RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
PENA ÚNICA
CÚMULO JURÍDICO
IRRECORRIBILIDADE
REJEIÇÃO PARCIAL
Sumário


I - Estando o STJ, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, está também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão.
II - Se a irrecorribilidade do acórdão da Relação, no que respeita aos diversos crimes e penas parcelares, impede a sindicância no STJ daquele acórdão quanto a todas as questões processuais ou de substância relativas ao julgamento desses crimes, não é assim quanto à determinação da pena única de 9 anos de prisão resultante de cúmulo jurídico.
III - Para a determinação da medida concreta da pena conjunta é decisivo que se obtenha uma visão de conjunto dos factos que tenha em vista a eventual conexão dos mesmos entre si e a relação com a personalidade de quem os cometeu.
IV - As conexões ou ligações fundamentais, na avaliação da gravidade do ilícito global, são as que emergem do tipo e número de crimes; da maior ou menor autonomia e frequência da comissão dos delitos; da igualdade ou diversidade de bens jurídicos protegidos violados; da motivação subjacente; do modo de execução, homogéneo ou diferenciado; das suas consequências e da distância temporal entre os factos – tudo analisado na perspetiva da interconexão entre todos os factos praticados e a personalidade global de quem os cometeu, de modo a destrinçar se o mesmo tem propensão para o crime, ou se, na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, devendo a pena conjunta refletir essas singularidades da personalidade do agente.
V - O acórdão recorrido é omisso quanto à descrição dos factos dados como provados respeitantes aos diversos crimes em concurso pelos quais o arguido/recorrente foi condenado, pelo que, faltando essa descrição, mesmo que sintética ou resumida, não se vislumbra como poderá este STJ sindicar o processo de determinação da pena única conjunta, sobre a qual o acórdão recorrido nos dá a conhecer pouco mais do que os tipos de crime convocados e as penas parcelares, com recurso a generalidades, sem nos elucidar sobre os factos em causa, que permitam apreender as conexões ou ligações fundamentais à avaliação pelo tribunal da gravidade da ilicitude global e da personalidade unitária do concreto agente.
VI - O acórdão a proferir em recurso, pela Relação, deve conter, na justa medida do necessário, a enunciação dos factos dados por provados, pois os mesmos constituirão o referente indispensável para o conhecimento da matéria de facto (se a questão se colocar) e para a decisão das questões de direito suscitadas no recurso. Por força do dever de fundamentação, exige-se ao tribunal da Relação que, conhecendo das questões que lhe são colocadas, explicite os motivos pelos quais julga procedente ou improcedente o recurso. O acórdão da Relação não tem de constituir a reedição da peça impugnada através de transcrições que sejam escusadas, mas não pode deixar de conter os elementos essenciais para a decisão do recurso - elementos que se mostrem necessários para que, por sua vez, possa ser sindicada em recurso, como peça autónoma que é, a decisão da Relação.
VII - O acórdão recorrido não contém a indicação dos factos provados relativos a cada condenação em pena parcelar, não permitindo, por si só, como decisão auto-suficiente, através da fundamentação apresentada, a apreensão das conexões ou ligações fundamentais entre os factos que basearam o tribunal para que globalmente apreciasse a gravidade da ilicitude global e da culpa, no confronto com a personalidade unitária do concreto agente, conforme dispõe o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO

1. No Juízo Central Criminal de ... (Juiz ...), AA, com os restantes sinais dos autos, e outros, foram submetidos a julgamento em processo comum com a intervenção do Tribunal Coletivo, após acusação do Ministério Público, sendo imputada ao supra referido arguido a prática dos seguintes crimes:

• em coautoria:

- 20 crimes de falsificação de documento, p. e p. pelos art. 256.º n.º1 al. d) e e), e n.º3 do Código Penal (situações I a XV, XVII, XVIII-A e XX a XXII)

- 1 crime de falsificação de documento, p. e p. pelos art. 256.º n.º1 al. a), d) e e) do Código Penal (situação XVIII-B)

- 1 crime de falsificação de documento, na forma tentada, p. e p. pelos art. 22.º, 23.º, 256.º n.º1 al. d) e e), n.º2 e n.º3 do Código Penal (situação XIX)

- 11 crimes de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º1 e 2 al. al. b) do Código Penal (situações I, II, III-2, IX, XI, XIII, XIV, XV, XVII e XVIII-C)

- 15 crimes de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) e b) do Código Penal (situações III-2, IV, V, VI, VII, VIII, X, XII, XIV, XVI, XVIII-A, XX, XXI e XXII)

- 1 crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art. 22.º, 23.º, 217.º n.º1 e 2 e 218.º n.º2 al. a) e b) do Código Penal (situação XVIII-B)

- 2 crimes de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art. 22.º, 23.º, 217.º n.º1 e 2 e 218.º n.º1 e 2 al. b) do Código Penal (situações V e XIX)

- 1 crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348.º-A n.º1 e 2 do Código Penal (situação XVI).

