-se na massa insolvente, conforme decorre do disposto no artigo 51.º do CIRE. // Conformemente, tendo a devedora constituído novas dívidas com a sua administração, tais dívidas porque contraídas no decurso do processo são dívidas da massa insolvente.”

Como nota final, dir-se-á, ainda, que, não obstante a decisão de atribuição à devedora da administração da massa insolvente ser alvo de publicitação, tal como o é a declaração de insolvência – cfr. artigos 229.º e 38.º - , no caso, ficou provado que a autora, à data da negociação, desconhecia tais factos – cfr. facto n.º 11. Acresce que, a 29/06/2023, o gerente da insolvente deu conta à autora que havia já pago os equipamentos ao fornecedor, os quais lhe poderiam ser entregues – facto n.º 26. E, em Julho e Setembro de 2023, a autora ainda estava convicta quanto à execução do contrato (factos n.º 27 e 29), pelo que, para além de estarmos em face de um crédito que teve subjacente a prática de uma acto válido e eficaz, da responsabilidade da MI, nem sequer se poderá questionar a boa fé da autora, a qual se mostra merecedora de tutela.

Termos em que se julga o recurso intentado pela MI improcedente, mantendo-se o decidido pelo tribunal a quo.

DO RECURSO INTENTADO PELA AUTORA/CREDORA:

Pretende a autora que, solidariamente com a MI, seja o AI condenado a pagar o crédito de que a primeira é titular (não incidindo o presente recurso sobre o segmento que absolveu a sociedade insolvente do pedido quanto à mesma deduzido, nessa parte, a sentença transitou em julgado – artigo 635.º do CPC).
Assim não o entendeu a 1.ª instância.
E, uma vez mais, com acerto.
O CIRE implementou e intensificou a ideia da desjudicialização do processo de insolvência, atribuindo um papel preponderante ao AI (e também aos credores). Não obstante o juiz continuar a deter poderes de controle, a sua intervenção está cingida à função jurisdicional[15].
Sendo o AI um órgão da insolvência, ao mesmo estão acometidos os poderes de administração da massa insolvente e, quando esta seja atribuída à própria devedora, poderes de fiscalização. Está o mesmo sujeito aos deveres impostos no artigo 12.º do EAJ - Estatuto do administrador judicial (Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro), nomeadamente, ao dever de orientar a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores, para além de lhe competir as funções previstas no artigo 55.º do CIRE.
A nomeação para o cargo, e a sua aceitação, acarreta para o AI, não apenas o dever de uma actuação proactiva, mas igualmente uma postura colaboradora, devendo responder às solicitações que o tribunal lhe dirija, por forma a esclarecer qualquer dúvida, emitir pronúncia acerca de qualquer questão que lhe seja colocada ou carreando para os autos elementos cuja junção se revele necessária e tenha sido determinada.
Na sentença recorrida defendeu-se que a eventual responsabilidade do AI pelo pagamento (solidário) do montante reclamado deverá ser apreciado à luz do instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos e desde que preenchidos os inerentes pressupostos (do que a recorrente não discorda).
Concluiu, no entanto, não estarem preenchidos tais pressupostos, razão pela qual se absolveu o AI do pedido contra o mesmo formulado. É deste segmento da sentença que a credora recorre.
Isto posto,
Prescreve o artigo 483.º do CC que, “[a]quele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Daqui resultam os seguintes requisitos cumulativos: a) imputabilidade – prática de um facto voluntário do agente; b) ilicitude – violação do direito de outrem ou de disposição legal tendente a proteger interesses alheios; c) imputação subjectiva do facto ao lesante (culpa – dolo ou mera culpa); d) dano – patrimonial ou não patrimonial; e e) nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Importa, no entanto, referir que sempre o AI poderá ser responsabilizado desde que, com culpa, tenha assumido uma conduta susceptível de ser qualificada como traduzindo uma má gestão ou quando tal conduta tenha subjacente o incumprimento dos deveres aos quais o mesmo se encontra obrigado (responsabilidade funcional ou orgânica).
