FACTOS COMPLEMENTARES
FACTOS CONCRETIZADORES
CONTRATO DE SEGURO
Sumário

- O juiz deverá considerar os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar – art.º 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil;
- O artigo 47.º, da Lei do Contrato de Seguro, admite e regula o seguro por conta própria, nomeadamente em face da tutela do interesse próprio do tomador do seguro;
- O vendedor que vendeu uma escultura e se comprometeu com o respectivo envio e entrega perante o comprador, tem um interesse relevante em transferir os riscos de perda ou de danos da coisa durante o transporte, mediante a celebração de seguro por conta própria, prevenindo o sinistro e a eventualidade de ter de restituir o preço da venda;
- O âmbito de cobertura da apólice de seguro resulta da lei e da vontade das partes, precisamente em face dessa apólice de seguro. Constando das condições gerais da apólice de seguro que “O presente contrato de seguro garante os bens e/ou interesses patrimoniais estimáveis em dinheiro, descritos nas Condições Particulares, durante o seu transporte, no percurso normal da viagem segura, quer este se efectue por via marítima, fluvial, lacustre, terrestre ou aérea de acordo com o expressamente previsto neste contrato”, não há fundamento para considerar que o uso da via aérea esteja excluído da respectiva cobertura.
- Para mais, quando a tomadora não indicou à seguradora qual o meio de transporte que iria ser utilizado, afirmando desconhecer o mesmo, tendo pedido, o que foi aceite, seguro para o transporte do Porto para a Suíça.

Texto Integral

Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório.
1.1. A autora AA, Unipessoal, Lda., demandou as rés TNT Express Worldwide (Portugal), Transitários, Transportes e Serviços Complementares, Unipessoal, Lda., e Victoria – Seguros, S.A., peticionando a condenação solidária destas no pagamento da quantia de € 12 580,55, acrescida de eventuais despesas com transporte que se venham a revelar necessárias e juros de mora, à taxa legal, desde da citação até efetivo e integral pagamento.
Alegou para o efeito que contratou a primeira ré para proceder ao transporte combinado por via aérea e terrestre de uma encomenda, pelo preço de € 220,55. Para cobertura de riscos de perda ou danos na mercadoria, a autora celebrou contrato de seguro de transporte de mercadorias com a segunda ré, transferindo para esta a responsabilidade civil pelo risco de perda ou dano sofrido pela mercadoria durante o transporte. Sucede que, aquando da entrega da encomenda ao destinatário, se constatou que a embalagem se encontrava perfurada. A escultura que era transportada valia € 12.360 e ficou extensamente danificada.
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1.2. A ré transportadora contestou a acção, impugnando alguns dos fundamentos da acção e referindo que o contrato celebrado com a autora era de transporte aéreo internacional de mercadorias, sujeito ao regime de limitação da responsabilidade constante da Convenção de Montreal, previsto no artigo 22.º.
Terminou pugnando no sentido de ser julgada a acção parcialmente improcedente, por não provada, e, em consequência, ser a Ré parcialmente absolvida do pedido.
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1.3. A ré seguradora também contestou a acção e referiu que o seguro de transporte cobre os riscos inerentes ao transporte da mercadoria indicada nos termos e condições previstos no Certificado de Seguro. De acordo com este Certificado, o meio de transporte a utilizar era o camião. no caso em apreço, estamos perante um transporte aéreo sujeito, segundo a Autora, à Convenção de Varsóvia. A exclusão do alegado sinistro no âmbito de cobertura da Apólice constitui matéria de excepção.
A Autora vendeu ao seu cliente a escultura. O valor de venda foi pago pelo cliente. É forçoso concluir que a Autora não tem legitimidade, do ponto de vista substantivo, para vir reclamar na presente acção o valor de venda da escultura.
Considerou que a acção deve ser julgada improcedente relativamente à 2ª Ré.
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1.4. Os autos foram saneados.
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1.5. Subsequentemente, a autora veio aos autos e, a pretexto da apresentação de documentos, disse que: “de forma a tornar evidente que a Autora após a devolução da escultura, “La Fusée Lunaire”, devolveu a quantia pecuniária ao seu cliente, e aproveitando para melhor ilustrar os danos sofridos pela escultura bem como pela caixa que a acondicionava, requerer-se, mui respeitosamente, nos termos do disposto no artigo 423 n.º 3 do CPC a junção aos presentes autos dos seguintes documentos (…)”.
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1.6. Os documentos foram admitidos por despacho proferido no dia 14/11/2023.
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1.7. Após julgamento, foi decidido:
1.º Condenar a Ré TNT EXPRESS WORLDWIDE (PORTUGAL), TRANSITÁRIOS, TRANSPORTES E SERVIÇOS COMPLEMENTARES, UNIPESSOAL, LDA. e a Ré VICTORIA – SEGUROS, SA no pagamento solidário à Autora AA, Unipessoal, Lda. da quantia 1.000 USD (mil dólares), acrescida de juros de mora desde a citação (23.12.2022) até integral pagamento, à taxa legal aplicável de 4%, absolvendose as Rés do demais peticionado;
2.º Condenar a Ré VICTORIA – SEGUROS, SA no pagamento à Autora AA, Unipessoal, Lda.. da quantia € 10.000 (dez mil euros), descontado o montante referido em 6.1. caso por si liquidado, acrescida de juros de mora desde a citação (23.12.2022) até integral pagamento, à taxa legal aplicável de 4%, absolvendo-se a Ré do demais peticionado; e,
3.º Condenar as partes no pagamento das custas processuais, na proporção do decaimento, que se fixa em 56,625 % para a Autora AA, Unipessoal, Lda., 3,63 % para a Ré TNT Express Worldwide (Portugal), Transitários, Transportes e Serviços Complementares, Unipessoal, Lda. e 39,745 % para a Ré Victoria – Seguros, SA.
