I- É elevado o grau de ilicitude dos factos de quem pratica com uma sua filha de 17 anos, actos consistentes em cópula com introdução vaginal, sexo oral e masturbação, considerando o modo e circunstâncias da sua execução, e gravidade das suas consequências (é enorme o dano provocado no normal desenvolvimento emocional, cognitivo e comportamental da vítima);
II- Aumenta a sua culpa o especial grau de violação dos deveres que lhe eram exigíveis — considerando que a vítima, sua filha, estava a viver na sua casa, e sob a sua ascendência — e a total indiferença pela vítima e pela gravidade das consequências dos seus actos;
III- Porém, a “ausência de arrependimento” não pode funcionar como factor agravante, podendo isso sim, constituir um factor atenuante se integrado nos factos provados;
IV- Na realidade, trata-se de um facto imaterial, subjectivo, mas que pode ser extraível dos factos materiais considerados provados (por exemplo, reparação do mal do crime), e/ou da sua conduta processual (v.g. a confissão, desde que relevante para a prova dos factos).
No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – ... – JC Criminal – Juiz..., processo supra-referido, foi julgado AA, tendo sido proferido Acórdão com o seguinte dispositivo:
“a) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e em concurso efetivo de 8 (oito) crimes de Abuso Sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravados, p. e p. nos artigos 172º/1, al. a) e b) e 177º/1 al. a), por referência ao disposto no art. 171º/1 e nº 2, todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão por cada um deles.
b) Em cúmulo, aplicar ao Arguido, pela prática dos crimes acima referidos, a pena única de 10 (dez) anos de prisão.
c) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando em 3 UC de taxa de justiça (art. 513º n.º 1 do Código de Processo Penal e art. 8º n.º 9, e tabela III do Regulamento das Custas Processuais), sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar.
d) Determinar a recolha de uma amostra de ADN ao arguido, a efectuar nos termos do disposto no artigo 8º, nº 2 da Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro, e na Portaria 270/2009, de 17 de Março, para integrar a base de dados de perfis de ADN.
e) Ao abrigo do disposto no art. 82º-A, n.º 1 do C.P.P., condena-se ainda o Arguido a pagar uma indemnização no montante de € 10.000,00 (dez mil euros) à vítima BB”.
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Deste Acórdão condenatório, foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, 3ª Secção tendo sido, proferido Acórdão com o seguinte dispositivo:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar integralmente o acórdão recorrido.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo arguido/recorrente em cinco UCs., sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário que beneficie”.
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Deste Acórdão foi, agora em representação do arguido/condenado AA, interposto recurso para este Supremo Tribunal, formulando-se as seguintes conclusões:
“1) Vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido a fls. (…) e ss. que confirmou a sua condenação na pena de 10 (dez) anos de prisão, pela prática de oito crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, alíneas a) e b), e pelo artigo 177.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 171.º, n.º 1 e 2, todos do Código Penal.
2) Alega o Venerando Tribunal da Relação que o recorrente não cumpriu de forma minimamente aceitável as exigências dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, limitando-se a tecer comentários sobre princípios processuais ou baseados apenas na fundamentação da sentença recorrida.
3) Referindo ainda que o recorrente argumenta:
i. A ofendida teria inicialmente alegado abuso por parte do irmão e, posteriormente, teria mudado a versão.
ii. A vítima não teria lembrança exacta das datas dos factos, referindo episódios em momentos distintos.
iii. A ausência de registo de denúncia imediata demonstraria falta de credibilidade do seu depoimento.
4) Com o devido respeito, e que é muito, o Tribunal de recurso não deverá
ter lido com atenção devida as motivações e conclusões do recorrente, pois:
i. Em momento algum este afirmou que a ofendida teria inicialmente alegado abuso por parte do irmão e posteriormente mudado a versão, referiu sim que o próprio CC negou esses factos enquanto testemunha, sendo que o Tribunal considerou credíveis as declarações dos abusos por parte do recorrente, mas desconsiderou por completo os abusos que esta alegou por parte do irmão.
5) ii. O recorrente referiu sim que, em muito estranha que uma vítima, com 17 anos, sem problemas cognitivos ou psicológicos como é referido na decisão, se tenha “esquecido” das datas dos abusos quando estes aconteceram menos de um mês antes da participação.
6) iii. Já este ponto referido pela decisão recorrida não deverá ser certamente respeitante a estes autos, pois nunca em momento algum o recorrente referiu que a ausência de denúncia anterior era um facto indiciador da sua falta de credibilidade.
