1. A incompetência relevante, para efeitos do preenchimento da previsão da alínea a) do n.º 2 do artigo 222.º CPPenal é a falta de jurisdição, a traduzir que a entidade que efectuou ou ordenou a prisão, no caso preventiva, não tem o estatuto de juiz, requerido para a ordenar.
2. Prisão motivada por facto que a lei não permite, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 222.º CPPenal significa apenas que facto sem respaldo legal, não relevando a questão processual, a tramitação do processo, a interpretação do Direito aplicado e o acerto, ou falta dele, da decisão que decretou a prisão.
3. Apenas se verifica excesso de prazo legal, ou judicial no âmbito daquele, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º CPPenal se se mostrarem excedidos os prazos máximos previstos na lei para a privação da liberdade.
I. Relatório
Em requerimento, que deu entrada em Juízo a 1.5.2025, dirigido ao Exmo. Senhor Juiz Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, subscrito por advogada, AA, preso preventivamente no Estabelecimento Prisional ... apresentou petição de Habeas Corpus, ao abrigo do artigo 222.º alíneas a), b) e c), parte final “decisão judicial” CPPenal, pretendendo a sua libertação – extinguindo-se todas as medidas de coacção, sem prejuízo de, se assim for entendido, se remeter às autoridades belgas todos os elementos que se entendam pertinentes e ali ser investigado e julgado – uma vez que está preso ilegalmente porque a decisão judicial que ordenou a sua prisão preventiva padece de erro grosseiro ao entender ser competência portuguesa aquilo que não ocorreu em Portugal, quando os Tribunais portugueses não têm jurisdição sobre os factos que lhe são imputados e, ademais, como cidadão belga pode muito bem ser extraditado para a Bélgica – seu país – e lá as autoridades tratarão da competente investigação, alegando os seguintes fundamentos:
- o presente pedido de Habeas Corpus não se encontrará em qualquer relação de litispendência com um recurso que será oportunamente apresentado quanto ao despacho de aplicação da medida de coação da prisão preventiva– encontrando-se em curso o respetivo prazo;
- no dia 14 de abril de 2025, por decisão judicial, que se anexa, proferida pelo JIC de ..., foi decretada a medida de coação de prisão preventiva – decisão que está a ser cumprida no Estabelecimento Prisional ..., ainda não transitada em julgado;
- nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 222.º CPPenal a providência de Habeas Corpus pode ser apresentada quando a detenção tenha sido efetuada por entidade incompetente; ser motivada por facto pelo qual a Lei não permite; e essa decisão de prisão tenha sido proferida por decisão judicial;
- é um caso raro em que se aplicam, conjugadamente, as três alíneas do referido número e artigo;
- os factos carreados para o processo pela Polícia Judiciária do Porto revelam que os imigrantes, todos familiares da BB (não detida) e que é companheira do aqui arguido, viajaram do Brasil para diversos países da Europa, nunca aterrando em Portugal;
- no pretérito dia 30 de abril de 2025 foi ouvido, em declarações para memória futura, CC (irmão da suspeita BB), o qual afirmou ter viajado de Manaus - Brasil, e ter aterrado em Madrid - Espanha, daqui seguindo de imediato para a Bélgica;
- da factualidade constante dos presentes autos – conforme matéria indiciária considerada no despacho que decretou a aplicação da prisão preventiva – igual percurso foi realizado pelos demais imigrantes;
- todos eles saíram do Brasil em direção a outros países, por via aérea, onde aterraram e permaneceram – nunca Portugal;
- resulta evidente que a ter ocorrido a prática de qualquer tipo de crimes de auxílio à imigração ilegal e/ou tráfico de pessoas, o certo que é essa prática não ocorreu em território português;
- se a factualidade subsumível ao tipo de ilícito não foi iniciada e praticada em território português, é evidente que a Lei portuguesa não se aplicará à mesma e os tribunais portugueses não serão territorialmente competentes para julgar factos ocorridos em território espanhol e belga;
- aos Tribunais portugueses cabe julgar os crimes cometidos em solo português;
- se as pessoas imigrantes em apreço tivessem aterrado em Portugal e os alegados crimes tivessem sido preparados em Portugal, aí (e só aí) poderíamos falar da competência jurisdicional portuguesa;
- não existindo, como não existe, delegação de poderes jurisdicionais dos outros países para os Tribunais Portugueses, a investigação da Polícia Judiciária, a condução do inquérito pelo DIAP e a própria função do Juiz de Instrução Português são ilegais por incompetência em razão do território;
