RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
SERVIDÃO NÃO APARENTE
Sumário

- Em face do disposto nos artigos 377.º e 378.º, do Código de Processo Civil, no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência;
- A restituição provisória da posse assenta, entre o mais, no reconhecimento da posse da requerente;
- Invocando a requerente que é titular do direito de passagem por uma servidão, com base na usucapião, mas omitindo a alegação dessa servidão se revelar por sinais visíveis e permanentes, a mesma considera-se não aparente e é insusceptível de ser constituída pelo modo invocado;
- A defesa judicial por meio da restituição da posse é um direito reactivo que a lei civil confere ao possuidor que for perturbado ou esbulhado;
- A lei limita tal defesa judicial por meio da restituição da posse às servidões não aparentes às situações em que a mesma se funda em título provindo do proprietário do prédio serviente ou de quem lho transmitiu – art.º 1280.º, do Código Civil. O que não sucede no presente caso, em face da invocação unicamente da usucapião como modo de aquisição da servidão.

Texto Integral

Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório.
1.1. A requerente AA intentou a presente providência cautelar de restituição provisória de posse contra os requeridos BB e Falésia Radical, S.A..
Em síntese, alegou que é a usufrutuária de um prédio urbano na Lourinhã. O qual confronta pelo Sul com um prédio misto foi adquirido, em 18/03/2024, pela firma requerida, representada pelo seu administrador e sócio único, BB.
A requerente tem usado o logradouro do prédio da firma requerida para estacionar o seu carro e para atravessar o mesmo vindo da garagem do seu prédio até à estrada nacional. Tendo-o feito sempre, ostensiva e publicamente, com conhecimento de toda a gente, há mais de 20 anos. Na convicção de ser esse um seu legítimo direito. Pelo que na falta de outro título, sempre teria a Requerente adquirido, nos termos conjugados dos artigos 1547.º n.º 1, 1548.º e 1296.º do Código Civil, o direito de passagem por usucapião.
Sucede que no passado dia 17 de Dezembro de 2024, o requerido BB mandou colocar uma série de blocos retangulares, em pedra, a toda a largura da entrada para o referido logradouro asfaltado do terreno, a fim de obstaculizar a entrada/saída do mesmo a qualquer tipo de viaturas automóveis da Requerente, impedindo o acesso à garagem desta desde a estrada nacional.
Terminou requerendo a restituição provisória à Requerente, da posse da servidão de passagem identificada, bem como condenar-se os Requeridos a absterem-se de praticar actos que impeçam ou dificultem o acesso da Requerente, de viatura automóvel, sua ou dos seus filhos, à garagem anexa à moradia para habitação, à estrada nacional n.º ..., através da mesma faixa de terreno, de modo a deixar livre a referida passagem, com as legais consequências.
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1.2. Ouvidas as testemunhas arroladas pela requerente, sem contraditório prévio, foi decidido:
a) Ordenar a restituição provisória da posse à requerente da servidão de passagem sobre o logradouro do prédio da 2.ª requerida sito na ..., descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóvel da Lourinhã, com o número ... da freguesia da Lourinhã e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e na matriz predial rústica sob o artigo 52 secção GGG, da freguesia da Lourinhã e Atalaia, desde a Estrada Nacional ... até à garagem do prédio sito na ..., que confina com aquele, ao longo do muro em pedra que delimita o seu prédio a sul, com a largura necessária para permitir a passagem de um veículo automóvel.
b) Determinar a retirada imediata dos blocos de pedra que impedem o acesso àquela servidão de passagem por parte da requerente, a pé ou com veículos automóveis.
c) Intimar ambos os requeridos a absterem-se de praticar actos que impeçam ou dificultem o acesso da requerente à servidão de passagem, a pé ou com veículos automóveis.
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1.3. Citados, os requeridos vieram deduzir oposição.