7) Mas o recorrente ainda aponta diversas contradições no depoimento da ofendida que nem sequer foram referidas na decisão recorrida.
8) Os pontos 7 e 10 da matéria de facto provada são contrariados frontalmente pelas declarações da ofendida.
9) Referiu ainda que, os vídeos que juntou aos autos e que indicou como provas que impunham decisão diversa, demonstram uma versão muito diferente da que foi narrada pela ofendida.
10) Referiu ainda que, a ofendida referiu inicialmente 15 crimes, que mudou para 8 crimes quando se apercebeu que, após dizer que foram 2 vezes por semana num espaço de 1 mês não poderiam ser mais de 8, e que mesmo assim, não tem a certeza do número de vezes.
11) O recorrente continuou a referir as contradições no depoimento da ofendida, indicando que a mesma demonstrava uma memória perfeita quando confrontada com as mensagens trocadas com o recorrente, relativamente a dias e horas.
12) Referiu também o rancor e sentimentos negativos manifestados pela ofendida por entender ser a bastarda relativamente ao irmão e enteada, mas, mais uma vez, nem uma palavra sobre as provas indicadas pelo recorrente.
13) O recorrente referiu ainda que a ofendida disse ter baixado as notas, porém, a declaração da escola junta aos autos e que igualmente indicou como provas que impunha decisão diversa, mas nada sobre este segmento é referido.
14) O recorrente referiu ainda e que não mereceu uma única palavra na decisão recorrida, que as declarações prestadas pelos peritos da Polícia Judiciária afirmam que as contribuições para o adn encontrado no sofá e na manta podem ter ocorrido em momentos diferentes e que não existe qualquer prova de que a contribuição da ofendida fosse nada mais do que suor.
15) Nenhum destes pontos foram sequer apreciados, quando alguns dos mesmos nem respeitavam a depoimentos gravados.
16) Não é indicado o motivo concreto pelo qual se conclui que o recorrente não cumpriu com o ónus de impugnação.
17) O recorrente transcreveu as declarações da ofendida (que na sua maior parte apresentavam contradições), indicou o sentido que entendia que deveria ter sido dado a essas provas, indicou outras que impunham decisão diversa, que a decisão recorrida nem sequer se pronunciou…
18) Não pode ser a impugnação da matéria de facto rejeitada com meras considerações genéricas, para depois se “aceitar” essa impugnação e julgar apenas alguns trechos, mesmo que até incorretamente referidos pelo Tribunal.
19) Assim, o acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP.
20) Acerca das motivações por alegada violação do direito de defesa, a decisão recorrida limita-se a remeter para a fundamentação da decisão da 1ª instância, quando o recorrente apontou diversas contradições entre as declarações da ofendida e os vídeos juntos aos autos que impunham novas declarações.
21) O recorrente continua a entender que o confronto da ofendida com os
vídeos é essencial para se aquilatar de forma imparcial da credibilidade da ofendida, sendo a sua rejeição uma violação do direito de defesa dos arguidos previstos no artigo 32.º da CRP.
22) Acerca da perícia psicológica, o recorrente entende igualmente que esta é essencial para a boa decisão da causa, pois a ofendida alterou por diversas vezes o seu depoimento, e foi produzida prova dos sentimentos de rejeição que tinha do pai.
23) Já acerca da prova requerida acerca dos registos da Brisa, BMW e da perícia ao telemóvel do arguido relativamente à informação celular, escudam-se ambos os Tribunais recorridos, com o Acórdão do Tribunal
Constitucional de 19/04/2022 com o número 268/2022, porém, este acórdão declara a inconstitucionalidade da conservação dos dados por parte dos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas.
24) Os dados solicitados pelo recorrente são dados que a jurisprudência tem sido unânime em referir que não contemplam o juízo de inconstitucionalidade formulado, mas sim são dados necessários à faturação, acrescendo ainda que tal proibição emerge dos direitos das pessoas à proteção e privacidade dos seus dados e é o próprio recorrente que consente nessa utilização.
25) Sem prescindir de uma vírgula do acima referido, por cautela de patrocínio, não pode deixar o recorrente de pugnar pela redução da pena aplicada.
