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IN DUBIO PRO REO
Sumário
Sumário: I - A valoração da prova feita pelo Tribunal a quo não enferma de nenhum erro de julgamento, muito pelo contrário, e não foram violados quaisquer preceitos legais e/ou constitucionais na apreciação da prova que foi feita. II - A nosso ver, justifica-se, plenamente o estado de dúvida a que o tribunal a quo chegou. O princípio in dubio pro reo, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deve ser resolvido a favor deste. Afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal (cfr. Figueiredo Dias Dtº Processual Penal, pág 213). III - Se o Tribunal a quo não resolveu, na imediação, as dúvidas que lhe restaram do confronto entre a versão do arguido e da ofendida, as provas indicadas pelo MP não impõe, de modo algum, decisão diversa e este Tribunal, ouvidos todos os testemunhos, partilha das mesmas dúvidas do tribunal a quo.
Texto Integral
Acordam em Conferência os Juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório:
Nos autos de Processo n.º1299/22.7PFLRS.L1 foi proferido acórdão no qual foi decidido julgar a acusação pública improcedente por não provada e, em consequência:
Absolver o arguido AA da prática do crime de coação sexual agravada, p. e p. pelos art.os 163.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, al. c), n.os 6, 7 e 8 do Código Penal, pelo qual vinha acusado. Não conformado com tal acórdão, veio o MP, interpor recurso para este Tribunal, juntando para tanto as motivações que constam dos autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, concluindo nos seguintes termos, que se transcrevem:
1 - Nos presentes autos o arguido AA foi submetido a julgamento e foi decidido pelo Tribunal Colectivo: “Pelo exposto, julgando a acusação improcedente, este Coletivo delibera: Absolver o arguido AA da prática do crime de coação sexual agravada, p. e p. pelos art.os 163.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, al. c), n.os 6, 7 e 8 do Código Penal, pelo qual vinha acusado.”.
2 - O Presente recurso funda-se em: Impugnação ampla da matéria de facto (artigo 412º, nº3, 4 e 6, do Código de Processo Penal) e subsunção da matéria de facto ao direito.
3 - Desde logo, não se olvida que o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova não é sindicável em sede de recurso, na medida em que o juiz de julgamento tem, em virtude da oralidade e da imediação, uma perceção própria e insubstituível. No entanto, considera-se que neste âmbito se impõe aferir se tal convicção é contrariada pelas regras de experiência comum ou pela lógica do homem médio, o que se considera que sucedeu no presente caso, impondo-se decisão diversa.
4 - No âmbito do douto acórdão em crise foi salvo melhor opinião, incorretamente dado como não provado que: “(…) a. 6. Na ocasião dada como provada nos pontos 4) e 5), a vítima deslocou-se ao seu quarto, abrindo a porta corrediça vidrada que separava tal assoalhada da aludida varanda, com o propósito de depositar alguns detritos no caixote de lixo instalado na varanda.
b. 7. Então, o arguido, que já entrara na varanda, disse à vítima para vir ao seu encontro, questionando-a se tinha namorado, ao que a vítima, por recear o que o arguido lhe pudesse fazer, mentiu, dizendo que tinha namorado.
c.8. O arguido questionou então a vítima se queria ficar com o mesmo e deixar o namorado, ao que BB respondeu que não.
d.9. Então, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que, atenta a sua morfologia corporal, a vítima tinha menos de catorze anos de idade, o arguido agarrou-a pela cintura e puxou-a para junto de si, mantendo a parte frontal do seu corpo em contacto com a parte frontal do corpo da vítima.
e.10. De seguida, enquanto mantinha a vítima agarrada pela cintura, assim manietada e impossibilitada de lhe oferecer qualquer resistência, o arguido beijou-a nos lábios e deslizou uma das suas mãos sobre as suas nádegas, por cima da roupa que esta envergava, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que assim procedia contra a sua vontade.
f.11. Volvidos alguns instantes, a vítima logrou soltar-se e fugir para o interior de sua casa.
g. 12. Por força de tal conduta do arguido, a vítima irrompeu em pranto, ficando assustada.
h. 13. Ao atuar da forma descrita, o arguido quis e logrou constranger a vítima BB a ficar imobilizada durante alguns momentos, segurando-a e impedindo-a de se afastar, com o propósito concretizado de lhe tocar as nádegas e de a beijar nos lábios, bem sabendo e não podendo ignorar que assim procedia contra a vontade da vítima e punha em causa o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual, o que fez para satisfazer a sua lascívia.
i. 14. Ao atuar da forma descrita, o arguido bem sabia e não podia ignorar que a vítima tinha menos de catorze anos de idade, e que, por força da sua tenra idade, não tinha qualquer capacidade séria de oferecer oposição à atuação do arguido, circunstância de que se prevaleceu para prosseguir as suas ações criminosas.
j. 15. O arguido atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
5 - Das provas que impõem decisão diversa: Ora, tal como é possível ler, na decisão de facto do acórdão recorrido, a página 7: “Importa ainda referir que a irmã, CC, disse que naquela manhã, um senhor das obras, que estava no andaime, perguntou-lhe se ela sabia fazer tranças, pensa que nesse momento a irmã já tinha saído para a escola. Diz que não o viu bem, mas na audiência de julgamento, estando o arguido, e mais ninguém, sentado no banco dos réus, identificou-o perentoriamente, dizendo que foi aquele senhor que está ali sentado, porque já o tinha lá visto mais vezes, quando a prova por declarações, testemunhal (DD) e documental (fls.190) aponta no sentido de que esta era a primeira presença do arguido na obra de “EE”. (…) “Do exposto, resulta, por um lado, que há duas versões diferentes: a versão da menina e a versão do arguido. Este Tribunal não confere maior valor à versão da ofendida, pelas razões acima expostas. Por outro lado, também não encontra nas declarações do arguido, quaisquer discrepâncias ou ambiguidades.”.