2. Por Acórdão de 20 de setembro de 2023, foi decidido:

«Pelo exposto, acordam os juízes que compõem este tribunal colectivo em:

(…)

- absolver o arguido AA da acusação da prática de:

. vinte crimes de falsificação de documento, p. e p. pelos art. 256.º n.º1 al. d) e e), e n.º3 do Código Penal (situações 1 a 15, 17, 18-A e 20 a 22)

. um crime de falsificação de documento, na forma tentada, p. e p. pelos art. 22.º, 23.º, 256.º n.º1 al. d) e e), n.º2 e n.º3 do Código Penal (situação 19)

. um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348.º-A n.º1 e 2 do Código Penal (situação 16)

. três crimes de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º1 e 2 al. al. b) do Código Penal (situações 1, 9 e 17)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) e b) do Código Penal (situação 7)

. dois crimes de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º1 e 2 al. al. b) do Código Penal (situação 3)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) e b) do Código Penal (situação 3)

. um crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art. 22.º, 23.º, 217.º n.º1 e 2 e 218.º n.º1 e 2 al. b) do Código Penal (situação 5)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º1 e 2 al. al. b) do Código Penal (situação 14).

- absolver o arguido AA da acusação da prática de um crime de falsificação de documento mas apenas quanto à al. d) do n.º1 do art. 256.º do Código penal (situação 18-B), sem prejuízo da imputação de outras alíneas da norma penal.

(…)

- condenar o arguido AA pela prática de:

. um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos art. 256.º n.º1 al. a) e d) do Código Penal (situação 18-B), na pena de 7 (sete) meses de prisão (situação 18-B)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º1 do Código Penal, na pena 1 (um) ano e 7 (sete) meses de prisão (situação 2)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão (situação 3)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão (situação 4)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão (situação 5)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão (situação 6)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão (situação 8)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão (situação 10)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 7 (sete) meses de prisão (situação 11)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão (situação 12)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (situação 13)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão (situação 14)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (situação 15)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão (situação 16)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão (situação 18-A)

. um crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art. 22.º, 23.º, 217.º n.º1 e 2 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal (situação 18-B), na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão (situação 18-C)

. um crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art. 22.º, 23.º, 217.º n.º1 e 2 e 218.º n.º1 do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão (situação 19)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão (situação 20)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão (situação 21)

. um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º n.º1 e 218.º n.º2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão (situação 22).

- condenar, em cúmulo jurídico das penas singulares ora aplicadas, o arguido AA na pena conjunta de 9 (nove) anos de prisão.

(…).»

3. O arguido AA (como outros) interpôs recurso do referido acórdão para o Tribunal da Relação de Évora, que veio a ser julgado improcedente, “mantendo-se tal decisão nos seus precisos termos”.

4. O arguido interpôs recurso do referido acórdão para este Supremo Tribunal, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem:

1.ª

a) O Recorrido Acórdão proferido em 2.ª instância é totalmente omisso na fundamentação, de facto e de direito, de suporte ao acórdão proferido.

b) Que, tal como acima se demonstra, o R. acórdão não cumpriu os legais pressupostos a que se refere o art.º 97º n.º 5, 374º e 379.º do CPP, e 205º do CRP, quanto a fundamentação dos factos provados e não provados inexistentes nos autos;

c) Que, a lei configura por motivo de nulidade do acórdão.

d) Que, a remissão para os factos da decisão em 1.º instância só seria aplicável no caso do disposto no artigo 425.º nº.4 do CPP, o que não ocorre no caso.

e) De acordo com o disposto no art.º 428.º do CPP, a relação conhece de facto e de direito pelo que, para conhecer de facto, terá de elencar, um a um, os factos provados e não provados para poder julgar, em recurso quer a matéria de facto, quer de direito, como a lei o impõe, formando a sua própria conclusão.

