I. Sinalizando o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) referente a 2024 como aumento relevante no âmbito da criminalidade violenta e grave, um aumento de 9,9% em comparação com o ano anterior no número de violações participadas, estamos perante um dado objectivo que permite afirmar a verificação de crescentes exigências de prevenção geral quanto a este tipo de crime, reclamando do sistema de justiça uma intervenção que restabeleça a confiança comunitária na validade e eficácia das normas penais e aprimore o seu carácter dissuasor, ajustando a concretização da pena às exigências do particular momento histórico. O mínimo de pena admissível situar-se-á, assim, significativamente acima da linha de separação entre o primeiro e o segundo terços da moldura penal, sob pena de menosprezo das finalidades assinaladas à prevenção geral.
II. A prevenção especial prende-se com as necessidades de socialização do agente, impondo a avaliação da sua personalidade tal como revelada no cometimento do crime, nos ilícitos anteriormente praticados, se os houver, e ainda nos demais elementos que, resultando do processo, permitam compreender a essência do seu modo de agir.
III. A ausência de antecedentes criminais é vector cuja relevância se desvanece quando o arguido atenta contra a integridade sexual de uma criança de 4 anos, insensível à dor intensa e a todo o sofrimento que lhe causou, e indiferente aos traumas e sequelas que a sua conduta provocaria na vítima. Está, pois, em causa uma personalidade fortemente desconforme com os valores ético-jurídicos cujo respeito é exigível pela vivência em comunidade, o que permite afirmar a verificação de elevadas exigências de prevenção especial.
IV. A pena de 11 anos de prisão encontrada em primeira instância pelo Tribunal Colectivo revela-se adequada, salvaguardando o mínimo irrenunciável de pena exigida pela prevenção geral positiva e as exigências de prevenção especial, não podendo ser reduzida.
V. Dadas as circunstâncias do caso o montante de €35.000,00 arbitrado a título de compensação por danos não patrimoniais traduz um valor meramente simbólico, que apenas não terá sido superior por força das contingências pessoais do próprio arguido e que de modo algum se poderá considerar excessivo, sendo de confirmar sem reservas.
I – Relatório:
Por acórdão do Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., após alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação foi o ora recorrente AA condenado por um crime de violação agravada, previsto nos artigos 164º, nº 2, 177º, nº 8 e 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2, todos do Código Penal, na pena de 11 (onze) anos de prisão; nas sanções acessórias de proibição de exercício de funções cujo exercício envolva contacto regular com menores e proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, previstas nos artigos 69º-B, nº2 e 69º-C, nº2, do Código Penal, com a duração de 11 (onze) anos; e ainda no pagamento a BB da quantia de €35.500,00 (trinta e cinco mil e quinhentos euros) a título de compensação de danos não patrimoniais.
Inconformado, recorre o arguido extraindo da motivação as seguintes conclusões:
A. Interpõe-se Recurso do douto acórdão proferido em primeira instância, que condenou por um crime de violação agravada, previsto nos artigos 164º, nº2, 177º, nº8 e 69º-B, nº2 e 69º-C, nº2 do Código Penal, na pena de 11 anos de prisão, bem como no pagamento a BB da quantia de 35 500,00 €, a título de compensação de danos não patrimoniais.
B. As razões de discordância com a Douta decisão, sob Recurso, prendem-se com o entendimento de que a pena aplicada é excepcionalmente severa, por um lado; e que os montantes a liquidar a título de compensação de danos não patrimoniais são consideravelmente elevados e desproporcionados, por outro.
C. Uma melhor apreciação dos factos dados como provados e uma correta interpretação das normas legais aplicáveis, impõe uma condenação do Recorrente numa pena mais próxima do limite mínimo da moldura penal aplicável, bem como uma redução considerável da quantia a indemnizar.
D. Na determinação da Medida de Pena, o Tribunal não valorou convenientemente e segundo o melhor critério, as circunstâncias suscetíveis de depor a favor do Arguido/ Recorrente, designadamente, a ausência de antecedentes criminais, a idade, a situação de saúde, o acompanhamento/ inserção familiar, junto da filha CC e ainda o pedido de perdão efetuado em plena Audiência de Discussão e Julgamento.
E. Aliás, mal em nosso entendimento, o Tribunal tampouco consignou no douto Acórdão o pedido de perdão efetuado pelo Arguido em sede de julgamento, não se vislumbrando na motivação da decisão condenatória qualquer referência a esse episódio, o que não se compreende.
F. De resto, nunca o Arguido negou a prática dos factos e crime em apreço nestes autos: seja em fase de inquérito, seja na Contestação, seja em Julgamento.
G. Refere, tão só, que não tem memória, uma vez que se encontrava embriagado à data dos factos.
H. O Arguido ao pedir perdão aos familiares da criança, como o fez, admite que tenha praticado os factos em apreço – o que, aliás, é inegável. E assume seriamente essa circunstância mesmo perante o Tribunal – o que foi plenamente desconsiderado e erroneamente interpretado pelo Tribunal a quo.
I. O recorrente está consciente da forte necessidade de se punir com rigor e uniformidade os ilícitos em causa. No entanto, a pena concreta tem como finalidade principal ser um remédio que, não pondo entre parêntesis a censura do facto, potencie a ressocialização do delinquente.
J. A aplicabilidade ou manutenção de uma pena visa a protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade, cfr. nos refere o art. 40º do Código Penal.
K. O art. 70º do Código Penal fornece ao Juiz o critério geral que deve presidir à escolha das penas. De acordo com a referida disposição legal o Tribunal deve ter em atenção no momento da aplicação da pena, aquela que seja adequada e suficiente às finalidades da punição, ou seja, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. (art. 40 nº 1 do C.P.).
L. Por sua vez, a definição da medida da pena concreta, e de que forma se devem relacionar a culpa e as finalidades de prevenção geral e especial, encontra-se vertido no art. 71º do CPenal.
M. A fixação da pena dentro dos limites do marco punitivo é um ato de discricionariedade judicial.
N. Contudo, tal discricionariedade não é livre, mas sim vinculada aos princípios individualizadores que, em parte, não estão escritos, mas que radicam na própria finalidade da pena.
O. Por consequência, a pena deve ponderar, igualmente, a forma de contribuir para a reinserção social do arguido, ao invés de prejudicar a sua posição social para além do estritamente inevitável.
P. Todas as doutrinas sobre prevenção têm como fim último a reinserção social do agente (ressocialização), para o que se deve ter em conta os seus antecedentes criminais e a sua personalidade no conjunto dos factos.
Q. Cotejando o Douto Acórdão recorrido e salvo o devido respeito por opinião contrária, constata-se que, no caso sub judice, não foi pelo Tribunal a quo tida em devida consideração, e na plenitude que se lhe exigia, a globalidade das exigências norteadores previstas no supramencionado dispositivo.
R. Analisada a fundamentação, verifica-se que foram sopesadas em demasia as circunstâncias agravantes. Por seu turno, desvalorizou aquelas que poderiam depor a favor do Recorrente, a inexistência de antecedentes criminais, a inserção familiar e social, a idade e saúde do Recorrente.
S. Cremos que a pena aplicada, face ao princípio da proporcionalidade lato sensu, nas suas três decorrências - adequação, necessidade e proporcionalidade strito sensu - encontra-se totalmente em desarmonia com a punição ótima.
T. Perante um crime de Violação Agravada, previsto nos artigos 164º, nº2 e 177º, nº8 do Código Penal, a moldura penal situa-se numa pena de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão.
U. Parece-nos assim que, salvo o devido respeito por melhor opinião, o Tribunal “a quo” na determinação da medida da pena não apreciou devidamente as circunstâncias que depõe a favor do Recorrente, violando os artigos 70º, 71º nº 1 e nº 2 al. e) e 72º nºs 1 e 2 al. c) do Código Penal.
V. Consideramos, portanto, que qualquer pena aplicada superior a 7 anos de prisão não satisfaz os fins da pena de prevenção geral e especial.
W. Ademais, a indemnização a que foi condenado liquidar a título de danos não patrimoniais, nos termos do art. 82.º-A do CPP, entende-se por excessiva e desprovida.
X. De harmonia com o disposto no artigo 129º do Código Penal a indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
Y. Nestes termos, o normativo legal vertido no artigo 483º n.º 1 do Código Civil, por seu turno, impõe a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos, àquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
Z. CONTUDO, em sede dos danos não patrimoniais preceitua o artigo 496.º/1 do Código Civil que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Estabelece, ainda, o n.º 3 do mesmo artigo que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.ºdo CCivil.
AA. O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, entre outros.
BB. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.
CC. Salvo o devido respeito por melhor opinião, o Tribunal “a quo” ao determinar a quantia indemnizatória a título de danos não patrimoniais, violou os artigos 82.º-A do CPPenal, 129.º do CPenal e ainda os arts. 483.º e 496.º do CCivil.
DD. Face ao descrito supra, à idade do Arguido, às condições sociais e económicas do Arguido, e todos os demais parâmetros atinentes à obrigação de indemnizar, entendemos ser de Fixar-se a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos por BB a quantia de 15 500,00 €.
(…)
Deve ser revogada a decisão recorrida, sendo o Arguido/Recorrente condenado a pena não superior a 7 anos de prisão, e no pagamento de uma compensação pelos danos não patrimoniais sofridos por BB nunca superior a 15 500,00 €.