- os factos carreados para os presentes autos podem subsumir-se, no nosso ordenamento jurídico, aos tipos de ilícitos indiciados, porém os mesmos, a terem sido cometidos, ocorreram em território estrangeiro, há já vários anos (2023);
- as regras e a disciplina ínsitas no artigo 5.º CPenal, inclui efetivamente, na alínea c) do n.º 1 deste preceito, o crime previsto e punido pelo artigo 160.º CPenal;
- a letra da Lei é bastante clara quando refere “desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português”;
- da conjunção copulativa “e” decorre forçosamente que os referidos pressupostos são cumulativos, exigindo-se a sua verificação simultânea;
- o disposto no artigo 22.º/1 e 2 CPPenal colidirá com a competência jurisdicional dos tribunais estrangeiros, na medida em que as ditas cartas convite relevantes para os presentes autos não foram emitidas em território Português (nem sequer foram emitidas pelo arguido AA), tendo sido usadas para entrar no Espaço Schengen, não tendo sido Portugal o ponto de entrada;
- as alegadas vítimas, todas de nacionalidade brasileira, enquadram-se no êxodo voluntário em massa verificado nos últimos quatro anos para a União Europeia, em decorrência da instabilidade política, económica e social, no qual se insere o problema eleitoral que envolveu o Lula da Silva e o Bolsonaro;
- a imigração proveniente do Brasil é uma imigração informada, até pelos diversos canais de divulgação de informações e de procedimentos de regularização de estrangeiros no espaço Schengen - ninguém ignora que, para aceder ao mercado de trabalho europeu, ter de entrar em solo europeu com um visto de trabalho, devendo, mais tarde, requerer autorização de residência para trabalhar;
- neste contexto, uma carta-convite (ou termo de responsabilidade) apenas comprova que a pessoa que viaja, não havendo reserva de hotel ou de outro alojamento, se encontrará hospedado e poderá ser encontrado num determinado domicílio;
- as pessoas em causa – que viajaram voluntariamente para a União Europeia – são todas maiores de idade, e encontram-se todas no pleno uso das suas faculdades mentais, com acesso a redes de comunicação e de informação;
- resulta da matéria indiciária que fundamentou a decisão de aplicação de medidas de coação nenhuma das cartas convite usadas por cada dos imigrantes foi usada em Portugal;
- Face ao exposto, quando a decisão judicial, no seu ponto n.º 41, refere que “O arguido e sua companheira favoreceram e facilitaram a entrada e permanência em território nacional de imigrantes brasileiros a coberto de cartas convite que formularam e emitiram para esse efeito, permitindo que os imigrantes ilegais trabalhassem na empresa do arguido, e que o faziam com intenção lucrativa, bem sabendo os mesmos que não o podiam fazer por não terem a situação documental regularizada em Portugal” ocorre aqui um erro grosseiro porque os Tribunais Portugueses não são competentes para a investigação da factualidade em apreço e detenção do aqui arguido, antes sim serão outros Tribunais estrangeiros;
- nenhuma das pretensas vítimas dos crimes de auxílio à imigração ilegal e/ou de tráfico de pessoas por via da exploração financeira – de não lhes ser pago um salário inteiro “condigno” viajou diretamente para Portugal;
- logo, o crime terá sido cometido, a existir, no país em que aqueles aterraram e, por fim, para onde se deslocaram subsequentemente;
- se, muitos meses depois, as vítimas usaram o espaço europeu para viajarem e chegarem até Portugal, em situação ilegal, a consumação dos crimes ocorreu inequivocamente no estrangeiro;
- não estando as mesmas vítimas “algemadas nem acorrentadas”, nem sequestradas em herdades no meio do deserto, sempre as mesmas putativas vítimas poderiam ter seguido uma estrada diferente;
- as mesmas alegadas vítimas referem que recebiam 300 ou 400 euros, tinham telemóvel, tinham casa (modesta ou não), comiam e bebiam;
- em circunstância alguma estiveram impedidos de colocar um ponto final à situação “de aterradora exploração” que os autos querem fazer transparecer;
- a Polícia Judiciária e o Ministério Público falharam, o Juiz de Instrução Criminal falhou;
- a alegada vítima CC admitiu, no pretérito dia 30.04.2025, que aterrou em Madrid, por carta convite emitida pela sua própria irmã BB, e de seguida viajou para a Bélgica, onde se encontravam todos os seus demais familiares, nomeadamente a sua filha e a sua mãe (mãe deste e da suspeita BB);
- uma vez que as vítimas (putativas) viajaram do Brasil para solo europeu, sem entrarem nos aeroportos portugueses e de seguida viajaram para a Bélgica, a terem ocorrido quaisquer crimes – os Tribunais portugueses são incompetentes para investigar, acusar e julgar os factos.