f) Sem factos, a relação não pode julgar o recurso, proferindo assim uma decisão nula em face do que se dispõe o art.º 379.º do CPP.

g) Sendo a decisão, para o recorrente, passível de revista, deverá este Tribunal conhecer das nulidades invocadas e delas retirar, as legais consequências que, tal como acima se demonstra, com a lei, a doutrina e jurisprudência, é a sua nulidade.

h) A nulidade do acórdão, a ser declarada, afeta todas as questões constantes das conclusões do recurso apresentado, que devem ser conhecidas, em nova decisão que venha a ser proferida.

i) Com o possível de convite ao aperfeiçoamento a que se refere o art.º 417.º n.º3 do CPP, caso assim venha a ser entendido.

2.º

Tendo em vista o exposto na 1.º conclusão, entende-se que a R. decisão tal como proferida viola as seguintes normas:

a) Do Código de Processo Penal:

- Artigo 97.º, N.º 5;

- Artigo 118.º, nº.1 e 2, a contrário.

- Artigo 374.º nº.2

- Artigo 379.ºnº.1, alínea “a”.

- Artigo 368.º

- Artigo 425.º, nº.5, a contrário.

b) Da Constituição:

- Artigo 20º, nº.1 e 4 quanto à tutela jurisdicional efetiva que não foi salvaguardado na decisão.

- Artigo 32º, nº.1 quanto às garantias de defesa que a norma fundamental contempla e que não foi respeitado.

- Artigo 205º, nº.1 quanto ao dever de fundamentação.

Na violação dos acórdãos do TC:

1. Ac.Nº.116/2007 que julgou inconstitucional a norma do artigo 428º, do C.P.P, como tal norma foi interpretada no acórdão em caso análogo.

2. Ac.Nº.680/96, na interpretação da norma do artº.374/2, tal como interpretada foi no acórdão, em violação do nº.1 do artº.32º, da C.R.P.

3. Ac.Nº.320/2002, que julgou inconstitucional a norma do artigo 412 nº.2, como tal interpretada, em violação do disposto no artigo 32 n-.1 da CRP.

4. Ac.Nº.337/2000 com força obrigatória geral e 330/2002, que declarou a inconstitucionalidade da norma do artigo 412º, nº.1 a 4, do CPP, tal como interpretada, por violação do nº.1 do artº.32º, da CRP.

5. Ac.405/2004, que declarou a inconstitucionalidade da norma do nº.3 e 4 do artº.412º, do CPP, por violação do nº.1 do artº. 32º.

6. Ac.Nº.485/2008, que declarou inconstitucional a norma do artº.412º, nº.2/b,3/b e 4 do CPP, como tal interpretadas, por violação do nº.1 do artº.32º, da CRP.

7. Ac.135/88 ao não assegurar ao arguido recorrente, um processo de defesa justo a que se refere o artigo 29º, e 32º, da C.R.P.

Em face do exposto, Requer a V.Exªs:

1. Que a questão de nulidade acima apresentada e aqui arguida seja julgada procedente, com as legais consequências.

2. Que, a R, decisão a proferir seja legal, justa e ajustada em face da prova que resulta dos autos e que o tribunal dela não conheceu ou não apreciou devidamente, quer a prova testemunhal quer a prova documental, de prova vinculada e fora do regime discricionário do artigo 127º, do C.P.P.

5. O Ministério Público, junto da Relação, respondeu ao recurso, concluindo que o mesmo não merece provimento.

6. Neste Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ), o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, concluindo:

« III Em síntese:

Não se exige que o Tribunal de recurso proceda a uma reedição da decisão recorrida, revisitando todos os termos da sua fundamentação, pois que o que se lhe impõe, na lógica recursória, é o controlo de razoabilidade e suficiência dessa fundamentação (e da decisão que lhe está subjacente, em face da impugnação deduzida e dos temas de conhecimento oficioso);

Nomeadamente, nada impõe – salvo especiais considerações do caso concreto – que o Tribunal da Relação proceda ao elenco integral dos factos-provados e não provados da decisão condenatória do Tribunal de 1ª Instância;

O Acórdão recorrido não padece de falta de fundamentação.

(…).»

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência com a decisão impugnada, a questão que o recorrente suscita é a da alegada falta de fundamentação do acórdão recorrido.


*


2. Apreciando

2.1. Inadmissibilidade do recurso quanto aos crimes e penas parcelares. Consequências dessa inadmissibilidade.

Estabelece o artigo 400.º, n.º1, alíneas e) e f), do CPP:

«1 - Não é admissível recurso:

(…)

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

(…).»