O M.P. respondeu, concluindo nos seguintes termos:
1. O Tribunal “a quo” atribuiu aos factores que depõem a favor do arguido o adequado relevo face aos restantes factores a ter em conta nesta sede, o que se traduziu numa clara proporção entre a gravidade da infracção em apreço e o “quantum” concreto da pena principal aplicada.
2. Deverá, pois, improceder, o recurso interposto pelo arguido, mantendo-se a decisão recorrida nos seus exactos termos.
Em face do exposto, deverá negar-se provimento ao recurso, e, em consequência, ser integralmente confirmada a douta sentença recorrida.
Neste Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto exarou nos autos douto parecer em que acompanha a posição antes assumida pelo M.P., realçando, não obstante, que o recorrente baseia num facto não provado muito do que alega quanto à pretendida redução da pena, a saber, o pedido de desculpas em sede de audiência; e que ainda que se tivesse dado esse alegado pedido de desculpa como efetivamente ocorrido, este não teria qualquer relevância em termos de redução da pena a aplicar uma vez que toda a postura do arguido aponta no sentido da não admissão dos factos, inventando uma «amnésia» cuja verificação foi ‘desmontada’ de forma muito assertiva no acórdão, pelo que nem sequer se pode concluir pelo seu arrependimento. Quanto ao montante indemnizatório fixado, reputado de excessivo pelo recorrente, entende que está em linha com o que vem sendo fixado noutros casos, indicando um vasto acervo jurisprudencial que o comprova.
Observado o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP, o recorrente respondeu, mantendo a sua posição inicial e pugnando pela procedência do recurso.
Sabido que o âmbito do recurso se delimita pelas conclusões extraídas da correspondente motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, são as seguintes, as questões a decidir:
a. Verificar se ocorre excesso da medida da pena concretamente imposta ao recorrente;
b. Verificar se é excessivo o valor arbitrado a título de indemnização por danos não patrimoniais.
II – Fundamentação:
O tribunal colectivo teve por assente a factualidade seguinte:
1. BB, nasceu em ... de ... de 2019, tendo, à data dos factos, 4 anos de idade.
2. AA nasceu em ... de ... de 1961, em S. Tomé e Príncipe.
3. No dia 28 de outubro de 2023, o arguido deslocou-se a uma festa de aniversário infantil, que se realizou numa moradia de dois pisos, sita na Rua ....
4. Também aí se encontrava DD, pai da BB, pois a criança aniversariante era filha da sua prima.
5. DD tinha conhecido o arguido em ocasião anterior, numa deslocação a uma Loja do Cidadão, pelo que cumprimentou o mesmo e apresentou-lhe os seus dois filhos gémeos, sendo um deles a BB.
6. Mais tarde, o arguido, aproveitando a natural confusão da festa de aniversário, sem que ninguém visse, levou a BB para fora da moradia onde se encontravam e conduziu-a até às escadas de acesso ao prédio com o nº ... da Rua ...
7. Aí, o arguido despiu BB da cintura para baixo e puxou para baixo as suas próprias calças, expondo o seu pénis.
8. O arguido deitou-se sobre o corpo de BB e introduziu o seu pénis ereto na vagina desta, sem preservativo, aí o friccionando com movimentos ritmados de vai e vem, durante alguns minutos.
9. BB, com quatro anos de idade, incapaz de resistir, de gritar por socorro ou de se afastar do arguido, ficou subjugada às investidas deste.
10. Em consequência da ação do arguido BB sofreu laceração da zona vaginal, com sangramento, fortes dores e lesões, o que não obstou a que o arguido continuasse a penetrá-la com o pénis ereto, por forma a se satisfazer sexualmente.
11. Cerca das 22h30 horas, chegado o momento de reunir as crianças para cantarem parabéns a você à aniversariante, procuraram, sem êxito, a BB no interior da residência.
12. Os convivas formaram dois grupos e saíram para a rua, procurando a BB.
13. Pouco depois, um desses grupos viu o arguido deitado de barriga para baixo, com as calças descidas até meio das coxas, nas escadas de acesso ao n.º ... da Rua ..., na ....
14. Debaixo do corpo do arguido estava a BB, deitada de costas, despida da cintura para baixo e com bastante sangue a escorrer da zona da vagina.
15. Foi assistida no Hospital de ..., em Lisboa, apresentando uma laceração himeneal, rodeada de infiltração sanguínea e escorrência sanguinolenta abundante, em consequência da ação do arguido.
16. O arguido agiu com o propósito concretizado de se aproveitar da festa de aniversário onde se encontravam várias crianças presentes, para conduzir a vítima, BB, menor com 4 anos de idade recentemente completados, a um local afastado, com o intuito de satisfazer os seus instintos sexuais, forçando-a a com ele manter relações sexuais, o que quis e conseguiu.
17. Para tanto, o arguido escolheu uma criança de tenra idade, incapaz de, por qualquer modo, opor defesa ou resistência à atuação de um homem adulto, e recorrendo à sua força e superioridade físicas, subjugou-a, ao ponto de ela nem sequer conseguir gritar ou falar, deitou-a no chão, despiu-a, introduziu-lhe o seu pénis ereto na vagina e executou movimentos de vaivém, durante vários minutos, indiferente às consequências da sua ação, mesmo quando verificou que a ofendida sangrava da zona genital.
18. Bem sabia o arguido que as suas condutas eram de molde a prejudicar, como prejudicaram, o normal desenvolvimento da liberdade e da autodeterminação sexual da BB, ofendendo os seus sentimentos de vergonha e pudor e afetando de forma séria o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade.
19. O arguido adotou o comportamento supra descrito, aproveitando a sua superioridade física e a impossibilidade de resistência e defesa de BB, decorrentes da sua pouca idade, agarrando-a e forçando-a a suportar a descrita cópula.
20. Bem sabendo que, dada a morfologia de uma criança de quatro anos, a penetração sexual por um homem adulto, lhe causaria lesões e dores, como aconteceu, o que quis e conseguiu, alheio ao sofrimento da criança.
21. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
*
(Do certificado de registo criminal):
22. Do seu certificado de registo criminal não constam condenações.
*
(Do relatório social):
23. AA nasceu e cresceu na Roça do ..., na ..., em contexto bucólico, enquadrado numa propriedade de um cidadão português.
24. O seu desenvolvimento decorreu no agregado da progenitora, são-tomense, descendente de angolanos, não tendo sido perfilhado pelo pai biológico, cidadão português que frequentava a fazenda onde vivia o arguido, como feitor, pese embora residisse em Portugal, onde mantinha agregado familiar oficial.
25. O arguido desenvolveu curiosidade em vir a conhecer o progenitor, tendo diligenciado nesse sentido durante a idade adulta, sem sucesso, em virtude de o mesmo ter, entretanto, falecido (…).
26. AA cresceu com uma irmã consanguínea e seis irmãos uterinos.
27. (…) Quando contava seis anos de idade verbaliza ter confrontado a progenitora com uma infidelidade do padrasto, fator que precipitou agressões físicas recorrentes por parte deste, entretanto, descobertas e denunciadas em contexto hospitalar, por ocasião de uma deslocação a essa infraestrutura.
28. AA relata com mágoa o posicionamento materno de negação do sucedido, denotando uma vinculação simbiótica com a progenitora, a quem atribui, não obstante, suporte emocional e confidência até ao seu falecimento, em período pandémico, com oitenta e nove anos de idade.
29. Pese embora o seu discurso de veneração da progenitora, surgem dúvidas relativamente à possibilidade de estarmos perante uma idealização irrealista, atendendo à referência a consumos etílicos maternos (vinho de palma) e à ocorrência de problemas de saúde frequentes (seis intervenções cirúrgicas, nomeadamente, ao fígado) e a um distanciamento de funções essenciais, referindo o arguido ter sido a irmã a operacionalizar a sua inscrição na escola.
30. Ainda assim, descreve uma figura materna afetiva que acolheu crianças desfavorecidas e que era estimada localmente, o que terá motivado uma forte concentração de pessoas no seu funeral, ao qual AA afirma não ter logrado comparecer.
31. Ainda no decurso da infância, AA alude a condutas agressivas quando os colegas da irmã exerciam violência física sobre esta, reagindo de forma similar, a fim de a proteger por ser menor e mulher.
32. De igual forma, quando repreendido com a extinta palmatória ou chicote pelos docentes, por erros de desempenho escolar, mais tarde, retaliava, atirando-lhes pedras para provocar a queda das motorizadas que conduziam.
33. A emergência da Revolução de 25 de Abril de 1974 é descrita como uma fase de acentuadas dificuldades, referindo que os governantes procederam à destruição de bens alimentares produzidos por portugueses, o que levou a que a população em geral vivenciasse períodos de escassez alimentar e que o próprio também tivesse de desenvolver atividade laboral.
34. Pese embora o conflito gerado com o padrasto, AA atribui ao primeiro aspetos positivos da sua infância, mormente, a vontade e diligência no sentido de o arguido vir a integrar o sistema de ensino.
35. Neste âmbito, ainda assim, concluiu apenas o 4º ano de escolaridade, face ao facto de se encontrar geograficamente distanciado da rede de ensino disponível, sem sistema de transportes, referindo ter obtido bom aproveitamento e apreciar as aprendizagens realizadas.
36. Iniciou o seu percurso profissional precocemente, como ajudante de canalizador/carpinteiro e, mais tarde, de eletricista, sem auferir rendimentos, o que motivou a transição, aos catorze anos, para uma área distinta, economicamente retribuída, no mesmo contexto da propriedade onde cresceu.
37. A partir dessa idade, iniciou-se na incubação e secagem de café e cacau, áreas que apreciava e manteve até aos vinte e cinco anos de idade.