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1.8. Inconformada, a ré seguradora interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1. No entender da Recorrente, são três as questões a analisar no âmbito deste recurso:
a) ilegitimidade substantiva da Autora quando interpôs a presente acção;
b) alteração da causa de pedir;
c) exclusão do âmbito de cobertura da apólice de seguro.
2. A Autora, ora Recorrida, alegou que vendeu ao seu cliente uma determinada escultura, que, a pedido desse cliente, comprometeu-se a enviá-la para a Suíça, através de uma empresa de transportes e que o valor de venda da escultura foi pago pelo cliente.
3. Não foi alegado nem foi demonstrado na p.i. que a Recorrida tenha sofrido qualquer prejuízo, uma vez quando a caixa com a escultura foi entregue à Ré TNT para transporte, a Recorrida já não era a proprietária da mesma, dado que que o preço de venda foi recebido pela Recorrida a 3 de Maio de 2022 e o documento de transporte (Air Waybill) foi emitido no dia 6 do mesmo mês (nº 4 e 7 da Matéria de Facto Provada).
4. Assim sendo, é forçoso concluir que a Recorrida não tinha legitimidade, do ponto de vista substantivo, para vir reclamar na presente acção o valor de venda da escultura.
5. Resulta do nº 1 do artigo 43º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, que o segurado deve ter um interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato, mas o certo é que a Recorrida não tinha qualquer interesse digno de protecção legal quando intentou a presente acção contra a Recorrente.
6. No caso em apreço, a Recorrida já não era a proprietária da escultura quando a mesma foi entregue à TNT a fim de ser transportada para a Suíça, não sofreu qualquer prejuízo em consequência dos danos causados à escultura durante o transporte e não tinha qualquer prejuízo a reclamar quando a acção foi intentada.
7. Na sequência da marcação do julgamento, a Recorrida veio alegar que, após a devolução da escultura, devolveu a quantia pecuniária ao seu cliente e juntou aos autos a referida nota de crédito emitida em 02.02.2023 no valor de € 12.360,00 bem como o comprovativo da transferência desse montante a favor do comprador BB.
8. Sucede que a devolução do preço de venda da escultura como consequência da emissão de uma nota de crédito a favor do comprador só ocorreu depois de a acção ter sido contestada pela Recorrente.
9. Trata-se, no entender da Recorrente, de factos novos que consubstanciam uma alteração da causa de pedir.
10. Não tendo havido qualquer confissão por parte da Recorrente e muito menos acordo das partes, parece evidente que foi ilegal a alteração da causa de pedir que assentou nos factos decorrentes da emissão da referida nota de crédito e devolução do valor ao comprador da escultura.
11. Esteve mal a Mma. Juiz a quo ao “ignorar” que estávamos perante uma alteração da causa de pedir, não admitida pela lei processual de acordo com o disposto no artigo 264º e no nº 1 do artigo 265º do Código de Processo Civil, que acabou por ser determinante para a procedência da acção.
12. Foi dado como provado que a Recorrente aceitou a transferência da responsabilidade relativa ao transporte do Porto para a Suíça da escultura e pelo valor de € 12.360, constando da apólice que o meio de transporte era “camião”, apesar de a Recorrida desconhecer à data qual o meio de transporte que iria ser utilizado (nº 13 e 15 da Matéria de Facto Provada).
13. Na verdade, na página 17 da sentença é referido – e bem – que “… o preenchimento e aceitação do Air Waybill (carta de porte aéreo) identificado em 8) faz presumir a existência de um contrato de transporte de mercadoria por via aérea”.
14. Aceita-se que, no momento da celebração do contrato de seguro, a Recorrida desconhecesse qual o meio de transporte que iria ser utilizado para a deslocação da mercadoria (escultura) de Portugal para a Suíça mas esse desconhecimento deixou de existir a partir do momento em que foi preenchida e assinada a Carta de Porte Aéreo, no dia 5 de Junho de 2022, ou seja quase um mês depois de ter sido emitido o Certificado de Seguro.
15. Ora, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 158º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, o seguro de transporte deve precisar, entre outras coisas, o modo de transporte.
16. Sucede que, depois de ter sido preenchido e assinado pela Recorrida o Air Waybill”, não foi comunicado à Recorrente que o meio de transporte utilizado seria a via aérea pelo que, quando a mercadoria foi entregue para ser transportada, continuava a vigorar um seguro de transporte que cobria os riscos inerentes ao transporte da mercadoria indicada nos termos e condições previstos no Certificado de Seguro e, de acordo com este Certificado, o meio de transporte a utilizar era o camião.