O segmento final da transcrita alínea e) resulta da redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21/12, que para o caso não importa.

Por sua vez, dispõe o artigo 432.º, do CPP, sob a epígrafe “Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça”:

« 1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º».

Finalmente, o artigo 434.º, sob a epígrafe “Poderes de cognição”, preceitua que «O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º», resultando o segmento final da redacção dada pela Lei n.º 94/2021.

Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nos casos das alíneas e) e f), do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP, os poderes deste tribunal estão delimitados negativamente pela medida das penas aplicadas pelo Tribunal da Relação.

Da conjugação destas disposições resulta, numa formulação sintética, que só é admissível o recurso para o STJ de acórdãos das relações, proferidos em recurso, que apliquem:

- penas superiores a 5 anos de prisão, quando não se verifique dupla conforme;

- penas superiores a 8 anos de prisão, independentemente da existência de dupla conforme.

Cumpre referir que a confirmação da decisão pelo Tribunal da Relação pode não ser total, mas tratar-se de uma simples divergência quantitativa, para menos, da medida da pena, caso em que se estará na presença da denominada confirmação “in mellius”.

Tal significa só ser admissível recurso de decisão confirmatória da Relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico (cf., entre muitos arestos que estão disponíveis para consulta, os acórdãos do STJ: de 11.03.2021, Proc. 809/19.1T9VFX.E1.S1; 02.12.2021, Proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1; 12.01.2022, Proc. 89/14.5T9LOU.P1.S1; 20.10.2022, Proc. 1991/18.0GLSNT.L1.S1; 30.11.2022, Proc. 1052/15.4PWPRT.P1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).

No caso em apreço, é incontroverso que as diversas penas parcelares impostas ao recorrente em 1.ª instância e confirmadas pelo acórdão da Relação de Évora são todas não superiores a 5 anos de prisão.

Por sua vez, a pena única imposta pela 1.ª instância e que a Relação confirmou é de 9 anos de prisão.

É forçoso concluir ser inadmissível o recurso quanto às condenações nas diversas penas parcelares, irrecorribilidade que abrange toda a matéria que se prenda com as infrações penais em causa, ou seja, “todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluída a matéria de facto, nulidades, vícios lógicos da decisão, o princípio in dubio pro reo, a qualificação jurídica, a escolha das penas e a respetiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais” (acórdão de 10.03.2021, deste STJ, proferido no Proc. n.º 330/19.8GBPVL.G1.S1, da 3.ª Secção).

Por outras palavras, estando o STJ, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, está também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respetivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspetos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aqui se incluindo as questões relativas à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos (com penas de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP), incluindo nesta determinação, por exemplo, a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como de questões de inconstitucionalidade que sejam suscitadas nesse âmbito (cf., entre outros, o acórdão do STJ, de 14.03.2018, Proc. 22/08.3JALRA.E1.S1).

Finalmente, limitado o conhecimento do recurso à pena única imposta na Relação, que é superior a 8 anos, e por estar em causa, precisamente, um acórdão da Relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o STJ «com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro), diversamente do que ocorre com os recursos previstos nas alíneas a) e c).

Assim, e em síntese, o recurso terá de ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), 414.º, n.º 2 e 3, 420.º, n.º 1, alínea b), e 432.º, n.º 1, alínea b), todos do CPP, no que concerne às diversas condenações em penas parcelares.

Em consequência da rejeição do recurso, por inadmissibilidade legal, no que toca às condenações em penas parcelares pelos diversos crimes, nada do que se alega relativamente à invocada falta de fundamentação do acórdão recorrido pode aqui ser considerado, na parte que concerne a essas condenações, pois para que se pudesse conhecer de uma alegada nulidade seria necessário, como pressuposto lógico, que o recurso fosse admissível, nessa parte.

2.2. Reconduzido o recurso ao seu objeto legalmente admissível – o da pena única imposta ao arguido / recorrente, vejamos o que disse a esse respeito a Relação.

Lê-se no acórdão recorrido:

«Vejamos, agora, a determinação das penas únicas concretas. Como afirmou expressamente o Tribunal a quo e decorre do disposto no artigo 77º do Código Penal, a medida concreta da pena única (pena do concurso de crimes) deverá ser fixada dentro da moldura abstracta aplicável (a qual tem como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares concretamente aplicadas, tendo como limite máximo a soma das penas parcelares aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão) e é determinada em função da culpa e da prevenção, mas tendo em conta o critério específico da consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido.

