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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CRIME SEXUAL
IN DUBIO PRO REO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
ILEGITIMIDADE
MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário
Sumário: I - Reitera-se que o recurso em matéria de facto, nos termos dos artigos 412.º, n.ºs 3 e 4, e 431.º do Código de Processo Penal, exige a indicação precisa dos concretos pontos de facto impugnados e dos meios de prova que imponham decisão diversa, não se satisfazendo com alegações genéricas ou remissões vagas. II - Enuncia-se que a credibilidade das declarações da vítima, conjugadas com outros elementos probatórios e avaliadas segundo as regras da experiência comum e da livre convicção do julgador (artigo 127.º do CPP), pode fundar a convicção judicial quanto à verificação dos factos, mesmo em matéria de crimes sexuais. III - Confirma-se que o princípio in dubio pro reo só se aplica quando subsistirem dúvidas sérias e insanáveis quanto à factualidade essencial, não servindo para contrariar convicções formadas com base em prova apreciada de forma crítica e fundamentada. IV - Afasta-se a nulidade do acórdão prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, quando a motivação decisória contém enunciação clara dos factos provados e não provados, bem como uma exposição lógica e suficientemente detalhada dos fundamentos de facto e de direito. V - Rejeita-se a alegação de ilegitimidade do Ministério Público para deduzir acusação em crimes públicos, como o de violação agravada, por força do disposto nos artigos 178.º, n.º 2, do Código Penal e 48.º do Código de Processo Penal.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO
1.1. No processo n° 1111/23.0PAALM o arguido/recorrente AA foi julgado e condenado, por acórdão proferido em 27 de Fevereiro de 2025, pelo Juízo Central Criminal de Almada, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juiz 3, nos seguintes termos: (transcrição)
“(…) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alíneas a) e b) e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão (ofendida BB). b) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de três crime de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164º, nº 2, alínea a) e 177º, nº 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão por cada um dos ilícitos. c) Em cúmulo jurídico condenar o arguido AA na pena única de 8 (oito) anos de prisão. d) Condenar o arguido AA, nos termos do artigo 152º, n.º 4 e 5, do Código Penal, na proibição de contactar por qualquer meio com a ofendida BB pelo período de 4 (quatro) anos, bem como de residir com esta no mesmo período, em caso de licenças precárias ou saída antecipada em liberdade condicional, fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, caso a ofendida dê autorização. e) Condenar o arguido AA, nos termos do artigo 152º, n.º 4, do Código Penal, na proibição de uso e porte de armas pelo período de 5 (cinco) anos. f) Condenar o arguido AA no pagamento à ofendida BB da quantia de €5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos morais, ao abrigo dos artigos 82ºA do Código de Processo Penal e 16º, nº 2, da Lei nº 130/2015 de 04/09. g) Condenar o arguido AA em taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC, e nas custas do processo.
(…)
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1.2. O arguido não se conformou com o acórdão prolatado e interpôs recurso.
Da motivação do respectivo recurso extraiu as seguintes conclusões: (transcrição) (…) A. O Recorrente, considera incorrectamente julgados os pontos 19 a 31 e 60 a 62 da matéria de facto dada como provada, os quais devem ser integralmente julgados não provados. B. Impõe que os pontos 19 a 31 da matéria de facto sejam julgados não provados as declarações do Recorrente, documentadas na acta da sessão de julgamento do dia 4 de Fevereiro de 2025, depoimento que se encontra gravado no sistema público de conservação da prova oral, entre os minutos 00:16:59 e 00:18:27 e entre os minutos 00:18:55 a 00:19:10, cuja passagens que concretamente fundamentam o desiderato de modificação da matéria de facto se mostram devidamente transcritas no corpo da motivação, em conjugação com a total ausência de prova– testemunhal, pericial ou outra - quanto ao cometimento dos três crimes de violação agravada pelos quais foi condenado. C. O Recorrente, considera, também, incorrectamente julgados os pontos 60, 61 e 62 da matéria de facto provada, os quais consubstanciam a factualidade atinente ao preenchimento do elemento subjectivo do tipo legal cuja prática lhe é assacada, convicção que o Tribunal extraiu dos factos objectivos que considerou provados – e que acima resultam impugnados – com base na teoria das presunções e que, precisamente por força da impugnação a que os factos objectivos foram sujeitos, fica prejudicada, pedindo-se, por razões decorrentes da lógica, seja tal matéria julgada não provada. D. Vai arguida a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea b), do Código de Processo Penal, por violação do disposto no artigo 178.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, 48.º e 49.º do Código de Processo Penal, com os efeitos previstos no artigo 122.º do Código de Processo Penal, que implica que, por falta de legitimidade para a promoção do procedimento criminal, a acusação deduzida pelo Ministério Público no que concerne aos três crimes de violação agravada que imputa ao Recorrente está eivada de nulidade, vício que é transversal a todas as fases do processo, ferindo, também, de nulidade o Acórdão de que, com tal fundamento, se recorre, na parte em que condenou o Recorrente pela práticas dos referidos ilícitos, consequentemente se impondo, na declaração da sua procedência, a absolvição do Recorrente, quanto aos três crimes de violação agravada, o que se requer. E. O Acórdão recorrido é nulo, nos termos do artigo 379.º n.º 1 al. a) do CPP, a implicar a omissão de fundamentação de facto e a errada fixação dos factos, referindo o nº 5 do artigo 97º do Código de Processo Penal que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão, referindo ainda o nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, em sede de requisitos da sentença, que da fundamentação, de que deve constar a enumeração dos factos provados e não provados, deve constar também uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, sob pena de nulidade do decidido, ex vi da alínea a) do nº 1 do artigo 379º do aludido diploma, padecendo a decisão recorrida do vício de falta de fundamentação relativamente à credibilidade das declarações da testemunha BB e ao demérito da credibilidade das declarações do Recorrente, vício que imediatamente sai demonstrado através da leitura da exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão, por incorrer em viés de confirmação da narrativa emergente da acusação pública, por acriticamente assentar nas declarações para memória futura que a Ofendida prestou, pelo que, merecendo o invocado vício o acolhimento deste Venerando Tribunal Superior, e com tal fundamento, se requer seja declarada a nulidade do Acórdão recorrido, nos termos conjugados dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, ambos do CPP. F. O Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto na medida em que a mesma enferma de erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal, violando também o disposto nos artigos 32.º, n.º 1, 2 e 5 e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 379.º, n.º 1 e 410.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. G. O princípio de que a dúvida insanável deve ser resolvida a favor e não contra o arguido pertence ao catálogo de direitos fundamentais que a Constituição da República Portuguesa defere ao cidadão-arguido (artigo 32.º, n.º 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa). H. O Recorrente foi, assim, condenado com base num conjunto de imputações genéricas, exclusivamente sustentadas na tese de que o que a Ofendida referiu em sede de declarações para memória futura constitui e consubstancia uma verdade absoluta, tese que beneficiou, tanto na fase de inquérito, como na fase de julgamento, de uma presunção de verdade, limitando-se o Tribunal a quo a confirmar, validar e dar acrítico respaldo à narrativa da Ofendida. I. Trata-se de um erro insustentável na apreciação da prova que conduziu a que o Tribunal a quo desse como provado que o Recorrente praticou cópula anal, por três vezes, com a Ofendida, contra a vontade desta, apenas porque esta o refere e porque nos períodos em que tais factos alegadamente ocorreram estes coabitavam. J. A livre convicção do Tribunal deve referir-se a provas concretas, não a estados de alma imotivados ou imotiváveis – como vem de ser o caso dos autos, por assentar num imotivado juízo de credibilidade das declarações para memória futura em que assentou a formação da convicção relativa ao julgamento da matéria de facto provada. K. Emerge dos factos 20) e 23), dados como provados, que “(...) o arguido agarrou a ofendida, de forma violenta, e virou-a contra a parede, ao mesmo tempo que a imobilizou contra a parede, baixou-lhe as calças e as cuecas que trajava, após o que introduziu o seu pénis erecto no ânus da ofendida, contra a sua vontade, a qual lhe dizia, de forma repetida e em alta voz, para parar porque não queria e porque lhe estava a doer.” e que “Tal relação de coito anal completa durou cerca de dez a quinze minutos.”. L. Emerge, também, dos factos 26) e 27), dados como provados, que “Em acto contínuo, o arguido agarrou a ofendida, virou-a, de forma violenta, de costas para o mesmo, pegou numa das pernas da ofendida que colocou em cima de assento de uma cadeira que ali se encontrava, após o que, mais uma vez, lhe baixou as calças e as cuecas que vestia, e contra a sua vontade, introduziu o seu pénis erécto no ânus daquela, enquanto aquela lhe dizia para ele parar, que a estava a magoar, só parando após ejacular.” e que “Tal relação de coito anal durou cerca de dez a quinze minutos.”. M. Emerge, ainda, do facto 31), dado como provado, que “De seguida, após o arguido ter recebido uma chamada da sua irmã a quem a ofendida tinha telefonado, e que logrou ouvi-lo a proferir as expressões referidas em 30), aquele, exaltado, agarrou a ofendida, levou-a para a casa de banho, onde a virou de costas para este, empurrou-a contra o lavatório, e mais uma vez baixou as calças e as cuecas que a ofendida trajava e introduziu o seu pénis erecto dentro do ânus da ofendida, onde ejaculou, enquanto lhe dizia “toma lá sua puta que é isto que estás a precisar” e a ofendida lhe pedia, de forma incessante, para não o fazer e para parar.”. N. Escapa à natureza das coisas e à normalidade do acontecer que, em meio a uma discussão conjugal em que Ofendida e Recorrente experienciariam elevados níveis de adrenalina, com todas as dificuldades associadas a um acto sexual não consentido – a Ofendida debater-se, tentando evitar a penetração; a inexistência de lubrificação – pudessem as coisas passar-se da forma como o Tribunal a quo apurou terem ocorrido, sendo altamente improvável – senão mesmo impossível – e, portanto, contrário às regras da experiência comum, que em tais contextos de violação em curso, a relação sexual, que só parava após a ejaculação, durasse cerca de dez a quinze minutos, o que caracteriza um exagero por parte da Ofendida e uma falsidade por esta declarada que, não obstante possível de divisar, não foi detectada pelo Tribunal a quo que, uma vez mais, aderiu de forma acrítica à narrativa por ela construída. O. Tribunal a quo ignora que a narração segundo a qual “o arguido agarrou a ofendida, virou-a, de forma violenta, de costas para o mesmo, pegou numa das pernas da ofendida que colocou em cima de assento de uma cadeira que ali se encontrava, após o que, mais uma vez, lhe baixou as calças e as cuecas que vestia, e contra a sua vontade, introduziu o seu pénis erécto no ânus daquela” descreve uma dinâmica de ocorrência impossível, quando é certo que dos factos provados não emerge que a Ofendida ficasse atingida por fenómeno de paralisação, apontando para um relato inverosímil, a reforçar, apenas, que tais factos são uma efabulação da mente da Ofendida. P. A fundamentação do Acórdão recorrido peca por defeito, ao não apreciar factos que, se fossem apreciados, conduziriam à conclusão de que os indícios dos pontos 19), 20), 21), 22), 23), 24), 25), 26), 27), 28), 29), 30) e 31) da matéria de facto provada não resistem ao teste dos contraindícios acima referidos, condensados nos pontos 53, 54, 55, 56, 57, 58, 69, 70, 71 e 72 da presente motivação recursória, dos quais resulta que não há prova suficiente de que o Recorrente haja tido cópula anal não consentida com a Ofendida, por três vezes. Q. O Tribunal a quo devia ter constatado a falta de prova – um non liquet – e valorar essa circunstância a favor do Recorrente, enfermando a decisão recorrida de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2 , alínea c) do Código de Processo Penal, tendo, ademais, violado o disposto no artigo 32.º, n.º 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sendo por isso nula, nos termos disposto nos artigos 379.º, n.º 1 e 410.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. (…)
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1.3. O MP respondeu ao recurso.
