RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
IDENTIDADE DE FACTOS
REJEIÇÃO
Sumário


I -    O recurso para fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º do CPP, exige que, quer o acórdão recorrido, quer o acórdão fundamento, tenham assentado expressamente a sua decisão na interpretação das mesmas normas legais.
II -   Não existe oposição de julgados quando ambos os acórdãos consideram – embora com formulações e alcances diversos -– que o despacho que recaiu sobre o requerimento de abertura de instrução formou caso julgado formal.
III - Inexiste similitude substancial do núcleo essencial das situações de facto quando, no caso do acórdão recorrido, o respetivo despacho se limitou a declarar aberta a instrução e, no acórdão fundamento, se admitiu expressamente o requerimento para abertura da instrução, se declarou esta aberta, citando para o efeito o art. 287.º, n.os 1, 2 e 3, do CPP, se determinou a notificação a que alude o n.º 5 deste preceito, se deferiu parcialmente as diligências probatórias requeridas pela assistente e se designou logo data para a audição da assistente e inquirição de duas testemunhas, declarando-se ainda que se seguiria o debate instrutório.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:

A - Relatório

A.1. Decisão da primeira instância

Nos autos de instrução com o nº5390/17.3... que correm os seus termos no Tribunal Central de Instrução Criminal- Juiz ... - e nos quais AA é assistente e ora recorrente- foi, em 18 de março de 2024, proferida, no que ora nos interessa, a seguinte decisão:

“Pelo exposto, decido não pronunciar:

- a arguida BB, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p.p. pelo art. 205.°, n.°5, de 915 crimes de falsificação de documento, p.p. pelo art. 256.°, n.°1, al. d), de um crime de branqueamento de capitais, p.p. pelo art. 368.°-A, n.°s 1, 2 e 6, de três crimes de burla qualificada, p.p. pelos arts. 217.°, n.°1 e 218.°, n.°2, als. a) e d), de três crimes de corrupção passiva, p.p. pelo art. 373.°, n.°1, de dois crimes de peculato, p.p. pelo art. 375.°, n.°1, de um crime de participação económica em negócio na forma consumada, p.p. pelo art. 377.°, n.°1, de dois crimes de participação económica em negócio, na forma tentada, de dois crimes de falsificação de documento autêntico, p.p. pelo art. 257.°, al. a) e de um crime de associação criminosa, p.p. pelo art. 299.°, n.°s 1,3 e 5, falsificação de documento autêntico, p.p. pelo art. 257.°, al. a) e de um crime de associação criminosa, p.p. pelo art. 299.°, n.°s 1,3 e 5, todos do Cód. Penal;

-o arguido CC, pela prática de um crime de abuso de confiança

qualificado, de 915 crimes de falsificação de documento, de três crimes de burla qualificada, de três crimes de corrupção passiva, de dois crimes de peculato, de um crime de participação em negócio na forma consumada, de dois crimes de participação em negócio na forma tentada, de dois crimes de falsificação de documento autêntico e

de um crime de associação criminosa;

-a arguida DD, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, de 885 crimes de falsificação de documento, de um crime de branqueamento de capitais e de um crime de associação criminosa;

-o arguido EE, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, de

três crimes de burla qualificada, de sete crimes de falsificação de documento, de um crime de participação em negócio, na forma consumada, de dois crimes de participação em negócio, na forma tentada, de dois crimes de falsificação de documento autêntico, de um crime de branqueamento de capitais e de um crime de associação criminosa;

-a arguida FF, pela prática de três crimes de corrupção passiva, de dois

crimes de peculato, de um crime de associação criminosa e de cinco crimes de falsidade informática, p.p. pelo art. 3º n.°1 da Lei n.°109/2009, de 15 de Setembro;

-o arguido GG, pela prática de um crime de corrupção passiva, de um crime de abuso de poder, de um crime de participação em negócio na forma consumada, de dois crimes de participação em negócio na forma tentada, de dois crimes de falsificação de documento autêntico, de um crime de branqueamento de capitais e de um crime de associação criminosa;

-o arguido HH, pela prática de um crime de burla qualificada e de um crime de associação criminosa;

o arguido II, pela prática de um crime de abuso de confiança

qualificado, de um crime de branqueamento de capitais e de um crime de associação criminosa; e

-o arguido JJ, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, de um crime de branqueamento de capitais e de um crime de associação criminosa, e determinar o arquivamento dos autos (…)

A.2. Decisão do Tribunal da Relação de Lisboa

Inconformado com o mesmo, o assistente AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão proferido a 20 de novembro de 2024, decidiu o seguinte (transcrição integral do dispositivo):

“Nestes termos e, em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em:

Rejeitar por irrecorribilidade o recurso do assistente AA na parte respeitante aos despachos proferidos, respetivamente, no dia 8 de julho de 2022 (fls. 10422) e em 12 de janeiro de 2024 (no início do debate instrutório).

Em não conceder, no demais, provimento ao recurso interposto pelo assistente AA e, em consequência, confirmar na íntegra o despacho de não pronúncia recorrido.