Em síntese, alegaram que a anterior proprietária do prédio da Requerida reconheceu em juízo a propriedade da Requerente sobre as construções feitas no prédio, mas esta (?), e os outros aí réus, se obrigaram a “fechar todas as portas do prédio (…) que dão acesso” ao prédio da Requerente… ainda que alguma servidão pudesse existir ao subscrever a transacção judicial em questão, a Requerente renunciou a ela”.
Impugnou ainda diversa matéria alegada e requereu o levantamento da medida decretada.
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1.4. Após julgamento, foi decidido manter a anterior providência.
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1.5. O requerido BB interpôs o presente recurso de apelação, em que conclui da seguinte forma:
“i) De acordo com o Art.º 1280º do Código Civil, as disposições relativas à defesa da posse, entre as quais os procedimentos cautelares com a natureza daquele que agora está em causa, não se aplicam às servidões não aparentes;
ii) Da matéria de facto constante da douta sentença não resulta que nos prédios em questão existam quaisquer sinais visíveis de qualquer servidão;
iii) Nem o facto de no prédio do qual a Requerente detém o usufruto existir uma garagem (ponto 2) não constitui qualquer sinal de que exista a servidão em causa., nem o facto constante do ponto 5) o demonstra, porque refere apenas a uma área asfaltada que existe no prédio da Requerida e de onde não decorre qualquer sinal visível de servidão;
iv) Assim, a matéria alegada pela Requerente e dada como provada na douta sentença não permite a procedência do presente procedimento cautelar o qual deve ser julgado improcedente;
v) Acresce que, não se verifica a alegada posse há mais de um ano e dia sobre a passagem que está em causa, de acordo com o Art.º 1278º do Código Civil;
vi) Com efeito, essa posse teria que ter-se mantido ininterruptamente no ano anterior à data de 17.12.2024, aquela em que o ora Apelante a fez cessar, de acordo com o ponto 9) dos factos provados.
vii) Não obstante, no âmbito de uma outra acção judicial, cuja sentença se juntou com a oposição como Documento n.º 19, a posse do prédio sobe o qual incide a suposta servidão foi restituída à sua, à data proprietária e como decorre do Documento n.º 20 também junto com a oposição, essa sentença foi em 27 de Abril de 2023 coercivamente executada, tendo, qualquer posse que existisse sobre o prédio ou servidão cessado;
viii) A partir de então, a utilização do prédio em causa por parte da Apelada, contra a ordem jurídica (como se verifica pelo Documento n.º 21 junto com a oposição), não pode configurar posse, mas mera detenção e por isso nunca poderia fundar o presente procedimento cautelar;
ix) Aliás, o acesso a esse prédio foi feito, como decorre do referido Documento n.º 21 junto com a oposição através de esbulho violento, pelo que, apenas poderia contar-se o prazo de um ano referido na douta sentença após a cessação desse violência, a qual nunca ocorreu (Art.º 1267º, n.º 2 do Código Civil).