2. A 2.5.2025 foi prestada a seguinte informação:
“- foi aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no dia 11 de Abril de 2025, encontrando-se o mesmo indiciado da prática, de pelo menos, seis crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelo artigo 160.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.
- as vítimas terminaram o seu percurso em Portugal, designadamente, na “...”, em ..., propriedade do aqui arguido, sendo assim, este Tribunal competente para o conhecimento dos factos praticados pelo cidadão belga em espaço português (cf. art.º 19, n.º 3 do CPP).
- o prazo máximo da prisão preventiva atinge-se no próximo dia 11.10.2025, data em que atingirá os seis meses, de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 215º do CPP.
Assim sendo, mantenho a medida de coação de prisão preventiva por não se ter ultrapassado qualquer prazo legal e por se manterem todos os pressupostos que a determinaram. Sendo que este Tribunal é material e territorialmente competente, nos termos do disposto no art.º 17º e 19º, n.º 3 do Cód. Processo Penal para a sua aplicação”.
3. Da certidão junta consta o auto de 1.º interrogatório de arguido detido, artigo 141.º CPPenal, levado a cabo a 11.4.2025, no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Instrução Criminal de ..., J..., que culminou com a prolação de despacho,
- a julgar a detenção do arguido, efectuada fora de flagrante delito, legal, nos termos do disposto nos artigos 254.º/1 alínea a) e 257.º/1 alíneas a), b) e c) CPPenal;
- a julgar que aquando da apresentação dos autos para 1.º interrogatório judicial não se mostrava ultrapassado o prazo a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 254.º e n.º 1 do artigo 141.º CPPenal;
- a considerar que dos autos constam fortes indícios da prática pelo arguido de 6 crimes de tráfico de pessoas, pp. e pp. pelo artigo 160.º/1 alíneas b) e d) CPenal e, 6 crimes de auxílio à imigração ilegal, pp. e pp. pelo artigo 183.º/1 a 3 da Lei 23/2007 de 4JUL, a punir como concurso aparente, através das regras da consunção, em relação a pessoas que foram conduzidas para uma sua propriedade, situada em ..., onde vem alternando a sua residência com outras situadas em Espanha e na Bélgica;
- a aplicar a medida de coacção de prisão preventiva, cumulada com a proibição de contactos com todos os ofendidos e com a suspeita BB, ao abrigo dos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 194.º, 202.º e 204.º alíneas a), b) e c) CPPenal.