6 - Neste caso, no que respeita à testemunha CC, irmã da Ofendida BB que prestou depoimento no dia ...-...-2023, o qual se encontra gravado no trecho 20241209160014_6285056_2871210. Entre 04m41s e 05m20s da referida gravação a testemunha referiu que “Estava na escola, e o prédio estava em obras, estavam a pintar por fora, mas temos uma varanda que é aberta e dava acesso à casa. No dia do ocorrido estava na escola”. Mais esclareceu esta testemunha, entre 05m20s e 05m36s que: “Estava no intervalo e recebeu uma chamada da irmã a dizer que o senhor das obras era um assediador e lhe tinha dado um beijo, mas não percebeu bem o contexto”. Também referiu entre 05m49s e 06m25s: “Que a irmã ligou à tarde, só se lembra de ser à tarde, estava aflita, dava para ver que estava a chorar “. Mais mencionou esta testemunha entre 07m05s e 07m25s que: “no dia do ocorrido, de manhã, houve uma interação do senhor com a sua irmã (referindo-se à ofendida BB), em que ele faz-lhe uma pergunta que não ouviu e depois perguntou à irmã, e esta disse-lhe que ele lhe tinha perguntado se sabia trançar (referindo-se ao cabelo). E também disse entre 07m35s e 07m40s “Que não conhece (referindo-se ao arguido), mas chegou a ver essa pessoa”.
7 - Ora, daqui resulta que a “interacção com o indivíduo “a que se referiu no seu depoimento a testemunha CC, tratando-se do arguido, não ocorreu consigo, mas sim com a irmã BB, a aqui ofendida.
8 - Salvo o devido respeito por posição contrária, parece resultar do depoimento da testemunha CC que o arguido teve uma primeira interação com a irmã, a ofendida BB, ainda pela manhã, desse dia em que ocorreram os factos e que chegou a ver o arguido. E que a irmã lhe ligou quando estava na escola e que a mesma estava aflita e lhe pareceu estar a chorar, enquanto lhe contava o que havia sucedido. E, o arguido confirma a existência de contactos com pessoas presentes na casa, conforme resulta da motivação de facto da decisão, na página 6.
9 - E, relativamente à testemunha DD, funcionário da empresa “...” que prestou depoimento no dia ...-...-2023, o qual se encontra gravado no trecho 20241209165533_6285056_2871210. Entre 04m25s e 04m34s da referida gravação a testemunha, referindo-se ao arguido, disse que: “Não sabe quantos dias esteve na obra, mas teve mais do que um dia “. De acordo com este depoimento, o arguido trabalhou naquela obra um número indeterminado de dias.
10 - No âmbito do douto acórdão em crise foi considerado provado que: “6) Quando a mãe de BB, a D. FF, regressou a casa nesse dia, depois das 14h20m, a BB estava a chorar”.
11 - Salvo o devido respeito por posição contrária, considera-se que não se pode retirar qualquer conclusão do facto de a ofendida BB, em sede de declarações para memória futura ter mencionado o dia ... de ... de 2022, como aquele em que ocorreram os factos, sendo que, de acordo com as declarações prestadas para memória futura e que constam transcritas a fls. 135 a 160 dos autos, a mesma descreve o que aconteceu.
12 - Acresce, que, em face das regras da experiência normais, em nosso entendimento, afigura-se-nos natural que uma menor de 10 anos de idade, ao ver-se confrontada com uma situação como a que descreveu e constante dos autos, contacte em primeiro lugar a sua irmã, em quem confia, melhor conhece e é mais próxima, em detrimento de dois adultos familiares que se encontravam em causa – a tia que veio da ... passar férias e o tio que veio visitar essa tia.
13 - Quanto às concretas circunstâncias em que se dão os factos surgem naturalmente, da conjugação de todos os elementos de prova constantes dos autos, elementos documentais e testemunhais.
14 - Considerando que a ofendida BB não conhecia o arguido, sem ser daquele dia e do local onde decorriam a obras, que foi encontrada pela mãe a chorar nesse mesmo dia, não vislumbramos porque é que o tribunal não dá credibilidade à ofendida, considerando que o arguido, acaba por confirmar ter, no dia dos factos, sido contactado no local por várias pessoas naquela habitação, tendo, inclusivamente, assumido ter sido abordado por dois adultos por motivos relacionados com a menor BB, antes de ter abandonado o local, que, segundo declarou, sucedeu pelas 15h00.
15 - É, certo que o arguido acaba por negar a prática dos factos de que é acusado, porém, em nosso entendimento, tal é uma reação que entendemos ser também natural.