Como explicita o Conselheiro Artur Rodrigues da Costa:

“À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.

Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da actuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO em anotação ao acórdão do STJ de 12/07/05.

Ou, como diz FIGUEIREDO DIAS: «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique».

Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização».

Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita.”

Tendo presente tudo isto, resulta manifesta a falta de razão dos recorrentes, não se vislumbrando qualquer fundamento para se considerar excessivo o doseamento da pena única que o Coletivo julgador determinou para cada um dos arguidos.

Deverá notar-se que em qualquer um dos casos dos ora recorrentes não encontrou o Tribunal a quo razões para atribuir à pluralidade de crimes o efeito agravante decorrente da constatação de uma tendência ou “carreira” criminosa. Relativamente aos dois recorrentes ponderou o Tribunal a quo o percurso de vida regular e, mesmo quanto ao arguido AA, considerou de pouca monta a anterior condenação, dada a natureza diversa dos crimes.

Contemplando as muito largas molduras abstractas de cúmulo (3 anos e 7 meses a 20 anos e 2 meses de prisão, no caso do arguido BB; 3 anos de prisão e 25 anos de prisão, no caso do arguido AA), o Tribunal a quo fixou as penas únicas com notória contenção:

- Arguido AA – 9 anos de prisão;

- Arguido BB – 6 anos e 6 meses de prisão.

Deverá notar-se que essas penas únicas foram fixadas perante um conjunto de factos que atingiram aquilo a que o Tribunal a quo bem chamou bens dominiais importantes, a que a comunidade tende a atribuir valor real e simbólico acrescido, correspondendo ao cometimento do conjunto já numeroso de crimes, afetando vítimas distintas, sendo que a pena única determinada para cada um dos arguidos se quedou sempre abaixo do ponto médio da moldura abstrata do cúmulo.

Para assim decidir, ponderou o Tribunal a gravidade do ilícito, globalmente considerado. Não podemos deixar de concordar com esse juízo. Ao cidadão comum repugnam de forma muito acentuada as condutas como as dos arguidos. A comunidade não compreenderia nem aceitaria que o Tribunal lançasse mão de maior benevolência, quando os crimes visaram os ditos bens dominiais importantes, a que a comunidade tende a atribuir valor real e simbólico acrescido.

O Tribunal a quo fixou as penas únicas dentro da moldura de cúmulo aplicável a cada um dos arguidos, definindo assim uma reação penal consistente e firme, adequada em face da gravidade dos crimes cometidos por cada um deles, de acordo com a imagem global dos factos e apta a constituir uma advertência suficientemente séria para garantir o êxito das finalidades de prevenção.

A determinação concreta das penas únicas aplicadas aos recorrentes não merece, assim, qualquer censura.

Improcedem, pois, os recursos quanto à questão da medida das penas (sublinhando-se que a medida concreta da pena única de prisão aplicada ao recorrente AA, porque superior a cinco anos, inviabiliza a possibilidade de se lançar mão do regime de suspensão da execução da pena de prisão, jamais podendo merecer acolhimento tal pretensão recursiva do arguido).»

Se a irrecorribilidade do acórdão da Relação, no que respeita aos diversos crimes e penas parcelares, impede a sindicância no STJ daquele acórdão quanto a todas as questões processuais ou de substância relativas ao julgamento desses crimes, não é assim quanto à determinação da pena única resultante de cúmulo jurídico.

Estabelece o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal:

«Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.»

O direito português afastou o sistema da acumulação material de penas, optando por acolher um sistema de pena conjunta, obtida mediante um princípio de cúmulo jurídico (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 283 e seguintes e Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2024, pp. 72-73).

A pena única referida no artigo 77.º, n.º1, corresponde, assim, a uma pena conjunta que tem por base as correspondentes aos crimes em concurso, segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se o procedimento normal de determinação e escolha das penas parcelares, a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso.

A pena aplicável aos crimes em concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa, e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal). Sendo as penas aplicadas umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação deste critério (artigo 77.º, n.º 3), entendendo-se que penas de “diferente natureza”, para efeitos deste preceito, são somente as penas principais, de prisão e de multa.

Estando em causa, exclusivamente, a determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, aos critérios gerais contidos no artigo 71.º, n.º1, acresce um critério especial fixado no artigo 77.º, n.º1, 2.ª parte, do Código Penal: “serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.