26) Com o devido respeito pelas vítimas destes crimes, que nada se provou acerca do impacto devastador no seu desenvolvimento psicológico, emocional e social, a não ser os de forma genérica associados a estes crimes, como não se provou que os crimes foram cometidos em contexto de abuso de confiança e autoridade parental, pois a agravação deveu-se ao vínculo familiar, e não a qualquer facto provado de ter exercido a referida autoridade ou abuso de confiança
27) A decisão em crise alega ainda que o período temporal (2 meses) demonstra um dolo intenso e continuado, quando o período corresponde a 32 dias.
28) As penas parcelares aplicadas ao arguido, por cada um dos 8 crimes, 4 anos, foram situadas praticamente no limite do 1/3 da pena abstrata aplicável (16 meses a 10 anos).
29) Como se provou, o arguido encontra-se socialmente inserido e não tem antecedentes criminais, o período em questão (a provar-se) foi de 32 dias, a ofendida encontrava-se a pouco mais de 5 meses de completar os 18 anos, encontrando-se já no limite de idade para se enquadrarem os factos no ilícito criminal de que o recorrente foi condenado.
30) Por tudo o acima referido, as penas parcelares não deveriam ultrapassar os 3 anos.
31) Na pena única a que o recorrente foi condenado, 10 anos, esta já se situa mais perto da metade do 1/3, fazendo com que a decisão do julgador sobre a pena única seja mais benévola do que as penas parcelares, quando os crimes são descritos de forma praticamente idêntica.
32) Entende assim, o recorrente, que a sua pena única, a provarem-se os factos de que foi condenado, nunca deveriam ser superiores a 6 anos e seis meses (metade do 1/3 de penas parcelares de 3 anos, entendendo que os factos não justificam uma pena acima dos 5 anos.
33) E condenando-se este numa pena não superior a 5 anos, sempre se deverá ponderar a sua suspensão, o que o recorrente ser merecedor desse juízo de prognose favorável pelos factos que depõem a seu favor da matéria de facto provado e aqui alegados.
34) Assim, violou o Tribunal a quo, entre outros, os artigos 119.º, 127.º, 374.º e 375.º, n.º 1, 379.º n.º 1 alínea c), todos do C.P.P., o artigo 50.º, 70.º e 71.º do Código Penal e o artigo 32.º da Lei Fundamental”.
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Em resposta ao recurso, na Relação de Lisboa, o M.º P.º pronunciou-se pela sua total improcedência.
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela rejeição do recurso quanto “às questões substantivas e processuais atinentes aos crimes imputados e correspondentes penas parcelares”, e pela respectiva improcedência quanto à pena única “resultante do cúmulo Jurídico operado”.
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São os seguintes os factos considerados provados em 1ª Instância, e confirmados pela Relação:
“1- A ofendida BB, nascida em ...-...-2005, é filha de DD e do arguido, AA.
2- Apesar de a Ofendida ter sempre residido com a mãe, no Bairro da ... em Lisboa, a qual tem a guarda da sua filha, e não ter mantido um contacto regular com o arguido, seu pai, a partir de meados de 2022 o Arguido e a filha BB começaram a estar mais vezes juntos, aos fins de semana.
3- Em Janeiro de 2023, depois de um desentendimento com a sua mãe, a Ofendida pediu para ir viver para casa do seu pai, o arguido AA, na Rua ..., em ....
4- Tendo a sua progenitora aceite esse pedido da filha, tendo o Arguido aceite acolher a menor ofendida em sua casa, a partir de 09-01-2023 BB, então com 17 anos de idade, passou a viver em casa do pai, AA, na residência referida no ponto anterior.
5- O arguido AA, vivia sozinho da referida morada, explorava um café na ..., onde trabalhava até ser noite, já tendo tido no passado problemas de alcoolismo.
6- Em casa do pai, a Ofendida tinha um quarto para si, o Arguido dormia noutro quarto e passava grande parte do tempo fora de casa, a trabalhar no café que explorava na ..., apenas regressando a casa de noite.
7- No último fim de semana de Março de 2023, um Domingo, na noite de 26 de Março, estava a Ofendida sentada no sofá da sala a ver televisão, quando o Arguido chegou a casa vindo do trabalho e se sentou nesse sofá ao lado da filha.
8- De seguida, o Arguido pôs a sua mão dentro das calças da filha menor, e começou a tocar na vagina de BB procurando excitá-la sexualmente e masturbar-se com esses toques da mão na vagina, com penetração dos dedos.