16 - E, considerando que o Tribunal “a quo” ficou com dúvidas quanto à credibilidade do depoimento prestado por BB e discrepâncias entre as suas declarações por um lado e restantes elementos de prova reunidos nos autos por outro, nomeadamente, pela circunstância da menor não ter imediatamente comunicado o sucedido à tal tia da ... e a mesma não ter sido inquirida em sede de inquérito e da circunstância do Agrupamento de Escolas, frequentado pela ofendida BB ter informado que a mesma não registou faltas à escola nos dias ... e ... de Setembro, para dissipar qualquer dúvida deveria o Tribunal, ter determinado a inquirição da tia da ... e, em aditamento à informação prestada nos autos pelo Agrupamento de Escolas frequentado pela BB, e constante de fls. 210, ter solicitado informação adicional, por referência ao referido documento, ao Agrupamento de Escolas sobre se a menor no dia ... de ... de 2022, frequentou as actividades lectivas da parte da tarde, cuja referência é: TUT ab 10 – das 14:30-15:20 e das 15:30 -16:20 e se esta era uma disciplina obrigatória naquele ano para a mesma e quais os conteúdos de tal disciplina.
17 - Na realidade, estão em causa factos que envolvem apenas o seu autor e a vítima, sem a presença de terceiros que os possam vir a relatar.
18 - Todavia, afigura-se-nos que a testemunha CC, irmã da ofendida é a pessoa que acaba por ter conhecimento dos factos pelo que lhe é transmitido pela mesma, imediatamente depois dos mesmos terem ocorrido, e perceciona o seu estado de espírito ao telefone, acabando esta testemunha por ligar à mãe de ambas, a contar o sucedido.
19 - Assim, importa em primeiro lugar ter em conta a qualidade do relato realizado pela vitima, a sua coerência interna, consistência ao longo do seu decurso e espontaneidade na sua formulação, para além da sua compatibilidade com a idade e experiência de vida, o que nos parece resultar dos autos, no que respeita ao que sucedeu, acabando a menor BB por confirmar desde logo, que o arguido estabeleceu contacto consigo, a puxou para si, e lhe deu um beijo na boca e, ainda, lhe passou a mão pelo corpo (rabo).
20 - Pelo exposto, atento o teor das declarações prestadas pela ofendida, analisadas à luz das regras de experiência comum, as quais não são inconsistentes com os restantes elementos de prova, considera-se que se impunha que fosse dado como provado que: “ (…) a. 6. Na ocasião dada como provada nos pontos 4) e 5), a vítima deslocou-se ao seu quarto, abrindo a porta corrediça vidrada que separava tal assoalhada da aludida varanda, com o propósito de depositar alguns detritos no caixote de lixo instalado na varanda. b. 7. Então, o arguido, que já entrara na varanda, disse à vítima para vir ao seu encontro, questionando-a se tinha namorado, ao que a vítima, por recear o que o arguido lhe pudesse fazer, mentiu, dizendo que tinha namorado. c. 8. O arguido questionou então a vítima se queria ficar com o mesmo e deixar o namorado, ao que BB respondeu que não. d. 9. Então, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que, atenta a sua morfologia corporal, a vítima tinha menos de catorze anos de idade, o arguido agarrou-a pela cintura e puxou-a para junto de si, mantendo a parte frontal do seu corpo em contacto com a parte frontal do corpo da vítima. e. 10. De seguida, enquanto mantinha a vítima agarrada pela cintura, assim manietada e impossibilitada de lhe oferecer qualquer resistência, o arguido beijou-a nos lábios e deslizou uma das suas mãos sobre as suas nádegas, por cima da roupa que esta envergava, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que assim procedia contra a sua vontade. f. 11. Volvidos alguns instantes, a vítima logrou soltar-se e fugir para o interior de sua casa. g. 12. Por força de tal conduta do arguido, a vítima irrompeu em pranto, ficando assustada. h. 13. Ao atuar da forma descrita, o arguido quis e logrou constranger a vítima BB a ficar imobilizada durante alguns momentos, segurando-a e impedindo-a de se afastar, com o propósito concretizado de lhe tocar as nádegas e de a beijar nos lábios, bem sabendo e não podendo ignorar que assim procedia contra a vontade da vítima e punha em causa o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual, o que fez para satisfazer a sua lascívia. i. 14. Ao atuar da forma descrita, o arguido bem sabia e não podia ignorar que a vítima tinha menos de catorze anos de idade, e que, por força da sua tenra idade, não tinha qualquer capacidade séria de oferecer oposição à atuação do arguido, circunstância de que se prevaleceu para prosseguir as suas ações criminosas. j. 15. O arguido atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.”.
21 - Ainda que assim não se entendesse, considera-se que o douto Tribunal nunca poderia concluir, sem mais, pela existência de in dúbio pro reo. Em processo penal vigora efectivamente o princípio da presunção de inocência do arguido, com consagração constitucional no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, do qual decorre o princípio in dubio pro reo. Tais princípios, por um lado, isentam o arguido de provar a sua inocência e, por outro lado, impõem que, perante dúvida insanável, razoável e objectivável quanto ao sentido em que aponta a prova realizada, o arguido seja absolvido. Em primeiro lugar, a dúvida deverá ser insanável, o que pressupõe que tenham sido realizadas todas as diligências adequadas ao esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza. Em segundo lugar, deverá ser razoável, o que implica que se trate de uma dúvida séria e racional. Finalmente, a dúvida deverá ser objectivável, ou seja, deverá ser justificável perante terceiros e, consequentemente, não poderá ser arbitrária ou fundada em meras suposições.
22- No caso presente, não se vislumbram motivos para a existência de qualquer dúvida, muito menos insanável, conforme supra se explanou.