x) A respeito desta questão, o Meritímo. Tribunal “a quo” não deu por provado qualquer dos factos alegados na oposição., mas inequivocamente deveriam pelo menos ter-se dado como provado o que consta dos Documentos n.ºs 20 e 21 juntos com a oposição; xi) E a demonstração da restante matéria alegada pelo Apelante a esse respeito resulta do depoimento da testemunha CC (acta da sessão de 30.04.2025 - de 10h58m52s a 11h06m30s) (vd. excerto transcrito no corpo desta alegação); xii) Assim, a matéria alegada nos artigos 51º e 52º e 55º a 60º da oposição deverá dar-se como provada com base nos Documentos n.ºs 20 e 21 juntos com a oposição (e que não foram impugnados) e no depoimento da testemunha cujo excerto se transcreveu no corpo desta alegação;
xiii) De qualquer modo, nunca o presente procedimento cautelar poderia proceder, porque, ainda que alguma servidão existisse e posse sobre ela existisse, sempre a Apelada a ela teria renunciado (o que é admitido pelo Art.º 1569º do Código Civil);
xiv) Com efeito, em acção contra ela movida pela anterior proprietária do prédio supostamente onerado com a servidão foi celebrada transacção judicial homologada por sentença e que se encontra junta com a oposição como Documento n.º 17M xv) E, salvo o devido respeito, tendo em conta essa transacção, não pode compreender-se o entendimento do Meritímo. Tribunal “a quo”, quando afirma que não ficou demonstrado que essa transacção não abrange a garagem, pois, aquilo que ficou acordado foi que a aqui Apelada se obrigou a “fechar todas as portas do seu prédio” “que dão acesso ao prédio” da aí Autora;
xv) Mais uma vez o Meritímo. Tribunal “ quo” não dá como provado um facto essencial que ficou demonstrado no processo, pelo Documento n.º 17 junto, o qual corresponde a uma douta sentença que constitui até caso julgado face á Apelada e que foi alegado nos artigos 45º e 45º da oposição;
xvi) Por outro lado, com base no depoimento da testemunha DD (acta da sessão de 30.04.2025 - 10h34m54s a 10h57m51s) (vd. excerto transcrito no corpo desta alegação, deverá dar-se como provada a matéria alegada no artigo 47º da oposição; xvii) Deve, pois, ser dada como provada a matéria alegada nos artigos 45º, 46º e 47º da oposição.
Deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença e julgando-se improcedente o procedimento cautelar deduzido, como é de manifesta, JUSTIÇA!”
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1.6. A apelada contra-alegou, concluindo da seguinte forma:
I- O recorrente pretende em síntese útil fazer reverter a decisão da Meritíssima Juiz do Juízo de Competência Genérica da Lourinhã, que julgando procedente o procedimento cautelar instaurado contra o requerido BB, pela requerente, ora recorrida AA, confirmou a anterior decisão de ordenar a remoção de todos os obstáculos que impediam o acesso, pelo prédio confinante, à garagem desta.
II- Para tanto alega que as disposições relativas à defesa da posse, “não se aplicam às servidões não aparentes”, e que da matéria de facto constante da douta sentença recorrida “não resulta que nos prédios em questão existam quaisquer sinais visíveis de qualquer servidão”;
III- Mais sustentando que “nem o facto de no prédio do qual a Requerente detém o usufruto existir uma garagem (ponto 2) não constitui qualquer sinal de que exista a servidão em causa., nem o facto constante do ponto 5) o demonstra, porque refere apenas a uma área asfaltada que existe no prédio da Requerida e de onde não decorre qualquer sinal visível de servidão”;
IV- No entanto, como a própria testemunha arrolada pelo requerido, ora recorrente, DD, veio confirmar em tribunal, a requerente, ora recorrida, tinha construído a garagem em causa nos autos no ano de 2005, confirmando, assim, que o referido anexo já existia há cerca de 20 anos (como já se havia concluído na decisão anterior dos embargos), mais tendo referido que, desde então, a mesma requerente vinha utilizando de forma ininterrupta o logradouro do prédio confinante, quer para aceder àquela garagem, quer para estacionar o seu carro, confirmando ser esse o único acesso a tal espaço.
V- Mas como bem se refere na sentença, ora recorrida, o que estava em causa neste processo “era tão só apurar se a requerente da providência cautelar tinha a posse há mais de um ano do logradouro do prédio, e se fora esbulhada do mesmo de forma violenta pelo requerido, e foram esses dois fundamentos da restituição peticionada que foram considerados existentes e provados”.
VI- Sobre este ponto, e em discordância, alega o recorrente, mas sem razão, que, à data do esbulho, a requerente AA não era possuidora, há mais de um ano, do espaço em questão no logradouro de prédio confinante, referindo para tanto que “ no âmbito de uma outra acção judicial, cuja sentença se juntou com a oposição como Documento n.º 19, a posse do prédio sobe o qual incide a suposta servidão foi restituída à sua, à data proprietária e como decorre do Documento n.º 20 também junto com a oposição, essa sentença foi em 27 de Abril de 2023 coercivamente executada, tendo, qualquer posse que existisse sobre o prédio ou servidão cessado”;
VII- Ora o recorrente omite deliberadamente o facto de a referida acção e posterior execução ter como sujeitos processuais sociedades terceiras, na qualidade de rés/executadas, e não a requerente AA.