Custas a cargo do assistente fixando-se a taxa de justiça em 4 UC nos termos do artigo

515º nº1 al. b) do Código de Processo Penal”

A.2. O recurso de fixação de jurisprudência

O assistente e ora recorrente AA veio agora interpor recurso de fixação de jurisprudência para este Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no art. 437.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, terminando o recurso com as seguintes conclusões (transcrição integral):

“CONCLUSÕES

a) Nos termos e para os efeitos do que dispõe o artigo 437.º n.º 1 do CPP, o presente recurso é interposto para fixação de jurisprudência, na medida em que o acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 20.11.2024 está em contradição com o acórdão fundamento proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 14.10.2020

b) Ambos os acórdãos versam sobre mesma questão fundamental de direito, que é a saber qual o valor do despacho de abertura de instrução que, após avaliar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente na sequência do despacho de arquivamento pelo Ministério Público, declara aberta a fase de instrução, e consequentemente, amite e ordena a realização das diligências requeridas pelo assistente.

c) Os acórdãos em confronto transitaram em julgado, tendo o acórdão recorrido transitado a 20.02.2025 ao passo que o acórdão fundamento transitou no dia 29.10.2020.

d) Está em causa resolver se da aplicação do artigo 278.º n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal o despacho que admite o requerimento de abertura da instrução – no caso, apresentado pelo assistente – e declara a abertura da instrução faz caso julgado formal, ficando precludido o poder jurisdicional de rejeição, na decisão instrutória, daquele requerimento, fundadanainadmissibilidadelegal dainstrução decorrente da falta de descrição do elemento subjectivo do crime imputado ao arguido.

e) Não houve alteração da redação dos artigo 278.º n.º 3 e 4 do Código Penal entre a prolação dos dois arestos.

f) A situação fáctica subjacente aos acórdãos contraditórios é a mesma, na medida em que por discordar do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, o assistente requereu a abertura de instrução, com os fundamentos contidos no seu RAI, pugnando pela pronúncia dos arguidos quanto à prática dos crimes que ali imputou aos arguidos.

g) Em ambos os casos, o JIC declarou ter tomado conhecimento do conteúdo do querimento de abertura de instrução e, por isso, declarou aberta a instrução, tendo ordenado as diligências requeridas pelo assistente, mas e a final veio a proferir despacho de não pronúncia, não por ausência de indícios, mas por falta de discrição dos elementos subjetivos dos crimes imputados aos arguidos.

h) Perante factualidade idêntica os acórdãos em confronto decidiram em sentido opostos, posto que No acórdão recorrido decidiu-se que: “…o referido despacho é tabelar e genérico e a admitir-se que se forma partir dele um caso julgado formal tal traduz-se apenas na impossibilidade de no processo ser proferido despacho que declare o inverso, ou seja, que a instrução não foi aberta.”. (sic)

i) E que “Assim, considera-se que não qualquer violação de caso julgado formal improcedendo também, neste particular, o recurso do assistente.”

j) Ao passo que no acórdão fundamento se decidiu que: Aqui chegados deveremos concluir que, o despacho do Mmº JIC que admitiu o requerimento da abertura de instrução apresentado pela assistente e declarou aberta a instrução está coberto pelo caso julgado formal.”

k) E que “Em consequência, “Deve a decisão instrutória ser revogada na parte em que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, e ser substituída por outra que aprecie a suficiência ou insuficiência dos indícios da prática, pelos arguidos, do crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 382.º, do CP, que lhes foi imputado pela assistente”.

l) Há, pois, oposição de acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito.

Nestes termos e nos melhores de Direito e

Sempre com o mui douto suprimento dos EGRÉGIOS JUÍZES CONSELHEIROS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, deve ser admitido o presente recurso e, a final, fixada a seguinte jurisprudência:

«O despacho de abertura de instrução que, após avaliar o requerimento de abertura de instrução, declara aberta a fase de instrução, e consequentemente, admite e ordena a realização das diligências requeridas pelo assistente, faz caso julgado formal, devendo serem realizadas as diligências deferidas e, a final proferida decisão instrutória que pronuncie ou não pronuncie o arguido conforme os indícios recolhidos.»

A.3. Respostas do Ministério público e da arguida BB

A.3.1. Resposta do Ministério Público

O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa limitou-se, em substância e singelamente, a afirmar que estão reunidos os pressupostos para a admissão do recurso.

A.3.2. Resposta de BB

A arguida acima referida apresentou resposta, da qual se extraem os seguintes segmentos (transcrição parcial):

1. No caso do acórdão recorrido, o despacho que declara aberta a instrução limita-se a referir "Declaro aberta a instrução ".

2. De facto, como bem refere o acórdão recorrido "o referido despacho é tabelar e genérico".

3. Como é bom de ver, tal despacho não se pronuncia a propósito do cumprimento dos requisitos previstos nos artigos 287.° n.° 2 e 283.° n.° 3 als. b) e d) ambos do Código de Processo Penal.

4. Designadamente não se pronuncia a propósito da legitimidade do requerente, da tempestividade do requerimento, e, para o que aqui releva, do (in)cumprimento do ónus de narração dos factos integradores dos tipos de ilícitos criminais imputados.

5. Relega, pois, o referido despacho tabelar o conhecimento de tais questões para momento posterior como é, aliás, normal.

6. Ora, se no despacho de abertura da instrução não foi especificamente apreciada qualquer questão acerca dos pressupostos da admissibilidade da instrução, a decisão não pode fazer caso julgado formal até porque não há factos decididos nem idem que se possa invocar para um ne bis.

7. Se no aludido despacho o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal se limitou a referir "Declaro aberta a instrução", quando muito poderia falar-se em caso julgado relativamente à questão da abertura da instrução - tendo sido esta a única questão sobre a qual se pronunciou.