38. Nesse período da idade adulta integrava uma equipa de futebol amadora, representando a fazenda/propriedade e, foi nesse contexto que o convidaram para integrar o Ministério do Trabalho, como segurança de instalações, tendo passado a integrar, também, a equipa de futebol do organismo em questão.
39. Aos trinta e oito anos viajou até Cabo Verde, por convite à banda musical – ... –com quem tocava viola baixo, ritmo, som e, por vezes, cantava.
40. AA identificou-se mais com o ambiente social de Cabo Verde, considerando o país de origem como foco de intrigas e perseguições, cuja veracidade não nos é acessível, pelo que prolongou a sua estadia pelo período de três anos.
41. Nesse país residia com uma senhora idosa, a quem retribuía a estadia por intermédio do cultivo agrícola e criação de animais.
42. Regressado ao país de origem, dedicou-se a negócios ilegais de comercialização de bens alimentares essenciais e secundários (arroz, pão banana, cerveja, vinho), contudo, veio a incompatibilizar-se com a vizinhança.
43. Numa narrativa eventualmente marcada por peculiaridades culturais e idiossincrasias do próprio, refere ter como amigos alguns polícias, a quem os vizinhos suspeitavam que AA denunciava ilegalidades e crimes (roubos, violações e abusos sexuais de menores) o que terá sido gerador de ameaças e precipitado a mudança do arguido para Portugal (…).
44. O arguido nunca regressou ao país de origem.
45. Há dezoito anos, estabeleceu-se em Lisboa, inicialmente no ... e mais tarde em ...., onde contava com o suporte de uma irmã.
46. Laboralmente, integrou a área da construção civil como servente e ajudante de pedreiro, progredindo para pedreiro.
47. Três anos mais tarde obteve contrato de trabalho, ainda que refira não ter logrado adquirir autorização de residência, o que se mantém até ao presente.
48. AA indica ter mantido uma relação de confiança com um patrão, com quem chegou a fabricar vinho artesanal para consumo, contudo, a transição para a reforma desse patrão, motivou um período de ordenados em atraso e desavenças que culminaram na cessação da colaboração, por iniciativa do arguido.
49. Após esse hiato temporal de maior instabilidade e carências básicas, reintegrou-se na mesma função, sendo que desenvolvia a função há seis meses quando foi detido.
50. A sua trajetória profissional em Portugal é frágil e indiferenciada, não obstante, encara-se como perfecionista e meticuloso na esfera do desempenho profissional.
51. Ainda que relativamente adaptado ao país, onde também voltou a investir na vertente musical, integrando a banda ..., o arguido afirma ter sofrido ameaças que relaciona com os acontecimentos ocorridos em São Tomé, que terão decorrido no Bairro da ..., onde reside o padrinho de um dos seus filhos.
52. Em termos afetivos, AA nunca se vinculou matrimonialmente, pese embora tenha mantido diversas relações amorosas, algumas de maior duração temporal.
53. Desses relacionamentos nasceram vinte e um filhos, dos quais apenas perfilhou seis, por vezes por imposição dos novos companheiros das mães dos filhos.
54. A mais velha, não perfilhada, tem quarenta e quatro anos na atualidade e o mais novo, residente em Portugal, sete anos.
55. A relação mais próxima que mantém é com uma filha de trinta e nove anos, CC, que se encontra grávida novamente e que o visita regularmente no Estabelecimento Prisional da... (EP...).
56. Apesar de referir não pretender contrair matrimónio pela sua qualidade de artista/músico, descreve um primeiro relacionamento em que iniciou a sua vida sexual, no âmbito do qual a então namorada o persuadiu a pedi-la em casamento.
57. O diálogo com os progenitores da namorada é relatado como tenso e insultuoso, por não o considerarem um homem com uma conduta adequada, acontecimento que culminou no esfaqueamento de um braço do arguido, exibindo, em entrevista, a cicatriz.
58. Ainda assim, a namorada engravidou, contudo, o fim da relação e o aparecimento de um novo companheiro resultou no impedimento do arguido para que pudesse perfilhar a sua primeira filha, o que lastima.
59. AA foi o único cuidador dos três primeiros filhos oficiais, aos vinte e dois anos de idade, após o abandono materno, narrativa suportada pela filha CC que descreve um pai presente e protetor, reservado e sereno, o filho preferido da respetiva mãe.
60. O motivo da desavença com a mãe dos filhos é mencionado como a descoberta de uma infidelidade com o melhor amigo, situação não aceite pelo arguido, que persuadiu a então companheira a abandonar o agregado, descrevendo a mãe dos filhos como boa mãe e presente.
61. Contudo, apesar da intransigência relativamente à conduta da ex-companheira, AA refere que também ele mantinha relações extraconjugais, que relativizava pelo facto de ocorrerem em locais distantes da residência.
62. A perspetiva da filha do arguido, CC, relativamente a este acontecimento, espelha a versão da mãe, que atribui ao arguido um perfil ciumento que culminou numa agressão física (estalada) não aceite pela então companheira.
63. Ainda de acordo com a filha do arguido, este manteve o desejo de reatar, encetando esforços nesse sentido o que não veio a suceder.
64. Contrariamente ao relato experiencial de AA, a descendente afirma não ter conhecido nenhuma relação oficial do arguido, entre os seus seis e quinze anos, desconhecendo a intimidade paralela do progenitor.
65. Iniciou a vida sexual ativa aos dezanove anos, no contexto de uma relação estável, com a mãe do filho mais velho.
66. Na sua narrativa partilha ter sido o primeiro companheiro sexual de três das suas parceiras, o que qualifica como importante, sem conseguir justificar, contrapondo de seguida que o mais relevante para si é relacionar-se sexualmente com pessoas em quem confia, solicitando-lhes sempre primeiramente a realização de testes médicos para o eventual despiste de doenças infetocontagiosas, o que nos parece pouco verosímil no contexto onde se desenvolveu.
67. Salienta, também, que a sua vida sexual está associada à componente afetiva, tornando-se especial pelo nascimento de descendentes.
68. No entanto, a representação que elabora neste domínio, é discrepante de um percurso relatado que se pautou por diversas infidelidades.
69. A relação com a mãe do filho mais novo perdurou dez anos, tendo acabado, por um lado, pelo desagrado do arguido perante a inércia da companheira no que concerne a realização de tarefas domésticas e atividade laboral.
70. Por outro, o próprio salienta o impacto nefasto da disfunção erétil que o assomava quando se encontrava sob o efeito do álcool, o que sentia como fracasso ao nível da masculinidade.
71. Independentemente do término da relação, subsistem laços afetivos por parte do arguido dirigidos à mãe do filho, com quem não mantém contactos por opção desta. Acrescenta que o consideravam “burro por andar atrás da mulher” (sic).
72. Antes de ser detido, mantinha, há três meses, uma relação afetiva pouco estruturada que se dissolveu.
73. Na esfera emocional, o arguido apresenta uma narrativa romantizada, de partilha e cuidado mútuo, incompatível com a vida paralela extraconjugal que manteve ao longo da idade adulta.
74. Refere, ainda, que por vezes aderia às relações de intimidade por insistência de elementos do sexo feminino, uma vez que, culturalmente é mal-aceite rejeitar a companhia feminina, significando incapacidade de sentir e/ou dar valor à mulher.
75. AA, efetivamente, reconhece um padrão abusivo de consumo etílico, sobretudo quando assistia à distância a jogos de futebol do seu clube, agravado após a separação da mãe do filho, contudo, refere que no decurso de 2023 já tinha diminuído os consumos, mostrando um discurso ambivalente nesta matéria.
76. No dia dos alegados factos, de acordo com o relato do arguido, encontrar-se-ia sob o efeito de álcool, pese embora indique ter consumido fracas quantidades, estando convencido de que teria sido dopado no local onde ocorreu o crime em apreço e incapaz de ter tido um desempenho sexual eficiente, nessas circunstâncias fisiológicas.
77. No dia em questão, AA alega ter tido um conflito intenso com o sobrinho, que vivia consigo, por esse ter depreciado a mãe do filho mais novo do arguido, com quem teria mantido relação afetiva por divertimento.
78. Essa querela suscitou em AA sentimentos expressos como “nojo e ódio” (sic) em relação ao sobrinho, tendo envolvido, inclusive, violência física, a presença de forças de segurança e a retirada do sobrinho da habitação.
79. Nesta residência, propriedade de terceiro que se encontrará a viver no estrangeiro e terá sido cedida ao arguido, residiam também dois cidadãos são-tomenses, adultos, a quem o arguido prestou auxílio, considerando um deles como filho.
80. Estes tê-lo-ão convencido a deslocar-se à festa de aniversário para desanuviar, associando o arguido a alegada dopagem a uma retaliação do sobrinho, refletindo a sua crença de que “os africanos tendem a prejudicar os outros” (sic).
81. A filha do arguido, fonte auscultada, afirma desconhecer até há pouco tempo os hábitos etílicos do progenitor, tendo rececionado recentemente relatos de terceiros que suportam a narrativa do arguido no sentido da existência de um padrão excessivo regular do consumo dessas substâncias psicoativas.
82. Estas descrições são ainda reforçadas pelo facto de AA beneficiar de acompanhamento psiquiátrico no EP..., para que lhe fosse prescrita medicação adequada à abstinência do álcool, tendo dado entrada no EP... com sinais evidentes de Síndrome de Abstinência Alcoólica, o que é consonante com a narrativa do arguido.