Por outras palavras, poderá o mesmo ser responsabilizado desde que, no exercício das funções inerentes ao respectivo cargo, pratique actos (por acção ou por omissão) que sejam causadores de danos para o devedor ou para os credores, sejam estes da insolvência ou da massa insolvente (a sua actuação deverá sempre visar a maximização da satisfação dos interesses dos credores – cfr. artigo 12.º, n.º 2, do EAJ).
É o que resulta do artigo 59.º, n.º 1, do CIRE, segundo o qual “[o] administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado”, acrescentando depois o seu n.º 2 que poderá ainda ser responsabilizado se, por acção do mesmo, “se verificar a insuficiência da massa insolvente e consequentemente se colocar em causa a satisfação integral dos créditos.
 Os requisitos exigidos por este preceito mostram-se em conformidade com os que resultam do já invocado artigo 483.º do CC – citando Carvalho Fernandes e João Labareda[16], “é necessário que, além do dano, se verifiquem, cumulativamente, os seguintes pressupostos: conduta voluntária imputável ao administrador judicial; ilicitude do procedimento, traduzido, no caso, na violação de deveres que lhe cabem; atuação culposa; e, finalmente, existência de um nexo de causalidade adequada entre o evento produtor e o dano produzido”.[17]
A posição assumida pela 1.ª instância teve subjacente o não preenchimento dos pressupostos exigidos para que o mesmo pudesse ser solidariamente responsabilizado, para tanto se tendo escrito: “(…) não resulta demonstrada qualquer conduta do administrador de insolvência que mereça juízo de censura, tanto mais, que o legal representante da Insolvente poderia sempre, à revelia do Administrador, celebrar o contrato em apreço nos autos. // Ou seja, não se afigura resultar demonstrada a prática de um acto voluntário e ilícito por parte do Sr. Administrador que tenha provocado dano à Autora. // Repare-se que ao Sr. Administrador não seria possível, independentemente do dever de fiscalização que sobre si impende, garantir que o legal representante da Autora não celebrasse tal contrato de empreitada à sua revelia. // Assim sendo, não se encontram verificados os pressupostos da responsabilidade civil, pelo que o Sr. Administrador da Insolvência não poderá ser solidariamente responsável pelo pagamento da quantia peticionada nos presentes autos.“.
Já a recorrente contrapõe que o AI “optou culposamente por não exercer o controlo e a fiscalização a que estava obrigado, pela lei e por determinação do tribunal, em acompanhar e controlar a atividade desenvolvida pelo devedor, ao menos desde a declaração de insolvência e desde que foi deferida a administração pelo devedor, até ao encerramento e liquidação da atividade da mesma, num período que mediou quase um ano. Tudo escapou ao controlo e ao conhecimento do AI que aproveitando a distância a que se encontrava do local onde a devedora continuou a exercer a sua atividade, se bastou com meros telefonemas e contatos esporádicos com o gerente e trabalhadores da devedora, o que se revelou desastroso na amplitude e precisão das informações que depois retransmitiu ao processo.”
Importa começar por frisar que, no caso, não nos poderemos alhear que, à data da celebração do contrato entre a autora e a sociedade devedora, a administração da massa insolvente estava atribuída à segunda, bem como que tal negociação ocorreu sem que o AI dela tenha tido prévio conhecimento, logo, sem que tenha tido oportunidade de sobre tal negócio se pronunciar (dando a sua concordância ou opondo-se à sua realização) – cfr. facto provado n.º 31.
Acresce que, como já demonstrado anteriormente, não estava a devedora impedida de assim agir.
E igualmente se adiantará que, ao contrário do que a recorrente pretende fazer valer, o facto de o AI ter assumido as funções de AJP (administrador judicial provisório) no âmbito do PER que antecedeu a insolvência e de ter sido favorável à atribuição da administração da massa insolvente à devedora, não assumem relevância para a apreciação do objecto deste recurso, tanto mais que se trata de matérias há muito decididas.