8. Isto é, tendo o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal decidido pela sua abertura, não poderia voltar atrás e não realizar o debate instrutório; tão-só.

9. Ora, in casu, os despachos (de abertura de instrução) são diferentes, diversos, não coincidentes no seu conteúdo e alcance.

(…)

27 Como tal, a decisão tomada em cada um dos acórdãos (recorrido e fundamento) partiu de realidade e de pressupostos distintos.

(…)

29 Deste modo, não obstante a existência de decisões diferentes, por diferentes pontos de partida e claro diferentes pontos de chegada, não se verifica qualquer contradição entre os dois acórdãos.

30 Demonstrada que está a inexistência substancial e processual de oposição de acórdãos para os efeitos do n.° 2 do art. 437.° do CPP, não se encontram preenchidos os pressupostos legais de admissão do presente recurso para fixação de jurisprudência, razão por que o mesmo não deve ser admitido e conhecido.”

A.4. O parecer do Ministério Público

Neste Alto Tribunal o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto juntou circunstanciado parecer, no qual conclui pela improcedência do recurso e do qual se extraem os seguintes segmentos (transcrição parcial):

“3.3. A oposição de julgados sobre a mesma questão de Direito afigura–se inexistente.

3.4. Em primeiro lugar, o recorrente alicerça o seu recurso na aplicação normativa divergente do artigo 278.º, n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal, quando é manifesto que nem o acórdão recorrido, nem o acórdão fundamento se debruçam direta ou indiretamente sobre esse normativo que respeita à intervenção hierárquica após despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.

3.5. Em segundo lugar, a ter–se essa identificação normativa como um qualquer lapso e que, afinal, é sobre o artigo 287.º que o recorrente funda a alegada oposição de julgados, vemos que no acórdão recorrido os normativos mobilizados na parte decisória que interessa ao objeto do recurso, são os artigos “287º nº2 e 283º nº3 als. b) e d) ambos do Código de Processo Penal”, enquanto no acórdão–fundamento os normativos convocados para fundar a decisão são os artigos 613º, n.ºs 1 e 3 do CPC (aplicável ex vi do artigo 4º do CPP), e os artigos 619º a 621º do Código de Processo Civil.

3.5.1. Portanto, não estamos perante julgados contraditórios, pois não incidem sobre a mesma questão de direito entendida – como o é pelo Supremo Tribunal de Justiça – como a mesma norma ou segmento normativo aplicado com sentidos opostos a situações fácticas iguais ou equivalentes. Em breve: não foi aplicada a mesma legislação (cf. artigo 437.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).

3.6. Em terceiro lugar, não ocorre uma efetiva oposição de julgados quanto ao reconhecimento ou não reconhecimento do caso julgado formal, pois, analisado o acórdão recorrido nos seus precisos termos, mesmo um despacho tabelar e genérico que se limita a fazer constar “Declaro aberta a instrução” a admitir–se que forme caso julgado formal, só tem um efeito limitado aos seus precisos termos, ou seja, o de ser impossível que venha a ser declarado o inverso.

3.6.1. Portanto, o acórdão recorrido reconhece que se formou caso julgado formal relativamente a essa abertura declarada, mas já não quanto aos demais aspetos da relação processual concreta que o juiz de instrução sempre teria de, obrigatoriamente, apreciar e decidir após realizar debate instrutório, designadamente sobre a ausência de um pressuposto para proceder à comprovação típica dessa fase processual e que se traduzia em concreto no incumprimento do ónus de narração dos factos integradores dos tipos de ilícitos criminais imputados.

3.6.2. Vale isto por dizer que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento não estão em oposição relativamente à mesma questão de Direito relativa ao caso julgado formal do despacho que declara aberta a instrução, apenas fazendo distinções e especificações relativamente ao respetivo âmbito conforme os termos dos despachos que em concreto foram proferidos.

3.7. Em quarto e último lugar, (…)

3.7.1. No caso em apreço, o acórdão recorrido aprecia a força de caso julgado de um despacho tabelar que se limitou a “declarar aberta a instrução”, enquanto o acórdão recorrido se debruça sobre um despacho de abertura de instrução que “admitiu o RAI apresentado pelo assistente [julgando– o legalmente admissível], declarou aberta a instrução de harmonia com o disposto no artigo 287º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPP e, determinou a notificação a que alude o n.º 5 deste precito; ainda, ordenou a autuação como instrução e, deferiu parcialmente as diligências probatórias requeridas pela assistente, tendo designado data para a audição da assistente e inquirição de duas testemunhas, seguida de debate instrutório” e que segundo o recorrente, o despacho de recebimento do RAI julgou–o expressamente tempestivo e legalmente admissível.

3.7.2. Portanto, há na parte relativa ao núcleo essencial das situações de facto uma diferenciação evidenciada pelo âmbito dos despachos sindicados em recurso:

3.7.2.1. num é um despacho tabelar que não aprecia a relação processual e os pressupostos processuais formais ou substantivos atinentes à abertura da instrução,

3.7.2.2. enquanto no outro se aprecia a admissibilidade e tempestividade da abertura da instrução, se manda autuar em conformidade, se defere diligências probatórias requeridas e se designa data para diligências de audição e inquirição, seguida de debate.

3.8. Logo:

3.8.1. Na base dos acórdãos recorrido e fundamento não estão situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia das pretensões recursivas e dos específicos interesses em conflito – sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto.