23 - Contudo, se dúvidas houvesse, sempre deveria o tribunal tê-las esclarecido, indagando, expressamente junto da tia da ..., o conhecimento que tivesse dos factos, considerando até as declarações proferidas pelo arguido e que constam na fundamentação de facto do acórdão recorrido, onde se refere a página 6, que: “Ao meio dia pediu à Senhora, que terá sido a tia da ofendida, para aquecer a comida do seu almoço, o que a tia fez”, bem como determinar que fosse solicitada informação adicional à Escola da ofendida BB, identificada a fls. 210, no que respeita a apurar se a menor no dia ... de ... de 2022, frequentou as actividades lectivas da parte da tarde, cuja referência é: TUT ab 10 – das 14:30- 15:20 e das 15:30 -16:20, e se esta era uma disciplina obrigatória naquele ano.
24 - Da subsunção Jurídica dos factos provados: - Da análise da factualidade que se considera que deverá ser considerada provada, facilmente se constata que se encontram provados os elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime de coacção sexual agravada, sem que exista qualquer causa de exclusão da ilicitude ou culpa.
25 - Pelo exposto, após serem sanados os vícios supra identificados, deverá o arguido ser condenado pela prática do crime de coacção sexual agravada, p. e p. pelos artigos 163.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, al. c), n.ºs 6,7 e 8 do Código Penal. Respondeu o arguido ao recurso do MP, pugnando pela manutenção da decisão, concluindo nos seguintes termos:
1 – Carece de falta de razão o recorrente, nos fundamentos de facto e de direito aduzidos na sua douta motivação;
2 - Suficientemente fundamentado se encontra o acórdão recorrido, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à de direito, e sendo que cremos ter sido feita salutar aplicação do princípio basilar da livre apreciação da prova, contrariamente ao que vem sustentado e sendo que não violou qualquer das normas jurídicas indicadas na douta motivação.
3 - Posto isto, impõe-se concluir que uma leitura atenta do acórdão recorrido permite constatar que pelo Tribunal a quo foi adotado um encadeamento lógico e coerente, com a indicação das provas que formaram a convicção positiva para absolver o arguido, como o fizeram!
4 - Com efeito, a decisão recorrida fez uma criteriosa apreciação e valoração da matéria de facto e uma judiciosa aplicação do direito, encontrando-se mais do que suficientemente fundamentada e sendo que não enferma de qualquer dos vícios elencados pelo artº 410º do CPP;
5 - Por conseguinte, afigura-se-nos dever ser negado provimento ao recurso interposto e não evidenciando motivos de censura a decisão recorrida, a qual, sublinhe se, não violou qualquer das normas jurídicas indicadas na douta motivação, dever-se-á manter a decisão recorrida! Neste Tribunal o Ilustre Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pugnando pela procedência do recurso interposto pelo MP.
Foi cumprido o disposto no artigo artº 417º nº 2 do CPP, tendo o arguido respondido.
Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se á conferência.
2. Fundamentação:
Cumpre assim apreciar e decidir. É a seguinte a decisão recorrida (fundamentação de facto):
II – Fundamentação
1. De Facto
a) Factos Provados
Discutida a causa, resultou provado que:
1) BB nasceu em ... de ... de 2012. 2) À data de ... de ... de 2022, BB coabitava com sua mãe, FF, com sua irmã CC, nascida em ... de ... de 2007, e com GG, marido de FF, na ..., em .... 3) Em data não apurada, anterior a ... de ... de 2022, a sociedade “...” passou a realizar trabalhos de construção civil no prédio onde a BB e o respetivo agregado familiar habitava. 4) Nesse contexto, no dia ... de ... de 2022, cerca das 13h, o arguido, ao serviço da dita sociedade, encontrava-se a realizar trabalhos de construção civil no dito prédio. 5) Nessas circunstâncias, o arguido encontrava-se num andaime postado paralelamente à varanda do domicílio comum da BB e respetivo agregado familiar. 6) Quando a mãe de BB, a D. FF, regressou a casa nesse dia, depois das 14h20m, a BB estava a chorar. 7) O arguido vive com a companheira, a sogra e duas filhas com 5 e 11 anos de idade. 8) É ... e aufere cerca de € 900,00 por mês. 9) A companheira é ... e tem uma retribuição mensal que ronda os € 800,00; 10) Para além dos custos com alimentação, eletricidade, água, etc., o agregado ainda tem como despesas fixas a renda do apartamento, € 550,00, e a prestação do crédito para aquisição do automóvel, no montante de € 209,00. 11) O arguido tem como habilitações literárias o 12.º ano de escolaridade.