17. Aquando do início do transporte da escultura, a Recorrente não sabia que estava perante um transporte aéreo sujeito à Convenção de Varsóvia, pelo que é forçoso concluir que a avaria ocorrida durante o transporte não está incluída no âmbito de cobertura do seguro, uma vez que consta no Certificado de Seguro que o transporte seria efectuado por camião, o que, de facto, não aconteceu.
18. No Certificado de Seguro constava apenas que o transporte seria efectuado de Portugal (Trofa) para a Suíça (La Chaux-de Fonds), sem qualquer ponto de passagem ou transbordo uma vez que a quadrícula “Via” não foi preenchida, pelo era de admitir que o camião pudesse fazer um transporte directo, com partida do terminal da Ré TNT e entrega da escultura, três ou quatro dias depois como é normal nestes casos, em casa do destinatário na Suíça.
19. Estabelece o nº 1 do artigo 24º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, que “… o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”.
20. Ora, foi dado como provado que a Ré TNT procedeu à recolha da escultura, no dia 06 de maio de 2022, na galeria da Autora, e que a mesma só foi entregue na morada indicada pelo cliente na Suíça, no dia 17 de maio de 2022, sendo que, ao longo desses 11 dias, a caixa com a escultura foi objecto de diversas operações de manuseamento e de vários transbordos., conforme resulta, de forma clara e inequívoca, da página 8/22 do relatório pericial emitido pela Engipar, que consiste no “Travel history” (doc. 1 junto com esta alegações e que já constava dos autos desde o dia 26.10.2023).
21. Como é referido – e bem – na sentença recorrida a mercadoria saiu do Porto no dia 09.05.2022 pelas 21:32, tendo chegado ao Aeroporto Charles de Gaulle (Paris) no dia 10.05.2022 pelas 00:18 e, transportada por camião para a Suíça, foi entregue, depois de diversas operações de manuseamento e de transbordo, na morada indicada pelo cliente no dia 17 de maio de 2022 (nº 19 da matéria de facto provada).
22. Ora, o seguro apenas podia produzir efeitos nos termos e condições previstos no Certificado de Seguro, ou seja, no pressuposto de que o transporte da caixa com a escultura seria efectuado por camião desde o Porto até à Suíça, não estando previstas todas aquelas operações de manuseamento e de transbordo e, muito mesmo, que o transporte fosse realizado por via aérea para o Aeroporto Charles De Gaulle em Paris.
23. A informação relativa às condições de transporte, manuseamento e armazenagem das mercadorias consubstancia informação relevante para a aferição do risco relativo a um contrato de seguro de transportes.
24. Em conclusão foi realizado um transporte cujos riscos acrescidos não estavam previstos no Certificado de Seguro e, como tal, não está o sinistro incluído no âmbito de cobertura da apólice de seguro, com fundamento na violação do dever de informação que está previsto no mencionado nº 1 do artigo 24º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
25. Os pressupostos que foi aceite o seguro e emitido o Certificado de Seguro foram alterados sem que a Recorrente tivesse sido informada pela Recorrida.
26. A informação relativa às condições de transporte é essencial para apreciação dos riscos por parte da seguradora, sendo certo que se afigura relevante qualquer alteração que ocorra entre a celebração do seguro e o início do transporte da qual resulte, como parece ser o caso, um acréscimo de riscos.
27. O sinistro participado pela Recorrida não está incluído no âmbito de cobertura da apólice de seguro que foi contratada com fundamento na violação do dever de informação por parte a Recorrente, afastando o evento dos autos da esfera do seguro contratado. 28. A sentença recorrida fez incorrecta interpretação das provas apresentadas e violou, entre outras, as disposições constantes dos artigos nº 265º, nº 1, do Código de Processo Civil, e dos artigos 24º, nº 1, 43º, nº 1, e 158º, nº 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008.
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1.9. A autora contra-alegou referindo, em síntese, que a legitimidade substantiva não deve ser aferida com base no direito de propriedade sobre a escultura, mas antes à luz do contrato de seguro celebrado entre Recorrente e Recorrida. A legitimidade substantiva da Recorrida decorre da sua posição como tomadora e subscritora do contrato de seguro nos termos do qual a seguradora se obrigou a compensar os prejuízos resultantes da verificação do sinistro.
A causa de pedir da presente ação respeita ao contrato de seguro celebrado entre Recorrente e Recorrida e que visava cobrir os riscos decorrentes do transporte da escultura, sendo o efeito jurídico pretendido pela Recorrida o ressarcimento das perdas e/ou danos patrimoniais sofridos pelo bem seguro. A devolução do preço de venda da escultura e emissão da nota de crédito nada mais é do que um facto complementar e concretizador do que já havia sido alegado pela Recorrida em sede de petição inicial.
A Recorrente aceitou ab initio celebrar um seguro de transporte nestes termos, onde o tomador do seguro meramente explicou o percurso a ser efetuado (o local de recolha e o destino final), sem indicar o meio de transporte em causa.
A interpretação que conduz ao maior equilíbrio das prestações e que tem correspondência no texto do respetivo contrato de seguro é a de que a apólice cobre o transporte da escultura por via terrestre, fluvial, lacustre ou aérea e, por isso, o sinistro em causa está no âmbito da cobertura prevista no contrato celebrado pelas Partes.