3.8.2. Por outro lado, entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, não há decisão oposta a decisão, pois o efeito da decisão não importou solução oposta da causa num e noutro acórdão.

Em conformidade, pronunciamo-nos pela inexistência de pressupostos formais, se não forem supridos, e pela inexistência dos pressupostos substantivos exigidos à admissibilidade do presente recurso extraordinário, devendo o recurso ser rejeitado, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. “

A.5. Contraditório do recorrente

Notificado desse parecer, o recorrente não apresentou qualquer resposta

A.6. Nota final

Na sequência da respetiva notificação, o recorrente juntou aos autos certidão do acórdão fundamento, com nota de trânsito em julgado.

* * *

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B - Fundamentação

B.1. Introdução

O recurso extraordinário de fixação de jurisprudência não visa, prioritariamente, tratar do caso concreto, pretendendo-se, sobretudo, numa atitude de muito maior alcance, evitar a propagação do erro de direito judiciário pela ordem jurídica1.

Na verdade, através de uniformização da resposta jurisprudencial pretende-se dar um contributo de grande significado para a interpretação e aplicação uniformes do Direito pelos tribunais, assim se promovendo a igualdade, a certeza e a segurança jurídicas no momento de aplicar o mesmo Direito a situações da vida que são idênticas.

No sentido atrás assinalado veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de fevereiro de 20222

“Trata-se de um recurso de carácter marcadamente normativo destinado unicamente a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade da aplicação do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei.

Constitui um mecanismo procedimental que visa tutelar, primacialmente, uma vertente objetiva de boa aplicação do direito e de estabilidade jurisprudencial3, firmando um determinado sentido de certa norma ou complexo normativo na sua aplicação a situações factuais idênticas.

Não está em causa a reapreciação da bondade da decisão (da aplicação do direito ao caso) proferida no acórdão recorrido (já transitado em julgado). Trata-se apenas de verificar, partindo de uma factualidade equivalente, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa.”

Entretanto e como se assinala no Acórdão de 19 de abril de 2017, também deste Supremo Tribunal,4“o recurso para fixação de jurisprudência é um recurso excecional, com tramitação especial e autónoma, tendo como objetivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.

Do carácter excecional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um grau de exigência na apreciação da respetiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários”, obstando a que possa transformar-se em mais um recurso ordinário, contra decisões transitadas em julgado.

E esta exigência repercute-se com intensidade especial na verificação dos dois pressupostos nucleares: a oposição dos julgados; e a identidade das questões decididas.

Entendendo-se que são insuscetíveis de «adaptação», que poderia pôr em causa interesses protegidos pelo caso julgado, fora das situações expressamente previstas na lei5.

Mas também se repercute na constatação dos demais pressupostos substantivos e, bem assim, dos requisitos formais.

Como se referiu e é entendimento jurisprudencial uniforme6, a oposição, expressa, tem de aferir-se pelo julgado e não pelos fundamentos em que assentou a decisão.

E a questão de direito só será a mesma se houver identidade das situações de facto contemplados nas duas decisões7.”

B.2. Pressupostos formais e substanciais

B.2.1. Pressupostos formais

B.2.1.1. Introdução

Os pressupostos formais específicos8 estão fixados no nºs 1 e 2 do artigo 438º e nos nºs 4 e 5 do artigo 437º, ambos do Código de Processo Penal, estabelecendo aqueles o seguinte:

“Artigo 438.º

(Interposição e efeito)

1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.”

São, então, pressupostos formais:

i. a legitimidade do recorrente;

(ii) o trânsito em julgado dos acórdãos conflituantes;

ii. interposição no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado do acórdão recorrido;

(iv) a invocação do acórdão fundamento, com a eventual junção de certidão, com nota de trânsito, do mesmo;

(v) a justificação, de facto e de direito, do conflito de jurisprudência.

Finalmente e de acordo com jurisprudência fixada no Acórdão (AUJ) n. º5/2006, de 20 de abril de 20069, nesta fase do presente recurso, o recorrente não tem de indicar o sentido da jurisprudência a fixar.

B.2.2. Pressupostos substanciais

B.2.2.1. Introdução

Os pressupostos substanciais estão fixados no artigo 437.º do Código de Processo Penal, que estabelece o seguinte:

Artigo 437.º

(Fundamento do recurso)

1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 - O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.”

São, assim, pressupostos substantivos deste recurso extraordinário:

i. dois acórdãos do STJ tirados em processos diferentes ou um acórdão da Relação que, não admitindo recurso ordinário, não tenha decidido contra jurisprudência fixada e outro anterior de tribunal da mesma hierarquia ou do STJ;

ii. proferidos no domínio da mesma legislação;

iii. assentes em soluções opostas relativamente à mesma questão de direito.

E, como se refere no seu acórdão de 9 de fevereiro de 2022 atrás citado, “na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, os requisitos materiais ocorrem quando:

- as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito;

- as decisões em oposição sejam expressas;

- as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões10.

A contradição das decisões definitivas (transitadas em julgado) tem de ser efetiva e explícita, não apenas tácita.

Os julgados contraditórios têm de incidir sobre a mesma questão de direito. Isto é, a mesma norma ou segmento normativo foi aplicada/o com sentidos opostos a situações fácticas iguais ou equivalentes.

Entende-se que assim sucede quando nos dois acórdãos foi decidida a mesma matéria de direito, “ou quando esta matéria constar de fundamentos que condicionam de forma essencial e determinante, a decisão proferida”11.