VIII- Facto esse que não passou despercebido à MMª Juiz “a quo”, ao considerar que “mesmo quando foi executada uma decisão judicial contra sociedades terceiras (num processo em que nem a requerente, nem os proprietários actuais do prédio descrito em 1 eram parte e que, por conseguinte, não releva para a decisão a tomar) e foi fechado o acesso ao logradouro, tal acesso foi recuperado imediatamente”.
IX- Mais tendo o Tribunal “a quo” acrescentado que “em tal processo nada foi peticionado ou decidido relativamente à posse da servidão de passagem por parte da requerente para a sua garagem através daquele logradouro, sendo certo que como resultou do depoimento desta testemunha, a requerente continuou a utilizar essa passagem mesmo depois da execução desta entrega do logradouro pelas sociedades”.
X- Pelo que se concluiu na sentença ora impugnada que “De todo o modo, sempre se diga que mesmo que a sua posse tivesse sido interrompida nessa data – o que não se demonstrou – certo é que entre essa data e o esbulho que está em causa nestes autos decorreu mais de um ano, sendo certo que para este efeito, apenas releva a posse exercida no ano e um dia anterior ao esbulho”.
XI- Relativamente a uma outra alegada acção judicial intentada contra a requerente que culminou com uma transacção, entendeu o Tribunal da Lourinhã, e bem, que: “Encontra-se, de facto, junta aos autos cópia de uma acta datada de 26/04/2021 onde consta tal transacção com a sentença homologatória respectiva. Porém, não é possível extrair da mesma que a garagem em causa nestes autos esteja incluída nesse acordo, nomeadamente no que diz respeito ao fecho de “portas”, desde logo porque a testemunha referiu que havia várias portas do prédio da requerente voltadas para o logradouro, não tendo sido mencionado, expressamente, que o portão da garagem estava incluído, como também pelo facto de a testemunha ter afirmado que a garagem em causa tem como único acesso esse portão, não sendo possível aceder ao seu interior através de qualquer outra porta ou portão, a partir do prédio da requerente”.
XII- Mais considerando a MMª Juiz que ”não faz sentido à luz do normal acontecer, que se reconheça o direito de propriedade da requerente sobre uma construção e, ao mesmo tempo, se obrigue a mesma a fechar a única porta de acesso a essa construção, tornando-a inutilizada, por impossibilidade de aceder ao seu interior, motivo pelo qual se respondeu de forma negativa ao facto não provado A).
XIII- Acrescentado que “Por outro lado, sempre se dirá que, ainda que assim não fosse, certo é que o acordo em causa não versa sobre o direito de passagem da requerente por aquele local – que é o que está em causa neste procedimento – e, além disso, a testemunha afirmou que a requerente continuou a entrar e a sair da garagem como sempre fez, através do logradouro, mesmo após a celebração desse acordo, não tendo havido qualquer alteração a esse uso, que só deixou de exercer quando o requerido colocou os blocos referidos no facto 9)”.
XIV- E concluindo o raciocínio no sentido de que ”Portanto, mais uma vez, apenas veio confirmar que a requerente sempre exerceu reiteradamente a sua posse sobre aquela servidão até aos factos que deram origem a este procedimento cautelar”.
XV- A MMª Juiz da Lourinhã também desconsiderou, em matéria de prova, a carta junta com a oposição dos requeridos, datada de 17/10/2014, por nada referir sobre o direito de passagem da requerente AA, pelo logradouro para aceder à sua garagem, mas à desocupação do logradouro, tendo resultado dos depoimentos das várias testemunhas ouvidas que o referido logradouro era utilizado, por terceiros, como parque de estacionamento, concluindo que também este documento, não constituía prova de qualquer oposição contra a posse da servidão de passagem exercida por aquela, e que não relevava para o que estava em causa nos presentes autos: a defesa da posse de, pelo menos, um ano e um dia.