Deve a apelação ser julgada totalmente improcedente, por não provada, devendo a sentença recorrida ser mantida nos seus exatos termos, com todas as legais consequências.
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1.10. As questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões da recorrente e centram-se no seguinte:
- Se ocorreu uma alteração da causa de pedir e suas consequências;
- Se a autora tem legitimidade substantiva para lhe ser reconhecido o direito à pretendida reparação; e,
- Se o sinistro está coberto pelo contrato de seguro de transporte.
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2. Fundamentação.
2.1. Foi julgado provado que:
1) A Autora AA, Unipessoal, Lda. é uma sociedade que se dedica, entre outros fins, à comercialização de obras de arte, incluindo esculturas, telas, pinturas e artigos relacionados.
2) A Ré TNT Express Worldwide (Portugal), Transitários, Transportes Serviços Complementares Unipessoal, Lda. é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços a terceiros no âmbito da planificação, controle, coordenação e direcção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, recepção e circulação de bens ou mercadorias.
3) No âmbito da sua atividade possui uma galeria de arte contemporânea, sita na R... Porto.
4) A Autora vendeu ao seu cliente BB, residente na Suíça, uma escultura designada “La Fusée Lunaire”, do Escultor CC, pelo valor de € 12 360,00 (doze mil trezentos e sessenta euros), que este liquidou no dia 03.05.2022.
5) Tendo a Autora emitido a competente factura, com o n.º FAC 1/139, de 29.04.2022, no montante de € 12 360,00.
6) A Autora, a pedido do seu cliente BB, comprometeu-se a enviar a escultura, através de uma empresa de transporte de mercadorias, para a seguinte morada Rue..., Suiça.
7) Para tal, a Autora acordou com a 1ª Ré, em 05.06.2022, que aceitou, efectuar o serviço de transporte da referida mercadoria desde a galeria da Autora, no Porto, até à morada referida em 6), mediante o pagamento de € 109,54 (cento e nove euros e cinquenta e quatro cêntimos), que a Autora liquidou.
8) Para tal, a Autora preencheu e assinou um formulário da 1ª Ré, denominado “Air Waybill”, no qual assinou a quadrícula “FedEX Intl. Economy”, por ser a opção mais económica e sem indicação do meio de transporte, colocando na descrição mercadoria que correspondia a 1 volume, com 10 kg de peso, “artwork, sculpture” e com o valor de € 12.360,00 (doze mil trezentos e sessenta euros).
9) Não tendo sido aposta qualquer outra declaração além das referidas no formulário, mais constando acima do campo onde foi aposta a assinatura, a declaração de aceitação dos Termos e Condições de Transporte da Ré, em particular, no que concerne à aplicação da Convenção de Montreal e aos respectivos limites de responsabilidade aí fixados, bem como aqueles que se encontram previstos nas Condições de Transporte da Ré.
10) O transporte “FedEX Intl. Economy” corresponde, por regra, a transporte terrestre. 11) Não obstante o referido em 10), o transporte da escultura efectuado pela 1ª Ré foi realizado por via aérea.
12) No ponto 20.4. das Condições de Transporte da Ré, disponíveis em https://www.fedex.com/en-pt/conditions-of-carriage.html#20t, consta a referência à limitação da responsabilidade, até USD 1.000 no que concerne a artigos únicos, sem prejuízo de valor superior fixado nas Convenções aplicáveis.
13) No exercício desta sua actividade e por força do contrato de seguro celebrado com a Autora, datado de 09.05.2022, titulado pela apólice n.º 11477182, a 2ª Ré aceitou a transferência da responsabilidade relativa ao transporte da escultura e pelo valor de € 12.360, constando da apólice que o meio de transporte era “camião”.
14) A apólice encontrava-se sujeita às as condições gerais juntas como Documento 1) com a contestação da 2ª Ré, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, designadamente, constando da Cláusula 4ª, sob a epígrafe, “Exclusões”, que: 1. Salvo convenção expressa em contrário nas Condições Particulares e /ou especiais da Apólice e mediante o pagamento de um prémio adicional, a VICTORIA não responde pelas perdas e /ou danos directos ou indirectos resultantes de: (…) c) mau acondicionamento ou deficiência ou insuficiência de acondicionamento ou de embalagem, da responsabilidade ou do prévio conhecimento do Segurado.
15) Não obstante o referido em 13), a Autora não indicou à 2ª Ré qual o meio de transporte que iria ser utilizado, afirmando desconhecer o mesmo, tendo pedido, o que foi aceite, seguro para o transporte do Porto para a Suíça.
16) A Autora providenciou pelo embalamento e acondicionamento da respectiva escultura, colocando-a numa caixa de madeira - que fazia de proteção exterior- dentro da referida caixa, colocou à volta da escultura papel esponjado (de polietileno), plástico filme e plástico de bolhas de ar, de forma a que não existisse qualquer folga entre a escultura e a caixa, evitando movimentação da mesma.
17) A forma de embalamento e acondicionamento é a habitualmente usada em transportes semelhantes, uma vez que, a escultura a transportar é de natureza frágil e de material facilmente deformável.
18) Após, a 1ª Ré procedeu à recolha da escultura, no dia 06 de maio de 2022, na galeria da Autora, a qual foi expedida sob tracking nº ....