83. O próprio considera ter desenvolvido consciência dos malefícios decorrentes dos consumos apenas em ambiente prisional, por inerência ao contacto judicial em apreço.
84. Em agosto de 2021, um ano após o falecimento da progenitora, AA foi intervencionado ao fígado, o que também poderá evidenciar a existência de problemática aditiva etílica.
85. No âmbito da saúde salientam-se problemas de visão.
86. De acordo com a narrativa do arguido e da filha, AA mantinha uma imagem social positiva, dedicando-se a prestar apoio a vários elementos da sua comunidade de origem, repetindo o padrão materno.
87. A filha afirma que o pai sempre foi conotado como figura de suporte de diversos indivíduos na comunidade, mostrando-se ambivalente face ao contexto atual do progenitor.
88. Por um lado, visita-o regularmente referindo tratar-se de uma referência positiva para si, por outro, reconhece a gravidade da acusação que pende sobre o arguido, levantando questões em relação à futura reinserção deste, nomeadamente aos convívios com os seus filhos, menores.
89. CC, filha do arguido, caracteriza-o como nervoso, numa vertente passiva/contida, adotando como estratégia de gestão da ansiedade/frustração a de tocar viola.
90. Apesar de confirmar que AA está habilitado para a realização de diversas tarefas domésticas, subscreve que este se abstém da realização das mesmas na presença de um elemento feminino, que no passado era a mãe do arguido.
91. EE, amigo conterrâneo e acolhido pelo arguido na habitação onde permanecia, equipara o arguido a uma figura paterna, salientando a sua veia trabalhadora e a disponibilidade para ajudar as pessoas da sua comunidade, ressalvando o seu excelente caráter, bem referenciado no meio social que integram.
92. Como figura próxima e coabitante, EE afirma nunca ter presenciado alterações decorrentes de consumos excessivos de álcool, o que parece pouco credível se atendermos que o próprio arguido reconhece abusos aquando da assistência a jogos de futebol.
93. No que refere o dia dos alegados factos, EE corrobora a existência de um conflito prévio entre o arguido e o sobrinho, com a presença de autoridades policiais.
94. No decurso da festa à qual compareceram juntos, terá perdido contacto com AA, que encontrou mais tarde em estado de apatia e afasia, indicando não ser capaz de confirmar se o arguido se encontrava sob o efeito de substâncias psicoativas nesse momento.
95. Contudo, apesar de negar a existência de uma problemática etílica, EE verbaliza que o arguido consumia um litro de vinho às refeições, quantidades que considera normativas.
96. EE descreve o arguido como pacífico e contido, deixando-se afetar apenas pelo sobrinho.
97. AA afirma não ser capaz de guardar as suas emoções para si, refletindo bastante nos seus comportamentos.
98. No entanto, considera não ser impulsivo nem permeável a influências externas.
99. Encara-se como romântico (escreve letras para tocar na guitarra e cantar) e evitante no que tange eventuais conflitos que, quando emergem são exponenciados, à exceção do círculo familiar.
100. Foi referida pela filha do arguido, uma amiga com uma filha de dois anos, acompanhada pelo arguido em vários aspetos do quotidiano, mormente consultas médicas e deslocações a jardins.
101. Contactada essa amiga, FF, também conterrânea, foi possível corroborar a existência de uma relação de amizade desde há três anos, em que está presente um forte vínculo emocional à menor, com proximidade regular.
102. FF descreve AA como calmo, amigo, eficaz na transmissão de confiança, tímido, respeitador e contido.
103. A amiga nunca presenciou alteração comportamental pela via da ingestão de bebidas alcoólicas, embora assistisse a consumos moderados.
104. Relata choque face à emergência processual, mantendo a confiança e o apoio ao arguido.
105. AA relata, numa narrativa por vezes bizarra e contraditória, uma trajetória de vida associada a hábitos de trabalho e adição etílica associados a um estilo nómada/desprendido, com capacidade de adaptação a novos enquadramentos e vivências.
106. Atualmente, o arguido encontra-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva que tem decorrido sem registo de incidentes.
107. Na atualidade mantém-se adaptado ao meio, reservando-se e refugiando-se na sua fé, por intermédio da leitura bíblica.
108. Afirma, perentoriamente estar triste, pela imagem “de monstro” (sic) que os demais têm sobre si, arrependendo-se de ter permitido estabelecer uma relação de confiança com o sobrinho, o que o torna merecedor de sofrimento.
109. Não obstante, reitera não ter pensamentos suicidas, apresentando planos de futuro que contemplam o desejo de acompanhar os filhos, nomeadamente o mais novo.
110. AA afirma que a filha, apesar de manter suporte emocional, no momento em que tomou conhecimento da existência do processo em apreço, sentiu raiva e indignação perante a possibilidade de o arguido ter cometido o ilícito.
111. O arguido afirma não se rever em condutas análogas às que lhe são imputadas, refere-se aos alegados factos que deram origem ao presente processo verbalizando que se encontrava transtornado, alegando perda mnésica, não sendo capaz de aceitar a possibilidade de ter cometido o delito.
112. AA indica ter consciência da condição da vítima, ainda que com algum distanciamento.
113. Segundo AA, desde os alegados factos que não mantém contactos com a vítima, a quem afirma pretender pedir perdão, no caso de ter cometido o ilícito.
114. CC verbaliza ter contactado o pai da vítima para lhe pedir desculpa, estando consciente da dificuldade de reparação do dano, tendo respeitando a vontade do pai da vítima de não voltar a ser contactado.
115. A filha do arguido afirma, também, que o progenitor a questiona frequentemente se está a par do estado da vítima.
116. No que tange à existência de antecedentes criminais, não obstante a ausência de informação do Órgão de Polícia Criminal competente para o efeito, o próprio refere ter sido acusado de crime de natureza análoga, em contexto laboral, há dois anos, onde terá alcançado acordo extrajudicial, não se revendo nos factos.
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(Do relatório da perícia sobre a personalidade):
117. Em termos intelectuais apresenta um resultado abaixo do esperado para o seu grau académico/nível etário, revelando acentuadas dificuldades ao nível da abstração/ de deduções lógicas.(…).
118. (…) As suas faculdades mentais tornam-no capaz de entender os significados morais, os interditos sociojurídicos e a licitude/ilicitude dos seus atos, reconhecendo em concreto a ilicitude o tipo de atos pelos quais vem acusado.
119. Efetivamente, AA na exploração das questões de foro sexual, reiterou afirmar que alguns comportamentos não seriam corretos, contudo, que acabavam por acontecer (…).
120. (…) O arguido apresenta um percurso de vida com períodos de elevada disfuncionalidade e dificuldades ao nível da socialização/confiança no outro, padrão de pensamento que poderá sofrer a influência de dinâmicas socioculturais específicas, se atendermos que todo o seu desenvolvimento primordial se concretizou na ..., mantendo em Portugal integração na comunidade de origem.
121. Os resultados obtidos no inventário de personalidade apontam no sentido de uma prova válida, apesar da tendência do arguido, em algumas matérias, de se apresentar de forma favorável e de acordo com o socialmente esperado, nomeadamente na romantização das relações de intimidade (…).
122. (…) Ao nível da sua personalidade AA revela características significativas de personalidade dependente, que se traduz em carência afetiva, frequentemente associada a uma sobreproteção parental.
123. (…) Da sua personalidade sobressaem também traços fóbicos/evitantes que consubstanciam a vivência de reforços positivos escassos que, por sua vez, condicionam os contactos sociais, antecipados como dolorosos e negativos, originando a adoção de estratégias de desconfiança e receio perante terceiros.
124. (…) Pese embora se considere especial, o que per si pode sustentar a imagem de uma forte autoestima, efetivamente, o arguido justifica essa afirmação com o facto de gostar de ajudar terceiros e de ser objeto da atenção dos outros, o que reverte para a necessidade de ser apreciado, amado e reconhecido.
125. (…) AA revela-se rígido, ainda que apenas se acesse a essa rigidez por intermédio dos pensamentos e conceções, em virtude de adotar uma postura humilde e afetiva em diálogo face a face.
126. Da narrativa e aplicação/discussão dos seus pensamentos e emoções, resulta um individuo tradicional e com crenças de género, relativamente ao papel do homem e da mulher, encarando o elemento masculino como mais frágil pelas tentações a que está sujeito e a figura feminina como responsável pela vida doméstica e elemento de adoração/adorno e objeto de proteção, concordando com a afirmação de que “Só as raparigas é que são vítimas de abuso sexual”.
127. (…) Os resultados do seu perfil de personalidade sugerem um indivíduo com uma personalidade esquizotípica, evidenciando um padrão de distanciamento funcional cognitivo e interpessoal, com traços de hipersensibilidade e sentimentos de vazio, o que vai ao encontro da verbalização, em sede de entrevista, de sensações análogas, associadas ao falecimento da progenitora, à rutura afetiva com a mãe do filho mais novo e à reação/assimilação interna da sua detenção/constituição de arguido.
128. Também se verificou no perfil de personalidade de AA a existência de um modo de funcionamento cognitivo paranoide, caracterizado pela autorreferenciação, desconfiança e receio de perder a autonomia, com propensão para alguma alienação social.
129. Do emparelhamento e análise de toda a informação obtida, parecem, efetivamente, resultar, pela confluência de vários fatores (disfunção erétil, insegurança/possessividade, conservadorismo) dificuldades nos relacionamentos interpessoais com pares adultos, o que, também, vai ao encontro da concordância do arguido com a afirmação “Os abusadores são pessoas que parecem diferentes pessoas normais” (E.C.A.S.), justificando que essa diferença resulta na incapacidade para comunicar com outros adultos.