Sendo inquestionável que sobre o AI incumbe um dever de fiscalização, entende a autora que o mesmo se demitiu de tal dever, designadamente por não ter acompanhado a actuação/gestão levada a cabo pela devedora (optando, segundo refere, por confiar na devedora e nas informações e documentos pela mesma fornecidos). Vai, inclusive, mais longe, afirmando que o AI optou culposamente por não exercer o controlo e a fiscalização” (sublinhado nosso).
Sustenta a sua posição no constante dos factos provados n.º 32 - o AI “não controlou o pagamento, nem as contas bancárias da insolvente, nem as encomendas e os fornecimentos realizados até 31 de março de 2023” -, n.º 33 – “[p]reviamente a 6.01.2023 o Gerente da insolvente não informou o Administrador da Insolvência dos actos de gestão praticados no que respeita ao contrato em questão“ - e n.º 34 - apenas em 10/04/2023 (já após o despacho de prosseguimento dos autos para liquidação), o AI teve acesso às contas da Insolvente.[18]
Em sede de contra-alegações, o AI pugna pela improcedência do recurso, sustentando-se no vertido no facto n.º 27-, bem como nos factos n.º 5 a 8, 11, 15, 17, 19 a 21, 24, 25, 31 e 35.
Mais acrescenta que “a Autora/Recorrente alega ter tido conhecimento da insolvência da sociedade em abril de 2023, ou seja, em data posterior ao despacho de prosseguimento dos autos para liquidação e ainda assim apenas contactou o administrador de insolvência em julho de 2023, conforme resulta do alegado pela própria na sua petição inicial e dos factos dados como provados e não impugnados por esta. Pelo que, salvo o devido respeito, a própria Autora permitiu a perpetuação da atuação, que sabia ilegítima, por parte da gerência da insolvente.
Apreciando,
Os factos provados de que a recorrente se socorre, por si só, não permitem concluir nos moldes pretendidos pela mesma.
Diferente seria se, por exemplo, se tivesse apurado que o AI estava convicto que a administração levada a cabo pela insolvente não estava a ser correctamente conduzida e se mantivesse inerte, o que não terá sido o caso (já que tal não foi alegado, nem foi demonstrado)[19].
Inexistem nos autos elementos que permitam afirmar que o AI não tenha actuado com a diligência que lhe era exigível e que seria susceptível de evitar o prejuízo sofrido pela autora, ou seja, que não tenha actuado como o faria um administrador criterioso e ordenado[20] (ou que lhe teria sido possível ter agido de modo diverso).
Como se defendeu, e bem, na sentença recorrida, a putativa responsabilidade do AI enquadra-se no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos, nessa medida estando condicionada pela verificação dos inerentes pressupostos e pelas regras vigentes em sede de ónus de prova.
Ora, tal como também se defendeu na sentença, não foram preenchidos todos esses pressupostos, os quais são de preenchimento cumulativo.
Desde logo, não vislumbramos uma conduta culposa do AI – actuação sem a diligência normalmente utilizada ou exigível a um gestor criterioso e ordenado -, sendo que, no caso, a culpa não se presume (incumbindo ao lesado provar a culpa do AI e os demais pressupostos, em conformidade com o constante nos artigos 342.º, n.º 1 e 487.º, n.º 1, ambos do CC). [21]  
Mas, mais relevante, nem sequer se poderá afirmar que exista um nexo causal entre qualquer incumprimento do dever de fiscalização exigido ao AI (mesmo quando lhe teria sido legítimo consultar e examinar os elementos da contabilidade da devedora, como previsto no n.º 7 do artigo 226.º) e o dano sofrido pela autora/aqui recorrente (que o primeiro tenha sido causa adequada do segundo)[22].