19) A escultura foi entregue na morada indicada pelo cliente na Suíça, no dia 17 de maio de 2022.
20) A embalagem, caixa de madeira, quando recepcionada pelo cliente encontrava-se perfurada pela parte superior da escultura, que atravessou a caixa de dentro para fora. 21) A escultura encontrava-se desencaixada e deformada, tendo o espigão da ponta ficado inclinado, as barras longitudinais torcidas e as placas de alumínio desalinhadas,
22) O que ocorreu em face da forma como foi transportada. 23) Após comunicação do cliente, a Autora participou os factos ocorridos à 1ª e 2ª Ré.
24) O restauro da escultura, face aos estragos apresentados, importaria um custo de € 10 000,00, tendo o salvado (escultura danificada) o valor de € 2.000,00.
25) [infra eliminado, cfr. 2.2] A Autora, em face do ocorrido, devolveu, em 10.02.2023, o montante de € 12.360 a BB, emitindo a nota de crédito n.º NC 1/4, datada de 02.02.2023.
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2.2. A questão da alteração da causa de pedir.
A apelante suscitou nas suas alegações a questão da ilegalidade da alteração da causa de pedir, nomeadamente porque, terminados os articulados, a recorrida veio alegar que, após a devolução da escultura, devolveu a quantia pecuniária ao seu cliente e juntou aos autos a referida nota de crédito emitida em 02.02.2023 no valor de € 12.360,00 bem como o comprovativo da transferência desse montante a favor do comprador BB. Trata-se, no entender da recorrente, de factos novos que consubstanciam uma alteração da causa de pedir - cfr. conclusões 7 a 9.
Não se acompanha a argumentação da apelante quanto a esta questão, pela simples razão de que a autora não requereu a alteração da causa de pedir. O que sucedeu foi que, como relatado supra em 1.4., a autora veio aos autos e, a pretexto da apresentação de documentos, disse que: “de forma a tornar evidente que a Autora após a devolução da escultura, “La Fusée Lunaire”, devolveu a quantia pecuniária ao seu cliente, e aproveitando para melhor ilustrar os danos sofridos pela escultura bem como pela caixa que a acondicionava, requerer-se, mui respeitosamente, nos termos do disposto no artigo 423 n.º 3 do CPC a junção aos presentes autos dos seguintes documentos (…)”.
Mas, como é evidente, o requerimento em causa não se limitou a juntar quaisquer documentos e a justificar a sua pertinência, nomeadamente a indicar qual era o facto anteriormente alegado e sobre o qual se pretendia fazer prova ou contraprova, apesar de invocar que era para “melhor ilustrar os danos sofridos pela escultura”. A autora viu necessidade de introduzir algo de novo e que não tinha referido na petição inicial ou quando respondeu às excepções das contestações: devolveu uma quantia pecuniária (i. é o preço da venda que relatara na p.i.) ao seu cliente.
Relativamente à ré seguradora, a causa que a autora invoca para a respectiva demanda centra-se na celebração do contrato de seguro que cobre os riscos do transporte e na verificação de um sinistro. A questão da venda do objecto transportado para a Suíça, pelo preço de € 12.360, é referenciada como sendo um dano na esfera da autora, designadamente porque o cliente reclamou e a mesma explicitamente alegou que “os danos sofridos e aqui reclamados pela autora” tem de ser pagos pela segunda ré – cfr. art.º 32.º, da douta petição inicial.
A questão da propriedade do bem pode ser relevante para a solução jurídica do caso, mas não é o fundamento da acção. São questões bem diferentes saber:
1.º Se se verificou um sinistro e se a ré seguradora é responsável pela sua reparação; e,
2.º Qual é a medida dessa reparação, nomeadamente se inclui o valor da coisa transportada.
A autora nada alegou expressamente na petição inicial sobre a restituição do preço acordado para a venda, embora resulte implicitamente da petição inicial que a venda se gorou, em face da reclamação apresentada pelo cliente ao receber a coisa com extensos danos. As rés também não vieram excepcionar a ineptidão da petição inicial por não ter sido esclarecido o destino da coisa, nomeadamente quem sofreu o dano. Nem essa omissão poderia gerar a ineptidão da petição, mas – quando muito – poderia apenas ditar a parcial improcedência do pedido.
Não obstante e como vimos, o tribunal julgou provado que: “25) A Autora, em face do ocorrido, devolveu, em 10.02.2023, o montante de € 12.360 a BB, emitindo a nota de crédito n.º NC 1/4, datada de 02.02.2023”. Tal facto não foi alegado nos articulados da autora, nem esta introduziu o mesmo por meio de um articulado superveniente onde manifestasse, com boa fé processual, a sua relevância para a acção. A apelada considerou que “nada mais é do que um facto complementar e concretizador do que já havia sido alegado pela Recorrida, E que, em conformidade com a alínea b) do n.º 2 do Artigo 5.º do Código de Processo Civil, após dada a possibilidade à Recorrente de se pronunciar, foi, naturalmente, considerado pelo Tribunal a quo para a boa decisão da causa”.