4. Convocada a Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o mandatário/ defensor do arguido, procedeu-se à realização da audiência, com o formalismo legal e em conformidade com o disposto nos artigos 11.º/4 alínea c), 223.º/1, 2 e 3 e 435.º CPPenal.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
1. O circunstancialismo factual relevante para o julgamento resulta da petição de habeas corpus, dos documentos com ela juntos, da informação e da certidão que a acompanha é a seguinte:
- a 11.4.2025 o arguido, detido fora de flagrante delito, foi presente ao Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Instrução Criminal de ..., J... e aí submetido a 1.º interrogatório de arguido detido, nos termos do artigo 141.º CPPenal, que culminou com a prolação de despacho,
- a julgar a detenção do arguido, efectuada fora de flagrante delito, legal, nos termos do disposto nos artigos 254.º/1 alínea a) e 257.º/1 alíneas a), b) e c) CPPenal;
- a julgar que aquando da apresentação dos autos para 1.º interrogatório judicial não se mostrava ultrapassado o prazo a que alude a alínea a) do n.º1 do artigo 254.º e n.º 1 do artigo 141.º CPPenal;
- a considerar que dos autos constam fortes indícios da prática pelo arguido de 6 crimes de tráfico de pessoas, pp. e pp. pelo artigo 160.º/1 alíneas b) e d) CPenal e, 6 crimes de auxílio à imigração ilegal, pp. e pp. pelo artigo 183.º/1 a 3 da Lei 23/2007 de 4JUL, a punir como concurso aparente, através das regras da consunção, em relação a pessoas que foram conduzidas para uma sua propriedade, situada em ..., onde vem alternando a sua residência com outras situadas em Espanha e na Bélgica;
- a aplicar a medida de coacção de prisão preventiva, cumulada com a proibição de contactos com todos os ofendidos e com a suspeita BB, ao abrigo dos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 194.º, 202.º e 204.º alíneas a), b) e c) CPPenal.
4. Da certidão junta consta o auto de 1.ª interrogatório de arguido detido, artigo 141.º CPPenal, levado a cabo a 11.4.2025, que culminou com a prolação de despacho,
- a considerar que dos autos constam fortes indícios da prática pelo arguido de 6 crimes de tráfico de pessoas, pp. e pp. pelo artigo 160.º/1 alíneas b) e d) CPenal e, 6 crimes de auxílio à imigração ilegal, pp. e pp. pelo artigo 183.º/1 a 3 da Lei 23/2007 de 4JUL, a punir como concurso aparente, através das regras da consunção,
- a aplicar a medida de coacção de prisão preventiva, cumulada com a proibição de contactos com todos os ofendidos e com a suspeita BB, ao abrigo dos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 194.º, 202.º e 204.º alíneas a), b) e c) CPPenal.
2. O Direito
1. As razões do requerente.
Invocando “as alíneas a), b) e c), parte final “decisão judicial” do artigo 222.º CPPenal, pretende o peticionante, colocado em situação de prisão preventiva, a sua libertação, “extinguindo-se todas as medidas de coacção, sem prejuízo de, se assim for entendido, se remeter às autoridades belgas todos os elementos que se entendam pertinentes e ali ser investigado e julgado” alegando que está preso ilegalmente porque a decisão judicial que ordenou a sua prisão preventiva padece de erro grosseiro ao entender ser competência portuguesa aquilo que não ocorreu em Portugal, quando os Tribunais portugueses não têm jurisdição sobre os factos que lhe são imputados e, ademais, como cidadão belga pode muito bem ser extraditado para a Bélgica – seu país – e lá as autoridades tratarão da competente investigação.
Estrutura esta sua pretensão na seguinte linha de raciocínio:
- está a correr o prazo para interpor recurso do despacho que decretou, não havendo relação de litispendência com a presente petição de Habeas Corpus;
- por decisão judicial de 14 de abril de 2025, proferida pelo JIC de ..., foi decretada a medida de coação de prisão preventiva;
- estamos perante um caso raro em que se aplicam, conjugadamente, todas as alíneas do artigo 222.º CPPenal - detenção efetuada por entidade incompetente, motivada por facto pelo qual a Lei não permite e decretada por decisão judicial;
- os factos carreados para os autos revelam que os imigrantes, todos familiares da BB (não detida) e que é companheira do aqui arguido, viajaram do Brasil para diversos países da Europa, nunca aterrando em Portugal;
- a ter ocorrido a prática de qualquer tipo de crimes de auxílio à imigração ilegal e/ou tráfico de pessoas não ocorreu em território português;