9- Nesse momento BB perguntou ao pai se ele estava bem, o Arguido não respondeu, a menor ofendida levantou-se do sofá e foi para o quarto cessando assim com o abuso sexual, evitando o contacto com o seu pai.
10- Na 6a Feira seguinte, dia 31-03-2023, em hora que não se logrou apurar, quando a então menor ofendida se preparava para sair de casa para ir visitar a mãe ao Bairro da ..., o Arguido seguiu-a até ao quarto, impediu-a de sair, barrando-lhe a passagem e empurrou BB contra a cama, onde a jovem caiu.
11- De seguida, estava BB deitada de bruços, com o peito contra o colchão, o Arguido despiu-lhe as calças e as cuecas até aos pés, baixou os calções que o próprio envergava, e encostado por detrás ao corpo da filha, introduziu o seu pénis erecto na vagina da menor, penetrando-a durante cerca de 20 minutos, enquanto BB lhe pedia que parasse, a que o Arguido se recusou.
12- Antes de ejacular, o Arguido retirou o pénis de dentro da vagina da sua filha, agarrou-a pelo braço e puxou-a para fora da cama, forçando-a a ficar de frente para ele, de cócoras no chão, com o arguido de pé à sua frente.
13- De seguida, o Arguido agarrou a sua filha pelos cabelos com uma das mãos e empurrou a cabeça da menor na direcção do seu pénis, introduzindo o seu pénis erecto na boca da menor ofendida, forçando-a a praticar com ele sexo oral até ejacular para dentro da boca da sua filha, tendo parte do esperma caído no chão.
14- Depois de ejacular, sem trocarem nenhuma palavra, o Arguido saiu do quarto da filha e foi lavar-se na casa de banho, tendo a menor ofendida ido limpar-se também assim que o pai saiu da casa de banho.
15- Depois deste acto sexual de cópula completa entre pai e filha, com penetração vaginal e oral, sem terem trocado quaisquer palavras sobre o sucedido, o Arguido começou a sentir-se mais à vontade para abusar sexualmente da filha, em qualquer dia da semana, quando estavam os dois sozinhos dentro de casa.
16- Cerca de uma semana depois, em inícios de Abril, num dia da semana, quando BB chegou a casa pelas 14:00 vinda da escola, apercebeu-se que o pai estava em casa e não fora trabalhar, e evitou falar com ele, fechou-se no quarto e momentos depois entrou na casa de banho para tomar um duche.
17- Quando a Ofendida estava a limpar-se depois do duche, o Arguido entrou na casa de banho e, vendo o corpo desnudo da filha ainda molhado, agarrou-a pelos dois braços e puxou-a para baixo, obrigando-a a ficar de joelhos à sua frente e a fazer-lhe sexo oral, introduzindo o pénis dele na sua boca por alguns minutos, e saiu da casa de banho, deixando a filha a chorar.
18- Nas semanas que se seguiram, várias vezes o Arguido abordou a sua filha no quarto dela, ou puxava-a para o quarto dele ou abordou-a no corredor ou na sala, despiu-a e obrigou-a a praticar com ele sexo vaginal e oral, introduzindo o seu pénis erecto na vagina e depois na boca da menor, ejaculando para dentro da boca da filha.
19- Em pelo menos três ocasiões, o Arguido também fez sexo oral à filha, introduzindo a sua língua na vagina da menor no intuito de se excitar a si e a ela com esse acto.
20- Em três ocasiões, de noite quando a menor ofendida estava a dormir no seu quarto, o Arguido veio deitar-se a seu lado na cama e introduziu os seus dedos no interior da vagina da menor, fazendo com que ela se masturbasse com essa manipulação.
21- A última vez que o Arguido e a filha tiveram relações sexuais foi em dia não apurado em finais de Abril de 2023, pelas 18:00, quando BB estava a tomar um duche na casa de banho da residência do Arguido, o qual nesse dia estava em casa a essas horas.
22- Nessa ocasião, o Arguido entrou na casa de banho e, vendo o corpo desnudo da sua filha ainda molhado, agarrou-a pelo braço e puxou-a assim nua até à sala de estar.
23- De seguida, na sala o Arguido empurrou BB para cima do sofá, onde a menor caiu, aí ficando deitada de costas, completamente nua, com o peito para cima, de frente para o arguido, o qual aproveitou esse momento para se deitar em cima da filha, baixar as calças e cuecas e introduzir o seu pénis erecto na vagina da menor, fazendo vários movimentos de penetração para dentro e para fora da vagina, sem chegar a ejacular.