Refere Cristina Líbano Monteiro (A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, pp. 151-166) que o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.

Como se diz no acórdão do STJ, de 31.03.2011, proferido no Proc. 169/09.9SYLSB.S1, a pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.

Lê-se no referido acórdão:

«Por outro lado, na confeção da pena conjunta, há que ter presentes os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso.

Cremos que nesta abordagem, há que ter em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71.º do Código Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação, a partir de 1-10-1995, com a proclamação de princípios ínsita no artigo 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal - o que significa que o específico dever de fundamentação de aplicação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, passando pelo efectivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.

Neste sentido, podem ver-se aplicações concretas nos acórdãos de 21-11-2006, processo n.º 3126/06-3.ª, CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228 (a decisão que efetue o cúmulo jurídico tem de demonstrar a relação de proporcionalidade entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação dos factos e a personalidade do arguido); de 14-05-2009, no processo n.º 170/04.9PBVCT.S1-3.ª; de 10-09-2009, no processo n.º 26/05. 8SOLSB-A.S1-5.ª, seguido de perto pelo acórdão de 09-06-2010, no processo n.º 493/07.5PRLSB.S1-3.ª, ali se referindo que “Importa também referir que a preocupação de proporcionalidade a que importa atender, resulta ainda do limite intransponível absoluto, dos 25 anos de prisão, estabelecido no n.º 2 do art. 77.º do CP. É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras”; de 18-03-2010, no processo n.º 160/06. 7GBBCL.G2.S1- 5.ª, onde se afirma, para além da necessidade de uma especial fundamentação, que “no sistema de pena conjunta, a fundamentação deve passar pela avaliação da conexão e do tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica e pela avaliação da personalidade unitária do agente. Particularizando este segundo juízo - e apara além dos aspectos habitualmente sublinhados, como a deteção de uma eventual tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade que não radica em qualidades desvaliosas da personalidade - o tribunal deve atender a considerações de exigibilidade relativa e à análise da concreta necessidade de pena resultante da inter-relação dos vários ilícitos típicos”; de 15-04-2010, no processo n.º 134/05.5PBVLG.S1-3.ª; de 21-04-2010, no processo n.º 223/09.7TCLSB.L1.S1-3.ª; e do mesmo relator, de 28-04-2010, no processo n.º 4/06.0GACCH.E1.S1-3.ª.»

Explicita Figueiredo Dias (ob. cit., pp. 291-292):

«Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).»

Em suma, para a determinação da medida concreta da pena conjunta é decisivo que se obtenha uma visão de conjunto dos factos que tenha em vista a eventual conexão dos mesmos entre si e a relação com a personalidade de quem os cometeu.

As conexões ou ligações fundamentais, na avaliação da gravidade do ilícito global, são as que emergem do tipo e número de crimes; da maior ou menor autonomia e frequência da comissão dos delitos; da igualdade ou diversidade de bens jurídicos protegidos violados; da motivação subjacente; do modo de execução, homogéneo ou diferenciado; das suas consequências e da distância temporal entre os factos – tudo analisado na perspetiva da interconexão entre todos os factos praticados e a personalidade global de quem os cometeu, de modo a destrinçar se o mesmo tem propensão para o crime, ou se, na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, devendo a pena conjunta refletir essas singularidades da personalidade do agente.

A revelação da personalidade global emerge essencialmente dos factos praticados, mas também importa ponderar as condições pessoais e económicas do agente e a sua recetividade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado, elementos particularmente relevantes no apuramento das exigências de prevenção.

Ocorre que o acórdão recorrido é omisso quanto à descrição dos factos dados como provados respeitantes aos diversos crimes em concurso pelos quais o arguido/recorrente foi condenado.

Faltando essa descrição, mesmo que sintética ou resumida, não se vislumbra como poderá este STJ sindicar o processo de determinação da pena única conjunta, sobre a qual o acórdão recorrido nos dá a conhecer pouco mais do que os tipos de crimes convocados e as penas parcelares, com recurso a generalidades, sem nos elucidar sobre os factos em causa, que permitam apreender as conexões ou ligações fundamentais à avaliação pelo tribunal da gravidade da ilicitude global e da personalidade unitária do concreto agente.