* b) Factos Não Provados
Não se provou que:
a. 6. Na ocasião dada como provada nos pontos 4) e 5), a vítima deslocou-se ao seu quarto, abrindo a porta corrediça vidrada que separava tal assoalhada da aludida varanda, com o propósito de depositar alguns detritos no caixote de lixo instalado na varanda. b. 7. Então, o arguido, que já entrara na varanda, disse à vítima para vir ao seu encontro, questionando-a se tinha namorado, ao que a vítima, por recear o que o arguido lhe pudesse fazer, mentiu, dizendo que tinha namorado c. 8. O arguido questionou então a vítima se queria ficar com o mesmo e deixar o namorado, ao que BB respondeu que não. d. 9. Então, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que, atenta a sua morfologia corporal, a vítima tinha menos de catorze anos de idade, o arguido agarrou-a pela cintura e puxou-a para junto de si, mantendo a parte frontal do seu corpo em contacto com a parte frontal do corpo da vítima. e. 10. De seguida, enquanto mantinha a vítima agarrada pela cintura, assim manietada e impossibilitada de lhe oferecer qualquer resistência, o arguido beijou-a nos lábios e deslizou uma das suas mãos sobre as suas nádegas, por cima da roupa que esta envergava, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que assim procedia contra a sua vontade. f. 11. Volvidos alguns instantes, a vítima logrou soltar-se e fugir para o interior de sua casa. g. 12. Por força de tal conduta do arguido, a vítima irrompeu em pranto, ficando assustada. h. 13. Ao atuar da forma descrita, o arguido quis e logrou constranger a vítima BB a ficar imobilizada durante alguns momentos, segurando-a e impedindo-a de se afastar, com o propósito concretizado de lhe tocar as nádegas e de a beijar nos lábios, bem sabendo e não podendo ignorar que assim procedia contra a vontade da vítima e punha em causa o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual, o que fez para satisfazer a sua lascívia. i. 14. Ao atuar da forma descrita, o arguido bem sabia e não podia ignorar que a vítima tinha menos de catorze anos de idade, e que, por força da sua tenra idade, não tinha qualquer capacidade séria de oferecer oposição à atuação do arguido, circunstância de que se prevaleceu para prosseguir as suas ações criminosas. j. 15. O arguido atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
1. Motivação da deliberação sobre a Matéria de Facto
O Tribunal apreciou de forma crítica e conjugada toda a prova produzida em audiência de julgamento, segundo as regras da experiência e da normalidade e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova. De acordo com a versão apresentada pela ofendida, os factos que relata não terão sido presenciados por ninguém, pelo que começaremos por cotejar o seu depoimento com as declarações do arguido. A ofendida prestou declarações para memória futura em 19-05-2023, ou seja, cerca de sete meses e meio após os alegados factos. Estiveram presentes para além da depoente e da M.ma Juíza de Instrução Criminal, uma técnica do Gabinete de Apoio à Vítima junto deste Tribunal, que acompanhou a menor, bem como o Ilustre Advogado que, à data, estava mandatado como defensor do arguido. Tais declarações estão transcritas na íntegra (fls. 135 a 160), apenas com a correção que consta da ata da audiência de julgamento de 03-02-2025, uma vez que a ofendida nunca disse que tinha ido a ... (cf. pág. 4 da transcrição), como se pode constatar através da audição das gravações do depoimento prestado para memória futura. Por conseguinte, faremos apenas uma súmula. A ofendida começou por dizer, perentoriamente, que os factos haviam ocorrido no dia ... e que sabia bem qual era a data, porque quando aconteceu, foi ver qual era o dia e nunca se esqueceu, porque sabia que ia precisar. Na acusação consta que os factos ocorreram no dia ...-...-2022. Nesse dia, diz a ofendida que teve aulas de manhã, saiu às 12h20 e chegou a casa por volta das 12h30m ou 12h40m. Acontece que de acordo com a informação prestada em 16-12-2024, pelo ... (ao qual pertence a ..., frequentada pela ofendida) – cf. fls. 210 e 211 – no dia ...-...-2022, que correspondeu a uma quinta-feira, saiu às 11h20m e retomou as aulas às 13h30m, tendo a BB frequentado as atividades letivas, uma vez que não teve faltas nesse dia. Por seu turno, no dia ...-...-2022, que foi uma quarta-feira, de acordo com o mesmo horário letivo, saiu às 13h20m e retomou as atividades letivas às 14h30m, tendo a BB frequentado as atividades letivas, uma vez que não teve faltas nesse dia. Para além disso, a mãe da ofendida referiu no depoimento prestado em audiência que nesse ano a BB não tinha aulas à tarde um dia por semana. Perguntada sobre qual seria esse dia, disse «acho que era à terça… ou à quinta.» Consultado o horário da BB no ano letivo de 2022/23 (fls.210v.), efetivamente, a mesma não tinha aulas à tarde uma vez por semana, mas à segunda-feira. É claro que poderia a ofendida ter faltado às aulas, e não lhe ter sido marcada falta, mas a esta distância temporal seria praticamente impossível obter resposta diferente da que foi dada pela escola. Poder-se-ia, também, levantar a questão, de saber se os tempos de tutoria e de apoio ao estudo são atividades letivas, a que a aluna está obrigada a ir, sendo certo que quem define se essas atividades são ou não letivas é a escola e esta classifica-as como atividades letivas, visto que as insere no “Horário Letivo” que remeteu a este Tribunal (cf. fls. 210v.)1 . Uma coisa é certa, fossem quais fossem as diligências de prova empreendidas, restaria sempre o intervalo para a BB ir a casa almoçar e o arguido não nega que esteve no local desde manhã até meio da tarde – o documento remetido pela entidade empregadora por email de 27 de julho de 2024, revela que, no dia ...-...-2022, o arguido saiu às 15:00h (cf. fls.190) – não seria, pois, com base nas dúvidas sobre a hora exata (13:00 ou 13:15 ou 13.20) da interação entre o arguido e a ofendida que este Tribunal consideraria como não provados os factos incriminadores. Retomando o depoimento da menor, quando estava no seu quarto, levantou um pouco o estore para colocar a embalagem do iogurte no caixote do lixo que estava na varanda, quando a pessoa que identificou através de fotocópia a cores da fotografia do passaporte do arguido emitido em 2014 (fls.51 e 156), disse vem, três vezes, ela abriu mais o estore e ele puxou-a para a varanda. De seguida, largou-a perguntou se ela queria ficar com ele, ao que a BB respondeu que não, depois perguntou se ela tinha namorado e recebeu a resposta que sim. Ato contínuo, o arguido abraçou-a, deu-lhe um beijo rápido nos lábios. Acha que ele não fez mais nada. Ela voltou para dentro, baixou os estores, por completo, do quarto e das outras divisões que dão para a varanda. Porém, a perguntas do Ministério Público que, apesar de terem sido por intermédio da M.ma Juíza de Instrução, são ouvidas pela menor, depois de dizer que “face ao teor do auto de denúncia” queria saber se lhe tinha tocado em mais alguma parte do corpo, tendo então a menor, que já tinha dito que achava que não, dito que “sim, no rabo”, “foi um leve, ele tocou levemente”, não agarrou, “passou a mão por cima da roupa”. O teor do auto de denúncia, fls. 3, é, na realidade, um relato em 3.