- se, muitos meses depois, as vítimas usaram o espaço europeu para viajarem e chegarem até Portugal, em situação ilegal, a consumação dos crimes ocorreu inequivocamente no estrangeiro;
- não estando as mesmas vítimas “algemadas nem acorrentadas”, nem sequestradas em herdades no meio do deserto, sempre as mesmas putativas vítimas poderiam ter seguido uma estrada diferente;
- as mesmas alegadas vítimas referem que recebiam 300 ou 400 euros, tinham telemóvel, tinham casa (modesta ou não), comiam e bebiam;
- em circunstância alguma estiveram impedidos de colocar um ponto final à situação “de aterradora exploração” que os autos querem fazer transparecer;
- se a factualidade subsumível ao tipo de ilícito não foi iniciada e praticada em território português, é evidente que a Lei portuguesa não se aplicará à mesma e os tribunais portugueses não serão territorialmente competentes para julgar factos ocorridos em território espanhol e belga;
- aos Tribunais portugueses cabe julgar os crimes cometidos em solo português;
- se as pessoas imigrantes em apreço tivessem aterrado em Portugal e os alegados crimes tivessem sido preparados em Portugal, aí (e só aí) poderíamos falar da competência jurisdicional portuguesa;
- a investigação da Polícia Judiciária, a condução do inquérito pelo DIAP e a própria função do Juiz de Instrução Português são ilegais por incompetência em razão do território;
- as regras e a disciplina ínsitas no artigo 5.º CPenal, inclui efetivamente, na alínea c) do n.º 1 deste preceito, o crime previsto e punido pelo artigo 160.º CPenal;
- a letra da Lei é bastante clara quando refere “desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português”;
- da conjunção copulativa “e” decorre forçosamente que os referidos pressupostos são cumulativos, exigindo-se a sua verificação simultânea;
- o disposto no artigo 22.º/1 e 2 CPPenal colide com a competência jurisdicional dos tribunais estrangeiros, na medida em que as ditas cartas convite relevantes para os presentes autos não foram emitidas em território Português (nem sequer foram emitidas pelo arguido AA), tendo sido usadas para entrar no Espaço Schengen, não tendo sido Portugal o ponto de entrada;
- as alegadas vítimas, todas de nacionalidade brasileira, enquadram-se no êxodo voluntário em massa verificado nos últimos quatro anos para a União Europeia, em decorrência da instabilidade política, económica e social;
- a imigração proveniente do Brasil é uma imigração informada;
- as pessoas em causa – que viajaram voluntariamente para a União Europeia – são todas maiores de idade, e encontram-se todas no pleno uso das suas faculdades mentais, com acesso a redes de comunicação e de informação;
- na decisão que decretou a prisão preventiva ocorre erro grosseiro quando no ponto 41 se refere que, “o arguido e sua companheira favoreceram e facilitaram a entrada e permanência em território nacional de imigrantes brasileiros a coberto de cartas convite que formularam e emitiram para esse efeito, permitindo que os imigrantes ilegais trabalhassem na empresa do arguido, e que o faziam com intenção lucrativa, bem sabendo os mesmos que não o podiam fazer por não terem a situação documental regularizada em Portugal”, porque os Tribunais Portugueses não são competentes para a investigação.
2. O texto legal.
O habeas corpus é um meio, procedimento, de afirmação e garantia do direito à liberdade, cfr. artigos 27.º e 31.º da CRP, constituindo uma providência expedita e excecional – a decidir no prazo de oito dias em audiência contraditória, cfr. Artigo 31.º/3 da CRP – para fazer cessar privações da liberdade ilegais, isto é, não fundadas na lei, sendo a ilegalidade da prisão verificável a partir dos factos documentados no processo.
Sobre o pedido de habeas corpus por prisão ilegal, dispõe o artigo 222.º CPPenal que,
“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.
São taxativos os pressupostos do habeas corpus - que também tem consagração constitucional, cfr. artigo 31.º da CRP.
Enquanto no Decreto Lei 35.043, de 20 de outubro de 1945, «o habeas corpus é um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», hoje, e mais nitidamente após as alterações de 2007, com o aditamento do n.º 2 ao artigo 219.º do CPPenal, o instituto não deixou de ser um remédio excecional, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso.
A providência de habeas corpus que não se confunde com o recurso, nem com os fundamentos deste, como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Editorial Verbo, 1993, 260, o habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”.