Efectivamente, tal facto pode ser visto como a concretização da ideia que já perpassava da petição inicial, em face da reclamação do cliente da autora: gorou-se o negócio da venda. Mas com algo de novo e que é superveniente à petição inicial: a autora devolveu o valor do preço ao cliente. Miguel Teixeira de Sousa refere que “Os factos complementares (ou concretizadores) são os factos que, não integrando a causa de pedir (porque não são necessários para individualizar o direito ou o interesse alegado pela parte), pertencem ao Tatbestand da regra que atribui esse direito ou interesse ou são circunstanciais em relação ao facto constitutivo desse direito ou interesse” e acrescenta que “Os factos complementares adquiridos durante a instrução da causa só podem ser considerados se as partes tiverem tido a oportunidade de se pronunciarem sobre eles, ou seja, se as partes tiverem podido exercer o contraditório quanto a factos que lhes podem ser opostos. Em princípio, esta condição está preenchida, dado que, por natureza, a produção da prova está submetida ao contraditório (art. 415.º): “deve entender-se que a parte teve oportunidade de se pronunciar sobre um facto se o mesmo foi alvo de discussão em audiência de julgamento, tendo sido sobre ele inquirida testemunha, sob instância dos mandatários de ambas as partes” (RP 23/11/2021 (8994/19). 9 (b) O princípio da aquisição processual impõe que não se exija qualquer requerimento das partes (RE 3/11/2016 (232/10) e, menos ainda, qualquer concordância delas quanto à utilização do facto complementar (RC 16/2/2016 (12/14); RL 17/5/2018 (495/16); dif. LF I (2018), n.º 5; equiv. RC 25/5/2021 (118/20)). Isto não significa que, de molde a evitar uma decisão-surpresa (art. 3.º, n.º 3), o tribunal, em certas situações, não possa ter de advertir as partes de que pretende utilizar o facto complementar adquirido para a acção (RP 13/7/2022 (1836/12); GPS I (2022), n.º 15)” –in CPC Online, Versão de 2022.12, anotação ao art.º 5.º, págs. 9-10.
O artigo 5.º, do Código de Processo Civil, convocado pela apelada, confere ao juiz o poder de cognição dos factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar. No entanto e ao contrário do que é referenciado pela apelada, as rés não tiveram a possibilidade de se pronunciar sobre o aludido facto provado # 25, designadamente porque:
a) A autora não agiu de boa-fé e não observou os deveres de cooperação no seu requerimento em que invocou, de passagem e meramente para justificar a apresentação de documentos, que devolveu a quantia pecuniária ao seu cliente – cfr. art.º 8.º, do Código de Processo Civil. Tratava-se de um facto superveniente, pelo que a parte tinha o dever de informar em termos inequívocos as contrapartes e o tribunal da sua relevância; e,
b) O tribunal limitou-se a admitir os documentos – cfr. despacho de 14/11/2023, mas não alertou as partes de que pretendia fazer uso dos poderes de cognição quanto à matéria em causa: A Autora, em face do ocorrido, devolveu, em 10.02.2023, o montante de € 12.360 a BB, emitindo a nota de crédito n.º NC 1/4, datada de 02.02.2023.
Note-se ainda que o facto em causa é superveniente, mas não é constitutivo, modificativo ou extintivo do direito em causa – cfr. art.º 611.º, do Código de Processo Civil. O facto apenas reforça o que a autora já tinha expresso na petição inicial quanto à localização de um dano na sua esfera.
Entende-se, assim, que a sentença evidenciou, nesta parte e em face destas circunstâncias, uma nulidade por ter conhecido de uma questão de facto que não podia tomar conhecimento – art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil. Mais se considera que a nulidade está circunscrita ao julgamento do facto em causa (# 25), que será eliminado; que não se justifica mandar notificar as partes para se pronunciarem sobre tal facto ou para suprirem qualquer eventual deficiência ou omissão, pelas razões que infra se consignam; e que nada impede o conhecimento do mérito da apelação.
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2.3. A questão da legitimidade substantiva.
A apelante sustenta ainda que não foi alegado, nem foi demonstrado na petição inicial, que a Recorrida tenha sofrido qualquer prejuízo, uma vez quando a caixa com a escultura foi entregue à Ré TNT para transporte, a Recorrida já não era a proprietária da mesma, dado que o preço de venda foi recebido pela Recorrida a 3 de Maio de 2022 e o documento de transporte (Air Waybill) foi emitido no dia 6 do mesmo mês.
A argumentação da apelante é interessante, em especial se desconsiderarmos por completo as circunstâncias de:
a) A ré ser uma seguradora;
b) Que está a ser demandada com base num contrato de seguro que celebrou com a autora;
c) Perante um certificado de seguro emitido pela ré (doc. # 5 da petição inicial), onde consta como segurada a autora; e,
d) Perante uma apólice de seguro emitida pela ré (doc. # 1 da contestação da ré seguradora) onde se define na cláusula 1.ª que o segurado é a pessoa ou entidade titular dos bens, valores, interesses ou obrigações que constituem o objecto do seguro que se encontra identificado nas Condições Particulares.