ª mão. A BB contou à mãe; a mãe contou à Sr.ª Agente Principal, que o plasmou em auto. No final, a Sr.ª Agente Principal perguntou à vítima, que “confirmou a versão da sua mãe” (!), dizendo que queria ir viver para casa da avó até a obra acabar. A “versão da mãe”, que a nada assistiu, era a de que o arguido, «…enquanto a prendia, desferiu-lhe um beijo na boca, enquanto lhe apalpava as nádegas por cima da roupa que trajava.» Acresce que a tia da ofendida, que vive na ..., mas tinha vindo cá passar férias, estava em casa, com um primo, segundo a ofendida, ou com um conhecido, segundo a mãe da ofendida, mas não viu nada, nem se apercebeu de nada, segundo elas, tanto assim que nem sequer foi arrolada como testemunha, o que também não deixa de causar alguma perplexidade, caso os factos tivessem ocorrido como constam da acusação. A Polícia Judiciária ouviu testemunhas logo no dia 29-09-2022, mas não terá entendido como relevante inquirir os dois adultos que estavam em casa no momento dos alegados factos, sendo que a tia, certamente, regressaria ao seu país. Temos de considerar que, sendo possível, não é normal que a menor tenha voltado para dentro, assustada e a chorar, fechado por completo todos os estores, e não dissesse nada à tia, imediatamente. A ofendida disse que não chegou a deitar a embalagem do iogurte no caixote do lixo da varanda, pois a mesma ficou no quarto. A irmã da ofendida, a testemunha CC, referiu em audiência de julgamento que a mãe lhes tinha dito para porem para dentro de casa, tudo o que estava na varanda, incluindo o caixote do lixo, sapatos, estendal da roupa, etc. Segundo a testemunha DD, ... da ..., essas são também as instruções que dão aos moradores quando vão fazer obras nas fachadas, como era o caso, especialmente quando há varandas abertas. As fotografias da varanda, que estão a fls. 38 e 39, foram entregues (transferidas do seu telemóvel para um telemóvel da PJ) pela mãe da ofendida na Polícia Judiciária. Dos autos não transparece que esta Polícia, ou outro órgão de polícia criminal, alguma vez se tenha deslocado ao local dos factos. Nas referidas fotografias, podemos observar que foram tiradas quando estavam montados andaimes de obras. Descortina-se que há partes da parede e do “teto” onde foi colocada massa de cimento, pelo que se indicia que foram tiradas no decurso das obras. Vê-se, também, um caixote do lixo e sacos cheios que parecem estar em cima de uma cadeira com estofo branco e pernas de metal. Como a fotografia foi tirada à noite e a irmã da ofendida já tinha dito que a mãe tinha dado ordens para retirar tudo da varanda, fica-nos a dúvida sobre esta não será uma fotografia de alguma forma encenada para condizer com o relato que a mãe da ofendida fez à PSP durante a tarde, para ser entregue à PJ no dia seguinte. O arguido prestou declarações, começando por dizer que aquele foi o seu primeiro e último dia de trabalho naquela obra em ..., apesar de já trabalhar naquela empresa há vários anos. Admite ter interagido, por volta das 9 da manhã, com uma criança, uma jovem e uma senhora, pedindo um carregador para carregar o seu telemóvel. Nesse momento estava no andaime, pois começam sempre a fazer os trabalhos de reparação de cima para baixo e aquele era o último andar do prédio. Ao meio dia pedir à Senhora, que terá sido a tia da ofendida, para aquecer a comida do seu almoço, o que a tia fez. Nega que estivesse alguma coisa na varanda, designadamente, um caixote do lixo, até porque ele tinha de entrar na varanda para reparar certos pontos da parede. À tarde foi confrontado por uma senhora e um senhor, muito exaltado, sobre o que teria feito à menina. Assustado, foi embora com medo, mas antes telefonou para a empresa e disseram-lhe para sair dali. Nega as expressões e atos que constam da acusação, como tendo sido ditas e praticadas por ele em relação à BB. Importa ainda referir que a irmã, CC, disse que naquela manhã, um senhor das obras, que estava no andaime, perguntou-lhe se ela sabia fazer tranças, pensa que nesse momento a irmã já tinha saído para a escola. Diz que não o viu bem, mas na audiência de julgamento, estando o arguido, e mais ninguém, sentado no banco dos réus, identificou-o perentoriamente, dizendo que foi aquele senhor que está ali sentado, porque já o tinha lá visto mais vezes, quando a prova por declarações, testemunhal (DD) e documental (fls.190) aponta no sentido de que esta era a primeira presença do arguido na obra de “EE”. Do exposto, resulta, por um lado, que há duas versões diferentes: a versão da menina e a versão do arguido. Este Tribunal não confere maior valor à versão da ofendida, pelas razões acima expostas. Por outro lado, também não encontra nas declarações do arguido, quaisquer discrepâncias ou ambiguidades. Não vislumbra, outras diligências probatórias que pudessem, com êxito e neste momento, ser realizadas de forma a dissipar as dúvidas que subsistem. Aliás, todas as diligências probatórias que foram requeridas na fase de julgamento foram deferidas. Vejamos, então, quais as diretrizes constitucionais para resolução de dúvidas por parte do Tribunal. Conforme podemos ver lapidarmente no Acórdão do Supremo tribunal de Justiça, de 12-03- 2009, processo 07P1769: «III- O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito. IV- Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. V- Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo. Trata-se de um princípio probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos, ao passo que o princípio da presunção de inocência se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido. O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet. É precisamente o que se passa neste caso, pelo que este coletivo delibera como provados apenas os factos 1) a 6), e como não provados os factos das alíneas a) a f). Não se tendo provado tais factos incriminadores, também não se provou que a vítima ficou a chorar por força da conduta do arguido, nem se provaram os factos internos ou subjetivos que constavam da acusação e estão relacionados com os factos objetivos também não provados. As declarações do arguido sobre as suas condições sociais e económicas, fundamentaram a prova dos factos 7) a 11).