“Têm de aplicar a mesma legislação. O que sucede sempre que, entre os momentos do seu proferimento, não se tenha verificado qualquer modificação legislativa com relevância para a resolução da questão de direito apreciada. A identidade mantém-se ainda que o diploma legal do qual consta a legislação aplicada não seja o mesmo12 ou, tendo sido alterado, a modificação não interfere com o sentido com que foi aplicada nas decisões conflituantes, nem veio resolver o dissídio interpretativo que grassava na jurisprudência dos tribunais superiores.

E julgar situações de facto idênticas, similares ou equivalentes quanto aos efeitos jurídicos produzidos. Mesmo que a diferença factual entre as duas causas, a do acórdão recorrido e a do acórdão fundamento, seja inelutável por dizer respeito a acontecimentos históricos diversos, terá que tratar-se de diferenças que não interfiram com o aspeto jurídico do caso13.”

B.3. O caso concreto

B.3.1. Pressupostos formais

Como bem refere o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto, os pressupostos formais mostram-se verificados já que:

O recorrente constituiu-se assistente no processo n.º 5390/17.3T9LSB.L1, da 3.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa pelo que tem legitimidade – artigo 437.º, n.º 5, do CPP – e tem, também, interesse em agir, por ser parte vencida ou prejudicada pela decisão recorrida e o presente recurso poder vir a resolver o conflito alegado de forma a que lhe seja favorável (artigo 445.º, n.º 1, do CPP);

Ambos os acórdãos dos Tribunais da Relação de Lisboa e de Coimbra transitaram em julgado.

O recurso foi apresentado tempestivamente, já que o acórdão relativo à reclamação do acórdão recorrido foi proferido a 6 de fevereiro de 2025 e o recurso foi apresentado no dia 26 do mesmo mês e ano (cf. artigo 138º, nº 1 do CPP);

O recorrente juntou, na sequência de despacho por nós proferido, certidão da decisão por ele indicada como acórdão fundamento;

Conforme resulta da transcrição das conclusões da motivação do recurso, o recorrente justifica porque entende existir um conflito de jurisprudência entre os dois acórdãos proferidos pelos Tribunais da Relação de Lisboa (ac. recorrido) e de Coimbra (ac. fundamento).

B.3.2. Pressupostos substanciais

B.3.2.1 Enquadramento

Antes de se prosseguir para a verificação ou não da existência dos pressupostos substanciais, importa fazer um breve enquadramento do caso em apreço

Assim:

B.3.2.1.1. Acórdão recorrido

No processo em que foi proferido o acórdão recorrido importa referenciar os seguintes factos:

a. Arquivado o inquérito pelo Ministério Público o assistente e ora recorrente apresentou requerimento para abertura de instrução.

b. Face a tal requerimento o juiz de instrução criminal limitou-se a proferiu despacho no qual, de acordo com o acórdão recorrido, se limitou a declarar aberta a instrução.

c. No final dessa fase processual o juiz de instrução proferiu, a 18 de março de 2024, o despacho acima referido, o qual fez anteceder dos seguintes três parágrafos (transcrição integral):

“(…) No caso vertente, conclui-se que, ao contrário daquilo a que estava obrigado, no requerimento de abertura da instrução, o assistente não fez uma descrição de todos os factos, ou seja, da conduta dos arguidos BB, CC, DD, FF, GG, EE, HH, II e/ou JJ que preencha os elementos constitutivos de qualquer um dos crimes que lhes imputa, omitindo, neste particular, em absoluto, a descrição dos factos atinentes quer ao elemento objectivo, quer ao elemento subjectivo de cada um dos crimes imputados.

É assim evidente que a factologia alegada no requerimento para abertura da instrução é insuficiente para permitir a imputação a qualquer um dos arguidos, BB, CC, DD, FF, GG, EE, HH, II e JJ, de qualquer um dos crimes que lhes são assacados naquele requerimento, em virtude de tal requerimento ser manifestamente insuficiente relativamente à descrição de factos que, a indiciarem-se, permitissem concluir pela prática de qualquer um dos crimes em causa, pelo que qualquer despacho de pronúncia que fosse proferido na sua sequência seria nulo, nos termos do disposto nos artigos 308.°, n.°1, 309.°, n.°1 e 303.°, n.°3, todos do Cód. Processo Penal.

Por estas razões, a instrução requerida pelo assistente AA, nas condições em que se apresenta, é legalmente inviável, por votada necessariamente ao fracasso, impondo-se, pois, no caso vertente, a prolação de um despacho de não pronúncia.

Pelo exposto, decido não pronunciar:(…)”

d. Interposto recurso deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa ao mesmo foi negado provimento nos termos acima referidos e com a seguinte fundamentação14:

“Em suma, o recorrente entende que tendo sido declarada aberta a instrução não pode ulteriormente ser proferido despacho de não pronúncia com fundamento na insuficiência de descrição no requerimento de abertura de instrução dos elementos objetivos e subjetivos de cada crime sob pena de violação do caso julgado formal.

É consabido que o caso julgado pode ser formal ou material sendo que o primeiro forma-se se a sentença ou o despacho incidirem, apenas, sobre a relação processual, circunscrevendo-se a sua força obrigatória à questão processual concreta apreciada no processo e o segundo respeita ao mérito da causa subjacente à relação material controvertida e depois de formado tem força obrigatória dentro do processo e fora dele.