24- A dada altura, o Arguido retirou o seu pénis de dentro da vagina da filha e mandou-a vestir-se, dizendo-lhe “já estás despachada, podes-te ir vestir”, ordem a que a menor obedeceu, saindo desse momento da sala de estar, indo-se vestir de pijama.
25- Momentos depois, estava a menor na cozinha a comer, quando o Arguido mais uma vez a abordou, puxou-a pelo braço e levou-a à força para a sala.
26- Já na sala de estar, o Arguido encostou a menor contra a parede, de costas para ele, tirou-lhe o pijama e praticou com ela novamente relações sexuais de cópula, por detrás, introduzindo o seu pénis erecto na vagina da sua filha menor, a qual não foi capaz de resistir face à superioridade física do Arguido, seu pai.
27- De seguida, o Arguido agarrou no braço da filha e puxou-a com força para baixo, obrigando-a a ficar de cócoras à sua frente, agarrou-a com uma mão pela cabeça e obrigoua a fazer-lhe sexo oral, introduzindo o pénis várias vezes na boca da filha, até ejacular para o sofá e para o chão onde o sémen caiu.
28- Ao todo, nos meses de Março e Abril de 2023, entre 26-03-2023 e finais de Abril de 2023, o Arguido praticou com a filha BB, então com 17 anos de idade, várias relações sexuais de cópula, com introdução vaginal, sexo oral e masturbação, um total de 8 vezes, sempre da forma supra descrita, umas vezes na cama do quarto da menor, outras no quarto do Arguido, outras vezes no sofá da sala, outras vezes na casa de banho, constrangendo a menor a praticar com ele esses actos sexuais de cópula completa contra a sua vontade, sem usar preservativo, sem ejacular para dentro da vagina da menor, ejaculando para dentro da boca da mesma e para o chão ou o sofá.
29- A menor, BB, nunca contou à sua mãe o sucedido, por vergonha e por sentimento de culpa, por ter sido ela a pedir para ir viver com o pai.
30- Apenas quando começou a circular no bairro um boato relativo ao envolvimento sexual do pai com a filha, que chegou aos ouvidos da mãe da menor, é que BB ganhou coragem e contou à mãe o sucedido e saiu de casa do pai a 29 de Abril de 2023, deixando para trás os seus pertences.
31- Ao actuar da forma descrita, o Arguido agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais e lascívia, os quais não soube nem quis refrear, conforme satisfez, abusando sexualmente da sua filha menor BB, indiferente à idade desta e às consequências de tal actuação sobre a mesma, aproveitando-se do facto de estar sozinho com a filha dentro de casa, e de lhe ter sido recentemente confiada a educação, sustento e protecção da sua filha, e de ter sobre a filha uma relação de autoridade e de dependência da menor para consigo.
32- O Arguido sabia a idade da sua filha menor, sabia que BB tinha apenas 17 anos, e que, em função dessa idade, não tinha suficiente discernimento para se autodeterminar sexualmente, aproveitando-se do ascendente que sobre ela exercia enquanto pai e como pessoa a quem a menor devia respeito e obediência.
33- Mais sabia o Arguido que, ao actuar da forma supra descrita, perturbava e prejudicava, de forma séria, o desenvolvimento da personalidade da menor e que punha em causa o seu desenvolvimento psicológico, afectivo e sexual.
34- O Arguido actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era censurada, proibida e punida por lei.
Mais se provou, que:
35. Do registo criminal do Arguido não consta qualquer condenação.
36. À data dos factos em apreço nos autos, o Arguido residia sozinho com a ofendida num apartamento arrendado, sendo a renda no valor de 350 euros, situado em ....
37. Desenvolvia atividade laboral como empresário em nome individual, no ramo da restauração, explorando o café “Pastelaria ...”, situado na ..., com rendimentos médios mensais de cerca de 2000 euros.
38. No presente a sua casa está a ser ocupada pelo “compadre” do Arguido, tendo a renda sofrido um aumento no valor de 100 euros.
39. AA continua a beneficiar de uma estrutura de apoio familiar, por parte da mãe, do padrasto, dos irmãos, da ex-mulher e do filho, com quem existe uma relação estruturante e de proximidade, com laços de afectividade e coesão entre os seus elementos.
40. AA é filho único de um casal que detinha uma condição socioeconómica desfavorecida, em que ambos os progenitores exerciam atividade laboral remunerada, a mãe como cozinheira, o pai, 15 anos mais velho que a mãe, como pedreiro.