XVI- Por fim considerou o Tribunal que as restantes testemunhas arroladas pelo recorrente, nada vieram acrescentar com relevo para a boa decisão do litígio, entendendo que não ter sido posta em causa a prova produzida pela requerente, ora recorrida.
XVII- É que, como bem explicitou a MMª Juiz “a quo” a decisão de decretar a Providência cautelar requerida por AA, “foi proferida ao abrigo da tutela especial conferida pelo procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse, previsto nos artigos 377.º e 378.º do CPC que depende, exclusivamente, da verificação da existência de uma situação de esbulho violento, donde decorre que se mostre evidenciada a existência cumulativa de três requisitos: uma situação de posse, de esbulho e violência”.
XVIII- Requisitos que o Tribunal considerou amplamente provados e não infirmados pela oposição dos requeridos, não tendo estes logrado colocar em crise o direito sumariamente reconhecido na decisão que decretou a providência requerida, não deixando a MMª Juiz “a quo” de recordar que o direito da requerente aqui exercido não se baseava no direito a constituir uma servidão de passagem por usucapião ou por encravamento, mas antes na mera tutela possessória a que alude o artigo 1278.º do CC.
XIX- Resultando provado para o Tribunal que a posse da requerente correspondia ao direito de servidão de passagem, pelo logradouro do prédio descrito em 3) para aceder à garagem do prédio descrito em 1), e que era exercido há, pelo menos, 20 anos, ou seja, para o que interessava nos autos, há mais de um ano e um dia sobre a data em que ocorreu o esbulho, na medida em que aquela passagem era a única via de acesso da garagem à via pública e a requerente a utilizou, nesse período, à vista de todos e sem oposição de ninguém, até ter sido esbulhada, na convicção de que tinha esse direito, tanto mais que aquela era a única via de acesso à garagem.
XX- E em relação aos demais requisitos, o esbulho e a violência, considerou também o Tribunal que os requeridos nem sequer tinham alegado factos tendentes a afastá-los, nem a prova que produziram lograra esse desiderato.
XXI- Não podia pois a decisão final do presente procedimento cautelar ser outra que não a confirmação, nos seus exactos termos, da Providência anteriormente decretada.
XXII- Com que fez o julgador correcta apreciação dos factos e justa aplicação do Direito, não havendo nada a apontar à decisão recorrida.
XXIII-Termos em que deve ser julgado totalmente improcedente o presente recurso por carecer de fundamento de facto e de direito.
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1.7. As questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões da recorrente e centram-se no seguinte:
- Impugnação da matéria de facto; e,
- Verificar se a requerente possuía a posse ou uma posse juridicamente relevante, em termos de reconhecimento da defesa judicial por meio da restituição provisória da posse.
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2. Fundamentação.
2.1. Foi julgado provado que:
1) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóvel da Lourinhã, com o número 1960 da freguesia da Lourinhã o prédio urbano denominado Carrascos, sito na ..., composto por casa de rés-do-chão para habitação e logradouro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4393, sobre o qual se encontra registada a aquisição a favor de EE e FF, por doação, com reserva de uso e habitação para a requerente, através da Ap. 8 de 2004/12/15.
2) Há, pelo menos, 20 anos foi acrescentado ao referido prédio um anexo para garagem.
3) O referido prédio confronta a sul com o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóvel da Lourinhã, com o número ... da freguesia da Lourinhã, sito na ..., composto por terra de cultura arvense e casa de rés-do-chão para depósito de mariscos vivos, escritório e logradouro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e na matriz predial rústica sob o artigo 52 secção GGG, da freguesia da Lourinhã e Atalaia, sobre o qual se encontra registada a aquisição a favor de DD, por doação, através da Ap. 837 de 2014/09/24.