A questão tem sido tratada a propósito do conhecimento superveniente do concurso, constituindo entendimento constante deste STJ o de que, na falta de preceito específico sobre a fundamentação da sentença de cúmulo jurídico por conhecimento superveniente do concurso, deverão respeitar-se os requisitos gerais da sentença previstos no artigo 374.º do CPP, devendo, no caso, a fundamentação conter todos os factos que interessam à realização do concurso de crimes e à determinação da pena única. Embora não seja necessário que a decisão que efetua o cúmulo jurídico proceda à enumeração dos factos dados como provados em cada uma das sentenças onde as penas parcelares foram aplicadas, não deixa de exigir que dela constem, ao menos resumidamente, os factos que permitam apreender aos destinatários da decisão, as conexões ou ligações fundamentais à avaliação da gravidade da ilicitude global e da personalidade unitária do agente (cf., entre muitos, o acórdão de 10.01.2023, processo n.º 10/20.1PAVLS.L2.S1).

In casu, não se trata de conhecimento superveniente, mas antes de conhecimento contemporâneo.

Como tem sido sublinhado na jurisprudência deste Tribunal, «as exigências de pronúncia e fundamentação da sentença prescritas no artigo 374.º, n.º 2, do CPP não são diretamente aplicáveis aos acórdãos proferidos pelos tribunais superiores, por via de recurso, mas tão só por força de aplicação correspondente do artigo 379.º, ex vi, artigo 425.º, n.º 4, razão pela qual aquelas decisões não são elaboradas nos precisos termos previstos para sentenças proferidas em 1.ª instância», o que bem se compreende visto que os tribunais superiores, em recurso, não têm por função proferir uma segunda ou nova decisão sobre o objeto do processo mas decidir as questões que lhes são colocadas no recurso (acórdão de 2.10.2014, Proc. n.º 87/12.3SGLSB.L1.S1).

Compreende-se, pois, que a estrutura do acórdão, proferido em recurso, obedeça à estrutura da decisão em 1.ª instância, compreendendo relatório, fundamentação e decisão; porém, quanto à fundamentação, as exigências não são as mesmas que o n.º 2 do artigo 374.º prescreve para a sentença proferida em 1.ª instância.

Porém, o acórdão a proferir em recurso, pela Relação, deve conter, na justa medida do necessário, a enunciação dos factos dados por provados, pois os mesmos constituirão o referente indispensável para o conhecimento da matéria de facto (se a questão se colocar) e para a decisão das questões de direito suscitadas no recurso.

Por força do dever de fundamentação, exige-se ao tribunal da Relação que, conhecendo das questões que lhe são colocadas, explicite os motivos pelos quais julga procedente ou improcedente o recurso. Admitindo-se que o acórdão da Relação não tem de constituir a reedição da peça impugnada através de transcrições que sejam escusadas, não pode deixar de conter os elementos essenciais para a decisão do recurso - elementos que se mostrem necessários para que, por sua vez, possa ser sindicada em recurso, como peça autónoma que é, a decisão da Relação.

O acórdão recorrido, como já se assinalou, não contém a indicação dos factos provados relativos a cada condenação em pena parcelar, não permitindo, por si só, como decisão auto-suficiente, através da fundamentação apresentada, a apreensão das conexões ou ligações fundamentais entre os factos que basearam o tribunal para que globalmente apreciasse a gravidade da ilicitude global e da culpa, no confronto com a personalidade unitária do concreto agente, conforme dispõe o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal.

Neste quadro, entendemos que o acórdão recorrido, na parte que concerne à determinação da pena única imposta ao recorrente, está ferido de nulidade de fundamentação, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), correspondentemente aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP, a qual, devendo ser declarada, não pode ser suprida por este Tribunal. Realmente, tratando-se de uma nulidade por falta de fundamentação, o tribunal de recurso não a pode suprir, pois isso seria o tribunal ad quem ir encontrar a fundamentação (em falta) para uma decisão que não é sua.


*


III – DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em:

A) Rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), 414.º, n.º 2 e 3, 420.º, n.º 1, alínea b), e 432.º, n.º 1, alínea b), todos do CPP, no que concerne às condenações pelos diversos crimes e respetivas penas parcelares;

B) Nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, correspondentemente aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, julgar verificada e declarar a nulidade de fundamentação do acórdão recorrido, na parte referente à determinação da pena única imposta ao recorrente AA, devendo, em consequência, ser proferido novo acórdão pelo tribunal da Relação para suprimento dessa nulidade.

Sem custas.

Dê de imediato conhecimento ao tribunal recorrido.