41. O Arguido tem mais dois irmãos e uma irmã de outros relacionamentos dos pais.
42. O progenitor, que apresentava problemas de alcoolismo, faleceu em 2002.
43. Quanto ao percurso escolar, este decorreu em idade normal, tendo o Arguido abandonado o sistema de ensino com a conclusão do 10º. ano de escolaridade e registo de três retenções.
44. Iniciou então actividade laboral para assim contribuir para a economia familiar.
45. Ainda prosseguiu a frequência escolar em regime nocturno com a actividade laboral, na área da restauração, como empregado de mesa, mas acabou por abandonar sem lograr a conclusão do ensino secundário.
46. Posteriormente, trabalhou como vendedor na área das telecomunicações, para a Telecom e Meo, durante cerca de dois anos, e desenvolveu actividades como segurança de filmagens de rua, em telenovelas, por conta própria, durante dois anos.
47. Em 2009 estabeleceu-se no café/pastelaria ..., que explora, até aos dias de hoje.
48. O Arguido não tem actividades de tempos livres nem hobbies, reunindo-se ocasionalmente em convívio com familiares e/ou amigos, dedicando o seu tempo de forma integral aos seus compromissos laborais no café que explora.
49. Quanto aos relacionamentos afetivo-sexuais, à data dos factos, AA não mantinha nenhum relacionamento de intimidade.
50. O Arguido descreve-se a si mesmo como uma pessoa sociável, dedicada ao trabalho e preocupada com o bem-estar dos outros, sendo descrito de modo idêntico pela sua progenitora que o reputa de amável e com bom coração, sendo boa a imagem que tem na comunidade em que se insere.
51. A sua ex-mulher, EE, atribui ao Arguido um estilo de comunicação rude, principalmente quando se encontra em períodos de consumos excessivos de bebidas alcoólicas, contudo reconhece-lhe “um coração gigante” (sic).
52. O Arguido manteve um relacionamento pontual em 2004 com DD, do qual nasceu em 2005 a sua filha, Ofendida nos presentes autos.
53. Em simultâneo, manteve relacionamentos de intimidade com outras parceiras.
54. O Arguido assumiu a paternidade da BB, contudo, só a partir dos 13 anos daquela, manteve contactos pontuais com ela, invocando oposição a tanto por parte da progenitora.
55. Em 2006, contraiu matrimónio com o ex-cônjuge, EE, que tinha uma filha de um relacionamento anterior. Desta relação veio a nascer um filho, actualmente (por referência à data da elaboração do relatório social) com 15 anos de idade.
56. Segundo o Arguido, o casamento terminou em 2013 devido à sua necessidade de satisfazer os compromissos laborais, passando muito tempo ausente e por isso não participando da dinâmica familiar.
57. Por seu lado, a ex-mulher alude aos consumos frequentes e excessivos de álcool por parte do Arguido e consequente conduta desajustada, como justificação para a separação.
58. Entre 2015 e 2018 o Aarguido manteve novo relacionamento, com coabitação com FF, que terminou, alegadamente devido à condenação do Arguido numa pena privativa de liberdade.
59. Em 2019/2020, a enteada do Arguido (filha da ex-mulher EE), passou a viver com aquele, por se ter desentendido com a sua mãe, situação que se manteve até à autonomização da referida enteada, em 2022.
60. O Arguido apresenta uma situação de pré-diabetes e hipertensão arterial, aderindo à terapêutica sugerida.
61. No que diz respeito ao comportamento aditivo, o Arguido iniciou consumos de bebidas alcoólicas com cerca de 24 anos, que foi intensificando ao longo do tempo.
62. Refere encontrar-se abstinente destes consumos desde 2017, nada tendo sido apurado em contrário.
63. Em meio prisional, o Arguido recebe acompanhamento psicológico. 64. AA encontra-se preso preventivamente desde 05 de Maio
de 2023, no Estabelecimento Prisional da ....
65. Quanto às repercussões da presente situação jurídico-penal, o Arguido revela dificuldades em lidar com a inactividade e em abstrair-se da acusação, bem como o impacto do seu afastamento na gestão/rendimentos do café, que se encontra a ser assegurado pela sua progenitora, e nas pessoas que lhe são significativas, nomeadamente o filho, que denota alguma perturbação com a situação do progenitor.