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(Mais se provou):
130. Imediatamente após os factos, BB não conseguia falar, apenas chorava.
131. Em consequência da ação do arguido, durante algumas semanas, a ofendida BB sofreu ardor ao urinar, fortes dores, reagindo à realização da higiene na área vaginal e passou a sofrer frequentes infeções urinárias, que nunca ocorreram antes dos factos.
132. Durante muito tempo, não conseguiu ir à casa de banho sozinha e posteriormente passou a fechar a porta, rejeitou o toque ou a presença do irmão e do pai, não permitindo que este lhe desse banho ou lhe trocasse a roupa, ao que reagia com choro e gritos, o que não sucedia anteriormente.
133. Voltou a dormir na cama dos pais, passou a isolar-se, a ter dificuldade no relacionamento com as outras pessoas e tornou-se inquieta, o que não acontecia anteriormente.
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(Da contestação):
134. O arguido tem hábitos de consumo excessivo de bebidas alcoólicas há vários anos.
Foi descrito como não provado o seguinte:
(Da contestação):
1. Até ser detido e preso preventivamente, diariamente o arguido consumia entre 15 e 20 cervejas, 3 a 4 Aguardentes e 3 Whiskeys,
2. O que, também diariamente, lhe retirava a capacidade e discernimento para avaliar as suas condutas e de se determinar de acordo com as essas eventuais avaliações.
3. De que resultou para o arguido consequência nefastas do foro mental, em especial psiquiátrico.
4. À data dos factos descritos no libelo acusatório, o arguido encontrava-se, uma vez mais, sob o efeito desta substância aditiva, o álcool, tendo certamente consumido em quantidades excessivas, que lhe retiraram a capacidade e discernimento para avaliar as suas condutas e de se determinar de acordo com as essas eventuais avaliações.
5. Por padecer da adição ao álcool, ele não foi capaz de avaliar a ilicitude dos que pretensamente praticou, ou de se determinar de acordo com essa avaliação,
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O tribunal não considerou os factos inócuos e sem relevo para a decisão, os factos redundantes, os que, pela sua formulação apenas sugerem eventualidades ou possibilidades (por exemplo, na contestação: (…) Faz suspeitar pela inimputabilidade, ou imputabilidade diminuída, do arguido no momento da prática dos factos descritos na douta Acusação, Podendo ele não ser responsável ou não ter a capacidade penal dos referidos actos )e todos os que consubstanciam conclusões de facto e alterou a redação e sistematização da factualidade descrita, no exercício da liberdade do relator e aditou matéria de facto resultante da prova produzida em audiência de julgamento, relevante para a avaliação das consequências da ação do arguido na saúde física e psíquica da ofendida.
O julgamento de facto foi fundamentado nos termos seguintes:
O tribunal apreciou o conjunto da prova produzida, nos termos do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal que, ressalvados os casos de prova vinculada, confere ao julgador poderes de livre apreciação, o que quer dizer que esta é avaliada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção de quem decide.
O artigo 374º do Código de Processo Penal estabelece os requisitos da sentença/acórdão, entre os quais a fundamentação que, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, consiste na exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Este exame crítico «consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (…). O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte» (Acórdão do STJ de 25-01-2006 (processo n.º 05P3460), disponível em http://www.dgsi.pt.).
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Justifica-se um breve enquadramento dos princípios que regem a prova e sua apreciação em processo penal.
O artigo 127º do Código Processo Penal estabelece, relativamente à valoração da prova, três tipos de critérios: uma avaliação da prova inteiramente objetiva quando a lei assim o determinar; outra também objetiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjetiva, que resulte da livre convicção do julgador.
A convicção resultante da livre convicção do julgador pode ser motivada e fundamentada, mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjetivos, embora explicitados para serem objeto de compreensão” (Ac STJ de 18/1/2001, proc nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88).
Tal como diz o Prof Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, Vol II, pág. 131 “... a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objetiva”.
Ou seja, a livre apreciação da prova realiza-se de acordo com critérios lógicos e objetivos.
Sobre a livre convicção refere o Professor Cavaleiro de Ferreira que esta «é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade» -Cf. "Curso de Processo Penal", Vol. II, pág.30. Por outras palavras, diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é "... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. (…) uma tal convicção existirá quando e só quando … o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável" (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, páginas 203 a 205).
O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no artigo 355º do Código de Processo Penal. É aí que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova.
Nas palavras do Prof. Germano Marques da Silva "... a oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objetiva, atípica, e de valoração pela intima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens". -Cf. "Do Processo Penal Preliminar", Lisboa, 1990, pág. 68”.
Ainda relativamente ao conceito de livre apreciação da prova, ensinou o Professor Figueiredo Dias: “Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável e, portanto, arbitrária – da prova produzida. (...)
(...) a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e ao controlo efetivos.
(...) Do mesmo modo, a “livre” ou “íntima” convicção do juiz, de que se fala a este propósito, não poderá ser uma convicção puramente subjetiva, emocional e, portanto, imotivável.
Uma tal convicção existirá quando e só quando – parece-nos adequado este um critério prático, de se tem servido com êxito a jurisprudência anglo-americana – o tribunal tiver logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.”.
No mesmo sentido de pronunciou o Tribunal Constitucional (Ac. TC 1166/96 de 19-11-1996, in D.R., II, 06-02-97, debruçando-se sobre o artigo 127º do Código de Processo Penal, concluiu que "a regra da livre apreciação de prova em processo penal não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância às regras da experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controle".
Por último, importa referir o princípio constitucionalmente garantido do in dúbio pro reo, nos termos do qual, na decisão de factos incertos, a dúvida deve ser resolvida em benefício do arguido.
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O arguido prestou declarações em audiência de julgamento, confirmando a sua presença na festa de aniversário a que se reporta a acusação, onde se deslocou na companhia do seu amigo EE, afirmando que, durante do dia já tinha bebido um whiskey e uma cerveja e na festa bebeu duas cervejas, sendo uma delas uma mini e um copo de vinho e comeu cachupa.
Negou que o pai da ofendida o tenha cumprimentado e mostrado os dois filhos.
Afirmou que não tem memória da prática dos factos, dizendo que a última coisa de que se lembra é de ver a BB aproximar-se de si e pedir-lhe que lhe pegasse ao colo, o que fez, após o que sofreu um apagão e só voltou a tomar consciência de si na segunda-feira seguinte, quando se encontrava na cela da polícia judiciária, antes de ser conduzido ao tribunal para interrogatório judicial.
Inquirido sobre a natureza desse apagão, não logrou explicar, sugerindo que esteja relacionado com o consumo de bebidas alcoólicas, acrescentando que também costuma beber em excesso quando assiste às competições de futebol do seu clube. Porém, perguntado, respondeu que nunca antes, nomeadamente nesse contexto, tinha sofrido um tal apagão.
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A versão do arguido não merece qualquer credibilidade, desde logo à luz das regras de experiência comum, porque um tal apagão, tal como o descreve o arguido, não ocorre, não é explicável, no caso concreto, pela ciência, nem mesmo se o arguido estivesse fortemente embriagado, situação que não deixaria de ser notada pelas pessoas presentes na festa, o que não aconteceu. Pelo contrário, as testemunhas inquiridas sobre tal matéria foram unânimes em afirmar que o arguido nem aparentava estar embriagado, nomeadamente GG, um dos convidados, DD, pai da BB e até EE, testemunha arrolada pela defesa, que esclareceu que o arguido só tinha bebido duas cervejas antes da festa, contrariamente ao que aquele afirmou.
Mais, as testemunhas que encontraram o arguido nas escadas do prédio próximo, deitado de bruços, no chão, concretamente HH e II, inicialmente pensaram que ele se sentia mal e necessitaria de ajuda, pelo que perguntaram se estava bem, ao que o arguido prontamente respondeu que estava tudo bem. Só depois perceberam que o arguido estava deitado sobre o corpo da BB, momento em que ele se pôs imediatamente em fuga, o que revela que estava lúcido, com clara perceção da realidade e rápido nos reflexos, o que permite afastar o estado de embriaguez incapacitante e o estado de apagão, que mais não é a forma que o arguido escolheu para justificar a prática de factos que não tem como negar, pois foi efetivamente apanhado em flagrante.
Aliás, o relato das testemunhas HH e II, não suscita quaisquer dúvidas, sendo muito clara a perturbação que sentiram e que conseguiram transmitir ao tribunal, quando perceberam que a BB estava debaixo do corpo do arguido, visualizando os pequenos pés entre as pernas deste, calçados com meias cor-de-rosa (visíveis nas fotografias de folhas 130), estando a menina com as calças despidas e a sangrar da vagina, confirmando as testemunhas que a menina nunca falou, não parando de chorar.
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Nos seus depoimentos, dignos e, apesar da forte emoção, admiravelmente serenos e rigorosos, as testemunhas DD e JJ, pais da BB, corroboraram aquela versão, afirmando ele que efetivamente já tinha travado conhecimento com o arguido anteriormente, ainda que de forma breve e que por isso o cumprimentou, estando consigo os seus dois filhos. Mais descreveram o sofrimento da filha e as alterações da sua saúde física e psíquica em consequência da ação do arguido, sendo igualmente perturbador tal relato, nomeadamente na parte em que a mãe refere a pergunta que a BB lhe colocou insistentemente, quando se encontrava hospitalizada, concretamente: porquê o senhor me fez isto?, justificando plenamente a factualidade aditada, descrita sob 130 a 133 dos factos provados.