Supremo Tribunal de Justiça, 26 de junho de 2025

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

José Piedade (1.º Adjunto) (com declaração de voto)

Ernesto Nascimento (2.º Adjunto)


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Declaração de voto

Brevitatis causa, o recorrente AA encontra-se condenado, em 1ª Instância, pela prática de 20 crimes de falsificação de documento na forma consumada, 1 crime idêntico na forma tentada, 26 crimes de burla qualificada consumados, 2 crimes de burla qualificada na forma tentada, 1 crime de falsas declarações, na pena única de 9 anos de prisão.

Recorreu para a Relação de Évora, sendo o recurso julgado totalmente improcedente, e mantida, nomeadamente, a pena única.

Desse Acórdão da Relação de Évora, recorreu para este Tribunal.

Voto a decisão do recurso, na parte em que o rejeita, relativamente às condenações “pelos diversos crimes e respectivas penas parcelares”.

Não voto a decisão na parte em que declara a nulidade “do acórdão recorrido, por falta de fundamentação, na parte referente à determinação da pena única imposta ao recorrente AA, determinando se profira nova decisão, suprindo a deficiência identificada”.

Pelas seguintes razões:

Tal como escrevem Simas Santos e Leal Henriques, CPP, 2ª ed., 2004, vol. I, p. 593 (citando Gil Moreira dos Santos): “a preocupação da prevalência da verdade material sobre a verdade formal levou o Legislador Penal a reduzir, ou limitar, os casos de ineficácia ou invalidade dos actos, procurando aproveitá-los enquanto possam servir o fim último: a realização da Justiça através da descoberta da verdade material”.

Em complemento, nas decisões pelo presente relatadas na Relação do Porto, sempre foi entendido que as nulidades da Sentença não são do conhecimento oficioso, e sendo arguidas, podem e devem ser supridas pelo Tribunal Superior em recurso, sempre que isso seja viável.

Refere-se, a titulo de exemplo, os Ac.s de 08/11/2006 (Proc. n.º 3872/06-4), e de 13/02/2013 (Proc. n.º 490/10.3TACHV.P1):

“As nulidades da Sentença, enunciadas no art. 379º, nº 1, do CPP, não são do conhecimento oficioso, tendo de ser arguidas pelo interessado (entendendo-se como interessado, o sujeito processual afectado pela decisão), em recurso, caso este seja interposto, ou, não existindo recurso, perante o Tribunal que proferiu a decisão – nº 2 desse art. 379º.

Tratam-se de nulidades sanáveis que, arguidas em recurso, podem ser supridas pelo Tribunal superior”.

No caso a “nulidade” foi invocada, mas constitui a única questão suscitada (nenhuma questão substancial é invocada nas conclusões, portanto, a pena única não surge impugnada).

Essa pretensa “nulidade”, consistirá apenas na não transcrição dos factos provados.

Embora seja descabido, e prejudicial para a respectiva compreensibilidade, exigir que o Acórdão do Tribunal Superior repita tudo o que já antes existia (o que está no processo, está no mundo, parafraseando, “a contrario”, a famosa máxima, “Quod non est in actiis, non est in mundo”), concordo que a decisão do Tribunal Superior, quando respeitante a recurso de Sentença, deve conter os factos provados (por mais desmesurada que seja por vezes a sua extensão).

Agora, o que parece no caso, é que a nulidade pode ser aqui suprida, tal como o prevê o art.º 379, n.º 2, do CPP (utilizando, aliás, uma forma imperativa: “deve o Tribunal supri-las”).

Com efeito, respeitando todos os factos a este mesmo processo, bastará integrá-los no Acórdão, assim suprindo a nulidade, mantendo a pena única que aliás — repete-se — não é objecto de impugnação.

Neste contexto, deve acrescentar-se que nem sequer se entende qual a utilidade que o recorrente pretende retirar do reconhecimento de tal nulidade, uma vez que suprida, o Acórdão da Relação de Évora, na sua substância, permanecerá exactamente igual, confirmando integralmente a decisão condenatória.

Acrescente-se que, no entender do presente, nem sequer poderá suscitar, em novo recurso para este Tribunal — depois de suprida a nulidade — a questão da medida da pena única, uma vez que o não fez agora.

Em conclusão, retardar a definitividade da Decisão condenatória, por esta questão formal (de mera transcrição dos factos provados), mostra-se prejudicial e desnecessário, podendo aqui a nulidade ser suprida, como supra referido.