Em síntese, argumenta:
i. O recorrente limita-se a contrapor a sua versão pessoal aos factos provados;
ii. Não cumpre as exigências legais do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, ao não indicar de forma concreta os pontos de facto incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa;
iii. Invoca apenas as suas próprias declarações, sem apresentar elementos objectivos que sustentem a sua tese.
iv. O tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto de forma detalhada e em conformidade com os princípios da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP);
v. A imediação e oralidade conferem ao tribunal de 1.ª instância uma posição privilegiada na apreciação da prova pessoal;
vi. A credibilidade da ofendida e das testemunhas foi correctamente valorada à luz das regras da experiência e da lógica.
vii. Não se verifica qualquer contradição evidente ou conclusão manifestamente absurda no acórdão;
viii. O tribunal motivou adequadamente a decisão com base na prova pessoal e documental.
ix. O tribunal não se confrontou com dúvidas insuperáveis quanto à matéria de facto;
x. A convicção do tribunal formou-se de modo seguro, com base em prova suficiente e credível.
xi. O acórdão recorrido está devidamente fundamentado, conforme exigido pelos artigos 374.º e 379.º do CPP;
xii. Não se verifica qualquer omissão ou erro que determine nulidade da decisão.
xiii. O Ministério Público tem legitimidade plena para promover a acção penal nos crimes de violação agravada, que são de natureza pública;
xiv. Não se verifica qualquer nulidade insanável ao abrigo do artigo 119.º do CPP;
xv. A acusação foi deduzida nos termos legais, sem dependência da apresentação de queixa pela ofendida.
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1.4. Neste Tribunal, a Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer sustentando-se na resposta do MP da 1ª Instância.
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1.5. Cumprido o artº 417°, n° 2, do CPP o arguido/recorrente respondeu ao parecer e, no essencial, reitera os fundamentos já invocados em sede das conclusões recursórias.
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1.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II – QUESTÃO PRÉVIA
O n.º 5 do artigo 411.º do Código de Processo Penal dispõe:
“No requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos.”
Esta norma apresenta três exigências formais cumulativas, cuja inobservância determina a inadmissibilidade ou o indeferimento do pedido:
i. O requerimento de audiência deve constar do próprio requerimento de interposição de recurso;
ii. Deve conter uma especificação clara dos pontos da motivação do recurso que se pretendem ver debatidos;
iii. Esta especificação deve ser concreta e objectiva, não podendo assumir carácter genérico, vago ou remissivo.
Trata-se, portanto, de um poder processual do recorrente, mas condicionado ao cumprimento rigoroso dos requisitos legais, que visa assegurar a celeridade, a racionalidade e a utilidade da audiência em sede de recurso.
O arguido, no caso concreto:
i. Requereu a realização de audiência “para debater cada um dos pontos da motivação do recurso”;
ii. Não concretizou, de forma específica e autónoma, quais os pontos da motivação que entende deverem ser objecto de discussão em sede de audiência;
iii. Apresentou uma fórmula genérica, vaga e remissiva, que viola manifestamente a exigência legal de especificação;
iv. Tentou, assim, transformar o instituto jurídico da audiência num expediente genérico para reabrir o debate de toda a motivação, o que o legislador expressamente quis evitar.
Ora, a omissão de especificação concreta implica o indeferimento do pedido de audiência, sem necessidade de despacho de aperfeiçoamento.
Por outro lado, não compete ao tribunal delimitar o objecto da audiência em substituição da parte recorrente.
A audiência destina-se ao debate pontual e restrito de aspectos claramente identificados, e não à reiteração de toda a discussão da causa.
Face ao exposto:
i. O pedido de audiência formulado pelo arguido não cumpre os requisitos do artigo 411.º, n.º 5 do CPP;
ii. Falha a exigência de especificação concreta dos pontos da motivação;
iii. Revela um carácter genérico e abusivo, susceptível de inviabilizar o normal curso do processo.
Pelo exposto, indefere-se o requerimento apresentado pelo arguido ao abrigo do artigo 411.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, por manifesta falta de concretização dos pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos, considerando-se o pedido genérico, vago e contrário à exigência legal de especificação objectiva, pelo que se mantém a tramitação regular do processo para apreciação do mérito do recurso.
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III - OBJETO DO RECURSO
3.1. De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, já que são nelas que sintetizam as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. In casu, atentas as conclusões, o recorrente invoca as seguintes matérias:
1. Nulidade insanável por alegada ilegitimidade do Ministério Público para deduzir acusação quanto aos crimes de violação;
2. Nulidade do acórdão por omissão de fundamentação de facto;
3. Erro notório na apreciação da prova;
4. Erro de julgamento;
5. Violação dos princípios da presunção de inocência e do "in dubio pro reo".
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III – DO ACÓRDÃO RECORRIDO
3.1. Os factos provado/não provados e motivação da decisão de facto têm o seguinte teor: (transcrição) (…) 2.1.1 – Factos Provados: - Da acusação pública: 1 – A ofendida BB e o arguido conheceram-se em ... de 2021, através das redes sociais, tendo passado a viver em união de mesa, cama e habitação em ... de 2021. 2 - BB e o arguido casaram, um com o outro, no dia ... de ... de 2022. 3 - A relação entre o arguido e BB terminou em ... de 2023, data em que a ofendida, por medo do arguido, fugiu de casa, sem conhecimento do mesmo. 4 – O casal fixou, primeiramente, residência na casa onde residia a ofendida, sita na ..., passando a viver em casa arrendada por ambos em ... de 2022, sita no no ..., depois numa outra casa na ... e, finalmente, viverem de ...de 2022 até ...de 2023, numa casa na ..., no .... 5 – O casal não tem filhos comuns, sendo que a ofendida tem quatro filhos menores de relações anteriores, tendo a guarda partilhada dos mesmos. 6 - Entre ... de 2021 a ... de 2023, a relação foi pautada por, pelo menos, três separações, sendo a primeira em ... de 2022, outra em ... de 2022 e a definitiva em finais de ... de 2023. 7 - Tais separações duravam cerca de um mês, após o que reatavam, com excepção da última. 8 - Sempre que se separavam, o arguido dizia à ofendida, em tom sério, “se me deixas, eu mato-te os filhos”, “mato-te”, “vou transformar a tua vida num inferno, vou buscar uma arma e dou um tiro ao CC (pai do seu filho mais novo)”, afirmando que tinha armas na casa da mãe e que lhe dava um tiro, causando-lhe medo e levando-a a reatar a relação. 9 - Em datas não concretamente apuradas, mas durante a relação, o arguido filmou a ofendida a manter relações sexuais com este, e quando discutiam, aquele dizia-lhe que, caso esta o deixasse, publicava tais vídeos nas redes sociais, o que também a deixava com medo. 10 – Logo a partir de ... de 2021 o arguido e a BB começaram a ter discussões um com o outro por situações de ciúmes de ambos, o que ocorria cerca de uma vez por semana, no decurso das quais o arguido apelidava a ofendida de “puta”, “vaca”, “cabra” e dava murros nas paredes. 11 – O arguido ameaçava a ofendida de que iria fazer queixa desta à CPCJ e que ela iria ficar sem os seus filhos. 12 – O arguido exigia à ofendida que lhe entregasse o telemóvel para ver as mensagens e chamadas que efectuava e recebia, bem como as redes sociais destas, tendo a respectiva palavra passe. 13 - O arguido acusava a ofendida de manter relações sexuais com os colegas de trabalho. 14 - O arguido não gostava que a ofendida trabalhasse, acusando-a de ir trabalhar apenas para manter relações sexuais com colegas. 15 - Quando a ofendida se encontrava no seu local de trabalho, no ..., em …, e durante o seu horário de trabalho, o arguido telefonava-lhe de forma insistente até a mesma atender as suas chamadas, bem como lhe fazia videochamadas de forma a poder verificar onde esta se encontrava. 16 – Por vezes o arguido deslocava-se até ao local de trabalho da ofendida, no final do seu horário de trabalho, para esperar por aquela de forma a controlar os seus horários de saída. 17 - A partir de ... de 2022, o arguido passou a exigir que a ofendida transferisse todos os meses o dinheiro que recebia a título de vencimento para uma conta pessoal daquele, entregando à ofendida o cartão multibanco da referida conta, bem como, diariamente, a quantia de €5,00 (cinco euros) para os seus gastos pessoais e tabaco. 18 – Contudo, o arguido controlava os gastos da ofendida da referida conta, discutindo sempre que os achava injustificados, acabando por aquela deixar de usar o cartão em causa, por receio do arguido. 19 - Em data não concretamente apurada, mas que situa entre finais de ... e princípio de ... de 2022, mas antes do casamento, na sequência de uma discussão entre o casal, no quarto da residência do ..., o arguido mandou a ofendida encostar-se contra a parede de costas viradas para aquele, o que a ofendida recusou. 20 - Perante tal recusa, o arguido agarrou a ofendida, de forma violenta, e virou-a contra a parede, ao mesmo tempo que a imobilizou contra a parede, baixou-lhe as calças e as cuecas que trajava, após o que introduziu o seu pénis erecto no ânus da ofendida, contra a sua vontade, a qual lhe dizia, de forma repetida e em alta voz, para parar porque não queria e porque lhe estava a doer. 21 - Perante os pedidos da ofendida para que parasse com tal coito anal, o arguido agarrava-a com mais força e desferia-lhe bofetadas na face, só parando após ejacular dentro do ânus da ofendida. 22 – Após, perante o choro da ofendida e manifestação de dor por parte desta, o arguido disse-lhe para ir tomar banho que já passaria. 23 - Tal relação de coito anal completa durou cerca de dez a quinze minutos. 24 - Em data não concretamente apurada, mas que situa entre ... e ... de 2022, já depois de terem contraído casamento, na casa do ..., após ter sido confrontado pela ofendida com a existência de conversas e encontros com outras mulheres que aquele conhecia na internet, o arguido ficou exaltado e iniciou uma discussão no decurso da qual lhe disse que elas lhe davam tudo o que ela não lhe dava. 25 – O arguido empurrou a ofendida na direcção do quarto, apelidou-a de “puta” e “vaca” e no corredor disse-lhe “tens um cú tão bom, anda cá”. 26 - Em acto contínuo, o arguido agarrou a ofendida, virou-a, de forma violenta, de costas para o mesmo, pegou numa das pernas da ofendida que colocou em cima de assento de uma cadeira que ali se encontrava, após o que, mais uma vez, lhe baixou as calças e as cuecas que vestia, e contra a sua vontade, introduziu o seu pénis erecto no ânus daquela, enquanto aquela lhe dizia para ele parar, que a estava a magoar, só parando após ejacular. 27 - Tal relação de coito anal durou cerca de dez a quinze minutos. 28 - Em data não concretamente apurada, mas que situa entre ... e ... de 2022, na sequência de uma discussão devido aos horários de chegada a casa do trabalho por parte da ofendida, o arguido desferiu-lhe uma bofetada na face, do lado esquerdo, após o que a agarrou pelo pescoço, com força, ao mesmo tempo que lhe dizia “cala-te sua puta”, “agora fazes o que eu quero” e “cabra está calada”. 29 - Em acto contínuo, o arguido empurrou a ofendida, com força, que fez com que aquela caísse para cima da cama, após o que se colocou em cima desta, enquanto a ofendida lhe pedia para parar, acabando por o conseguir afastar, dando-lhe um empurrão nos ombros. 30 - Simultaneamente, o arguido dizia à ofendida “vaca”, “puta”, “és uma puta como a tua mãe” e “vou atrás de ti”. 31 - De seguida, após o arguido ter recebido uma chamada da sua irmã a quem a ofendida tinha telefonado, e que logrou ouvi-lo a proferir as expressões referidas em 30), aquele, exaltado, agarrou a ofendida, levou-a para a casa de banho, onde a virou de costas para este, empurrou-a contra o lavatório, e mais uma vez baixou as calças e as cuecas que a ofendida trajava e introduziu o seu pénis erecto dentro do ânus da ofendida, onde ejaculou, enquanto lhe dizia “toma lá sua puta que é isto que estás a precisar” e a ofendida lhe pedia, de forma incessante, para não o fazer e para parar. 