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Também sustenta as conclusões fáticas o relatório de exame médico-legal sexual, junto a folhas 143 e seguintes, concretamente quanto às lesões que a ofendida apresentava em consequência da ação do arguido, concretamente (…) laceração himeneal (às 03:00 horas, achado este em conformação com a visualização de um relógio adaptado a região himeneal) de características recentes, rodeada de infiltração sanguínea e escorrência sanguinolenta abundante (…).
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A prova pericial, consubstanciada no relatório de criminalística biológica de folhas 254 a 260 também sustenta a factualidade assente relativamente à autoria do arguido, concluindo pela presença de vestígios biológicos na zona anal e vaginal e ainda nas cuecas da BB coincidente com o haplótipo do arguido AA.
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São especialmente relevantes as declarações da ofendida BB, registadas para memória futura (folhas 282) que, não obstante as limitações e fragilidades decorrentes da idade, com muitas dificuldades, referiu ter ido a uma festa, depois do seu aniversário e antes do Natal, que estava frio e era noite, que saiu para a rua com um senhor, que a deitou no chão de barriga para cima, que o senhor lhe mexeu no corpo e no pipi e fez sangue (…).
É notório o desconforto da ofendida no decurso destas declarações, mostrando-se pouco à vontade e, compreensivelmente, pouco colaborante. Nem mesmo conseguiu explicar-se através de um desenho; porém, perante o psicólogo, com recurso a um brinquedo de peluche, típica muleta emocional infantil, apontou para a zona entre as pernas, debaixo da saia.
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A idade e filiação da ofendida BB resulta de prova documental, concretamente o assento de nascimento junto a folhas 427.
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Os factos não provados, todos respeitantes à contestação do arguido, justificam-se perante a ausência de prova, que nem mesmo sustentou o estado de embriaguez daquele à data dos factos, muito menos a invocada inimputabilidade, que o exame de perícia da personalidade afasta, não obstante as perturbações assinaladas, concluindo:
Os resultados obtidos nos instrumentos de avaliação psicológica utilizados complementam e corroboram as informações recolhidas acerca das características de personalidade de AA, assim como do seu percurso vivencial. Em termos intelectuais apresenta um resultado abaixo do esperado para o seu grau académico/nível etário, revelando acentuadas dificuldades ao nível da abstração/ de deduções lógicas. Consideramos, no entanto, que os resultados possam ter sido impactados por outros fatores, nomeadamente, aspetos culturais, ainda que sejam consistentes com o observado em outros parâmetros.
Das entrevistas realizadas, resulta que as suas faculdades mentais tornam-no capaz de entender os significados morais, os interditos sociojurídicos e a licitude/ilicitude dos seus atos, reconhecendo em concreto a ilicitude o tipo de atos pelos quais vem acusado. (sublinhado e negrito nosso).
Efetivamente, AA na exploração das questões de foro sexual, reiterou afirmar que alguns comportamentos não seriam corretos, contudo, que acabavam por acontecer (e.g. “É errado uma mulher e um homem terem relações sexuais antes do casamento”). O arguido apresenta um percurso de vida com períodos de elevada disfuncionalidade e dificuldades ao nível da socialização/confiança no outro, padrão de pensamento que poderá sofrer a influência de dinâmicas socioculturais específicas, se atendermos que todo o seu desenvolvimento primordial se concretizou na ..., mantendo em Portugal integração na comunidade de origem. Os resultados obtidos no inventário de personalidade apontam no sentido de uma prova válida, apesar da tendência do arguido, em algumas matérias, de se apresentar de forma favorável e de acordo com o socialmente esperado, nomeadamente na romantização das relações de intimidade, o que é patente na sua concordância com a afirmação “O sexo sem amor não faz sentido”, mais uma vez, destoante das múltiplas vivências sexuais simultâneas que manteve ao longo da vida. Ao nível da sua personalidade AA revela características significativas de personalidade dependente, que se traduz em carência afetiva, frequentemente associada a uma sobreproteção parental, o que é consonante com as dificuldades emocionais que relatou ao longo das entrevistas e com os dados transmitidos pela descendente. Da sua personalidade sobressaem também traços fóbicos/evitantes que consubstanciam a vivência de reforços positivos escassos que, por sua vez, condicionam os contactos sociais, antecipados como dolorosos e negativos, originando a adoção de estratégias de desconfiança e receio perante terceiros. Este resultado é congruente com o percurso desenvolvimental do arguido, marcado por vínculos inseguros, ainda que o próprio relate a existência de várias experiências afetivas, sobressaindo o medo da perda do amor das figuras significativas e a cristalização na última companheira/mãe do filho mais novo. Ainda que o arguido externalize sinais de confiança nas suas convicções e uma autoestima positiva, verbalizando não valorizar as opiniões de terceiros, o receio, também expresso, da perda de afetos e dificuldades em desvincular-se dos relacionamentos amorosos, parece contradizer a eventual autoestima e segurança que ostenta. Esta contradição, alicerçada numa progenitora vulnerável, porém, idealizada como modelo para o arguido, referindo este ter “perdido tudo” (sic) com o seu falecimento, vem reforçar a tese de que os traços narcísicos emergentes nas provas aplicadas, poderão ser de cariz superficial. Pese embora se considere especial, o que per si pode sustentar a imagem de uma forte autoestima, efetivamente, o arguido justifica essa afirmação com o facto de gostar de ajudar terceiros e de ser objeto da atenção dos outros, o que reverte para a necessidade de ser apreciado, amado e reconhecido. Paralelamente, AA reitera desejar contactos sociais seletivos, apenas com pessoas mais velhas, que, aparentemente, lhe proporcionam a segurança de aprendizagens e proteção relativamente a condutas mais nefastas para si. Esta característica parece enquadrar-se na personalidade dependente, de busca de relações em se possa apoiar para conseguir afeto, segurança e aconselhamento. De igual modo também justifica a emergência de traços esquivos, no sentido de evitar contactos que possam ser antecipados como prejudiciais. AA revela-se rígido, ainda que apenas se acesse a essa rigidez por intermédio dos pensamentos e conceções, em virtude de adotar uma postura humilde e afetiva em diálogo face a face. Da narrativa e aplicação/discussão dos seus pensamentos e emoções, resulta um individuo tradicional e com crenças de género, relativamente ao papel do homem e da mulher, encarando o elemento masculino como mais frágil pelas tentações a que está sujeito e a figura feminina como responsável pela vida doméstica e elemento de adoração/adorno e objeto de proteção, concordando com a afirmação de que “Só as raparigas é que são vítimas de abuso sexual”.
Os resultados do seu perfil de personalidade sugerem um indivíduo com uma personalidade esquizotípica, evidenciando um padrão de distanciamento funcional cognitivo e interpessoal, com traços de hipersensibilidade e sentimentos de vazio, o que vai ao encontro da verbalização, em sede de entrevista, de sensações análogas, associadas ao falecimento da progenitora, à rutura afetiva com a mãe do filho mais novo e à reação/assimilação interna da sua detenção/constituição de arguido.
Também se verificou no perfil de personalidade de AA a existência de um modo de funcionamento cognitivo paranoide, caracterizado pela autorreferenciação, desconfiança e receio de perder a autonomia, com propensão para alguma alienação social.
Do emparelhamento e análise de toda a informação obtida, parecem, efetivamente, resultar, pela confluência de vários fatores (disfunção erétil, insegurança/possessividade, conservadorismo) dificuldades nos relacionamentos interpessoais com pares adultos, o que, também, vai ao encontro da concordância do arguido com a afirmação “Os abusadores são pessoas que parecem diferentes pessoas normais” (E.C.A.S.), justificando que essa diferença resulta na incapacidade para comunicar com outros adultos.
(…) AA apresenta um desenvolvimento intelectual com acentuadas dificuldades ao nível da abstração, ainda que não lhe limite a compreensão da licitude/ilicitude dos seus atos e das suas consequências, mostrando-se ciente do que é socialmente expectável, não obstante a existência de crenças de género e distorções cognitivas na esfera das relações de intimidade. (negrito e sublinhado nosso).
Da sua personalidade sobressaem traços esquizotípicos, esquivos e paranoides, de desconfiança e hipervigilância nas relações interpessoais, que não podem ser dissociadas de um padrão de consumos aditivos etílicos elevado e desvalorizado por elementos do meio onde se insere e, até á detenção, pelo próprio. Nos relacionamentos de intimidade evidencia histórico de dificuldades de desempenho sexual, potenciados pela problemática psicoativa, com repercussões na manutenção das relações afetivas e na própria conceção de masculinidade do arguido, o que é uma fragilidade relevante na matéria em apreciação.
Pese embora detenha capacidade de discernimento e consciência do expectável, AA exibe uma empatia relativa face à vítima, distanciando-se, porém, mantendo o interesse relativamente ao seu estado atual. Sobressaem, ainda, dificuldades na gestão da ansiedade/frustração, aparentemente contida e suprimida no quotidiano, eventualmente expressa desajustadamente em momentos posteriores. No presente, AA encontra-se emocionalmente estável e adaptado ao meio prisional, sem sinais de depressão e/ou ideação suicida estruturada, manifestando planos de futuro dirigidos aos contactos com a família.