4) Por escritura pública outorgada em 18/03/2024 no Cartório Notarial de GG declarou vender à 2ª requerida o prédio identificado no facto anterior pelo preço de 162.000,00, tendo o 1º requerido, em representação da 2ª requerida, declarado aceitar a compra do referido prédio naqueles termos.
5) O único acesso da via pública (EN ...) à garagem do prédio identificado em 1) é feito através do logradouro do prédio identificado em 3), que constitui um espaço descoberto, asfaltado e que era utilizado como parque de estacionamento pela anterior proprietária.
6) Desde a construção da referida garagem, há pelo menos 20 anos, que a requerente utiliza aquele logradouro, ao longo do muro em pedra que delimita o seu prédio a sul, quer para aceder à sua garagem com veículos automóveis, quer para estacionar naquele espaço, convicta de que esse é o seu direito, uma vez que é o único acesso possível à referida garagem.
7) O que faz à frente de toda a gente e sem qualquer oposição, há pelo menos 20 anos.
8) Sucede que a requerente intentou acção cível que corre termos no Juízo Central Cível de Loures, Juiz 6 com o número 7397/24.5T8LRS com vista a anular a compra e venda referida em 4), por simulação, o que veio agudizar os conflitos familiares já existentes com o seu irmão, 1º requerido.
9) No dia 17/12/2024, o 1º requerido mandou colocar blocos rectangulares em pedra em toda a largura da entrada do logradouro que dá acesso à via pública, impedindo, assim, o acesso àquele logradouro e, consequentemente, à garagem do prédio identificado em 1). 10) Tendo dito à requerente, aos gritos: “vais ficar sem nada, agora que o HH morreu é mais fácil”, referindo-se ao cônjuge desta.
11) Em 04/01/2025, o 1º requerido mandou colocar blocos do mesmo tipo à frente da entrada da garagem do prédio identificado em 1).
12) Em consequência destes actos, a requerente ficou impedida de aceder desde a via pública à garagem do prédio identificado em 1) e vice-versa.
13) Além disso, a requerente estava a levar a cabo obras no prédio identificado em 1), que tiveram de ser suspensas, uma vez que os trabalhadores deixaram de conseguir colocar os contentores para recolha de entulho, através do referido logradouro.
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2.2. O apelante sustenta que a matéria alegada nos artigos 45º, 46º, 47º, 51º, 52º e 55º a 60º da oposição deverá dar-se como provada, em vista da prova documental e testemunhal que indicou.
Contudo, não há que conhecer da impugnação da matéria de facto, quando a mesma se mostra prejudicada por outras questões que logicamente a precedem. Como refere o acórdão desta Relação de 11-5-2023: “a reapreciação da matéria de facto não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objetivo, que é a alteração da decisão da causa, pelo que sempre que se conclua que a reapreciação pretendida é inútil – seja porque a decisão sobre matéria de facto proferida pela primeira instância já permite sustentar a interpretação do direito aplicável ao caso nos termos sustentados pelo recorrente, seja porque ainda que proceda a impugnação da matéria de facto, nos termos requeridos, a decisão da causa não deixará de ser a mesma – a reapreciação sobre matéria de facto não deve ter lugar, por constituir um ato absolutamente inútil, contrariando os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º, e 138.º do CPC)” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 8312/19.3T8ALM.L1-2.
O conhecimento da indicada matéria mostra-se prejudicado pelas razões infra consignadas que determinam a improcedência da pretensão da requerente, nomeadamente em termos da respectiva viabilidade. Por esse motivo, não se conhecerá da mesma.
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2.3. O apelante, além de disputar a posse da requerente, invoca a circunstância da mesma não poder ser restituída, nomeadamente porque foi invocada uma servidão não aparente.
Nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação. Logo, importa começar por saber se a requerente tem o direito a ser restituída na posse que invocou como fundamento para a presente providência cautelar.