32 - Após a ofendida lhe ter dito que queria pôr fim à relação, o arguido disse-lhe que só ia embora se lhe pagasse a quantia de, pelo menos, €3.000,00 (três mil euros), como indemnização dos gastos que tinha tido com a mesma. 33 – Em ...de 2022 a ofendida engravidou do arguido, tendo em ... de 2022 interrompido voluntariamente de gravidez, por não querer um filho com o arguido. 34 - Em datas não concretamente apuradas, entre ... de 2022 e ... de 2023, quando se encontrava a frequentar um curso profissional no ... e durante tal período, o arguido obrigou a ofendida a enviar-lhe, diariamente, a sua localização GPS, através do telemóvel. 35 - Sempre que a ofendida não lhe mandava, o arguido aparecia no local do curso, perguntando aos colegas se a ofendida se encontrava no local e se estava tudo bem com a mesma. 36 - A partir de ... de 2022, o arguido exigiu que a ofendida deixasse de trabalhar, pois o arguido suportava todas as despesas, acusando-a de só ir para o trabalho para estar com outros homens. 37 - Em data não concretamente apurada, mas que situa no .../... de 2022, quando se encontravam no ... e após a ofendida ter confrontado o arguido com o facto de este estar a enviar mensagens para outra mulher, arguido e ofendida acabaram por sair do dito centro comercial, de veículo automóvel. 38 - Já durante o trajecto, após ter imobilizado o seu veículo no ... e a ofendida lhe ter dito, mais uma vez, que queria pôr fim à relação, o arguido agarrou no cabelo daquela, puxando-o, com força, ao mesmo tempo que lhe desferia bofetadas que a atingiram na face, em consequência das quais esta ficou a sangrar do nariz. 39 – Após, o arguido conduziu até à casa da mulher com quem estava a trocar mensagens com o intuito de mostrar à ofendida que não existia qualquer ligação íntima entre este e a mulher em causa, tendo esta última cedido à ofendida um pacote de ervilhas congeladas para colocar no nariz. 40 - Em data não concretamente apurada, mas durante a relação, no ano de ..., quando se encontravam a residir na ..., após ter ouvido o telemóvel da ofendida a tocar, o arguido exigiu que esta lho entregasse, após o que aquela lhe pediu que ele também lhe mostrasse o seu, ao que o arguido a apelidou de “puta”, “vaca” e “não sou um homemigual aos que estás habituada”. 41 - Em acto contínuo, e após a ofendida lhe ter pedido para abandonar a casa por não suportar mais tais actos, o arguido empurrou-a, com força, agarrou-a pelos cabelos, projectou-a para o chão, apertando-lhe o pescoço, com força, o que a fez cair, acabando por embater na calha da porta da varanda, o que a fez perder os sentidos, acordando depois com o arguido a bater-lhe devagarinho na face, dizendo-lhe “então amor era preciso atirares-te para o chão?” 42 - Em data não concretamente apurada, mas durante a relação, no ano de ..., durante uma refeição, na sequência de uma discussão devido ao facto do filho mais novo da ofendida ter dito que o arguido era feio e que a mãe era linda, aquele acabou por se levantar de mesa, indo para o quarto, tendo a ofendida ido atrás dele. 43 - No decurso da discussão, o arguido disse à ofendida que o devia ter defendido, que deveria ter repreendido a criança, e proferiu a seguinte expressão “queres que vá lá, mijo-lhe para cima e dou-lhe com a picha na cabeça?”. 44 - Ao ser impedido pela ofendida de sair do quarto para ir para a cozinha, o arguido empurrou a ofendida para cima da cama, e esta, temendo que este a forçasse a ter relações sexuais anais, mordeu-o no ombro esquerdo, tendo-lhe este também mordido, após o que saiu do local. 45 - Em data não concretamente apurada, mas que situa no mês de ... ou ... de 2022, estando há data o casal separado, pelas 03:00 horas da madrugada, com uma cópia das chaves da residência onde estava a viver a ofendida, sita na ..., o arguido entrou no interior daquela residência e deslocou-se ao quarto, com uma lanterna, arrancou o lençol da cama, e constatou a presença da ofendida com um homem e uma mulher, totalmente despidos, tendo, nessa altura, acendido a luz e começado a filmar com o seu telemóvel a ofendida e o casal, nús, o que fazia contra a vontade destes. 46 - Em acto contínuo, o arguido agarrou a ofendida pelos cabelos e embateu com a lateral da cabeça desta no chão, por diversas vezes, o que a deixou com fortes dores. 47 - Após, o arguido exigiu-lhe o pagamento da quantia de, pelo menos, €10.000,00 (dez mil euros) para depois passar a, pelo menos, €3.000,00 (três mil euros) para não publicar nas redes sociais o vídeo, tendo ainda partido uma garrafa de vidro numa cadeira, ficando com parte dela na mão enquanto pedia tais quantias à ofendida. 48 - Após estes factos, por ter medo do arguido e receio que este publicasse tal vídeo nas redes socais, a ofendida reatou com o arguido, voltando a viver juntos até finais de ...de 2023, período em que a ofendida deixou de contrariar o arguido, passando a submeter-se à sua vontade de forma a evitar discussões e agressões. 49 - Desde ...de 2022 e até ...de 2023, todos os dias úteis e durante o dia, o arguido obrigou a ofendida a acompanhá-lo no seu trabalho, ficando aquela na carrinha de trabalho enquanto o arguido cumpria as suas funções. 50 - Durante esse período, o arguido mantinha outro trabalho durante parte da noite, como distribuidor na “...”, obrigando a ofendida a ficar em videochamada, com a câmara sempre ligada, de forma a poder visualizá-la o tempo todo em que de noite trabalhava. 51 - Em datas não concretamente apuradas do mês ...de 2023, mas todas as noites que saia para trabalhar, por medo que a ofendida pudesse sair de casa, sem o seu conhecimento, o arguido retirou as chaves de casa à ofendida, ficando na posse das mesmas, fechando a porta de entrada sempre que saía, deixando-a trancada até o seu regresso. 52 - Não suportando mais tal situação, a ofendida fugiu de casa no final do mês de ... de 2023, quando o arguido não se encontrava em casa, indo viver para a casa de uma amiga. 53 - Após ter conhecimento onde a ofendida se encontrava, o arguido deslocou-se várias vezes à casa daquela amiga, batendo com força na porta, pedindo para falar com a ofendida. 54 – Após a separação, o arguido enviou várias mensagens à ofendida, entre as quais “Foda se dei tudo de mim amor, carinho dedicação dinheiro deia as coisas para não vos faltar nada. E tu com as tuas merdas mentiras falei ao DD das tuas orgias da tua putaria e amanhã irei ao limite. Fazer denúncia. Dei te opções sempre.” 55 - Após a separação, o arguido passou a telefonar para a ofendida diariamente e várias vezes por dia, exigindo que falasse com o mesmo. 56 - No dia ... de ... de 2023, pelas 12:00 horas, o arguido deslocou-se à ..., residência da ofendida, para que esta lhe entregasse um telemóvel e um contrato de arrendamento. 57 - Em todas as situações acima mencionadas, o arguido sabia que estava a molestar física e psicologicamente a ofendida, pessoa com quem mantinha uma relação análoga às dos cônjuges, com a qual veio a casar, causando-lhe dores nas zonas do corpo atingidas, o que quis e conseguiu. 58 - Mais sabia que a humilhava a ofendia na sua honra e consideração pessoal, que a atemorizava, lhe causava sentimentos de vergonha, bem sabendo que as expressões por si proferidas e atitudes adoptadas são adequadas a causar medo, receio e inquietação e de lhe limitar a sua liberdade de movimentação, ofendendo-a na sua dignidade de pessoa humana, anulando a vontade da ofendida e impondo a sua através do recurso a agressões, o que quis e logrou alcançar. 59 - O arguido sabia dever uma especial obrigação de respeito à ofendida, por ser sua companheira e sua mulher e que ao praticar os actos acima descritos no interior da residência da família, os tornava particularmente gravosos. 60 - O arguido sabia que estava a usar a sua superioridade física para obrigar a ofendida a manter com ele contactos sexuais, contra a sua vontade. 61 - O arguido quis, recorrendo à sua força física, obter satisfação dos seus instintos sexuais, mantendo com a ofendida relações de coito anal, propósito que logrou alcançar. 62 - Em todos os actos aqui descritos, o arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. - Mais se provou: 63 – O casamento entre o arguido e a ofendida foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em .../.../2024, transitada em julgado em .../.../2024. 64 - O arguido não tem antecedentes criminais registados. 65 - Após o termo da relação com a ofendida BB, o arguido passou a residir com a sua progenitora, condição que se verifica na actualidade. 66 - Encontra-se a exercer funções como ... na empresa .... 67 - Actualmente, o arguido mantém uma relação de namoro com EE, sendo que ambos os elementos procuraram descrever a relação como estável, gratificante e compensatória. 68 - No que concerne aos rendimentos, o arguido subsiste do seu salário, no valor de cerca de €1.050,00 (mil e cinquenta euros) mensais, estando as principais despesas afetas à subsistência, respeitantes ao apoio mensal que cede à sua progenitora de €300,00 (trezentos euros), crédito automóvel/mota no valor de €319,00 (trezentos e dezanove euros) mensais e pagamento de pensão de alimentos relativos a um filho menor, fruto de uma anterior relação, no valor de €91,00 (noventa e um euros), apresentando um quadro económico capaz de assegurar as suas necessidades de manutenção. 69 - Tem o 9º ano de escolaridade, apresentando assim habilitações literárias consonantes com a escolaridade mínima obrigatória para um elemento da sua idade. 70 - Na sequência da instauração dos autos o arguido cessou a relação e os contactos com a ofendida, não mantendo contactos com a mesma, aceitando o termo da relação. 71 – No relatório da DGRSP é concluído que o arguido “evidencia limitações ao nível da consciência crítica quanto à sua constituição como arguido, pelo que se constata, em caso de condenação, a presença de constrangimentos ao nível da responsividade pessoal para dar inicio a um efetivo processo de mudança comportamental/atitudinal.” 2.1.2 – Factos Não Provados: a) Em datas não concretamente apuradas, mas no decurso de discussões, motivadas por ciúmes, o arguido agarrava no cabelo da ofendida e puxava-o com força, bem como agarrava na cabeça daquela, chegando a embater com a mesma contra a parede. b) Em datas não concretamente apuradas, mas durante a relação, e sempre que via um comentário ou uma pessoa que não conhecia nos perfis da ofendida nas suas redes sociais, o arguido iniciava uma discussão com aquela, acabando por exigir que fosse para o quarto, local onde a acusava de o andar a trair com outros homens, ao mesmo tempo que desferia murros nas paredes, o que a deixava com muito medo. c) O arguido controlava os movimentos da ofendida, acompanhando-a em todas as suas deslocações. d) Aquando dos factos descritos em 19) a 31), o arguido sabia que a ofendida estava grávida daquele. e) A ofendida casou com o arguido por medo que este fizesse queixa da mesma e ela perdesse os filhos menores. f) A ofendida ficava sem qualquer quantia para os seus gastos, devendo a mesma pedir ao arguido qualquer outro montante de que pudesse precisar. g) Aquando dos factos descritos em 37), quando se dirigiam para o veículo automóvel no ..., o arguido disse à ofendida, em tom sério, que a matava com uma arma que tinha em casa e que matava também o ex-marido daquela. h) Em consequência da agressão descrita em 38), a ofendida ficou com o olho inchado, tendo pedido ao arguido para a levar ao hospital a fim de receber tratamento, o que aquele recusou. i) O arguido dizia, com frequência, que a ofendida era a culpada pelo seu comportamento violento. j) Após a separação do casal em ...de 2023, o arguido passou a ir todos os dias até à casa da amiga a fim de estar com a ofendida. l) Nos telefonemas, o arguido dizia, aos gritos, que a ofendida lhe devia dinheiro e que tinha de reembolsar tudo quanto tinha gasto com ela, apelidando-a de “puta, és puta como a tua mãe”, e exigindo que descesse para falar com o mesmo. m) Nesses telefonemas, o arguido dizia que a ofendida “tinha gostado de levar na cona” e que tinha “fodido” e que agora tinha de fazer o que ele queria, ou seja, pagando a quantia que queria e que ia partilhar o vídeo que havia filmado, caso não pagasse e que ia perder os seus quatros filhos. n) Em meados de ... de 2023, da parte de manhã, quando se encontrava na ..., em frente ao número..., o arguido abordou de forma repentina a ofendida, retirando-lhe as chaves do veículo automóvel de matricula ..