Face ao tipo de funcionamento psicológico que se nos sugere apresentar e da avaliação efetuada, em nosso entender, AA beneficiaria de um acompanhamento psicoterapêutico especializado no âmbito da psicologia e psiquiatria, que facilite a estruturação do seu pensamento e a elaboração dos afetos por forma a que possa vir a vivenciar relações afetivas e a respetiva intimidade de forma mais adaptativa, com respeito pela autodeterminação do outro.
A problemática aditiva que exibe também se constitui como um fator de maior vulnerabilidade em termos futuros.
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Releva o certificado de registo criminal junto aos autos, a folhas 426, relativamente à inexistência de condenações anteriores.
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A factualidade respeitante às condições pessoais, resulta do teor do relatório social/perícia da personalidade de folhas 363 e seguintes, conjugado com os depoimentos das testemunhas CC e EE, respetivamente filha e amigo do arguido, por isso com conhecimento direto dos factos a que depuseram.
Ambos o descreveram como boa pessoa, sempre disponível para ajudar os outros e CC disse que é um pai protetor e amoroso. Porém, no decurso do seu depoimento, mostrou-se surpreendida com algumas informações sobre o arguido constantes do relatório social, que o próprio confirmou, nomeadamente a circunstância de ter 21 filhos (dos quais só terá reconhecido seis), pelo que se impõe concluir que não conhece verdadeiramente o seu pai.
Também EE, como ficou consignado acima, não sustentou a versão do arguido, mormente no que respeita à quantidade de álcool ingerida.
Assim, considerando o conjunto da prova produzida, não pode o tribunal dar como assente que seja o arguido boa pessoa.
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Os meios de prova que não foram especificados nesta motivação, não assumiram, em nosso entender, relevância para a descoberta da verdade.
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Entrando no âmbito das questões suscitadas, insurge-se o recorrente contra a pena de 11 anos de prisão que lhe foi imposta em primeira instância pela autoria de um crime de violação agravada, previsto e punido nos termos dos artigos 164º, nº 2, 177º, nº 8 e 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2, todos do Código Penal (diploma a que se reportam todas as demais normas citadas sem menção de origem), sustentando não ter sido observado o critério legalmente previsto nem terem sido devidamente sopesadas as circunstâncias que militam a seu favor.
A título introdutório, há que relembrar que na sindicância da medida da pena o Supremo Tribunal de Justiça apenas interfere na pena fixada pelas instâncias se esta se revelar manifestamente desajustada ou se tiver havido postergação do critério legal. A função dos tribunais superiores na fiscalização da medida da pena não é tanto a de verificar se o seu quantum é exactamente o correcto, mas se a concretização está fundamentada e se a pena foi encontrada em respeito pelo critério legal expresso no art. 71º do Código Penal.
Tomando este pressuposto como ponto de partida e não tendo sido questionado o enquadramento jurídico-penal assumido no acórdão recorrido, que se traduziu na condenação do arguido pela autoria material de um crime de violação agravada, previsto e punido pelos artigos 164º, nº 2, 177º, nº 8 e 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2, há que verificar, à luz das normas aplicáveis e dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, se a pena foi adequadamente fixada.
A moldura penal prevista para o crime em apreço é a de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão. Na concretização da pena, após enquadramento do regime jurídico do tipo, o tribunal recorrido consignou o seguinte:
(…)
É, pois, ilícita a ação do arguido, certo que violou disposições legais e ofendeu os interesses penalmente protegidos da autodeterminação e liberdade sexual e ainda da proteção de menores e do desenvolvimento harmonioso da personalidade.
São particularmente elevadas as exigências de prevenção geral.
E, uma vez que conhecia a ilicitude dos atos que praticou e a legal proibição da sua conduta e, não obstante, quis empreendê-los, agiu com dolo direto (artigo 14, nº1 do Código Penal).
A intensidade do ilícito excede largamente a mediania, atendendo às consequências dele resultantes para a ofendida na sua saúde física e psíquica, atenta a natureza dos atos praticados e a especial vulnerabilidade daquela.
O dolo, atenta a reflexão necessária ao empreendimento da ação, assume intensidade muito significativa, mais elevada no segundo dos ilícitos.
Não resulta da factualidade assente qualquer fundamento atendível da atenuação da culpa, mostrando-se, pelo contrário, a ação especialmente censurável e até próxima da perversidade, bastando atender à circunstância de ter o arguido aproveitado uma festa de aniversário infantil, onde muitas crianças brincam descontraídas e confiantes, num ambiente de segurança, por isso nem sempre com constante supervisão dos adultos.
Não pode, nesta sede, ser atendida a ingestão de bebidas alcoólicas, sendo certo que não se demonstrou que o arguido estivesse embriagado.
Não existem causas de exclusão da ilicitude.
Beneficia o arguido de bom comportamento anterior, consubstanciado na inexistência de condenações anteriores, tendo completado já 62 anos de idade.
Porém, considerando a natureza e a gravidade dos factos, não é possível deixar de admitir a verificação de exigências relevantes de prevenção especial.
Não expressou o arguido arrependimento ou autocensura.
Não beneficia de inserção familiar ou laboral estável.
O segmento do texto transcrito onde se refere, a propósito do dolo, (…) mais elevada no segundo dos ilícitos, só por lapso se consegue compreender, evidenciando menor atenção na revisão final do texto do acórdão, pormenor que não contende, no entanto, com a validade da decisão.
Já em sede de análise da pena fixada, realce-se, numa primeira nota, que no direito penal português contemporâneo, sobretudo desde a revisão operada pelo DL nº 48/95, de 15 de março, o fundamento legitimador da pena, qualquer que ela seja, reside na prevenção. O mesmo é dizer que a aplicação das penas e das medidas de segurança assenta em finalidades exclusivamente preventivas, cabendo à culpa o papel de pressuposto da pena e de limite máximo da sua medida, consagrando-se assim uma concepção preventivo-ética da pena (preventiva, por ser a prevenção o fim legitimador da pena; ética, por esse fim preventivo ser condicionado e limitado pela exigência da culpa) 1.
Em consonância, dispõe o art. 40º, nº 1, que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Assim, a cada tipo legal de crime corresponde uma moldura penal, delimitadora da pena concretamente aplicável ao tipo de ilícito, devendo a sua concretização efectuar-se segundo o critério enunciado no art. 71º, ou seja, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com ponderação de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia depuserem a favor do agente ou contra ele. Haverá que considerar, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando destinada a reparar as consequências do crime, e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
A culpa consiste essencialmente num juízo (ético-jurídico) de censura dum facto típico por referência à pessoa do seu agente 2 por não ter actuado de forma diversa, podendo e devendo tê-lo feito.
O grau de culpa do agente, que determina o limite máximo e intransponível da pena, avalia-se pela ponderação de todos os elementos que na culpa se projectam. Desde logo, avulta o dolo, que se decompõe em três elementos distintos: um elemento intelectual; um elemento volitivo; e um elemento emocional. O elemento intelectual traduz o conhecimento dos elementos objectivos do tipo; o elemento volitivo consubstancia-se na vontade de realização do tipo objectivo, traduzindo o “querer” praticar determinado facto ou ver produzido um determinado resultado; e, por fim, o elemento emocional consiste na atitude interior do agente e revela-se na sua consciência do desvalor do facto e na opção, não obstante, pela conduta 3.
Assume ainda carácter predominante o grau de ilicitude do facto 4, que encontra eco na gravidade objectiva da conduta enquanto reflexo do modo de actuação do agente.
Por seu turno, as exigências de prevenção afirmam-se na dupla vertente da prevenção geral e da prevenção especial, assumindo cada uma delas uma específica função:
– A prevenção geral dirige-se à generalidade dos membros da comunidade jurídica e desdobra-se numa vertente positiva (prevenção geral positiva, de integração ou de socialização 5), através da qual se determina o limite mínimo da pena admissível para o caso concreto, assente na necessidade de garantir a manutenção da confiança da comunidade na validade da norma (a sua eficácia para salvaguardar os bens jurídicos que tutela); e numa vertente negativa ou de dissuasão de potenciais infractores; finalidades cuja prossecução exige um mínimo de punição 6, variável em função do contexto e do momento histórico, capaz de satisfazer aquela dupla função.
– Por seu turno, a prevenção especial acumula uma função positiva de ressocialização do delinquente a uma outra, negativa, de dissuasão da prática de futuros crimes, operando na graduação da pena entre o mínimo reclamado pelas exigências de prevenção geral e o máximo consentido pela culpa (cfr. arts. 40º, nº 2 e 71º, nº 1) como factor de determinação do quantum 7 de pena necessário à ressocialização (entendida como adesão do agente aos valores comunitariamente postergados) e à prevenção da reincidência (que se atinge através duma pena doseada em moldes de representar um sacrifício de tal forma penoso que o agente não quererá repetir).