No caso, o contrato já havia sido celebrado e sem que o AI dele tenha tido conhecimento prévio, o mesmo sucedendo com o pagamento da 1.ª prestação efectuado pela autora (nada resultando da fundamentação de facto quanto às alegadas encomendas de material ou quanto ao destino da quantia paga). Não se vislumbra, pois, como poderia o AI (no exercício do seu poder-dever de fiscalização) ter evitado o prejuízo de que a autora veio a sofrer, prejuízo esse que se cifra em 30.000€ (por forma a que ao AI pudesse ser assacada qualquer responsabilidade nos moldes e para os efeitos peticionados).
Para além de todos estes actos terem ocorrido sem que o AI tivesse sido previamente informado (sendo que apenas poderá existir fiscalização com relação aos actos dos quais se tenha conhecimento), igualmente não vislumbramos que ao mesmo tivesse sido possível ter conhecimento dos mesmos em tempo útil (a proposta foi apresentada pela insolvente em 19/09/2022, a factura referente à 1.ª prestação foi emitida no dia seguinte e o seu pagamento concretizou-se por transferência bancária processada para a conta da devedora no dia 22 do mesmo mês).
E, como resulta do facto provado n.º 31, “ Todos os contactos anteriores a 3.07.2023, relativos à negociação, contratualização e execução do contrato em causa foram realizados entre o representante da Autora e o gerente da sociedade insolvente, sem intervenção do Administrador de Insolvência e sem que o gerente da sociedade insolvente tivesse informado previamente o Administrador da Insolvente ou solicitado o seu consentimento”.
Veja-se que a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos (a que alude o artigo 129.º), foi apresentada pelo AI em 05/07/2022 (apesar de ter sido depois rectificada em 24/11/2022), da mesma não constando o crédito da aqui autora, a qual apenas intentou a respectiva acção em 19/10/2023 (Ref.ª/Citius 5458991). Acresce que apenas em 03/07/2023, a autora contactou o AI – cfr. facto n.º 27 -, para além de que o segundo estava convicto que a obra teria sido adiada por iniciativa da primeira – cfr. facto n.º 24.
Nada há, pois, a censurar ao decidido pela 1.ª instância.

Em face do exposto, também o recurso intentado pela autora improcederá, mantendo-se o decidido pelo tribunal a quo.

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IV - DECISÃO
Em face de todo o exposto, acordam as Juízas desta Secção do Comércio em julgar:
1. A apelação interposta pela massa insolvente improcedente, por não provada;
2. A apelação interposta pela autora improcedente, por não provada;
3. Mantendo-se a sentença recorrida nos exactos moldes em que foi proferida.

Custas por ambas as recorrentes, com relação aos respectivos recursos.

Lisboa, 10 de Julho de 2025
Renata Linhares de Castro
Paula Cardoso
Susana Santos Silva
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[1] O facto n.º 14 apresentava um manifesto lapso de escrita quanto às datas mencionadas no mesmo (“A Lista de Créditos Reconhecidos foi junta aos autos em 5.07.2023 e sujeita a rectificação por requerimento e lista junta aos autos em 24.11.2023 e a Autora não consta da mesma”), lapso esse detectável pela simples consulta do Apenso C (Reclamação de créditos) – Ref.ªs/Citius 4780803 e 4985805.
[2] Um sistema AVAC (aquecimento, ventilação e ar condicionado) é um sistema de climatização que controla a temperatura, humidade e qualidade do ar de espaços fechados.
[3] Processo n.º 20730/15.1T8SNT-B.L1, da aqui relatora, disponível para consulta em www.dgsi.pt, como os demais que vierem a ser citados sem referência à respectiva fonte.
[4] Diploma ao qual nos estaremos a referir sempre que for citado um artigo sem referência à respectiva fonte.
[5] Dispondo esta norma: “a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.”