Muito embora a autora não tenha apresentado todos os elementos para se poder saber se o contrato de compra e venda da escultura está ou não sujeito à lei nacional – o qual não é objecto dos presentes autos -, sendo certo que existem elementos de conexão internacional (o comprador reside na Suíça e esse foi o local acordado para a entrega da coisa), é de admitir que tal possa suceder. E, em Portugal, vigora a regra geral da eficácia real dos contratos – art.º 408.º, do Código Civil. Claro está que o vendedor está obrigado a entregar a coisa vendida – art.º 879.º, alínea b), do Código Civil. De preferência, no estado em que se encontrava ao tempo da venda – art.º 882.º, n.º 1, do Código Civil. E, em caso de impossibilidade culposa, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro – art.º 801.º, n.º 2, do Código Civil.
Não obstante, a legitimidade substantiva ou material para a autora demandar a ré seguradora há-de ser analisada, em primeira linha, em face das regras e princípios que regem o contrato de seguro acordado pela autora e pela ré seguradora. O artigo 47.º, n.º 1, da Lei do Contrato de Seguro, estipula que:
1 - No seguro por conta própria, o contrato tutela o interesse próprio do tomador do seguro.
2 - Se o contrário não resultar do contrato ou do conjunto de circunstâncias atendíveis, o seguro considera-se contratado por conta própria.
3 - Se o interesse do tomador do seguro for parcial, sendo o seguro efectuado na sua totalidade por conta própria, o contrato considera-se feito por conta de todos os interessados, salvo disposição legal ou contratual em contrário.
José Alves de Brito anotou que: “O sentido essencial do n.º 1 é o seguinte: no seguro por conta própria, o tomador do seguro é também o segurado e o beneficiário do contrato, pelo que o contrato concita a coincidência de três posições jurídicas: a de tomador do seguro, segurado e beneficiário (…).
No n.º 2, e em convergência com o disposto na Versicherungsvertragsgesetez, estabelece-se uma presunção ilidível de seguro por conta própria, o que decorria já do ora revogado art.º 428.º, § 2.º, do CCom.. A diferença essencial reside na circunstância de, para além da apólice, se dever agora também perscrutar o conjunto de circunstâncias atendíveis, o que resulta da desnecessidade de observância de forma especial no contrato de seguro (art.º 32.º)” – in Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 2011, pág. 253.
Afigura-se evidente que a autora tinha um interesse juridicamente atendível em segurar a coisa transportada, não obstante ter procedido à sua venda e recebido o respectivo preço do comprador, pois ainda tinha o dever de a entregar. Na verdade, a perda da coisa durante o transporte de que estava incumbida a vendedora até chegar à posse do comprador não é algo que aquela possa olhar com desprendimento ou supor que o risco de perecimento corre simplesmente por conta deste. As circunstâncias conhecidas do negócio (a autora vendeu a escultura, mas ficou encarregada de a entregar na Suíça e foi prontamente interpelada com uma reclamação pelo comprador perante os extensos danos que evidenciava aquando da entrega) impõem a tutela do direito da tomadora do seguro e segurada, nomeadamente em termos do reconhecimento da sua legitimidade material para exigir a reparação do dano.
Por outro lado, não consta que a seguradora tenha objectado que a tomadora deveria indicar outra pessoa como beneficiária, sendo certo que sabia que estava a segurar um transporte e que, como sucede milhões de vezes por dia, os objectos transportados frequentemente não pertencem às pessoas que os expedem. Ainda assim as seguradoras reconhecem o interesse próprio dos tomadores do seguro.
A existir uma falta de interesse da autora, por não ser já a titular do direito de propriedade sobre a coisa, parece que o contrato de seguro seria nulo – cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/5/2017, disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 2059/12.9T2AVR.P1. Como nulos seriam os milhões de seguros celebrados diariamente para o transporte de objectos pelos expedidores que não são os proprietários das coisas.
Sucede que a autora justificou plenamente o interesse na realização do seguro por conta própria, nomeadamente em face das consequências que advinham para a sua esfera jurídica em caso de perda, perecimento ou estrago da coisa durante o transporte, ao invocar que vendeu a escultura a um seu cliente e, a pedido deste, se comprometeu a enviar a escultura para a Suíça.
Há um interesse juridicamente relevante na realização de um seguro que cubra os riscos de perda ou dano da coisa transportada. A tomadora considerou que o risco a prevenir estaria na sua esfera jurídica, ao que se supõe porque poderia ser confrontada pelo comprador em caso de perda ou dano da coisa transportada. E solicitou a realização de um seguro por conta própria. Ao que a ré seguradora anuiu, emitindo a competente apólice de seguro. É verdade que a tomadora do seguro poderia ter actuado por conta de outrem, nomeadamente do comprador – cfr. art.º 48.º e 156.º, da Lei do Contrato de Seguro – se assim tivesse acordado com este ou considerado que o interesse relevante a salvaguardar seria apenas o deste. Porém, a autora elegeu como interesse relevante a salvaguardar o risco que existia na sua esfera jurídica decorrente da verificação da perda ou dano da coisa transportada e do consequente ressarcimento do comprador. Em face das evidenciadas circunstâncias, nomeadamente da responsabilidade do vendedor quanto à entrega da coisa ao comprador em devido estado e das práticas do comércio sério e honesto, nada há a censurar quanto à prudente opção da autora.