Convém ter presente, como se refere no artigo 31.º/1 CRP, que “haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” Ou seja, esta providência, que inclusivamente pode ser interposta por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, artigo 31.º/2 CRP, tem apenas por finalidade libertar quem está preso ou detido ilegalmente e, por isso, é uma medida excecional e muito célere.
De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determina a prisão, nem tão pouco erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no artigo 222.º/2 CPPenal.
O habeas corpus não serve para discutir decisões proferidas em outros Tribunais, mormente nos Tribunais de 1.ª instância, que aplicaram pena de prisão ao peticionante.
Irregularidades que aí possam ter sido praticadas, verificando-se os respectivos pressupostos deverão ser impugnadas pelos meios próprios.
E, naturalmente, como, de resto, é jurisprudência constante e pacífica deste Tribunal, para que possa merecer acolhimento o pedido de habeas corpus é ainda necessário que a ilegalidade da prisão seja actual - actualidade reportada ao momento em que é apreciado o pedido.
E, assim, a questão a decidir, nesta sede, reporta-se, tão só, à legalidade da prisão do requerente.
3. Baixando ao caso concreto.
Dado que o peticionante começa por abordar a questão de estar a deduzir pedido de Habeas Corpus sem ter transitado o despacho que ordenou a prisão preventiva, mostrando a disposição de o impugnar por via de recurso, começarmos por dizer o seguinte, a este propósito.
Já decidiu este Supremo Tribunal no acórdão de 30.4.2008, processo 08P1504, consultado no site da dgsi, que “é verdade que a providência de habeas corpus não pressupõe o prévio esgotamento dos recursos que possam caber da decisão de onde promana a prisão dita ilegal, sendo compatível com a possibilidade de recurso de tal decisão, exactamente pela necessidade de pôr imediatamente cobro a uma situação de patente ilegalidade, também é verdade que só em casos extremos de claro abuso de poder ou de erro grosseiro na aplicação do direito, se admite a providência de habeas corpus como forma de fazer cessar a prisão ilegal, quando ela tenha sido determinada por decisão judicial”, isto porque “a providência de habeas corpus não almeja a reanálise do caso; almeja a constatação da ilegalidade, que, por isso mesmo, tem de ser patente”, destinando-se a “apreciar situações de flagrante ilegalidade da prisão, resultantes de notório abuso de poder, artigo 31.º da CRP, não a decidir questões de nulidades ou irregularidades processuais, e muito menos a impugnar decisões judiciais”.
A. Prisão determinada por entidade incompetente.
Esta incompetência compreende apenas a de carácter material, a falta de jurisdição, ou seja, haverá incompetência apenas se a entidade que efectuou ou ordenou a prisão não tiver o estatuto requerido para ordenar a prisão. Isto é, se não tiver o estatuto de juiz, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 19.5.2010, in CJ, S, II, 196.
Será o caso de prisão “a non judice”, como refere o Professor Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do CPPenal, 2.ª edição, 611, acrescentando, ainda, que, este fundamento não inclui a prisão determinada por juiz incompetente, pois o juiz incompetente também pode ordenar a prisão preventiva, cfr. artigo 33.º/3 CPPenal.
Como refere o Professou Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Editorial Verbo, 360, nesta previsão se subsume a “prisão ordenada por outra entidade que não o juiz competente ou efectuada por entidade incompetente ou sem precedência de mandado judicial”.
Não basta que a prisão seja decretada por um juiz, terá que ser pelo juiz competente para proferir a decisão – aquele a quem a lei atribui competência para proferir uma ordem de prisão ou a manutenção desta.
No entanto, esta norma não tem em vista a incompetência funcional, apenas havendo incompetência se a entidade que efectuou ou ordenou a prisão não tiver o estatuto requerido para o fazer, não tiver o estatuto de juiz com competência em matéria criminal.
Naturalmente que se o legislador quisesse prever a incompetência do Tribunal, por qualquer das razões e fundamentos previstos na Lei, não utilizaria a expressão “entidade incompetente”.
Entidade incompetente não é a mesma coisa, não tem o mesmo significado e constitui realidade, substancialmente diversa, de “tribunal incompetente”, cfr. neste sentido, acórdão deste Supremo Tribunal de 11.12.2008, consultado no site da PGDL.