De acordo com o disposto nos artigos 377.º e 378.º, do Código de Processo Civil, no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência; Se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordena a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador.
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2.4. Vejamos se a requerente demonstrou ter uma posse e, na afirmativa, se corresponde ao exercício de um direito real. Na verdade, de acordo com a noção do artigo 1251.º, do Código Civil: Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
A requerente invocou uma posse correspondente à servidão de passagem sobre o prédio da requerida. E que a mesma foi constituída por usucapião. A decisão recorrida entendeu igualmente que “dos factos provados resulta que a posse da requerente correspondente ao direito de servidão de passagem, pelo logradouro do prédio” ainda que “o que está em causa nestes autos e que é a defesa da posse de, pelo menos, um ano e um dia”.
Não obstante, em face da referida noção de posse não podemos ignorar a verificação dos seus elementos básicos: o “corpus” ou elemento material e o “animus” assente na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente ao domínio de facto. Nessa medida, a requerente terá que convencer quanto ao direito real de que se intitula, pois sem esse direito não poderá subsistir o “animus” próprio da posse. Se alguém actua sobre uma coisa, mas não age como titular de direito algum (ou representante do titular, vg. o depositário, cfr. art.º 1252.º, do Código Civil), não poderá ser reconhecido como possuidor.
No presente caso, a requerente arroga-se a posse de uma servidão de passagem que onera o prédio da requerida e funda esse direito de passagem pela servidão na usucapião. Mas o artigo 1548.º, do Código Civil, dispõe que:
1. As servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião.
2. Consideram-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes.
Sucede que a requerente AA, por inexistir facto consubstanciador ou por mero esquecimento, não alegou que tem manifestado tal encargo sobre o prédio serviente por meio de qualquer sinal visível e permanente. A requerente apenas alude ao estacionamento do seu carro no logradouro, sendo que tal situação não se reconduz à manifestação da servidão. A servidão será de passagem e não de estacionamento. A lei exige sinais permanentes da passagem e não sinais transitórios e, eventualmente efémeros, do estacionamento de um carro. Logo, a requerente não pode ser reconhecida como titular do direito à servidão de passagem não aparente sobre o prédio da requerida, constituída por usucapião. Veja-se, a título ilustrativo e entre muitos, o sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/6/2021 (disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 426/18.3T8ORM.E1.S1):
I - Não é todo e qualquer local de passagem sobre um prédio alheio que pode tornar-se objeto de uma servidão de passagem por usucapião. Nos termos dos arts. 1293.º, al. b) e 1548.º, n.º 1, do CC, as “servidões” não aparentes não podem ser adquiridas por usucapião.
II - A visibilidade e permanência do uso de determinado caminho têm de ser alegadas e demonstradas para que se justifique a limitação ao direito de propriedade do titular do prédio serviente, em nome do interesse daquele que invoca o direito à servidão de passagem. A existência de sinais visíveis e permanentes significa que a concreta configuração do caminho há-de revelar caraterísticas inerentes a um uso sedimentado ou efetivo desse caminho; caraterísticas que permitam a qualquer pessoa apreender que aquele é um local de passagem habitual.
A requerente invoca a posse, mas esta também só poderia ser adquirida pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito – art.º 1263.º, alínea a), do Código Civil. Pires de Lima e Antunes Varela anotaram que:
É difícil dar um conceito preciso de publicidade, porque as circunstâncias mudam de caso para caso (cfr. Manuel Rodrigues, ob. cit., n.º 38, II).
(…)
A posse oculta ou clandestina pressupõe um comportamento tendente a esconder o objecto sobre que incide ou os actos em que se traduz. Mas não basta a intenção ou o propósito de ocultar: é ainda necessário que os actos possessórios sejam praticados em termos que não possibilitem o seu conhecimento pelos interessados. Se alguém, por exemplo, se aproveita habitualmente das águas de uma fonte existente no prédio vizinho, fazendo-o, no entanto, apenas de noite ou a horas mortas, com o intuito de evitar a reacção do proprietário, a respectiva posse é oculta” - in Código Civil Anotado, Coimbra, 1987, Volume III, págs. 24-25.