A conclusão 5.º das doutas alegações de recurso em como “o certo é que a Recorrida não tinha qualquer interesse digno de protecção legal quando intentou a presente acção contra a Recorrente” é de rejeitar em absoluto. Isso significaria que uma pessoa que expedisse uma mercadoria da qual não fosse proprietária não tinha qualquer responsabilidade pela sua perda ou extravio, nomeadamente em face das pessoas que a incumbiram dessa tarefa. Nenhum risco relevante. Não tinha qualquer interesse digno de protecção legal! Neste contexto, trata-se de uma conclusão temerária, especialmente para uma seguradora.
Pelo contrário, resulta da matéria de facto que a autora tinha um interesse atendível na celebração do contrato de seguro, que se traduzia em garantir a plena conclusão do contrato de compra e venda da escultura, nomeadamente através da sua entrega em boas condições ao comprador, conforme foi acordado – facto # 6. O dano da autora evidencia-se na frustração da venda, por motivo dos significativos estragos causados à escultura em face da forma como foi transportada – facto # 22 – e que se manifestou através da natural e evidente reclamação do cliente.
Em face destes factos, somente a ré Victoria – Seguros, SA., é que poderá fantasiar que a autora não tem qualquer interesse digno de protecção legal, pois já recebeu o preço da venda do comprador. Só faltou acrescentar que é juridicamente expectável que a autora retenha o preço nestas circunstâncias…
Por conseguinte, concluímos que a autora tem legitimidade substantiva para reclamar a reparação dos danos decorrentes do sinistro.
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2.4. A questão a cobertura pelo contrato de seguro do risco de transporte da coisa.
A apelante defende ainda a exclusão do âmbito de cobertura da apólice de seguro, nomeadamente porque foi realizado por via aérea quando constava do certificado de seguro que o meio de transporte seria o camião.
Sucede que o âmbito de cobertura da apólice de seguro resulta da lei e da vontade das partes, precisamente em face dessa apólice de seguro – cfr art.ºs 11.º e 32.º, da Lei do Contrato de Seguro. O objecto do contrato foi definido na cláusula 2.ª das condições gerais da apólice de seguro, cuja cópia foi junta com a contestação da apelante. Aí se exarou, em termos inequívocos, que “O presente contrato de seguro garante os bens e/ou interesses patrimoniais estimáveis em dinheiro, descritos nas Condições Particulares, durante o seu transporte, no percurso normal da viagem segura, quer este se efectue por via marítima, fluvial, lacustre, terrestre ou aérea de acordo com o expressamente previsto neste contrato”. Não consta do contrato qualquer exclusão do uso da via aérea. Nada resulta que o transporte por via aérea importe um risco maior do que o transporte por via terrestre. Nem que a ré seguradora não aceitasse o risco decorrente do transporte por via aérea ou que só o aceitasse noutras condições (vg. cobrando um prémio de valor superior).
A mera indicação na apólice que o meio de transporte era o “camião” não importa a exclusão de outros meios, salvo se da mesma resultar expressamente o contrário. Aliás, o próprio contrato de seguro de transporte pressupõe a possibilidade da utilização de uma pluralidade de meios de transporte – vg. art.º 160.º, da Lei do Contrato de Seguro.
Por outro lado, provou-se que a autora não indicou à 2ª ré (a seguradora) qual o meio de transporte que iria ser utilizado, afirmando desconhecer o mesmo, tendo pedido, o que foi aceite, seguro para o transporte do Porto para a Suíça – cfr. facto # 15. Se a questão do meio utilizado para o transporte era essencial para a decisão da ré seguradora de assumir o risco por meio do contrato de seguro, então a mesma deveria ter recusado o pedido da tomadora. A ré seguradora deveria ter dito à autora para se ir informar e se certificar junto da transportadora em como o transporte seria realizado unicamente por camião. Uma vez que a autora desconhecia qual seria o meio utilizado pela transportadora e a ré seguradora estava conhecedora desse desconhecimento e, ainda assim, aceitou assumir o risco e cobrar o correspondente prémio de seguro, a mera aposição no certificado de seguro que o meio de transporte era “camião” não legitima a pretendida exclusão de cobertura.
Aliás, mesmo que o transporte por avião estivesse excluído da cobertura do seguro – o que não se aceita –, a seguradora não poderia opor tal circunstância à tomadora e segurada, na medida em que sabia do desconhecimento da tomadora do seguro relativamente ao meio de transporte a utilizar e ainda assim assumiu tais riscos. A boa fé e o fim social e económico subjacentes à celebração do contrato de seguro de transporte tornariam ilegítima a invocação da exclusão da cobertura nessas circunstâncias – art.º 334.º, do Código de Processo Civil. Aceitar celebrar um contrato de seguro em face do desconhecimento da tomadora quanto ao meio utilizado para o transporte para depois recusar a responsabilidade pelo sinistro a pretexto da utilização do meio aéreo é uma manifestação abusiva do direito, uma forma de “venire contra factum proprium”. Um inaceitável comportamento contraditório de aceitar e depois recusar o seguro.
Por conseguinte, improcedem igualmente as conclusões da apelante quanto à pretendida exclusão da cobertura do contrato de seguro, pelo que se impõe a confirmação da douta sentença recorrida.
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3. Decisão:
3.1. Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença (na parte em que é impugnada por meio do presente recurso).
3.2. As custas são a suportar pela apelante.
3.3. Notifique.

Lisboa, 10 de Julho de 2025
Nuno Gonçalves
Eduardo Petersen Silva
Elsa Melo