-..-MG, propriedade daquela, entrou dentro o mesmo e iniciou a marcha, dizendo-lhe que o ia levar porque era dele e que aquela ia ficar sem nada. o) O arguido sabia que tal veículo era essencial às deslocações da ofendida e dos seus filhos, apenas o devolvendo à ofendida no dia .../.../2024. p) No dia ... de ... de 2023, o arguido efectuou sete chamadas para o telemóvel da ofendida, as quais não foram atendidas por aquela. 2.2 – Motivação da decisão de facto: No apuramento da factualidade julgada provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na valoração crítica e conjunta dos meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento (artigo 127º do Código de Processo Penal). Assim, o tribunal fundou a sua convicção: Nos Assentos de Nascimento a fls. 23, 24, 188, 189 e 248. Nas mensagens a fls. 36 a 45 e 168 a 171. No auto de denúncia a fls. 49 a 53. Nos aditamentos a fls. 47 e 65. Nas declarações da testemunha BB (declarações para memória futura prestadas em .../.../2023 a fls. 145 e 146), a qual num depoimento credível, emocionado e espontâneo descreveu a factualidade dada como provado, afirmando que conheceu o arguido em ... de 2021 através das redes sociais, começando a relacionar-se em ... de 2021, passando a viver um com o outro, em união de mesa, cama e habitação, na casa onde esta residia, sita na ... (casa de um casal amigo da ofendida). Em ... de 2022 foram viver para uma casa no .... Casaram em ... de 2022 e terminaram a relação em ... de 2023. Entre ... de 2021 e ... de 2023 separaram-se cerca de quatro ou cinco vezes, todas no ano de ..., estando separados durante períodos de cerca de um mês. Não têm filhos em comum, mas a ofendida tem quatro filhos (com 13, 11, 7 e 4 anos de idade, respectivamente), dos quais tem guarda partilhada. Ao início a relação correu bem, mas logo em ... de 2021 descobriu que o arguido tinha outro relacionamento amoroso com outra mulher, pois a ofendida recebeu mensagens dessa outra senhora. Confrontou o arguido com este facto, mas ele negou, dizendo que era uma pessoa do seu passado, que o perseguia, tendo acreditado nele. Sempre discutiram um com o outro por ciúmes, pois o arguido envolvia-se com outras mulheres e iniciava as discussões, exigindo ver o telemóvel da ofendida, tendo o código do telemóvel e das redes sociais. Discutiam cerca de uma vez por semana e nessas discussões o arguido chamava-lhe nomes, por vezes dava murros nas paredes, mas não partia objectos. A partir de ... de 2022, o arguido passou a esperá-la à porta do trabalho, a fazer-lhe videochamadas constantemente, ficando à janela de casa à espera que esta chegasse, temendo que ele fosse ao trabalho dela. Ameaçava-a tirar-lhe os filhos, dizendo-lhe que ia fazer queixa dela e que ela iria ficar sem os filhos. Contudo, sempre quis casar e quando foram viver para a casa sita no ... o arguido disse-lhe para ela marcar o dia do casamento, o que ela fez, tendo casado um com o outro em ... de 2022. O casal tinha uma vida sexual activa, mantendo relações sexuais de cópula vaginal, contudo, sempre que ela dizia algo que o arguido não gostava ou que o contrariava, o arguido forçava-a a ter relações sexuais anais, que ela não queria, o que ocorreu em três ocasiões distintas, a saber: - Numa ocasião, em final de ..., princípio de ... de 2022, o arguido chateou-se com ela e para a magoar, apesar de ela lhe ter dito que não queria, o arguido encostou-a contra a parede, de costas para ele, baixou-lhe a roupa que envergava e introduziu o pénis no seu ânus. Disse-lhe para parar, que a estava a magoar, mas o arguido não parou, disse-lhe para ela se calar, agarrou-a com mais força e bateu-lhe na cara, só parando quando ejaculou para dentro de si. Após, disse-lhe para ela ir tomar banho e “que já passava”. Esta relação sexual durou cerca de 10/15 minutos. - Posteriormente, já depois de terem casado – entre o final de ... e ... de 2022 – descobriu que o arguido mantinha relações com outras mulheres da internet. Falou com o arguido, que o confirmou, dizendo-lhe que “elas lhe davam tudo que ela não lhe dava”. Empurrou-a para o quarto, apelidou-a de “vaca”, “puta”, dizendo-lhe “tens um cu tão bom, anda cá”, ao que esta lhe dizia para ele parar. No corredor, com ela em pé, o arguido agarrou-a, colocou-lhe um pé em cima de uma cadeira que ali se encontrava, tirou-lhe as calças e as cuecas que envergava, e penetrou-a com o pénis no ânus. Tentou empurrá-lo, disse-lhe para ele parar, que a estava a magoar, mas o arguido não parou até ejacular. Esta relação sexual durou cerca de 10/15 minutos. - Na terceira ocasião, estavam em casa, discutiram um com o outro, pois no dia anterior a ofendida tinha chegado tarde a casa vinda do trabalho, discutindo por causa dos horários dela. Há data a ofendida trabalhava como auxiliar de limpeza no ..., em ... (sendo que já ali trabalhava quando conheceu o arguido), saindo do trabalho pelas 21:00 horas (horário de trabalho das 13:00 às 21:00 horas). Ela disse-lhe para terminarem, mas o arguido disse-lhe que só se iria embora se ela lhe desse €3.000,00 ou €4.000,00, quantia que este tinha gasto na compra de móveis para a casa onde residiam e no arrendamento da mesma. O arguido empurrou-a contra a cama no quarto, deu-lhe uma chapada na cara, do lado esquerdo, agarrou-a pelo pescoço, dizendo-lhe “cala-te sua puta, agora fazes o que eu quero”, “cabra, está calada”. Ela pediu para ele a largar e deixar ir embora, mas o arguido agarrou-a pelo pescoço e empurrou-a para a cama, tendo ela caído em cima da cama. Aí, o arguido pôs-se em cima dela, tendo-lhe dito para ele parar, empurrou-o e pediu-lhe para ele a deixar. O arguido largou-a e foi para a cozinha. Nessa altura, a ofendida telefonou para a irmã do arguido, tendo esta atendido e ouvido o arguido a chamá-la de “puta”, “és uma puta como a tua mãe”, “vaca” e “vou atrás de ti”, tendo a irmã do arguido telefonado ao arguido em virtude de tal. Perante tal, o arguido agarrou-a, levou-a para a casa-de-banho, empurrou-a contra o lavatório, tirou-lhe as calças e penetrou-a com o pénis no ânus, e em simultâneo dizia-lhe “toma lá sua puta que é isto que estás a precisar”, só parando quando ejaculou. Aquando destas três situações nenhum dos seus filhos estava em casa. Mais referiu que, ela tinha que transferir o ordenado que auferia para uma conta bancária do arguido, dando-lhe o arguido o cartão multibanco da referida conta bancária. Porém, tinha medo de usar o cartão multibanco por temer o arguido, pois numa ocasião ela pagou uma refeição com tal cartão e o arguido disse-lhe que o dinheiro era para as despesas e que ela não poderia gastar dinheiro “malgasto”. Contudo, o arguido dava-lhe dinheiro para as despesas da casa e €5,00 (cinco euros) diariamente para as despesas pessoais e tabaco. Na sequência destes factos saiu da casa sita no ... e voltou para a casa na ... onde anteriormente residia. Mas o arguido fazia-lhe ameaças, dizendo-lhe que “se ela o deixasse matava-lhe os filhos um a um”, dizia-lhe que tinha armas em casa da mãe onde anteriormente morava, tendo ela retomado a relação com o arguido. O pai do arguido, já falecido, tinha sido ..., e o arguido dizia que tinha armas, que lhe dava um tiro e a matava. Numa ocasião estavam a jantar na casa sita na ..., o telemóvel dela tocou e o arguido pegou no telemóvel e viu o seu conteúdo. Perante tal, disse ao arguido para este lhe mostrar o telemóvel dele, ao que o arguido lhe respondeu, apelidando-a de “puta”, “vaca”, dizendo-lhe que ele “não era um homem igual aos que ela estava habituada”, tendo ela lhe dito para ele se ir embora de casa. Contudo, o arguido empurrou-a, bateu-lhe com a cabeça na parede, agarrou-a pelos cabelos e mandou-a ao chão. Após, ela levantou-se e ele apertou-lhe o pescoço e ela caiu ao chão, batendo com a cabeça na calha da porta da varanda, tendo desmaiado. Recuperou os sentidos com o arguido a dar-lhe chapadas na cara e a dizer-lhe “era preciso amor mandares-te para o chão?”. Inicialmente nem sabia onde estava, mas depois recordou-se dos factos. A partir deste episódio, não contrariava o arguido, dizia-lhe que “estava sempre tudo bem para não haver discussão”. Posteriormente, foram jantar ao ..., e durante o jantar o arguido estava a trocar mensagens com outra mulher. Questionou-o e ele disse-lhe “vais começar”. Foram para o carro e junto ao ... o arguido puxou-lhe os cabelos e desferiu-lhe chapadas na cara, atingindo-a na zona do nariz, ficando a sangrar do mesmo. O arguido levou-a a casa da senhora com quem havia estado a trocar mensagens para ela ver que não tinha nenhuma relação com a mesma, dizendo-lhe que era sua amiga, a qual estava com dificuldades financeiras e que era sobre isso que trocavam mensagens. Essa senhora deu-lhe um saco de ervilhas congeladas (pois não tinha gelo) para ela colocar no nariz. Quando chegaram a casa, disse-lhe que queria terminar a relação, “mas ele ficava agressivo”. Nas situações em que o arguido a agrediu, só numa ocasião o seu filho mais novo, com quatro anos, estava presente. Nessa situação – em ... de 2022, antes da situação do ... - estavam a almoçar e o seu filho disse que “a mãe era linda e o arguido é feio”, tendo o arguido ficado nervoso, levantou-se da mesa e foi para o quarto. Ela foi atrás dele e o arguido disse-lhe que ela deveria ter repreendido a criança, bem como que “vou lá dentro, mijo-lhe em cima e dou-lhe com a picha na cabeça”. Agarrou-o no ombro e ele empurrou-a para cima da cama, tendo a percepção de que iria “abusar dela”, ia tirar-lhe a roupa, tendo-o mordido no ombro esquerdo, tendo o arguido também a mordido e ela parou de lhe morder. Após, o arguido largou-a e saiu do quarto. Enquanto isto decorria, os seus filhos estavam na sala. Várias vezes o arguido passava com o carro em alta velocidade junto ao seu trabalho, estava à espera dela quando ela saia do trabalho, temendo perder o emprego, que o arguido “fizesse escândalos”. Tinha que telefonar ao arguido durante o horário de trabalho e estar em videochamada para ele ver que ela estava no trabalho. Em ...de 2022 chegou a engravidar do arguido, mas interrompeu a gravidez em ... de 2022. O seu pai faleceu em .../.../2022, tendo depois interrompido a gravidez e ficado de baixa médica. Aí, o arguido disse-lhe que ela não voltava a trabalhar no hospital, que “andava metida com outros homens”, e ela deixou de trabalhar, suportando o arguido as despesas da casa. Ainda frequentou um curso de ... no ..., na ..., mas tinha que lhe enviar a geo-localização do seu telemóvel para este se certificar que ela ali estava e, caso não o fizesse, o arguido aparecia no local, abordava os seus colegas de curso, perguntando se ela lá estava e se estava tubo bem com a mesma. Acabou por desistir do curso por medo de que o arguido estivesse à espera dela junto ao portão. O arguido ameaçava-a de morte, aos filhos e ao pai do seu filho mais novo, dizendo-lhe que “dava um tiro ao CC”. Para o arguido a deixar, ele exigia-lhe entre €3.000,00 e €5.000,00. Igualmente, o arguido pedia-lhe para filmar quando tinham relações sexuais consensuais, o que ela autorizou duas ou três vezes. Contudo, depois apercebeu-se que ele filmou outras vezes sem o consentimento dela. Depois, ameaçou-a de pôr os referidos filmes nas redes sociais se ela saísse de casa e o deixasse. Numa das ocasiões que ela saiu de casa, estando separada do arguido – ... ou ... de 2022 -, foi viver para a ... e numa noite estava com um casal seu amigo – FF e GG – e foram para o quarto dela fazer um jogo (“verdade ou consequência”) e estavam nús, deitados na cama, tapados com um lençol, quando o arguido entrou na casa com uma chave que detinha, sem a sua autorização, entrou no quarto com uma lanterna, puxou o lençol, acendeu luz e começou a filmá-la e ao casal com o telemóvel e a chamar-lhe nomes. O arguido empurrou-a para a cozinha, puxou-lhe os cabelos e bateu com a sua cabeça no chão várias vezes. Depois largou-a e ela foi para o quarto. Então, o arguido disse-lhe que ou estes lhe davam €10.000,00 ou €11.000,00 ou divulgava esse vídeo nas redes sociais, bem como partiu uma garrafa numa cadeira junto a ela, ficando com parte da garrafa na mão, pedindo-lhe dinheiro, pelo menos, €3.000,00 ou €4.000,00. Respondeu-lhe que não tinha dinheiro e depois chegou a polícia ao local (chamada pelo GG). O arguido também ameaçou os seus amigos FF (ameaçando-a que ela iria perder os filhos) e GG (o qual alugaria de forma ilegal um quarto). Posteriormente, voltou a viver com o arguido, numa casa em HH, de onde fugiu em ... de 2023. Nesse período – entre ... de 2022 e ... de 2023 dizia que sim a tudo o que o arguido queria e durante o dia acompanhava-o no seu trabalho, ficando na carrinha enquanto ele fazia a entrega de oxigénio em casa dos clientes, e das 19:00 ou 20:00 até às 02:00 horas da madrugada, o arguido ia trabalhar para a … e tinha que ficar em videochamada, para ele ver onde estava, ficando-lhe com a chave de casa para ela não poder sair de casa (enquanto estava a trabalhar na “...”). Quando fugiu de casa foi viver para casa da FF, no ..., mas o arguido chegou a deslocar-se à mesma à procura dela, queria falar com ela, dizendo que tinham “contas a ajustar” e desferiu pontapés na porta de casa. Só então decidiu fazer queixa e pedir ajuda. Dizia-lhe que estava perto de casa e querida falar com dela, tendo falado com ele e lhe dito que não queria voltar para casa. Contudo, a situação não ficou resolvida, o arguido andava atrás dela no ... e na casa da sua amiga, telefonando a pessoas suas amigas para saber dela. Chegou mesmo a aparecer junto a uma morada onde ninguém sabia que ela estava, bem como no ... onde ela estava com os seus quatro filhos. Abordou-a, queria saber quando ela ia buscar as suas coisas à casa de HH onde por último tinham vivido, posteriormente queria o contrato de arrendamento, depois uma factura da máquina de lavar e outras situações nos dias seguintes, tudo servindo de pretexto para a abordar. Telefonava-lhe com frequência e enviava-lhe mensagens e WhatsApp, confirmando o teor das mensagens a fls. 36 a 45, enviadas pelo arguido à ofendida, bem como lhe telefonava de números anónimos e continuava a pedir-lhe dinheiro. Durante toda a relação o casal viveu na ..., no ..., depois na ... e por fim, em ... de 2022, já após a situação em que o arguido entrou no seu quarto, onde esta estava com um casal amigo, em .... Sempre que se separava do arguido, a ofendida ia para a casa da .... No depoimento da testemunha FF, amiga da ofendida BB há cerca de 10 (dez) anos, a qual de forma credível afirmou que, inicialmente, pensava que a relação da BB com o arguido era saudável e que ele era carinhoso com os filhos dela. Contudo, ao fim de oito meses a BB começou a queixar-se à testemunha, a mostrar-lhe fotografias dela a sangrar do nariz. Posteriormente o casal fez as pazes, mas depois separaram-se de forma definitiva. O arguido e a BB eram ambos ciumentos, queixando-se ela que o arguido lhe controlava as redes sociais. Numa ocasião a BB tinha-se zangado com o arguido, separou-se do mesmo e ficou num quarto numa casa onde já tinha anteriormente vivido com o arguido, sita na .... A testemunha e o seu namorado jantaram com a BB nessa casa, tendo feito um jogo e ficado os três todos nús no quarto. O arguido irrompeu pelo quarto com o telemóvel e começou a filmar, chamando nomes à BB e à testemunha, empurrou a testemunha e destapou-os, dizendo “puta” e “olhem estas putas assim”. O arguido puxou a BB pelos cabelos, arrastou-a até à cozinha e já na cozinha partiu uma garrafa e ficou com parte da garrafa na mão. O namorado da testemunha disse ao arguido para ele ter calma e afastou-o. O arguido disse que se não lhe dessem €7.000,00 (sete mil euros) iria colocar o vídeo nas redes sociais. Não sabe como o arguido soube que a BB ali estava. Depois, a BB voltou a viver com o arguido, dizendo que o fazia para recuperar o vídeo. Porém, posteriormente separou-se do mesmo, indo para casa da testemunha. Aí, o arguido ia a sua casa, chamava nomes à BB, apelidando-a de “puta” e “vaca”, dizendo-lhe que “queria dinheiro”, queria o dinheiro que havia emprestado à BB. Numa ocasião, o arguido pontapeou a porta de casa da testemunha. Em outra ocasião, o arguido pediu-lhe para a BB voltar para ele, ela não quis e o arguido apertou-lhe o pescoço e disse-lhe algo ao ouvido. Depois da separação do casal, o arguido telefonava à BB, chamava-a de “puta” e fazia-lhe ameaças, dizendo que a ia denunciar à CPCJ, que ia ficar sem os filhos. A BB trabalhou no ... e em outros sítios, mas ela confidenciava-lhe que saía dos trabalhos pois o arguido a perseguia. Posteriormente, frequentou um curso de …, e queixava-se que o arguido ia para a porta do local onde fazia o curso. O arguido trabalhava na distribuição de botijas de oxigénio e à noite na “…”. Nunca se apercebeu de a BB ter dificuldades financeiras. O casal tinha um carro, comprado pelo arguido para a BB. No depoimento da testemunha KK, agente da P.S.P., a qual de forma isenta e credível confirmou o teor do aditamento a fls. 47. No depoimento da testemunha LL, agente da P.S.P., a qual de forma isenta e credível confirmou o teor do aditamento a fls. 65, afirmando que a ofendida ligou para a polícia, dizendo que o arguido estava à porta do prédio onde vivia a importuná-la, querendo o telemóvel e o contrato de arrendamento. A ofendida estava agitada e com receio do arguido. O arguido MM prestou declarações em sede de audiência de julgamento, onde negou de forma genérica os factos descritos na acusação, afirmando, contudo, que, quanto aos factos dos pontos 1), 2), 3), 4) e 8) da acusação, os mesmos correspondem à verdade, sendo que o casal viveu em união de facto entre ... de 2021 e ... de 2023, data em que a BB saiu de casa. Mais referiu que foi a BB quem o pediu em casamento, sendo que ele não queria casar. Contudo, a BB queria casar por causa dos filhos, devido à CPCJ. Ela tinha quatro filhos, dois deles viviam com o respectivo pai, o mais novo vivia com o respectivo pai, e só a filha NN vivia com a BB. Quanto aos factos dos pontos 10), 11), 12) e 14) da acusação, os mesmos não correspondem à verdade. O casal dava-se bem, sendo que era a BB quem controlava o telemóvel do arguido, as contas bancárias e as redes sociais, tendo as respectivas “passwords”. A BB via-lhe o telemóvel a meio da noite, queria saber com quem ele falava, tendo chegado a ligar para as amigas do arguido para saber o porquê de ele ter falado com elas. O arguido também tinha as “passwords” da BB. A BB levava o carro para o trabalho, por vezes era o arguido quem lhe dava boleia, pois ela adormecia e não gostava de trabalhar. O arguido trabalhava como técnico de oxigénio, com o horário de trabalho das 07:30 às 17:30 horas, e à noite na distribuição na “...”, chegando a casa pelas 02:30 e as 03:00 horas da madrugada. A BB chegou a acompanhá-lo voluntariamente no trabalho. A BB trabalhava como … no ..., em …. Contudo, uns tempos depois, já viviam no ..., ela despediu-se, e foi para o “fundo de desemprego”, e depois foi trabalhar para uma …. Depois, despediu-se da … e foi tirar um curso de …, o qual era a pagar, mas não chegou a exercer essa profissão. Depois frequentou um curso de ... na ..., o qual se encontrava a frequentar em ... de 2023. Relativamente ao facto do ponto 13) da acusação, negou a sua prática, afirmando que nunca bateu na BB. No que concerne ao facto do ponto 15) da acusação, negou a sua prática, afirmando que indivíduos chegaram a telefonar ao arguido para saber da BB, achando que estavam interessados nela, tendo chegado a “pedir-lhe satisfações”, a qual lhe disse que eram “coisas do passado”. Discutiam algumas vezes e levantava a voz, “mas ficava por ali”. Quanto ao facto do ponto 21) da acusação, negou a sua prática, afirmando, contudo, que viu a BB num “live” a dizer que era solteira, confrontou-a e ela respondeu-lhe que tinha sido uma brincadeira. Relativamente aos factos dos pontos 23), 24) e 25) da acusação, negou a sua prática, afirmando que era a BB quem transferia o dinheiro da conta do arguido para a conta dela, sendo que ela tinha o cartão multibanco da sua conta bancária. No que respeita aos factos dos pontos 26) a 41) da acusação, negou a sua prática, afirmando que nunca obrigou a BB a manter relações sexuais anais, mantendo relações sexuais consensuais um com o outro, nunca esta lhe tendo dito que não queria, ou para ele parar. Quanto ao facto do ponto 42) da acusação, negou a sua prática, afirmando, porém, que no início do relacionamento a BB pediu-lhe emprestado €3.000,00 (três mil euros), que nunca lhe devolveu. Relativamente ao facto do ponto 44) da acusação, afirmou que a BB ficou grávida do arguido, optando por interromper a gravidez. Quanto aos factos dos pontos 48) a 51) da acusação, afirmou que foram jantar ao ... e o arguido estava a falar com uma amiga, tendo a BB lhe tirado o telemóvel da mão feito “um pé de vento”. Perante tal, disse-lhe que lhe ia provar que não era aquilo que ela estava a pensar, e foram para casa da OO (pessoa com quem o arguido comunicava pelo telemóvel). A caminho do estacionamento houve empurrões de parte a parte, tendo a BB ficado magoada na zona do lábio. Quando chegaram a casa da OO, esta prestou auxílio à BB, dando-lhe um saco de ervilhas para ela colocar no ferimento, pois não tinha gelo, “para apaziguar a situação”. Relativamente aos factos dos pontos 58) a 61) da acusação, afirmou que já estavam casados, mas separados, e um inquilino daquela casa facultou-lhe a chave da casa onde a BB vivia num quarto, local onde já havia residido com a mesma, tendo o arguido lá se deslocado para “dar o flagrante”. Entrou na casa e no quarto estava a BB e um casal amigo, todos nús, na cama, tapados com um lençol, tendo começado a filmar com o seu telemóvel, não tendo pedido dinheiro em troca do referido filme. Fez o filme para se salvaguardar das ameaças que a BB e o casal lhe fizeram depois, dizendo-lhe “se ele não apagasse o vídeo iria ter problemas”. Não bateu em ninguém, tendo sido o casal quem bateu no arguido. Em ... de 2023, a BB nada lhe disse e, aproveitando o facto de o arguido ter ido trabalhar, saiu de casa com os filhos, não sabendo para onde foi, tendo ainda tentado conversar com ela e “cada um seguia o seu caminho”. Quanto ao facto do ponto 70) da acusação, negou a sua prática. Relativamente ao facto do ponto 74) da acusação, o arguido afirmou que esse veículo havia sido comprado pelo arguido, apesar de ter ficado em nome da BB, tendo o arguido as chaves do mesmo, nunca tendo tirado as respectivas chaves à BB. A BB “andava a rondar o carro”, tendo vindo buscar o mesmo. Admitiu que o seu número de telemóvel era ..., estando registado no telemóvel da ofendida com o nome de “PP”, admitindo o envio das mensagens a fls. 36 a 45. Nunca a ameaçou a BB com os filhos, nem de fazer queixa dela para ela ficar sem os filhos. Actualmente, não mantém quaisquer contactos com a BB. Ora, Concatenando estes elementos probatórios, o tribunal fundou a sua convicção no depoimento coerente e emocionado da testemunha BB, a qual descreveu a factualidade julgada provada, decorrendo sobre a sua vivência com o arguido, a forma como os conflitos se iniciaram logo desde o início da relação, as discussões iniciais por ciúmes de ambos, nas quais o arguido a apelidava com as expressões dadas como provadas, a ameaçava de fazer queixa dela à CPCJ e ela ficar sem os filhos, bem como os vários episódios em que este a agrediu fisicamente, as várias separações e as ameaças que ele lhe fazia caso esta o deixasse, bem como o comportamento do arguido após a ruptura definitiva em finais de ... de 2023, data em que fugiu de casa. Descreveu, igualmente, de forma sofridas, as três situações, em que o arguido, mediante a força, a subjugou à sua vontade e manteve com ela relações sexuais anais, contra a vontade da ofendida, o que ocorreu sempre na sequência de discussões com a ofendida, como uma forma de a castigar, pois sabia que ela não consentia em tais práticas. As declarações da testemunha BB foram parcialmente confirmadas pelos seguintes elementos probatórios: - As declarações da testemunha FF, amiga de BB, a qual descreveu que esta se queixava do arguido, chegando mesmo a mostrar-lhe fotografias suas a sangrar do nariz. Igualmente, descreveu o episódio ocorrido no interior da casa onde residia a ofendida, estando em tal data o casal separado, onde o arguido entrou de madrugada no quarto onde se encontrava, sem se fazer anunciar, onde estavam BB, a testemunha FF e o seu namorado, deitados os três na cama, despidos, tendo o arguido começado a filmar, apelidando BB de “puta”, arrastando-a para a cozinha, partindo uma garrafa, ficando com parte dela na mão, pedindo aos três dinheiro, caso contrário, colocaria o vídeo nas redes sociais. Na sequência destes factos, BB voltou a