Afigura-se que a publicidade relevante para a aquisição do direito de servidão de passagem por usucapião é a que se revela por sinais visíveis e permanentes, como é expressamente exigido pela lei. E não a genérica afirmação de que a requerente utiliza o logradouro, ao longo do muro em pedra que delimita o seu prédio a sul, quer para aceder à sua garagem com veículos automóveis, quer para estacionar naquele espaço, o que faz à frente de toda a gente e sem qualquer oposição, há pelo menos 20 anos – cfr. factos # 6) e 7). Neste caso, a aquisição da posse juridicamente relevante apenas poderia decorrer da circunstância da passagem pela servidão se revelar por sinais visíveis e permanentes, de modo a poder suscitar a pronta reacção do proprietário do prédio serviente. O que não se evidenciou. Relativamente à questão de saber se é de rejeitar a posse nas servidões não aparentes ou apenas de considerar que a posse não será juridicamente relevante cfr. Mota Pinto (in Direitos Reais, Coimbra, 1971, pág. 197) e Henrique Mesquita (in Direitos Reais, Sumários das lições ao curso de 1966-67, Coimbra, pág. 78).
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2.5. Os citados artigos 377.º e 378.º, do Código de Processo Civil, consagram o procedimento para a restituição da posse. No entanto, em termos substantivos, a defesa judicial por meio da restituição da posse é um direito reactivo que a lei civil confere ao possuidor que for perturbado ou esbulhado:
- Pode recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse – art.º 1277.º, do Código Civil.
- No caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito - art.º 1278.º, n.º 1, do Código Civil; e,
- Se for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador – art.º 1279.º, do Código Civil.
Porém e como invoca o apelante, a providência cautelar de restituição da posse não é aplicável à defesa da servidão não aparente, como é o presente caso, em que a requerente invoca uma posse adquirida por usucapião. “As acções mencionadas nos artigos antecedentes não são aplicáveis à defesa das servidões não aparentes, salvo quando a posse se funde em título provindo do proprietário do prédio serviente ou de quem lho transmitiu” – art.º 1280.º, do Código Civil.
Discorda-se, assim, da solução acolhida pelo tribunal a quo que se focou na mera tutela possessória e desconsiderou o modo em que se fundava a posse. Tratando-se de uma alegada servidão de passagem não aparente, a requerente não tem o direito de defesa da posse por meio da acção possessória, visto que se baseia na usucapião. Diferentemente sucederia se, por exemplo, a servidão predial tivesse sido constituída por contrato – cfr. art.º 1547.º, do Código Civil.
A justificação da opção legal centra-se na circunstância das servidões não aparentes corresponderem, em regra, a actos de mera tolerância ou, praticados a ocultas que, como tais, não devem poder impor-se ao proprietário do prédio serviente – cfr. Henrique Mesquita, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit. pág. 53.
Na defesa das servidões aparentes não admite a lei que o possuidor se venha a socorrer da tutela possessória, portanto da acção de restituição de posse, salvo quando a posse se fundar em título provindo do proprietário do prédio serviente ou de quem lho transmitiu” – Moitinho de Almeida, in Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, Coimbra, 1994, pág. 22.
Neste sentido também se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/3/1992, cujo sumário refere que “As acções possessórias não são aplicáveis à defesa das servidões não aparentes, salvo em casos especiais” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 9130395.
Em suma, a decretada providência cautelar não pode subsistir em face do que a requerente alegou no requerimento inicial.
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3. Decisão:
3.1. Pelo exposto, acordam em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, com a procedência da oposição e o levantamento da providência decretada.
3.2. As custas são a suportar pela apelada.
3.3. Notifique.

Lisboa, 10 de Julho de 2025
Nuno Gonçalves
Cláudia Barata
Adeodato Brotas