Da matéria de facto provada retira-se, com utilidade para a caracterização da culpa, que o arguido se deslocou a uma festa de aniversário infantil onde se encontrava a ofendida BB, que tinha, à data dos factos, 4 anos de idade recentemente completados. Aproveitou-se da natural confusão da festa de aniversário e sem que ninguém visse levou a BB para fora da moradia onde se encontravam e conduziu-a até às escadas de acesso a um prédio situado na mesma rua. Aí, despiu BB da cintura para baixo e puxou para baixo as suas próprias calças, expondo o seu pénis. Deitou-se sobre o corpo de BB e introduziu o seu pénis ereto na vagina da menor, sem preservativo, aí o friccionando com movimentos ritmados de vai e vem, durante alguns minutos, ficando a BB incapaz de resistir, de gritar por socorro ou de se afastar do arguido, subjugada às investidas deste. Em consequência dessa ação, a BB sofreu laceração da zona vaginal, com sangramento, fortes dores e lesões, o que não obstou a que o arguido continuasse a penetrá-la com o pénis ereto, por forma a se satisfazer sexualmente. Agiu com o propósito concretizado de se aproveitar da festa de aniversário onde se encontravam várias crianças, para conduzir a vítima a um local afastado com o intuito de satisfazer os seus instintos sexuais, forçando-a a com ele manter relações sexuais, tendo escolhido uma criança de tenra idade, incapaz de por qualquer modo opor defesa ou resistência à atuação de um homem adulto, e subjugou-a recorrendo à sua força e superioridade físicas, ao ponto de ela nem sequer conseguir gritar ou falar, actuando com total indiferença pelas consequências da sua ação, mesmo quando verificou que a ofendida sangrava da zona genital. Sabia, aliás, que as suas condutas eram de molde a prejudicar o normal desenvolvimento da liberdade e da autodeterminação sexual da BB, ofendendo os seus sentimentos de vergonha e de pudor, afetando de forma séria o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, assim como sabia que dada a morfologia de uma criança de quatro anos a penetração sexual por um homem adulto lhe causaria lesões e dores, como aconteceu, o que quis e conseguiu, alheio ao sofrimento da criança.
A configuração dos factos revela um dolo directo de fortíssima intensidade e um grau de ilicitude muito acima da média, daí resultando um grau de censurabilidade da conduta muito elevado. Uma culpa caracterizada nos moldes descritos é compatível com uma pena situada na zona central do terço superior da moldura penal.
Na avaliação das exigências de prevenção, atendendo em primeira linha à prevenção geral nas duas modalidades acima referidas (de integração e de dissuasão), revela-se de grande utilidade o recurso ao Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) referente a 2024, que sinaliza como aumento relevante no âmbito da criminalidade violenta e grave um aumento de 9,9% em comparação com o ano anterior, no número de violações participadas. Este dado objectivo permite afirmar a verificação de crescentes exigências de prevenção geral quanto a este tipo de crime, reclamando do sistema de justiça uma intervenção que restabeleça a confiança comunitária na validade e eficácia das normas penais e aprimore o seu carácter dissuasor, ajustando a concretização da pena às exigências do particular momento histórico. O mínimo de pena admissível situar-se-á, assim, significativamente acima da linha de separação entre o primeiro e o segundo terços da moldura penal, sob pena de menosprezo das finalidades assinaladas à prevenção geral.
Impõe-se, de seguida, a apreciação das razões de prevenção especial, sabido que são estas que em última análise e dentro da moldura compreendida entre o mínimo exigido pela prevenção geral e o limite fornecido pela culpa, irão determinar a medida da pena.
A prevenção especial só entra verdadeiramente em cena se o agente se encontrar efectivamente carecido de socialização 8. Assentando nas necessidades de socialização do agente, impõe a avaliação da sua personalidade tal como revelada no cometimento do crime, nos ilícitos anteriormente praticados, se os houver, e ainda nos demais elementos que, resultando do processo, permitam compreender a essência do seu modo de agir.
A matéria de facto assente comprova uma personalidade disfuncional e volúvel, com propensão para o consumo excessivo de álcool. A ausência de antecedentes criminais é vector cuja relevância se desvanece quando o arguido atenta contra a integridade sexual de uma criança de 4 anos, insensível à dor intensa e a todo o sofrimento que lhe causou, e indiferente aos traumas e sequelas que a sua conduta provocaria na vítima. Está, pois, em causa uma personalidade fortemente desconforme com os valores ético-jurídicos cujo respeito é exigível pela vivência em comunidade, o que permite afirmar a verificação de elevadas exigências de prevenção especial.
Contrariamente ao pretendido pelo recorrente, a sua idade não constitui propriamente um factor que o favoreça do ponto de vista jurídico-criminal. Bem pelo contrário, impunha-lhe um acrescido dever de não cometer os factos que praticou.
Quanto ao suposto pedido de perdão efectuado em audiência de discussão e julgamento, não encontra eco na matéria de facto, sendo por essa razão inatendível.
Neste enquadramento, a pena de 11 anos de prisão encontrada em primeira instância pelo Tribunal Colectivo salvaguarda o mínimo irrenunciável de pena exigida pela prevenção geral positiva sem exceder a medida da culpa e dá resposta às exigências de prevenção especial. É uma pena proporcional aos factos e adequada à conduta desenvolvida pelo recorrente e foi determinada de acordo com o critério do art. 71º do Código Penal, pelo que não poderá deixar de ser havida como uma pena justa, que haverá que manter.
Finalmente, haverá que verificar se o montante arbitrado a título de compensação por danos não patrimoniais é excessivo.
A indemnização por perdas e danos emergente de crime é regulada pela lei civil, como decorre do art. 129º do Código Penal, recaindo o dever de indemnizar sobre o lesante, ou seja, sobre aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios (art. 483º, nº 1, do Código Civil), posto que estejam verificados os requisitos em que assenta a responsabilidade civil extracontratual, a saber, a ocorrência de um facto ilícito, a culpa do lesante, a verificação de um dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Que os danos não patrimoniais são indemnizáveis é algo de inquestionável face ao preceituado no art. 496.º, nº 1, do Código Civil, dispondo que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. O montante correspondente será fixado segundo critérios de equidade, como decorre do nº 4 do mesmo artigo.
A indemnização fixada observou o disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, cujo nº 1 permite ao tribunal arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, ainda que não tenha sido deduzido pedido de indemnização civil, quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham. Trata-se de uma excepção ao princípio do pedido, sempre aplicável no caso de vítimas especialmente vulneráveis (salvaguardado o caso de a própria vítima a isso se opor), como resulta do art. 16º da Lei nº 130/2015, de 4 de setembro (cf. ainda o art. 67º-A, nº 3, do CPP).
O tribunal a quo fixou a indemnização aderindo aos parâmetros apontados na abalizada doutrina de Antunes Varela e Pires de Lima 9, ainda hoje aceite sem reserva pelos tribunais superiores, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc., devendo a indemnização ser proporcional (…) à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.
O valor de €35.500,00 (trinta e cinco mil e quinhentos euros) que veio a ser fixado pelo tribunal a quo encontra respaldo em numerosas decisões jurisprudenciais. Vejam-se, a título de exemplo, as indemnizações arbitradas no proc. n.º 1181/12.6JAPRT.P1.S1, nos valores de €50.000 e de €40.000, por 22 crimes de abuso sexual de crianças (artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal), tendo as vítimas 7 e 6 anos de idade, respectivamente; no valor de €50.000 arbitrada no proc. n.º 1203/19.0JAPRT.S1, por 8 crimes de abuso sexual de crianças, p. p. no art. 171º, nº 1, do Código Penal e 2 crimes de abuso sexual de crianças, p. p. pelo art. 171º, nº 2, do Código Penal, todos agravados nos termos do artigo 177º, nº 1, al. b), do mesmo diploma legal. Aliás, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu douto parecer, fez alargada referência a decisões jurisprudenciais que fixaram indemnizações por danos morais compatíveis com o montante fixado nos presentes autos.
De todo o modo, o que releva de forma particular no caso vertente é a violência do acto praticado sobre uma menor de 4 anos de idade, que inelutavelmente lhe deixará marcas indeléveis. Tratou-se de um acto de verdadeira barbárie, cujas consequências de modo algum são compensadas pelo valor meramente simbólico que veio a ser arbitrado a título de indemnização e que apenas não terá sido superior por força das contingências pessoais do próprio arguido. O valor em causa de modo algum se poderá considerar excessivo, sendo de confirmar sem reservas.
Em suma, o recurso revela-se totalmente improcedente.
III – Dispositivo:
Pelo exposto, acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em 7 (sete) UC (art. 513º, nº 1 do CPP e art. 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e correspondente Tabela III).
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Supremo Tribunal de Justiça, 26 de Junho de 2025
Relator – Jorge Miranda Jacob
1º Adjunto – José Piedade
2º Adjunto – Ernesto Nascimento
(Processado pelo relator e revisto por todos os signatários)
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1. - Cf. Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal - Parte Geral, pág. 66
2. - Para utilizar a expressão de Taipa de Carvalho, trata-se de uma “atitude ético-pessoal de oposição ou de indiferença perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta ilícita” – Direito Penal - Parte Geral, pág. 466.
3. - Sobre o tema, Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, págs. 348 e ss.
4. - Como observa Cavaleiro de Ferreira (Lições de Direito Penal, Tomo I, págs. 66 e ss.) a ilicitude penal desdobra-se em dois juízos ou qualificações: de ilicitude objectiva e de culpa ou culpabilidade, que correspondem à função valorativa e à função imperativa da norma jurídica. O primeiro, é indispensável para a existência do crime e prende-se com a tipicidade do facto. Já o segundo, respeita à sua quantidade ou gravidade. Ao aludir ao “grau de ilicitude”, o art. 71º, nº 2, al. a) do Código Penal tem em vista o último daqueles juízos, pois só esse admite quantificação.
5. - Cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 110-111.
6. - Sobre o tema, Taipa de Carvalho, Direito Penal - Parte Geral, págs 63-69.
7. - Sobre a relação da prevenção especial com o quantum da pena, cf. Anabela Miranda Rodigues, «O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena Privativa de Liberdade», in Problemas Fundamentais de Direito Penal - Homenagem a Claus Roxin, pág. 206.
8. - Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, págs. 81 ss.
9. - Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1987, 4.ª edição, p. 471, 499 e 501.