viver com o arguido, tendo, posteriormente, se separado de forma definitiva do mesmo, indo residir para casa da testemunha, onde o arguido se deslocava frequentemente, querendo falar com a mesma, chegando a pontapear a porta de sua casa, fazendo-lhe telefonemas insistentes. - O aditamento a fls. 65, cujo conteúdo foi confirmado pelo depoimento da testemunha LL, agente da P.S.P., o qual presenciou o arguido no referido local a exigir à ofendida o contrato de arrendamento e o seu telemóvel, sendo visível e perceptível “que a vítima apresentava uma expressão de nervosismo e de medo devido à presença do suspeito no exterior do prédio”. - Nas mensagens a fls. 36 a 45, enviadas pelo arguido a BB, que o próprio arguido admitiu ter enviado, nas quais este quer insistentemente falar com a mesma e lhe faz ameaças quanto aos seus filhos, designadamente, “amanhã desloco me a cpcj apresentar queixa crime de ti sobre a NN”, “tens amanhã ate as 10h para ligares e resolver as coisas a bem a decisão e tua eu disse ias conhecer o demónio e assim conhecerás …”, “BB FALTA 3H”, “As queixas vao ser feitas eu avisei te para não seres demasiado esperta BB”, “Estou na Cpcj”, “Vao saber q não pagas a escola do QQ e tudo BB mexes te com o Diabo”. Nestas mensagens, o arguido também faz alusão à situação ocorrido com a BB, FF e o respectivo namorado (GG), fazendo também ameaças quanto aos mesmos, as quais, aliás, foram referidas pela testemunha FF, a saber “BB A QUEIXA NA PSP ESTA FEITA E ATIVA SÓ CONSTA O TEU NOME O MEU E O DO GG ira ser adicionado no nome da FF em relação ao Adultério”, “E sera apresentada queixa as finanças sobre a casa do GG” “E a culpada serás tu de tudo …” e “Não vou deixar passar nada em branco”. - Nas declarações do arguido o qual, apesar de ter negado de forma genérica os factos, admitiu que: Na situação em que foi com BB ao ..., estava a trocar mensagens com outra mulher, facto que esta não gostou, tendo seguido ambos de carro para casa da pessoa com quem o arguido havia trocado mensagens, para provar à mesma que “não era o que ela estava a pensar”, tendo havido “uns empurrões de parte a parte”, ficando BB magoada, e a referida senhora lhe prestado auxílio dando-lhe um saco de ervilhas, pois não tinha gelo, para ela colocar no magoado. Na situação ocorrida em que o casal estava temporariamente separado, admitiu ter entrado em casa e no quarto de BB, sem o conhecimento e/ou consentimento dela, para “dar o flagrante”, vendo-a na companhia de um casal amigo, deitados na cama e nús, tendo começado a filmar com o seu telemóvel a situação. BB saiu de casa com os filhos sem o avisar, aproveitando o facto de ele não estar, não lhe dizendo para onde ia. Assim, perante as declarações credíveis e emotivas de BB, corroboradas pelos elementos probatórios suprarreferidos, não se mostraram minimamente credíveis as declarações do arguido, na parte em que negou a prática dos factos, imputando à ofendida BB comportamentos desajustados para com ele, razão pela qual o tribunal deu como provados os factos descritos em 1), 3) a 62). Quanto à consciência da natureza penal dos factos, esta corresponde ao conhecimento que qualquer cidadão possui e que o arguido necessariamente não podia deixar de ter, considerando a natureza dos factos que praticou, a sua idade e experiência de vida (facto provado descrito em 62)). Relativamente aos factos provados descritos em 2) e 63), os mesmos resultaram do teor do assento de nascimento a fls. 248. No que concerne aos antecedentes criminais o tribunal baseou-se no teor do Certificado de Registo junto a fls. 237 e, relativamente à situação pessoal e profissional do arguido, o tribunal teve em conta o teor do relatório social elaborado pela DGRSP a fls. 238 a 241, 245 e 246 e do aditamento a fls. 227 a 230 (factos provados descritos em 64) a 71)). Relativamente aos factos dados como não provados temos que não foi produzida prova da sua ocorrência, pois os mesmos não resultaram de forma inequívoca das declarações da testemunha BB, e mais nenhuma prova foi feita sobre os mesmos, sendo que quanto aos factos dados como não provados em n) e o) (veículo automóvel) nas suas declarações a ofendida não os referiu, o arguido negou a sua prática e o aditamento a fls. 186 por si só não tem a virtualidade de os provar, e quanto ao facto não provado em p) dos documentos a fls. 168 a 171 não resulta o dia concreto em que tais chamadas telefónicas foram feitas. (…)
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IV- APRECIANDO
1) Nulidade insanável por alegada ilegitimidade do Ministério Público para deduzir acusação quanto aos crimes de violação
O arguido AA sustenta, em sede de recurso, que:
i. A acusação deduzida pelo MP quanto aos três crimes de violação agravada carece de legitimidade;
ii. A ausência de queixa da ofendida ou a eventual falta de vontade expressa da vítima inviabilizaria o exercício da acção penal pelo MP;
iii. Tal circunstância configuraria nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º, alínea b), do CPP, por violação dos artigos 178.º, n.ºs 1 e 2, do CP e 48.º e 49.º do CPP.
A legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal, especialmente no contexto dos crimes de natureza sexual, adquire particular acuidade quando confrontada com a invocação, por parte do arguido, de nulidade insanável decorrente de uma alegada ilegitimidade do titular da acção penal. No caso sub judice, tal questão assume contornos centrais, uma vez que o arguido, ao apresentar recurso da decisão que o condenou pela prática de três crimes de violação agravada, veio sustentar que o Ministério Público não dispunha de legitimidade para deduzir acusação relativamente a esses ilícitos, invocando, em abono da sua posição, os artigos 178.º, n.ºs 1 e 2 do CP, 48.º e 49.º do Código de Processo Penal, bem como o artigo 119.º, alínea b), deste mesmo diploma.
Tal argumentação, revestindo aparente pertinência jurídica, exige, contudo, uma análise exaustiva e rigorosa à luz do quadro normativo vigente. Com efeito, importa, desde logo, clarificar os contornos legais da intervenção do Ministério Público no processo penal português, tendo presente o princípio da legalidade da acção penal e a consagração constitucional da titularidade do Ministério Público enquanto garante da promoção da justiça e da defesa da legalidade democrática.
Nos termos do artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa, o Ministério Público constitui uma magistratura autónoma, com estatuto próprio e incumbida, entre outras funções, de representar o Estado, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender os interesses legalmente protegidos. O legislador constitucional atribui-lhe, de forma inequívoca, a missão de promover o processo penal, cabendo-lhe, nos termos da lei ordinária, a titularidade da acção penal nos crimes públicos e semipúblicos, bem como a sua intervenção processual em defesa da legalidade, mesmo nos crimes de natureza particular, em que o exercício da acção penal depende da iniciativa da parte ofendida.
Assim, a determinação da legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação em crimes de violação exige a análise articulada do regime jurídico previsto nos artigos 178.º do CP com os artºs 48.º e 49.º do Código de Processo Penal, em conjugação com o quadro incriminatório constante do Código Penal, nomeadamente o regime específico aplicável aos crimes sexuais. Neste domínio, a violação, enquanto crime particularmente grave e atentatório da liberdade e da autodeterminação sexual, encontra-se prevista no artigo 164.º do Código Penal, sendo que a sua forma agravada, em função de circunstâncias objectivas ou subjectivas qualificativas, está prevista no n.º 2 da mesma norma, em conjugação com o artigo 177.º, que estabelece as circunstâncias de agravamento e o respectivo regime processual.
Deste modo, e tendo presente a redacção do artigo 178.º do Código Penal, é inquestionável que o procedimento criminal pelos crimes de violação, quando praticados contra maiores de idade e não resultando em suicídio ou morte da vítima, depende, em regra, da apresentação de queixa por parte da vítima. Todavia, o legislador, consciente das particularidades que envolvem os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, e, em especial, os obstáculos psicológicos, sociais e emocionais que muitas vezes inibem as vítimas de formalizar a sua denúncia, previu um mecanismo legal que reforça a protecção destes bens jurídicos fundamentais, ao permitir a intervenção autónoma do Ministério Público.
Assim, o n.º 2 do artigo 178.º do Código Penal confere ao Ministério Público a possibilidade de iniciar o procedimento criminal pelos crimes de coacção sexual e de violação, mesmo na ausência de queixa expressa da vítima, desde que estejam verificados cumulativamente os seguintes requisitos: que o Ministério Público conheça o facto e os autores do crime, que o procedimento dependa de queixa (não se verificando as excepções do n.º 1) e que o interesse da vítima justifique o início do procedimento. Este dispositivo normativo visa reforçar a tutela da dignidade e da liberdade sexual, assegurando que o silêncio ou a hesitação da vítima, que podem resultar de medo, vergonha ou dependência emocional, não obstruam a prossecução da justiça e a responsabilização criminal do agressor.
Ora, no caso concreto dos autos, a acusação deduzida pelo Ministério Público relativamente aos crimes de violação agravada encontra-se plenamente enquadrada neste regime legal, uma vez que: em primeiro lugar, se trata de crimes de violação, previstos no artigo 164.º do Código Penal; em segundo lugar, o Ministério Público teve conhecimento dos factos e dos seus autores; e, em terceiro lugar, o interesse da vítima aconselhou o início do procedimento criminal, tendo em consideração a gravidade dos factos, o impacto psicológico e social para a ofendida, e a necessidade de salvaguardar a sua integridade moral e jurídica.
Assim, não subsiste qualquer fundamento para sustentar a tese de nulidade insanável invocada pelo arguido, por alegada ilegitimidade do Ministério Público. Pelo contrário, a actuação do Ministério Público encontra respaldo directo no artigo 178.º, n.º 2, do Código Penal, bem como nos princípios estruturantes do processo penal e na missão constitucional do Ministério Público enquanto garante da legalidade e da defesa dos interesses socialmente protegidos.
A interpretação sistemática e teleológica do artigo 178.º do Código Penal conduz inevitavelmente ao reconhecimento da legitimidade do Ministério Público para iniciar validamente o procedimento criminal, mesmo nos casos em que, formalmente, a vítima não apresentou queixa expressa, desde que tal iniciativa se revele adequada à salvaguarda do interesse da vítima e sejam observados os demais requisitos legais. Esta prerrogativa legal insere-se na lógica de reforço da protecção dos direitos fundamentais das vítimas de crimes sexuais, tendo em conta a reconhecida vulnerabilidade e o impacto psicológico que estes ilícitos frequentemente acarretam, o que pode justificar, do ponto de vista jurídico e ético, uma intervenção oficiosa das autoridades judiciárias em nome do interesse superior da vítima e da ordem jurídica.
A alegação do arguido de que o Ministério Público careceria de legitimidade para deduzir acusação, por falta de queixa da vítima, revela-se, por conseguinte, infundada e desconforme com o regime jurídico aplicável, na medida em que ignora a faculdade expressamente conferida ao Ministério Público pelo artigo 178.º, n.º 2, do Código Penal, bem como o dever legal, consagrado no artigo 262.º do Código de Processo Penal, de promover o processo penal quando estejam reunidos indícios suficientes da prática de crime, nomeadamente de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.
Por conseguinte, a actuação do Ministério Público no caso concreto revela-se não só legítima, como juridicamente obrigatória, encontrando-se ancorada no quadro legal em vigor, sendo insusceptível de configurar qualquer nulidade insanável.
Importa sublinhar que a iniciativa do Ministério Público, nos termos do artigo 178.º, n.º 2, está sujeita a um critério de ponderação jurídica objectiva: a protecção do interesse da vítima. Não se trata de uma actuação discricionária ou arbitrária, mas de uma prerrogativa que visa colmatar situações de silêncio ou hesitação da vítima, garantindo, ainda assim, o equilíbrio processual e o respeito pelas garantias de defesa do arguido.