66. O Arguido beneficia de apoio, principalmente por parte da progenitora e da ex-mulher, mas também de outros elementos da família e amigos, que o visitam regularmente e que contribuem para as suas despesas pessoais no Estabelecimento Prisional”
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Questão prévia:
No recurso, repetindo-se, em grande parte, a argumentação apresentada perante a Relação, volta a invocar-se uma “violação do direito de defesa” (“O recorrente continua a entender que o confronto da ofendida com os vídeos é essencial para se aquilatar de forma imparcial da credibilidade da ofendida, sendo a sua rejeição uma violação do direito de defesa”), a pretender-se colocar em causa a medida das penas parcelares (“por tudo o acima referido, as penas parcelares não deveriam ultrapassar os 3 anos”), a que se acrescenta uma omissão de pronúncia (“assim, o acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379, n.º 1, al.ª c) do CPP”).
Ora, como bem afirma o Ministério Público no seu Parecer, o recurso não é admissível, e por isso tem de ser rejeitado, no respeitante a estas questões.
Concretizando, na medida do necessário:
O AA foi condenado, em 1ª Instância, pela prática de 8 crimes de abuso sexual de menores dependentes, na pena de 4 anos de prisão por cada um deles.
Foi condenado na pena única de 10 anos de prisão.
Recorreu para o Tribunal da Relação, invocando — para além do já referido — os vícios da decisão sobre a matéria de facto, previstos no art.º 410, n.º 2, do CPP, e impugnando a medida das penas parcelares e a espécie e medida da pena única.
O Tribunal da Relação manteve, na íntegra, o Acórdão condenatório da 1ª Instância, julgando totalmente improcedente o recurso.
Verifica-se, pois, a denominada “dupla conforme”, (ou “dupla conformidade decisória”), em que — após sucessiva apreciação em duas Instâncias, hierarquicamente distintas —, o Tribunal Superior confirma a decisão da 1ª Instância, mantendo as penas parcelares e a pena única (no caso, mantém também inalterada a matéria de facto e a qualificação Jurídica).
Assim, e da conjugação dos art.ºs 434 do CPP (Poderes de Cognição do STJ), 432, n.º 1, al.ª b), (Recurso para o STJ), 400, n.º 1, al.ªs e) e f) (Decisões que não admitem recurso), resulta que só é admissível recurso das Decisões das Relações proferidas em recurso, no caso de se estar perante de “penas superiores a 5 anos de prisão, quando não se verifique dupla conforme”, ou “penas superiores a 8 anos de prisão, independentemente da existência de dupla conforme”.
Desta forma, no caso não é admissível recurso das penas parcelares, todas elas inferiores a 5 anos.
Essa irrecorribilidade — tal como constitui Jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal, a título de exemplo, os Acs. de 13-05-2021, Proc. n.º 45/14.3SMLSB.L1.S1, de 12–1–2023, no Proc. n.º 757/20.2PGALM.L1.S1, e de 22–6–2023, no Proc. n.º 275/21.1JAFUN.L1.S1, referidos no Parecer do M.º P.º — abrange todas as questões processuais ou substanciais a esse respeito suscitadas.
Por estas razões — e tal como inicialmente referido —, o recurso tem de ser rejeitado no respeitante à invocada “violação do direito de defesa”, nulidade por omissão de pronúncia e à medida das penas parcelares.
A decisão de admissão, sem restrições, do recurso em 1ª Instância, não vincula o Tribunal superior — art.º 414, n.º 3 do CPP.
Em bom rigor técnico-jurídico, a rejeição do recurso, nesta parte deveria ser por decisão Sumária, visto estar-se perante circunstância que obsta ao seu conhecimento (art.º 417, n.º 6, al.ª a) do CPP).
Sendo que nada impede que essa rejeição seja parcial, ao abrigo do princípio da cindibilidade do recurso, estabelecido no art.º 403, do CPP.
Porém, tem sido prática neste Tribunal, e para simplificação e redução de procedimentos, relegar para uma só decisão final, após Conferência, o tratamento simultâneo das matérias a rejeitar e a conhecer, como aqui irá acontecer.
Assim sendo, ir-se-á passar ao conhecimento da única questão admissível.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o arguido/condenado AA suscita, validamente, a seguinte questão:
— Medida da pena única.
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Em síntese, verifica-se que — encontrando-se aquela sua filha de 17 anos, desde Janeiro de 2023 a viver em sua casa — o aqui recorrente em 8 diferentes ocasiões (entre Março e Abril de 2023) praticou com a mesma os actos consistentes em cópula com introdução vaginal, sexo oral e masturbação, descritos na matéria provada.