No caso vertente o despacho em causa é o que, singelamente, refere “Declaro aberta a instrução”. Ora, o referido despacho é tabelar e genérico e a admitir-se que se forma partir dele um caso julgado formal tal traduz-se, apenas, na impossibilidade de no processo ser proferido despacho que declare o inverso, ou seja, que a instrução não foi declarada aberta.

Se é certo que podia e devia ter sido conhecido liminarmente o incumprimento do ónus processual previsto nos artigos 287º nº2 e 283º nº3 als. b) e d) ambos do Código de Processo Penal e proferido despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução é, também, certo que tal não tendo ocorrido e tendo sido declarada e aberta a instrução e se formado caso julgado formal relativamente a tal abertura, o juiz de instrução tinha de, obrigatoriamente, realizar debate instrutório e decidir sobre a ausência de um pressuposto para proceder à comprovação típica dessa fase processual e que se traduz no suprarreferido incumprimento do ónus de narração dos factos integradores dos tipos de ilícitos criminais imputados.

Assim, considera-se que não há qualquer violação de caso julgado formal improcedendo, neste particular, o recurso do assistente.

(…)

Ademais e conforme resulta do artigo 283º n° 3 al. b) do Código de Processo Penal na formulação da acusação não há lugar à existência de factos implícitos, mas apenas à "narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena...".

Estas considerações são válidas para o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente recorrente mercê do ónus processual imposto pelos artigos 287º nº2 e 283º nº3 als. b) e d) ambos do Código de Processo Penal.

(…)

E compulsado o requerimento de abertura de instrução o assistente não faz como lhe é legalmente imposto a subsunção factual nos termos idênticos a uma acusação: com a devida discriminação dos factos, cronologicamente ordenados, relativamente aos arguidos e aos elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal em causa e, em suma, a exposição factual de todos os indícios que, provados, possibilitem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança a cada um dos arguidos.

Soçobra, pois, neste segmento, o recurso do arguido.

III- DECISÓRIO:

Nestes termos e, em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em:

(…)

Em não conceder, no demais, provimento ao recurso interposto pelo assistente AA e, em consequência, confirmar na íntegra o despacho de não pronúncia recorrido.”

B.3.2.1.2. Acórdão fundamento

No processo em que foi proferido o acórdão fundamento importa referenciar os seguintes factos:

a. Arquivado o inquérito pelo Ministério Público a assistente, KK, apresentou requerimento para abertura de instrução, relativamente aos arguidos LL, MM e NN, a quem imputava a prática de um de um crime de abuso de poder, previsto e punível pelo artigo 382.º, do Código Penal;

b. Face a tal requerimento e de acordo com o constante no acórdão fundamento:

Por despacho de fls. 533/535, o Mmº JIC admitiu o RAI apresentado pela assistente, declarou aberta a instrução de harmonia com o disposto no artigo 287º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPP e, determinou a notificação a que alude o n.º 5 deste precito; ainda, ordenou a autuação como instrução e, deferiu parcialmente as diligências probatórias requeridas pela assistente, tendo designado data para a audição da assistente e inquirição de duas testemunhas, seguida de debate instrutório”

c. No final dessa fase processual e também de acordo com o que consta no acórdão fundamento, o juiz de instrução proferiu, a 29 de outubro de 2019, despacho, no qual decidiu o seguinte:

“(…) rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, por inadmissibilidade legal da instrução, por considerar que há uma omissão relativamente ao elemento subjectivo referente ao crime e a cada conduta que é imputada aos denunciados.

d. Inconformada com tal despacho a assistente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 14 de outubro de 2020, concedeu provimento ao mesmo, nos seguintes termos (transcrição parcial):

“Ora, o despacho que admitiu o RAI e declarou aberta a instrução foi notificado ao Ministério Público, à assistente, aos arguidos e aos seus defensores, de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 287º do CPP, pelo que transitou em julgado.

Assim, a decisão recorrida na parte em que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, que antes havia admitido, desconsiderou princípios basilares do direito, como os da segurança e confiança jurídicas e da protecção das expectativas que haviam sido criados por decisão judicial anterior que não foi objecto de recurso ou de qualquer impugnação pelos sujeitos processuais.”

(…)

Nos termos do artigo 613º, n.ºs 1 e 3 do CPC (aplicável ex vi do artigo 4º do CPP), proferida a sentença (ou o despacho), fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. A sentença ou o despacho em causa, passam a ter força de caso julgado dentro do processo e fora dele (artigos 619º a 621º do CPC).

E, dispõe o artigo 620º (sob a epígrafe “Caso julgado formal”) do CPC que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, excluindo-se os despachos que não admitem recurso: os de mero expediente e os proferidos no uso legal de um poder discricionário.

Assim,

O caso julgado formal apenas tem força dentro do processo, obstando a que o juiz possa,

na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impede que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes, pelo mesmo tribunal ou por outro, entretanto chamado a apreciar a causa.

O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito Ac. do STJ de 18-9-2013, proc. n.º 438/08.5SGLSB.L1-B.S1.

Aqui chegados deveremos concluir que, o despacho do Mmº JIC que admitiu o requerimento da abertura de instrução apresentado pela assistente e declarou aberta a instrução está coberto pelo caso julgado formal.