*** A questão colocada à consideração deste Tribunal prende-se, essencialmente, com a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412º, n.º3 do CPP, embora por reporte a essa mesma impugnação, se coloquem questões relativas ao princípio da presunção da inocência e da livre apreciação da prova.
O MP impugnou a matéria de facto, alegando, em síntese, que os factos 6 a 15 dos factos não provados, deveriam ter sido dados como provados.
Para tanto, alude o MP ao depoimento da testemunha BB, a ofendida, da irmã desta, CC e da mãe de ambas, FF.
Relativamente à vítima, o MP refere as declarações para memória futura prestadas pela menor, e quanto à irmã CC, as passagens em que a mesma refere que a irmã, a ofendida, lhe telefonou da parte da tarde dizendo que o arguido era um assediador e que lhe havia dado um beijo, sendo perceptível que estava a chorar. Refere também as passagens em que esta testemunha refere que a ofendida já teria tido uma interacção com o arguido de manhã porque este lhe teria perguntado se ela sabia fazer tranças no cabelo.
Por outro lado, relativamente à mãe da menor, FF, o MP alude às passagens das gravações em que esta menciona que quando chegou a casa a filha estava a chorar.
Em suma, o MP entende que não há motivos de relevo para que o tribunal não tenha atribuído credibilidade ao testemunho da menor, em detrimento das declarações do arguido.
Tenha-se sempre presente que no artigo 412º do CPP se revela que quando alguém põe em causa a matéria de facto deve indicar concretamente os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida, cumpre, desde já, dizer que as provas mencionadas devem impor uma decisão diversa da que foi tomada, não se trata de permitir uma outra decisão, mas sim de ela ser imposta pela existência de provas que se mencionam.
Isto é, as provas de que o arguido, neste caso o MP, se socorre para impugnar a decisão da matéria de facto têm que ser tão inequívocas como inabaláveis no sentido de imporem uma decisão diversa da que foi tomada.
Não se trata de existirem duas interpretações possíveis da prova produzida, tem que haver uma só, a do arguido, ou do MP, que se impõe pela sua evidência, pela sua certeza, pelo seu carácter inequívoco, e que obriga o Tribunal da Relação a revogar a decisão tomada pelo tribunal de primeira instância.
No caso, as provas a que o MP alude foram tidas em consideração pelo tribunal, que as valorou no sentido descrito e que, de forma muito esclarecedora, e escorreita esclareceu e revelou a sua convicção.
A livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade, portanto, uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores (Cavaleiro de Ferreira, ob cit. P 11 e 27).
Neste sentido, o princípio que esse postula, como salienta Teresa Beleza o valor dos meios de prova … não está legalmente pré-estabelecido. Pelo menos tendencialmente, todas as provas valem o mesmo: o tribunal apreciá-las-á segundo a sua livre convicção.
O mesmo é dizer: a liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação dada pelo treino profissional, o saber de experiência feito e honesto estudo misturado ou na expressão feliz de Castanheira Neves, trata-se de uma liberdade para a objectividade. (RMP, ano 19, 40).
Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, da Universidade Católica Editora, salienta que o princípio constitucional de livre apreciação da prova é direito constitucional concretizado e não viola a constituição da república, antes a concretiza (ac. TC n.º1165/96, reiterado pelo ac. N.º 464/97): A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permitem ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão.
A Constituição da República e a Lei estabelecem limites endógenos e exógenos ao exercício do poder de livre apreciação da prova. Estes limites dizem respeito: ao grau de convicção requerido para a decisão, à proibição dos meios de prova, à observância do princípio do in dubio pró reo. Os três primeiros são limites endógenos ao exercício da apreciação da prova no sentido de que condicionam o próprio processo de formação da convicção e da descoberta da verdade material. O último é um limite exógeno, no sentido de que sentido de que condiciona o resultado da apreciação da prova.
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis. Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.
No caso dos autos, o MP entende que não há razões para o tribunal não ter dado crédito à versão da ofendida e alude a passagens muito concretas dos depoimentos da irmã e da mãe da ofendida, que, não obstante, não assistiram aos factos.
A primeira recebeu um telefonema da ofendida a relatar o sucedido e a segunda foi para casa e viu a menor a chorar, tendo ligado à polícia. Como não lograsse que a polícia lá fosse a casa a mãe dirigiu-se à esquadra para proceder à participação.