[6] Como refere ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, Almedina, 4.ª edição, 2022, págs. 493-495, “O devedor que tem a administração da massa insolvente a seu cargo pode praticar atos de gestão corrente. E pode fazê-lo ainda que dos mesmos resultem obrigações. Porém, já não deve contrair essas obrigações se o administrador da insolvência se opuser. // Para que este o possa fazer, tem que fiscalizar (art. 226.º1). // Mas, se aquela oposição se verificar, o ato é na mesma eficaz. É o que resulta do art. 226º, 2, a). (…) No que diz respeito a atos de administração extraordinária de que resultem obrigações a solução é diferente. Aqueles necessitam de consentimento do administrador da insolvência apesar de a falta desse consentimento não afetar a eficácia do ato (art. 226.º, 2, b)”
[7] Nesse sentido, CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3.ª edição, 2015, pág. 818, e PEDRO PIDWELL, O processo de insolvência e a recuperação da sociedade comercial de responsabilidade limitada, Coimbra Editora, pág. 307, nota 1345.
Cfr, ainda, SOVERAL MARTINS, obra citada, pág. 495, o qual escreve: “O CIRE não esclarece quanto ao que deve entender-se por atos de administração extraordinária. Não custa a aceitar ver aí o que são os chamados atos de frutificação anormal ou de melhoramento do património administrado à custa dos rendimentos do mesmo.
[8] Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 3.ª edição, 2025, pág. 323.
[9] Embora nem sempre assim seja, como o comprova a previsão da al. h) do n.º 1 do artigo 51.º.
[10] O Novo Regime Português da Insolvência - Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, 2008, pág. 30.
[11] Prescreve o n.º 1 do artigo 46.º que “A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas (…)”.
Como referem CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, obra citada, pág. 308, “A identificação desta categoria de dívidas é importante pelo especial regime de pagamento de que beneficiam, na confrontação com a generalidade das dívidas da insolvência que, como elas, concorram aos bens do insolvente. // Com efeito, como se vê do n.º 1 do art.º 46.º, as, como as qualificadas, dívidas da massa são pagas com precipuidade, significando isto que os créditos sobre a insolvência, independentemente da sua categoria, são preteridos no confronto com os créditos sobre a massa. // Esta precedência e a sua concretização prática são garantidas pelo regime consignado no art.º 172.º do Código.
[12] Como tal, sendo a massa insolvente insuficiente para a satisfação de todas as suas dívidas, não se procede a qualquer rateio, sendo tais dívidas pagas pela ordem do respectivo vencimento (“first come, first served”).
[13] Nesse sentido, CATARINA SERRA, Os efeitos patrimoniais da declaração de insolvência após a alteração da Lei n.º 16/2012 ao código da Insolvência, Julgar, 18, Setembro-Dezembro, 2012, pág. 193, invocando a autora a analogia com o artigo 51.º, n.º 1, als. d) e h) – esta posição encontra-se vertida no acórdão da Relação de Guimarães de 01/07/2021 (Proc. n.º 5468/19.9T8VNF-J.G1, relatora Conceição Sampaio), ao qual se aludirá mais à frente.
[14] Lições …, obra citada, pág. 73.
[15] Cfr. ponto 10 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, pelo qual foi o CIRE aprovado.
[16] Obra citada, pág. 343.