No presente processo, a actuação do Ministério Público revela-se plenamente conforme à lei, tendo o Ministério Público dado início ao procedimento criminal dentro do prazo legal de um ano, após ter tido conhecimento dos factos e dos seus autores, e tendo ponderado, de forma adequada, o interesse da vítima, demonstrado pelas circunstâncias dos factos, pelo impacto psicológico evidente e pela necessidade de tutela penal efectiva.
A nulidade insanável a que alude o artigo 119.º, alínea b), do Código de Processo Penal pressupõe a falta de promoção válida do processo penal por quem tenha legitimidade para o efeito, ou a prática de actos essenciais por sujeito processual incompetente, afectando a estrutura e a regularidade do processo de forma irreparável. Contudo, tal nulidade pressupõe uma actuação fora dos limites legais ou uma violação grosseira do estatuto processual das partes, o que, manifestamente, não se verifica nos presentes autos.
Importa ainda destacar que, nos casos de crimes de violação, o Ministério Público não apenas dispõe de legitimidade para deduzir acusação, como, em determinadas circunstâncias, tem o dever funcional e legal de promover o processo penal, designadamente quando o interesse da vítima, a gravidade dos factos e o impacto social do crime o exigem. Tal actuação decorre do princípio da legalidade da acção penal e do dever de defesa dos bens jurídicos fundamentais, como a liberdade e a autodeterminação sexual.
Assim, a pretensão do arguido de ver declarada a nulidade insanável da acusação, com base em uma alegada falta de legitimidade do Ministério Público, carece de qualquer sustentação jurídica, revelando-se uma manobra processual infundada, sem correspondência na letra da lei ou na realidade factual do processo.
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2) Nulidade do acórdão por omissão de fundamentação de facto
A exigência de fundamentação das decisões judiciais constitui uma das garantias estruturantes do processo penal e integra, de forma inequívoca, o catálogo de direitos fundamentais assegurados tanto pela Constituição da República Portuguesa como pelo direito internacional vinculativo do Estado Português. O dever de fundamentação, enquanto corolário do Estado de direito e do princípio da legalidade, está consagrado no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, que determina que todas as decisões dos tribunais, exceptuadas as de mero expediente, devem ser fundamentadas na forma prevista na lei.
No contexto do processo penal, tal exigência assume relevância acrescida, tendo em conta as particularidades do julgamento criminal, a gravidade das consequências que podem advir para o arguido e o imperativo de assegurar o contraditório, a transparência e o efectivo controlo jurisdicional das decisões. Daí que o Código de Processo Penal estabeleça, no seu artigo 374.º, n.º 2, a obrigação de a sentença ou o acórdão conterem, para além da indicação dos factos provados e não provados, a motivação da decisão, com especificação dos fundamentos de facto e de direito que a sustentam.
A omissão, total ou substancial, da fundamentação de facto configura, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, uma nulidade da sentença ou do acórdão, a qual, sendo de conhecimento oficioso, afecta a regularidade processual e impõe, em regra, a anulação do acto decisório. Contudo, a verificação desta nulidade pressupõe, em rigor, a inexistência ou insuficiência grave da motivação, de tal modo que impeça a apreensão dos fundamentos concretos que sustentam o juízo de condenação ou absolvição, não bastando a mera discordância do arguido quanto à apreciação da prova ou à valoração dos factos pelo tribunal.
O direito ao recurso, a eficácia do contraditório e o respeito pelas garantias de defesa do arguido exigem que a decisão judicial seja suficientemente fundamentada, permitindo às partes compreender os critérios valorativos adoptados pelo tribunal e sindicá-los em sede de instância superior. Esta exigência não significa, todavia, que a fundamentação tenha de ser exaustiva ou responder a todas as alegações das partes, bastando que traduza de forma clara e coerente as razões objectivas que determinaram a convicção do julgador.
A nulidade da decisão por omissão de fundamentação de facto, prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, não deve ser confundida com situações em que o tribunal, embora tendo fundamentado a sua decisão, não acolhe a versão dos factos apresentada pelo arguido ou valoriza, de forma diversa, os elementos probatórios constantes dos autos. Com efeito, o que está em causa na previsão da nulidade por omissão de fundamentação não é o mérito da valoração da prova em si, mas sim a inexistência, a insuficiência grave ou a manifesta incongruência da motivação, de tal forma que impossibilite o exercício do contraditório e o controlo jurisdicional da decisão.
Neste sentido, é essencial distinguir entre:
i. A nulidade formal da decisão, por omissão ou insuficiência grave da fundamentação, que afecta a estrutura e a validade do acto;
ii. As situações de discordância subjectiva do arguido quanto à apreciação da prova, que se enquadram no âmbito do recurso sobre a matéria de facto, mas não configuram, por si só, nulidade da decisão.
A fundamentação da decisão judicial, em sede de apreciação da prova, deve traduzir-se na exposição clara dos motivos pelos quais o tribunal atribui maior ou menor credibilidade a determinados depoimentos, documentos ou demais elementos de prova, explicando, de forma lógica e articulada, as razões que conduziram à convicção formada. Não se exige, todavia, uma fundamentação exaustiva ou exaustivamente detalhada, bastando que permita compreender os fundamentos essenciais da decisão e assegure o exercício efectivo do contraditório pelas partes. In casu, o arguido AA invoca, em sede de recurso, a nulidade do acórdão proferido pelo tribunal recorrido, por alegada omissão de fundamentação de facto. Sustenta o recorrente que a decisão condenatória não estaria suficientemente motivada no que respeita à apreciação da prova produzida em julgamento, particularmente quanto à credibilidade atribuída às declarações da ofendida e à desvalorização da sua própria versão dos factos.
Importa, contudo, aferir se os fundamentos invocados pelo arguido configuram, efectivamente, uma situação de nulidade por omissão de fundamentação de facto, nos termos exigidos pelo artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, ou se, pelo contrário, traduzem apenas uma discordância subjectiva quanto à apreciação e valoração da prova, matéria insusceptível de integrar o conceito de nulidade formal da decisão.
Da leitura atenta do acórdão recorrido, constata-se que o tribunal, na sua motivação de facto, procedeu à indicação clara dos elementos probatórios valorados, explicando as razões que sustentaram a convicção formada quanto aos factos provados e não provados. Em particular, o tribunal:
i. Explicou as razões pelas quais atribuiu credibilidade às declarações da vítima, designadamente a sua coerência interna, a espontaneidade e o facto de estarem corroboradas por outros elementos probatórios;
ii. Fundamentou a rejeição da versão do arguido, assinalando contradições, incongruências e falta de suporte nos demais meios de prova;
iii. Valorou os depoimentos das testemunhas e os elementos documentais, integrando-os numa apreciação crítica e lógica da globalidade da prova.
Deste modo, a decisão contém fundamentação de facto suficiente e coerente, permitindo às partes compreender os fundamentos da condenação e exercer, em termos efectivos, o contraditório e o direito ao recurso. Não se verifica, assim, omissão total ou insuficiência grave da motivação, única situação que, à luz da lei, pode configurar nulidade formal da decisão.
Admitir a tese do arguido, no sentido de que a condenação violou os princípios invocados, equivaleria a comprometer o normal funcionamento do sistema de justiça penal, subvertendo as regras da livre apreciação da prova e transformando as garantias fundamentais do processo penal em instrumentos de impunidade, o que não encontra respaldo jurídico.
Em suma:
O acórdão recorrido cumpre integralmente as exigências legais, apresentando uma motivação de facto suficientemente detalhada e compreensível, que expõe os fundamentos da decisão de forma lógica e articulada. As razões da credibilidade atribuída à vítima, as contradições detectadas nas declarações do arguido e a integração dos demais meios de prova foram objecto de exposição explícita, permitindo às partes conhecer, em termos efectivos, o percurso racional que conduziu à condenação.
Inexiste omissão de fundamentação de facto susceptível de gerar nulidade, revelando-se infundada a tese do arguido, que assenta numa leitura deturpada do conceito jurídico de nulidade da decisão, confundindo-o com o simples desacordo quanto ao mérito da apreciação da prova.
Improcede, pois, a invocada nulidade.
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3. Erro notório na apreciação da prova
O instituto do erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, visa salvaguardar a justiça material, permitindo a correcção de decisões manifestamente erróneas ou arbitrárias em sede de recurso. No entanto, a invocação deste vício obedece a critérios restritivos e rigorosos, sendo uma figura excepcional, não se confundindo com a mera discordância do recorrente quanto à valoração da prova. In casu, o arguido AA invoca erro notório na apreciação da prova, alegando que o tribunal recorrido valorou incorrectamente os elementos probatórios, designadamente no que se refere à prática dos crimes de violação agravada e à utilização de coacção e força sobre a vítima.
Nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, o recurso pode ser interposto com fundamento em vício de erro notório na apreciação da prova. Este vício caracteriza-se por:
i. Conclusões ilógicas ou manifestamente contrárias às regras da experiência comum;
ii. Desvalorização de provas objectivas essenciais, que tornem insustentável a decisão proferida.
A invocação indevida do erro notório tem constituído prática comum em recursos infundados, sendo fundamental distinguir, em sede de análise técnico-científica, os verdadeiros vícios processuais dos meros argumentos dilatórios ou retóricos.
A invocação do erro notório na apreciação da prova, prevista no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, exige a verificação cumulativa de pressupostos objectivos e juridicamente delimitados, a saber:
1. Notoriedade do erro
O erro tem de ser manifesto, evidente e imediatamente percepcionável por qualquer observador, independentemente da análise exaustiva dos autos.
A decisão deve conter contradições internas flagrantes, incongruências lógicas ou juízos inexplicáveis.
2. Vício intrínseco à decisão
O erro notório resulta exclusivamente da análise do próprio texto do acórdão e dos elementos de prova documentados;
Não se admite que o tribunal de recurso substitua a sua convicção à da 1.ª instância com base em mera reapreciação da prova.
3. Violação das regras da lógica ou da experiência comum
O tribunal recorrido deve ter chegado a conclusões que, objectivamente, colidam com a experiência comum ou as leis naturais;
Exemplos incluem decisões contrárias ao senso comum, incongruências factuais ou impossibilidades materiais.
4. Inaplicabilidade à discordância subjectiva do recorrente
O mero desacordo do arguido quanto à valoração da prova não consubstancia erro notório;
É necessário demonstrar que a decisão ofende o juízo racional, não se bastando com divergências sobre a interpretação dos factos.
Perante o quadro legal exposto, e conforme já supra expendido, conclui-se que o erro notório é figura excepcional e de aplicação restrita, destinada a corrigir decisões flagrantemente ilegais ou ilógicas, não se confundindo com a liberdade de discordância do arguido sobre a valoração da prova.
Analisando o acórdão recorrido, no qual o arguido AA foi condenado pela prática de crimes de violência doméstica e de três crimes de violação agravada, verifica-se que:
1. O Tribunal de 1.ª Instância fundamentou de forma exaustiva e coerente.
O tribunal explanou, de forma detalhada, as razões que o levaram a considerar os factos provados, em particular quanto à prática dos actos de violação agravada;
A decisão assenta na apreciação conjugada de prova testemunhal e documental;
Foram valoradas as declarações da ofendida, reconhecidas como credíveis, coerentes e compatíveis com os demais elementos dos autos.
2. Não se detectam contradições insanáveis ou incongruências lógicas.
A narrativa dos factos é coerente e lógica;
A fundamentação segue os padrões da experiência comum;
Não existem no texto da decisão incongruências que permitam afirmar a existência de erro notório.
3. As conclusões do Tribunal a quo são plausíveis e razoáveis
As ilações extraídas sobre a utilização de força, intimidação e coacção estão sustentadas na prova produzida;
A intencionalidade dolosa do arguido decorre da contextualização dos factos e da análise do seu comportamento, antes, durante e após os actos ilícitos;
O tribunal valorou aspectos como as ameaças, a persistência dos actos, o controlo exercido sobre a vítima e a coerência dos depoimentos.
O arguido, ao invocar erro notório, limita-se a:
Exprimir o seu desacordo com a convicção formada pelo tribunal;
Alegar que as suas declarações, prestadas em sede de audiência, deveriam ter conduzido a decisão diversa;
Não aponta contradições evidentes, ilogicidade ou impossibilidades materiais no acórdão.
Conforme referido, este tipo de discordância subjectiva não constitui erro notório, sendo inadmissível transformar o recurso num novo julgamento da matéria de facto.