Em consequência,

Deve a decisão instrutória ser revogada na parte em que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, e ser substituída por outra que aprecie a suficiência ou insuficiência dos indícios da prática, pelos arguidos, do crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 382.º, do CP, que lhes foi imputado pela assistente.”

B.3.2.2 Análise

B.3.2.2.1 Os acórdãos em confronto

Os acórdãos recorrido e fundamento foram proferidos, em processos diferentes, pelos Tribunais da Relação de Lisboa e de Coimbra, respetivamente em 20 de novembro de 2024 e em 14 de outubro de 2020, não havendo, neste momento, a possibilidade de impugnar os mesmos através de recurso ordinário, dado já terem ambos transitado em julgado.

E também não existe acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça que tenha fixado qualquer orientação sobre o caso em apreço.

Assim, está verificado este primeiro requisito.

B.3.2.2.2. A legislação aplicada

O Recorrente alega que o que está em causa é interpretação do “artigo 278.º n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal”

Ora, como bem observa o Ministério Público, nenhum dos acórdãos se reporta a esse artigo.

Com efeito, tal norma tem por epigrafe “intervenção hierárquica” e consubstancia a possibilidade de, na sequência de despacho de arquivamento do inquérito, oficiosamente ou na sequência de requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, o imediato superior hierárquico do subscritor desse despacho poder determinar que seja elaborada acusação ou que as investigações prossigam.

Consideramos, contudo, tratar-se de um lapus calami e que o recorrente se pretendia reportar ao artigo 287º, nºs 2 e 3 do mesmo diploma legal

Assim e como atrás exposto, verifica-se que, no acórdão recorrido, a decisão de não conceder provimento ao recurso se sustentou no disposto nos artigos “287º nº2 e 283º nº3 als. b) e d) ambos do Código de Processo Penal

Já no acórdão fundamento a decisão de conceder provimento ao recurso estribou-se no disposto nos artigos “613º, n.ºs 1 e 3 do CPC (aplicável ex vi do artigo 4º do CPP)” e “619º a 621º do CPC”, em particular no estabelecido no artigo 620º do mesmo diploma legal.

Portanto e em conclusão, os acórdãos recorrido e fundamento não estribaram a suas decisões nos mesmos dispositivos legais, o que significa a falta de um pressuposto substancial para a interposição do recurso para fixação de jurisprudência.

Tanto basta para que o presente recurso não mereça provimento.

Contudo, importa consignar algumas considerações complementares.

B.3.2.2.3.– Considerações complementares

B.3.2.2.3.1.– A (in)existência de oposição de julgados

Por outro lado, também se entende não existir oposição de julgados.

Com efeito, o acórdão recorrido admite e o acórdão fundamento entende que o aludido despacho que recaiu sobre o requerimento de abertura de instrução (doravante “RAI”) formou caso julgado formal.

Contudo, dado ter referido que tal despacho foi meramente tabelar e que apenas declarou aberta a instrução, o acórdão recorrido entendeu que o caso julgado formado apenas podia impedir que se declarasse o contrário ( ou seja “a impossibilidade de no processo ser proferido despacho que declare o inverso, ou seja, que a instrução não foi declarada aberta); já o acórdão fundamento considerou que, dado o mencionado despacho ser mais completo, tinha de ser considerar que tinha apreciado os requisitos do RAI e, por isso, não era possível no final da instrução decidir que a mesma era legalmente inadmissível, devido a deficiências desse requerimento.

Ou seja, ambos admitem / entendem que o despacho que recaiu sobre o RAI formou caso julgado formal.

B.3.2.2.3.2.– A (in)existência de similitude substancial do núcleo essencial das situações de facto

Finalmente, na sequência e complementando o atrás exposto e remetendo para a descrição do iter processual que culminou com a prolação dos acórdãos recorrido e fundamento, verifica-se que as situações de facto não se mostram idênticas.

Com efeito e concordando com o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto:

“No caso em apreço, o acórdão recorrido aprecia a força de caso julgado de um despacho tabelar que se limitou a “declarar aberta a instrução”, enquanto o acórdão recorrido se debruça sobre um despacho de abertura de instrução que “admitiu o RAI apresentado pelo assistente [julgando–o legalmente admissível], declarou aberta a instrução de harmonia com o disposto no artigo 287º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPP e, determinou a notificação a que alude o n.º 5 deste precito; ainda, ordenou a autuação como instrução e, deferiu parcialmente as diligências probatórias requeridas pela assistente, tendo designado data para a audição da assistente e inquirição de duas testemunhas, seguida de debate instrutório” e que segundo o recorrente, o despacho de recebimento do RAI julgou–o expressamente tempestivo e legalmente admissível.

Portanto, há na parte relativa ao núcleo essencial das situações de facto uma diferenciação evidenciada pelo âmbito dos despachos sindicados em recurso: num é um despacho tabelar que não aprecia a relação processual e os pressupostos processuais atinentes à abertura da instrução, enquanto no outro se aprecia a admissibilidade e tempestividade da abertura da instrução, a manda autuar em conformidade, defere diligências probatórias requeridas e designa data para diligências de audição e inquirição, seguida de debate.

Deste modo, pondo em paralelo o que o recorrente julga equivalente e contraditório, o que se constata é que os despachos sindicados e que sustentariam a oposição de julgados a partir de equivalente situação de facto ou processual não têm nada de paralelo ou equivalente, o que na economia da ratio decidendi dos acórdãos em alegada oposição tem diferentes consequências para a apreciação do âmbito das situações cobertas pelo caso julgado formal ou para crédito da vinculação intraprocessual ou de preclusão de nova apreciação sobre a relação processual.