A incompetência relevante, para efeitos do preenchimento da previsão da alínea a) do artigo 222.º CPPenal é a falta de jurisdição, a traduzir que a entidade que efectuou ou ordenou a prisão, no caso preventiva, não tem o estatuto requerido para a ordenar. Não é juiz, cfr. neste sentido acórdão deste Supremo Tribunal de 3.12.2004, processo 122/13.TEFLRS-A.S1, consultado no site da dgsi.
Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 10.10.2007, processo 07P377, consultado in jurisprudência.pt, “A “incompetência” a que se refere a alínea a) do n.º 2 do artigo 222.º CPPenal é essencialmente a falta de jurisdição, ou seja, a situação em que a entidade que decidiu a prisão é alguém que não detém poder jurisdicional para intervir e decidir no caso concreto. Será o caso, por exemplo, de a decisão ser tomada por alguém que não é juiz, ou por um juiz de jurisdição diferente, ou por um juiz fora do âmbito do processo. Em todos esses casos estamos perante um abuso de poder. Irrelevante se apresenta, assim, em princípio, em termos de habeas corpus, a competência funcional dos tribunais. A intervenção de juiz diferente do competente segundo as regras da repartição funcional de competências não envolve nenhuma diminuição de garantias para o arguido. Só no caso de ser notório que essa intervenção constitui uma “subtracção” deliberada, arbitrária e abusiva da causa ao tribunal competente haverá fundamento para habeas corpus, pois então essa situação envolve abuso de poder”.
A alegação do peticionante não procederia, em qualquer caso.
Desde logo, não compete ao STJ, no âmbito do habeas corpus, apreciar nulidades ou irregularidades processuais que não constituam “abuso de poder”, nem afectem o núcleo das garantias fundamentais da defesa.
Analisando o caso dos autos, constatamos que o peticionante foi detido e apresentado para interrogatório no TIC de ..., por indícios da prática de crimes de tráfico de pessoas e de auxílio à imigração ilegal, em relação a pessoas que foram conduzidas para uma sua propriedade, situada em ..., onde vem alternando a sua residência com outras situadas em Espanha e na Bélgica.
Nenhum crime foi imputado ao arguido que explicitamente extravasasse os limites da área de jurisdição do tribunal onde foi ouvido.
Sem embargo de o desenvolvimento da investigação poder, eventualmente, conduzir ao alastramento territorial do âmbito da actividade criminosa imputada ao peticionante.
Contudo, é seguro que a intervenção do TIC de ... obedeceu a regras objectivas, melhor dito, obedeceu às regras processuais aplicáveis, tendo em conta os elementos disponíveis, então, nos autos, apontando para a prática dos crimes na área de jurisdição daquele Tribunal.
Segundo os factos indiciados e constantes do despacho que decretou a prisão preventiva, o crime de tráfico de pessoas consumando-se com a prática de condutas como a de oferecer, entregar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoas para fins de exploração” e sabendo que daquele despacho não consta a existência de qualquer MDE (assim não sendo possível a entrega em execução de um MDE inexistente), os factos ali relatados integram-se no âmbito de jurisdição da legislação portuguesa, de acordo com o disposto no artigo 5.º CPenal.
Independentemente da eventual conexão com outros locais e diversas geografias e mesmo, da questão de Direito, atinente com o saber-se onde se consumaram os crimes – recorde-se de tráfico de pessoas e de auxílio à imigração ilegal, que não se encontra no âmbito de cognição de uma providência como a do Habeas Corpus.
Aliás, não há elementos seguros e evidentes (e só nessa base se pode decidir numa providência de habeas corpus) de que a matéria da investigação tenha relação processual com jurisdições estrangeiras, para o que não basta que as vítimas não tenham vindo directamente do Brasil para Portugal, tendo passado, entretanto, por outros locais, no estrangeiro.
Sendo assim, é evidente que o TIC de ... era o tribunal competente, face aos dados do inquérito da altura - que não foram alterados, entretanto - quanto se pode avaliar nesta providência, para o 1.º interrogatório de arguido detido e eventual aplicação de medidas de coacção.