Os depoimentos destas duas testemunhas, estão limitados pelo facto de nenhuma delas ter presenciado os factos.
Pelo contrário, as duas pessoas que estavam em casa não só não presenciaram nada, pelo menos a menor nunca o disse, como a menor pouco se refere a eles ao longo das suas declarações, o que se estranha, pois uma menina com 11 anos, que se vê aflita, em princípio, recorre de imediato às pessoas que estão próximas, designadamente dentro de sua. Se a aflição e o medo fossem muito grandes teria certamente recorrido à sua tia.
Em qualquer caso, o tribunal, não conseguiu resolver as dúvidas que teve sobre qual o depoimento ao qual atribuir mais credibilidade, o da menor ou do arguido.
E, ouvidas as declarações do arguido, da vítima, das duas testemunhas referidas pelo MP, que são, respectivamente, a irmã e a mãe da ofendida, percebe-se porquê.
Na verdade, as declarações da menor são tudo menos inequívocas, veementes e isentas de dúvidas.
A menor começa por dizer que os factos terão ocorrido a ........2025, quando, na verdade, a participação foi feita no dia ........2025 e segundo a mãe da menor teriam ocorrido nesse dia, mas, mais estranha é a justificação encontrada pela menor para ter decorado o dia em que ocorreram. Segundo a menor, mal aconteceram os factos foi logo ver que dia era porque já sabia que ia precisar… sendo inquestionável que esta é uma resposta que não se mostra compatível com a idade da menor, 11 anos. Só um adulto podia imaginar essa necessidade e talvez nem todos os adultos.
Depois a menor descreve os factos de uma forma inverosímil e pouco concernente com a realidade da vida e a normalidade da mesma, porque sabendo que havia obras no prédio e que estavam a pintar junto ao quarto dela, abre o estore para por uma embalagem de iogurte no lixo, que, segundo ela, estaria na varanda, parecendo-nos muito mais normal que aguardasse que os funcionários fossem embora para depois abrir o estore e deitar fora o lixo. Além disso, a menor afirma que o arguido, ao ver o braço dela, lhe disse vem cá por três vezes, e ela abriu a totalidade do estore, na sequência do que ele lhe perguntou se tinha namorado e ela disse que sim porque estava com medo, e que depois disso o arguido a agarrou e a beijou. Quando perguntado pela Juiz de instrução, como tinha sido o beijo disse que foi rápido e só depois a pergunta de outro interveniente veio a dizer que o arguido lhe apalpou o rabo.
Temos para nós que as declarações da menor são pouco consistentes, até porque estando assustada qualquer criança teria gritado para a tia ouvir e lhe acudir, no entanto, tudo se passa como se a tia não estivesse em casa com uma outra pessoa, e, estranhamente, nada ouviram, nem nada ouviram, não se conseguindo alcançar pela descrição que o apartamento fosse assim tão grande.
A menor descreve o arguido como sendo alto e tendo o cabelo solto, mas a mãe dela no dia que fez queixa descreveu o arguido como sendo de estatura média e como tendo rabo de cavalo.
O depoimento da menor não é também compatível com a da sua irmã, a testemunha CC, no que diz respeito à interacção que terão tido com o arguido nessa manhã, cada uma diz que foi a outra que falou com o arguido.
Por fim, resta também por esclarecer a discrepância entre o horário escolar da menor, que a colocava naqueles dias, de tarde, na escola, havendo informação que não teve faltas.
O tribunal, perante as incongruências que descreveu, e a que ainda acrescem aquelas que agora se mencionaram, permaneceu num estado de dúvida, que resolveu com o recurso ao princípio do in dubio pro reo.
O arguido negou a prática dos factos, sem grandes incongruências no seu discurso.
As passagens dos depoimentos a que o MP alude e que, no fundo, se reportam ao estado em que a mãe encontrou a filha quando chegou a casa, a chorar, e também ao estado em que a irmã a surpreendeu ao telefone, também a chorar, não impõe uma decisão diversa daquela que o tribunal apurou.
Aliás, a testemunha CC afirma que a ofendida lhe telefonou a dizer que o arguido era um assediador, que, convenhamos é um termo muito pouco normal para uma criança de 11 anos e supõe um juízo de valor nada usual numa idade destas.
Em suma, parece-nos que a valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, não enferma de nenhum erro de julgamento, muito pelo contrário, e não foram violados quaisquer preceitos legais e/ou constitucionais na apreciação da prova que foi feita.
A nosso ver, justifica-se, plenamente o estado de dúvida a que o tribunal a quo chegou.
O princípio in dubio pro reo, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deve ser resolvido a favor deste. Afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal (cfr. Figueiredo Dias Dtº Processual Penal, pág 213). Se o Tribunal a quo não resolveu, na imediação, as dúvidas que lhe restaram do confronto entre a versão do arguido e da ofendida, as provas indicadas pelo MP não impõe, de modo algum, decisão diversa e este Tribunal, ouvidos todos os testemunhos, partilha das mesmas dúvidas do tribunal a quo.
Concluindo, não sendo procedente a impugnação da matéria de facto, entendemos terem os Mmos Juízes a quo feito correcta interpretação dos factos e aplicação do direito e consequentemente, julgamos o recurso improcedente, confirmando na íntegra a decisão recorrida.
3. Decisão:
Assim, e pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 10 de Julho de 2025
Cristina Isabel Henriques
Maria da Graça dos Santos Silva
Alfredo Costa