O mesmo é dizer: no caso – e aproveitando o raciocínio de um e de outro dos acórdãos em análise – um despacho tabelar que “declara aberta a instrução” vincula o tribunal a não declarar aberta a instrução, enquanto no caso de um despacho de abertura da instrução que aprecia pressupostos como a admissibilidade – v.g., nos termos dos artigos 287.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, alínea b) e d), do Código de Processo Penal – tempestividade e pertinência das diligências a realizar impede que a relação processual apreciada nessas dimensões volte a ser questionada.”

B.3.3. Conclusão

Concluindo e face ao exposto, entende-se que o recurso é manifestamente improcedente, desde logo porque as decisões dos acórdãos recorrido e fundamento não se sustentaram nas mesmas disposições legais, acrescendo ainda que as questões de direito a que deram resposta eram diversas e que não existe oposição de julgados, desde logo porque as situações de facto não serem idênticas.

C. Tributação

Face a todo o exposto, impõe-se rejeitar o presente recurso, nos termos do disposto no art. 441º, nº 1 do Código de Processo Penal.

Ao abrigo do disposto no artigo 513º do Código de Processo Penal e dos artigos 1,º 2º e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Judiciais (aprovado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de fevereiro), o Recorrente tem de pagar custas judiciais, cuja taxa de justiça varia, in casu e face à Tabela Anexa III ao aludido Regulamento, entre 1 e 5 unidades de conta.

Face ao exposto, tendo em conta a pouca complexidade da decisão, vai condenada em 2 (duas) unidades de conta.

Por outro lado, a rejeição do recurso implica ainda a condenação do recorrente no pagamento de uma importância entre 3 UC e 10 UC (que não são meras custas judiciais, tendo antes natureza sancionatória), por força do disposto no artigo 420º, nº 3, aplicável ex vi art. 448º, ambos do Código de Processo Penal.

Com efeito, são cumulativas a condenação em custas do incidente e em multa, no caso de pedido manifestamente infundado, pois elas visam propósitos diferentes: uma tributa o decaimento num ato processual a que deu causa e a outra censura a apresentação de requerimento sem a prudência ou diligência exigíveis (Salvador da Costa, As custas Processuais, Coimbra: Almedina, 6.ª ed., 2017, p. 86).

Atendendo, por um lado, à pouca complexidade do objeto da decisão e, por outro, à manifesta improcedência do recurso, considera-se ajustado fixar essa importância em 5 (cinco) unidades de conta.

D – Decisão

Por todo o exposto e face à sua manifesta improcedência, decide-se rejeitar o recurso interposto por AA, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 437º, nº. 2, 441, nº 1 e 420º, nºs 1 a) e 3, todos do Código de Processo Penal.

Vai ainda o recorrente condenado no pagamento de 2 (duas) U.C., relativas às custas devidas, a que acrescem 5 (cinco) U.C., nos termos do artº 420º, nº. 3 e 448º do mesmo diploma legal.

Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada

(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Os Juízes Conselheiros,

Celso Manata (Relator)

Ana Paramés (1ª Adjunta)

José Piedade (2º Adjunto)

________________________________


1. Ac. STJ, de 23/07/2016, proc n.º 2023/13.0TJLSB.S1 in www.dgsi.pt

2. Proc 2004/19.0PAVNG.P1-A.S1 in www.dgsi.pt

3. Ac. n.º 75/2020 do Tribunal Constitucional, www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200075.

4. Proc. 175/14.1GTBRG.G1-A.S1 in www.dgsi.pt

5. Ac. STJ de 6/4/2016, Proc. 521/11.0TASCR.L1-A.S1

6. Ac. STJ de 11/01/2017, proc. 133/14.6T9VIS.C1-A.S1, www.dgsi.pt.

7. Neste sentido Ac. STJ de 12/1/2017, proc. 427/13.GAARC.P1-A.S1, www.dgsi.pt/jstj.

8. No sentido de que, a estes requisitos específicos, acrescem os requisitos formais gerais de qualquer recurso

9. Publicado no Diário da República, I Série-A, de 6 de junho de 2006

10. Ac. STJ, de 9-10-2013, 3ª secção proc. 272/03.9TASX, in www.dgsi.pt/jstj.

11. Miguel Teixeira de Sousa, Sobre a constitucionalidade da conversão do valor dos assentos - apontamentos para uma discussão, 1996, pág. 5

12. M. Teixeira de Sousa, ob. e loc. cit.

13. Ac. STJ de 28-05-2015, 5ª secção, proc. 6495/12.2TBBRG.G1-A.S1, in www.dgsi.pt/jstj.

14. O assistente apresentou reclamação desta decisão que foi indeferida por acórdão de 6 de fevereiro de 2025. Contudo, nessa reclamação, o assistente consignou o seguinte:” o meritíssimo JIC não proferiu qualquer despacho tabelar às cegas, posto que expressis verbis declarou que «tomou conhecimento do despacho de arquivamento e do requerimento de abertura de instrução». Seja como for, tal dissidência parece-nos, para o recurso em apreço, irrelevante, não só porque a legislação invocada pelos acórdãos recorrido e fundamento ter sido diferente, mas também por ter de se analisar o caso em função da leitura que o Tribunal da Relação de Lisboa fez dos autos e na qual fundamentou a sua decisão.