Numa moldura entre 4 anos e 25 anos (a soma material é 32 anos) — art.º 77, n.º 2, do CP —, foi-lhe mantida a pena única de 10 anos de prisão.
Para o efeito, considerou-se que os crimes foram cometidos “de forma repetida ao longo de 2 meses”, que “a prática reiterada dos crimes revela uma elevada perigosidade do agente e uma total indiferença pelos direitos da vítima”, e que o impacto “na vítima foi devastador”.
Ao nível da prevenção especial, teve-se em conta a “total insensibilidade perante os danos causados” (a par da “ausência de arrependimento”, a que se fará uma referência mais à frente).
Teve-se por último em conta “A elevada taxa de criminalidade associada a crimes de abuso sexual de menores exige uma resposta penal severa, como forma de desincentivar a prática deste tipo de crime”, ao nível da prevenção geral.
No recurso alega-se que “a sua pena única, a provarem-se os factos de que foi condenado, nunca deveriam ser superiores a 6 anos e seis meses (metade do 1/3 de penas parcelares de 3 anos, entendendo que os factos não justificam uma pena acima dos 5 anos”.
A anteceder, e quanto às penas parcelares — repetindo-se o alegado no recurso para a Relação — afirma-se que “nada se provou acerca do impacto devastador no seu desenvolvimento psicológico, emocional e social, a não ser os de forma genérica associados a estes crimes, como não se provou que os crimes foram cometidos em contexto de abuso de confiança e autoridade parental, pois a agravação deveu-se ao vínculo familiar, e não a qualquer facto provado de ter exercido a referida autoridade ou abuso de confiança” e “o arguido encontra-se socialmente inserido e não tem antecedentes criminais”.
Não obstante a quase inexistente argumentação quanto à pena única, reexamine-se, sumariamente, a questão:
Assim, e perante a provada conduta, é elevado o grau de ilicitude dos factos, considerando o modo e circunstâncias da sua execução, e gravidade das suas consequências (tal como referido na decisão recorrida, e incipientemente negado no recurso, é enorme o dano provocado no normal desenvolvimento emocional, cognitivo e comportamental da vítima).
O dolo com que a recorrente actuou, reveste a sua modalidade mais grave: dolo directo.
Aumenta a culpa do recorrente o especial grau de violação dos deveres lhe eram exigíveis, considerando que a vítima, sua filha, estava a viver na sua casa, e sob a sua ascendência.
Aumenta ainda a sua culpa, a total indiferença pela vítima, e pela gravidade das consequências dos seus actos.
As exigências preventivas especiais são significativas, perante a caracterizada personalidade do recorrente, manifestada nos factos sob punição.
As exigências preventivas gerais são elevadas, perante o índice de criminalidade a este respeito registado, exigindo-se a manutenção da confiança da Comunidade nas normas que protegem os bens violados e punem este tipo de condutas.
Quanto à ausência de antecedentes criminais, considerando a natureza, motivação e especificidade deste tipo de crime, tal constitui um factor atenuante de pouco relevo, o mesmo ocorrendo com as suas “condições socio-económicas”.
A respeito dos factores de medida da pena utilizados na decisão recorrida, apenas a referência de que a “ausência de arrependimento” não pode funcionar como factor agravante da pena.
Pode, isso sim, constituir um factor atenuante se integrado nos factos provados.
Na realidade, trata-se de um facto imaterial, subjectivo, mas que pode ser extraível dos factos materiais considerados provados (por exemplo, reparação do mal do crime) e/ou da sua conduta processual (v.g. a confissão, desde que relevante para a prova dos factos).
Porém, a errada a avaliação desse factor, não impede — perante todos os outros, de muito maior relevo, aqui analisados — que a pena única se mostre adequada.
Em conclusão, a pena única deve ser mantida, e o recurso julgado improcedente.
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Nos termos relatados, decide-se:
— Rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso, interposto em representação do AA, no respeitante às invocadas questões de nulidade por omissão de pronúncia, “violação do direito de defesa”, e à medida das penas parcelares.
— Julgar improcedente o recurso no respeitante à medida da pena única.
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Mantém-se, na íntegra, o Acórdão recorrido.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça em 6 UC’s.
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Lisboa, 26/06/2025
José Piedade (relator)
Jorge Gonçalves
Ana Paramés