[17] Cfr. acórdão da Relação do Porto de 22/05/2019 (Proc. n.º 730/10.9TYVNG-K.P1, relatora Ana Paula Amorim): “A obrigação de indemnizar com fundamento em responsabilidade do administrador da insolvência pressupõe a verificação dos seguintes pressupostos: […] conduta voluntária imputável ao administrador judicial; ilicitude[…]; atuação culposa; e, finalmente, existência de um nexo de causalidade adequada entre o evento produtor e o dano produzido”. // A ilicitude traduz-se na violação de deveres impostos ao administrador, acentuando-se o caráter funcional das suas atribuições. // A violação dos deveres do administrador tanto pode traduzir-se numa conduta positiva como num comportamento omissivo. Neste âmbito cumpre convocar os deveres impostos no Código da Insolvência (art. 55º CIRE) e no Estatuto do Administrador Judicial (art. 12º). // No que respeita à culpa a lei estabelece um critério particular da sua apreciação, ao considerar que “a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado”. A lei não estabelece uma presunção de culpa. Neste âmbito cumpre ter presente que o administrador da insolvência deve orientar a sua atividade no sentido de satisfazer os interesses dos credores] e essa atividade se traduzir em regra na administração e liquidação da massa insolvente. // Como salientam CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA “[…]importará é verificar se o ato em apreço se adequa à satisfação dos interesses em causa segundo o critério médio de um administrador diligente, o que se traduzirá essencialmente em avaliar se, nas circunstâncias concretas do agente, o ato em questão era aquele que, de entre os possíveis, melhor se ajustava a assegurar a necessária tutela dos interesses dos credores.[…][I]sto significa ou comporta a necessidade de apreciar se o ato do administrador que é posto em causa se adequou à otimização das possibilidades de pagamento aos credores, seja pela disponibilização de fundos que proporcionou – ou era razoavelmente expetável que pudesse proporcionar -, seja pelas perdas patrimoniais que evitou à massa”. // O dano traduz-se na diminuição da percentagem do crédito que, se não fora o ato lesivo, o prejudicado provavelmente receberia, ou, pelo menos, no agravamento das condições de recebimento. // O nexo de causalidade estabelece-se entre o ato do administrador praticado com a violação de deveres que lhe incumbem e o prejuízo do credor. // Recai sobre o lesado o ónus da prova dos pressupostos da obrigação de indemnizar, com fundamento em responsabilidade do administrador da insolvência, à luz do art. 59º/1 CIRE, nos termos do art. 342º/1 CC e art. 487º CC.”
[18] Apesar de a recorrente invocar igualmente que a sociedade insolvente teria fechado portas e encerrado a sua actividade em Dezembro de 2022, bem como que o AI “nunca estabeleceu qualquer contato direto com os adjudicantes dos trabalhos em execução” (acrescentando que o próprio assim o confessou, para tanto remetendo para a assentada constante da acta de 25/09/2024), o certo é que tais matérias não constam da fundamentação de facto exarada na sentença e a autora não impugnou tal factualidade.
[19] Cfr. SOVERAL MARTINS, obra citada, pág. 493 – “O devedor que tem a administração da massa insolvente fica sujeito à fiscalização do administrador da insolvência. Se, no decurso dessa atividade de fiscalização, o administrador da insolvência verificar circunstâncias que desaconselhem a manutenção daquela administração pelo devedor, deve comunica-lo imediatamente ao juiz e à comissão de credores ou, não havendo esta, a todos os credores que reclamaram os respetivos créditos (art. 226.º, 1)”.
[20] Cfr. acórdão do STJ de 12/07/2018 (Proc. n.º 1040/12.2TBLSD-I.P1.S1, relator Henrique Araújo): “o dever de diligência não corresponde ao clássico modelo do bonus pater familias, ou seja, ao padrão exigível a um homem médio ou normal que, tendo livre administração do seu património e plena responsabilidade dos seus actos, administra diligente e cuidadosamente as suas coisas. // O dever de diligência do administrador da insolvência é antes o de um individuo sujeito a um estatuto profissional próprio, com um grau de qualificação de um domínio profissional específico, que lhe exige competência, conhecimento e boa preparação.”
[21] Cfr. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 6.ª edição, 1989, págs. 535/536 - “não basta a imputabilidade do agente. Para que o facto lhe possa ser imputado, é necessário que o imputável tenha agido com culpa, que haja nexo psicológico entre o facto e a vontade do lesante. (…) A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente: o lesante, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo. É um juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor e pode revestir duas formas distintas: o dolo (…) e a negligência ou mera culpa (…)”.
[22] Cfr. CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, obra citada, pág. 344 – “esta ligação entre o ato do administrador praticado com violação de deveres que lhe incumbem e o prejuízo do credor é que consubstancia, na espécie, o nexo de causalidade cuja verificação é indispensável”.
Segundo a teoria da causalidade adequada, necessário é que o facto, por si só, sem intervenção de quaisquer outros, tenha produzido o dano (não basta que o facto praticado pelo AI tenha sido, no caso concreto, condição do dano, sendo ainda necessário que, em abstracto, o facto seja uma causa adequada do dano).