Na ausência de erro notório:
i. Mantém-se a presunção de regularidade e legalidade da decisão proferida;
ii. O tribunal superior respeita o princípio da imediação, que confere primazia à apreciação da prova efectuada presencialmente;
iii. A livre convicção do julgador, expressamente fundamentada, prevalece, desde que não enferme de vício grave, o que não se verifica.
Pelo exposto, conclui-se pela inexistência de erro notório na apreciação da prova. A decisão encontra-se devidamente fundamentada, respeita as regras da lógica e da experiência comum e não evidencia qualquer contradição insanável.
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4) Erro de julgamento
A impugnação da matéria de facto em recurso e o rigor formal exigido pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP constituem tema central na garantia do processo equitativo, justo e salvaguarda do contraditório. No caso sub judice, a matéria impugnada – respeitante aos pontos 19–31 e 60–62 do acórdão recorrido – respeita aos actos de violação, exigência de força e a configuração da intenção dolosa do arguido.
O artigo 412.º do Código de Processo Penal regula a impugnação da decisão recorrida:
i. n.º 1 delimita o objecto do recurso pelas conclusões;
ii. n.º 3 exige que a impugnação da matéria de facto inclua:
a. identificação dos pontos de facto objecto de controvérsia;
b. indicação das provas que impõem decisão diversa;
c. referências concretas (produção ou documentos, discussão oral) – nomeadamente, no caso de gravações, citações precisas.
iii. n.º 4 reforça a exigência em matéria de facto e de gravações, devendo serem indicados excertos objectivamente relevantes.
Estas exigências visam:
i. Assegurar o devido contraditório, evitando peças recursórias vagas ou genéricas;
ii. Determinar a racionalização do recurso;
iii. Assegurar controlo judiciais efectivos. In casu, o arguido AA pretende impugnar a decisão sobre matéria de facto relativa aos pontos 19 a 31 e 60 a 62 do acórdão recorrido, os quais reportam, respectivamente, à prática de actos de violação agravada e a circunstâncias que demonstram a utilização de força e coacção, bem como a consciência e intenção dolosa do arguido. Contudo, da leitura atenta da motivação de recurso apresentada, constata-se que:
O arguido fundamenta a impugnação quase exclusivamente nas suas próprias declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento;
i. Não identifica de forma técnica e precisa as concretas provas que impõem decisão diversa da proferida;
ii. Não procede à especificação objectiva das passagens relevantes das gravações, em violação directa do disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP.
Esta omissão estrutural compromete seriamente a admissibilidade e eficácia da impugnação da matéria de facto, porquanto o recurso deve ser estruturado segundo parâmetros técnicos rigorosos que permitam:
i. Identificação objectiva dos pontos de facto controvertidos;
ii. Apontamento preciso das provas divergentes ou contrárias;
iii. Referência às gravações que possam sustentar decisão diversa.
Dito de outra forma, a análise da motivação apresentada pelo arguido evidencia lacunas técnicas graves, susceptíveis de inviabilizar a sindicância da matéria de facto pretendida. A ausência de concretização dos meios de prova e das passagens relevantes da gravação constitui vício formal que pode levar à rejeição ou improcedência do recurso nesta parte.
Vejamos, mais em detalhe:
i. O sistema processual penal português estrutura o controlo da matéria de facto em sede de recurso num equilíbrio delicado entre:
ii. O respeito pelo poder da 1.ª instância na apreciação directa da prova, alicerçada nos princípios da imediação e oralidade;
iii. A garantia de fiscalização e reparação de erros ou vícios de julgamento, assegurada pelas instâncias superiores;
iv. A exigência de rigor técnico no delineamento do objecto do recurso, como salvaguarda da celeridade, segurança jurídica e contraditório.
Estes pressupostos encontram acolhimento legal nos artigos 127.º, 412.º e 410.º do Código de Processo Penal.
Da conjugação do ora expendido resulta que:
i. O ónus da concretização recai integralmente sobre o recorrente;
ii. A mera transcrição de depoimentos ou expressão de discordância subjectiva é insuficiente;
iii. A falta de especificação das passagens da gravação impede a reponderação da matéria de facto em sede de recurso;
iv. A imediação e oralidade conferem especial deferência à 1.ª instância na apreciação da prova pessoal.
Neste contexto jurídico, a deficiente estruturação do recurso apresentado pelo arguido, desprovida de especificação concreta e de indicação precisa das passagens das gravações, conduz inevitavelmente à improcedência ou rejeição da impugnação da matéria de facto.
Mesmo que se entendesse que a impugnação de facto deduzida pelo arguido cumpre formalmente os requisitos do artigo 412.º do CPP, sempre seria improcedente, por ausência de fundamentos substantivos aptos a pôr em crise a decisão proferida pela 1.ª instância.
Vejamos:
i. O tribunal recorrido valorou de forma exaustiva as declarações da ofendida, reconhecidas como coerentes, detalhadas e compatíveis com outros elementos probatórios;
ii. Atendeu às provas documentais e testemunhais que corroboram os factos provados;
iii. Analisou o comportamento do arguido em audiência, as suas contradições e tentativas de minimizar os factos;
iv. Assistiu directamente à produção da prova;
v. Avaliou factores inatingíveis pela mera leitura de transcrições, como linguagem corporal, hesitações ou espontaneidade;
vi. Considerou que as alegações do arguido foram contraditadas por prova testemunhal e documental.
Acresce dizer que inexiste nos autos qualquer elemento objectivo que contrarie os factos provados relativos à prática dos actos de violação e à utilização de força. E a estrutura argumentativa da peça recursória assenta basicamente numa negação genérica e subjectiva dos factos.
Por sua vez, o tribunal a quo valorou os factos segundo padrões de experiência e lógica, devidamente explanados no acórdão.
As interpretações e valorizações da prova são plausíveis e compatíveis com a prova produzida, não se verificando decisões ilógicas.
Assim, ainda que se admitisse a apreciação da impugnação da matéria de facto apresentada pelo arguido, esta revelar-se-ia totalmente improcedente, em face da consistência da prova, da lógica da decisão e da inexistência de erro ou vício que imponha decisão diversa.
Termos em que improcede o invocado erro de julgamento.
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5) Violação dos princípios da presunção de inocência e do "in dubio pro reo"
A presunção de inocência e o princípio do in dubio pro reo constituem pilares estruturantes do processo penal e assumem expressão constitucional e legal inequívoca no ordenamento jurídico português. Estes princípios visam garantir o equilíbrio processual, assegurar a protecção dos direitos fundamentais do arguido e impedir condenações assentes em incertezas ou deficiências probatórias, funcionando como travões essenciais à arbitrariedade judicial e como corolários do Estado de direito.
O princípio da presunção de inocência encontra consagração expressa no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, o qual determina que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Este preceito, além de garantir o estatuto jurídico do arguido ao longo do processo, impõe regras concretas quanto à distribuição do ónus da prova, determinando que incumbe à acusação demonstrar, de forma cabal, a verificação dos pressupostos de facto e de direito do crime, não podendo o tribunal inverter, directa ou indirectamente, esse ónus em desfavor do arguido.
Já o princípio do in dubio pro reo consubstancia a concretização prática da presunção de inocência no momento da formação da decisão judicial, impondo que, em caso de dúvida objectiva, racional e insuperável sobre factos essenciais à condenação, o tribunal deve decidir a favor do arguido, optando pela solução mais favorável, que pode passar pela absolvição ou, em casos específicos, pela aplicação da sanção menos gravosa.
Estes princípios não podem, contudo, ser confundidos com garantias absolutas ou impeditivas do julgamento e da condenação sempre que existam versões contraditórias dos factos ou quando o arguido apresente uma narrativa divergente da acusação. Pelo contrário, cabe ao tribunal, através da livre apreciação da prova, formar a sua convicção, com base nos elementos probatórios produzidos, valorando criticamente testemunhos, documentos e indícios, de acordo com as regras da lógica, da experiência comum e do direito.
A correcta compreensão e aplicação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo exige que se estabeleça uma distinção rigorosa entre a existência de uma dúvida jurídica objectiva, que impeça a condenação, e a mera discordância subjectiva do arguido quanto à forma como o tribunal apreciou e valorou a prova produzida em julgamento. Esta distinção é fundamental para assegurar o equilíbrio processual e evitar que os princípios garantísticos sejam distorcidos ou instrumentalizados de forma a criar uma presunção inversa de veracidade das declarações do arguido.
O princípio in dubio pro reo apenas se aplica quando, após o tribunal ter procedido a uma análise crítica e exaustiva da prova, subsistam dúvidas objectivas, insuperáveis e razoáveis quanto à verificação de factos essenciais para a condenação. Não se exige, evidentemente, uma certeza absoluta ou matemática, mas tão somente que o tribunal forme a sua convicção de forma segura, lógica e fundamentada, com base na prova disponível e na sua apreciação crítica.
Quando o tribunal, após valorar os depoimentos, os documentos e os demais meios de prova, forma uma convicção segura sobre os factos, não existe espaço para a aplicação do in dubio pro reo, ainda que o arguido apresente uma versão divergente ou manifeste discordância quanto à apreciação da prova. É precisamente neste domínio que se situa a fronteira entre a protecção das garantias do arguido e a necessidade de assegurar a efectividade da justiça penal.
No caso sub judice, o arguido AA invoca, em sede de recurso, a violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, sustentando que a decisão condenatória proferida pelo tribunal de julgamento violou estas garantias fundamentais, por alegadamente se ter formado a convicção de culpa com base em prova insuficiente ou contraditória, nomeadamente nas declarações da vítima e na desvalorização da sua própria versão dos factos.
Contudo, a análise detalhada do acórdão recorrido permite concluir, de forma clara e objectiva, que o tribunal de julgamento fundamentou a sua decisão de modo lógico, racional e em estrita conformidade com os princípios legais e constitucionais aplicáveis. O tribunal expôs, de forma estruturada e coerente, os fundamentos que sustentaram a credibilidade atribuída às declarações da ofendida, nomeadamente a coerência interna do seu depoimento, a compatibilidade dos seus relatos com os demais elementos probatórios e a ausência de contradições ou incongruências relevantes.
Paralelamente, o tribunal justificou a rejeição da versão apresentada pelo arguido, assinalando as contradições internas das suas declarações, a falta de corroboração por outros meios de prova e a inconsistência lógica da sua narrativa face à globalidade dos elementos disponíveis. Esta apreciação da prova, devidamente motivada, enquadra-se no princípio da livre convicção do julgador, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, que exige que a formação da convicção resulte de uma análise crítica, racional e fundamentada dos meios de prova, mas não impõe que o tribunal acolha, de forma acrítica, a versão dos factos apresentada pelo arguido.
Não subsistindo dúvidas objectivas, sérias e insuperáveis quanto à verificação dos factos essenciais à condenação, não se impunha, nem legal, nem constitucionalmente, a aplicação do princípio do in dubio pro reo, sendo irrelevante, para efeitos de invalidade da decisão, a insatisfação subjectiva do arguido quanto à forma como o tribunal valorou a prova e formou a sua convicção.
No caso concreto dos autos, a decisão do tribunal de julgamento não apenas cumpre estes critérios, como se revela exemplar do exercício ponderado e racional da livre convicção, encontrando-se devidamente fundamentada e sustentada nos elementos probatórios produzidos. A decisão evidencia que o tribunal avaliou criticamente as declarações da vítima, confrontou as versões apresentadas, ponderou os depoimentos das testemunhas e integrou os elementos documentais e periciais, formando um juízo de certeza compatível com o quadro normativo e jurisprudencial vigente.
Em suma:
A invocação, pelo arguido, da violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo revela-se juridicamente infundada e carece de suporte fáctico ou normativo, representando, na prática, uma tentativa de transformar o simples desacordo com a decisão judicial em argumento técnico de invalidade, o que não encontra acolhimento na lei.
Termos em que, também nesta parte, improcede o recurso, por não se verificar qualquer violação do princípio "in dubio pro reo" e/ou princípio da presunção de inocência.
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Termos em que o recurso improcede in totum.
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V-DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da 3ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 4 (quatro) Ucs..
Dê imediato conhecimento do teor deste acórdão ao tribunal “a quo”, com indicação de que se não mostra ainda transitado em julgado.
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Lisboa e Tribunal da Relação, data e assinatura digitais Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP). Ortografia conforme pré-acordo
10 de Julho de 2025
Alfredo Costa
Cristina Almeida e Sousa
Ana Rita Loja