Ou seja, não só não houve qualquer abuso de poder na intervenção do TIC de ..., como, a sua actividade correspondeu ao cumprimento das regras processuais.
Tendo presente que a medida de coacção foi aplicada pelo Juiz de Instrução, por despacho judicial de 11.4.2025, na sequência do 1.º interrogatório judicial de arguido detido, ficam, desde logo, excluídas as situações previstas nas alíneas a) e c) do artigo 222.º CPPenal.
Consequentemente, improcede o primeiro fundamento invocado pelo peticionante no seu requerimento.
Assim, subsistindo, por exclusão de partes, as hipóteses previstas nas alíneas b) e c) da referida norma legal - prisão ilegal ter sido motivada “por facto pelo qual a lei a não permite” e prisão mantida além dos prazos fixados pela Lei ou por decisão judicial.
B. Prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permite.
Também, este segmento do recurso está votado ao insucesso.
Este pressuposto centra-se n motivo da prisão.
Se o facto que motivou a prisão não tem respaldo legal procederá o Habeas Corpus.
Sem que, contudo, no âmbito desta providência este Supremo Tribunal possa abordar a questão processual, a tramitação do processo, a interpretação do Direito aplicado e o acerto, ou falta dele, da decisão que decretou a prisão.
O peticionante nem sequer coloca em causa nenhuma destas vertentes.
Para si a invocação do requisito de que a prisão foi motivada por facto que a lei não permite, tem subjacente a linha de orientação de toda a sua petição – traduzida no entendimento de que os factos teriam sido praticados no estrangeiro e, por isso não podem ser investigados em Portugal.
E, já vimos que assim, não é, de todo.
C. Prisão mantida além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
Obviamente que a prisão preventiva não se mantém além dos prazos fixados na lei ou por decisão judicial, como enfatiza o peticionante.
Os prazos fixados pela lei são os prazos máximos previstos na lei para a privação da liberdade e os determinados por decisão judicial são os que correspondem à duração do aprisionamento dentro dos limites legais, cfr. Tiago Caiado Milheiro em anotação ao artigo 222.º in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, António Gama e outros 3.ª edição, 606.
A prisão preventiva foi aplicada por despacho de 11.4.2025.
Nos termos do artigo 215.º/1 e 2, conjugado com o artigo 1.º alínea CPPenal, a prisão preventiva extingue-se, em casos de criminalidade altamente organizada - de que constitui exemplo o crime de tráfico de pessoas, indiciariamente, imputado ao arguido – quando, desde o seu início, tiverem decorrido 6 meses sem que tenha sido deduzida acusação.
Donde, manifestamente que não se verifica este pressuposto.
Com efeito, não se verifica qualquer excesso de prazo. Nem legal, nem judicial no âmbito daquele.
4. Conclusão.
No âmbito da providência e habeas corpus não incumbe, nem cabe nos seus poderes de cognição do STJ analisar questões que extravasam os fundamentos previstos no artigo 222.º/2 CPPenal.
Tendo em atenção o alegado no requerimento de habeas corpus, a materialidade apurada e o disposto nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 222.º CPPenal, não ocorre qualquer fundamento para o deferimento do habeas corpus.
Com efeito, a prisão do requerente não se mostra ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
E, assim, dado que não se evidencia uma violação directa, patente, ostensiva e grosseira dos pressupostos e das condições de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, deve o Habeas Corpus ser indeferido, por manifesta falta de fundamento legal, nos termos do artigo 223.º/4 CPPenal.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a presente providência de habeas corpus apresentada pelo peticionante AA, por manifesta falta de fundamento legal.
Custas pelo requerente, fixando-se em 4 UC, a taxa de justiça, cfr. n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa.
Nos termos do artigo 223.º/6 CPPenal, o peticionante vai também condenado em 8 UC’s.
Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artigo 94.º/2 CPPenal), sendo assinado pelo próprio, pelos dois Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pela Senhora Juíza Conselheira Presidente.
Supremo Tribunal de Justiça, 8.5.2025
Ernesto Nascimento - Relator
Ana Paramés – Juíza Conselheira Adjunta
José Piedade – Juiz Conselheiro Adjunto
Maria Helena Moniz – Juíza Conselheira Presidente